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Júlio Resende (2006)

Há uma energia própria que se desprende deste aparente caos em que se adivinha um ordenamento pessoal, quase íntimo, por certo secreto à devassa de um estranho, ao olhar apressado e desatento do intruso. O atelier de Júlio Resende é um desses territórios de uma pessoalíssima geografia humana que esconde, na mesma exacta medida em que revela.

Tal como a própria obra do artista, seguramente. É neste domínio amplo, aberto sobre um espaço verde de onde chegam diferentes gradações de luz, consoante a hora do dia, a altura do mês e a estação do ano, que o pintor recebe o jornalista e se abre para uma conversa de três dias, em longas maratonas, interrompidas apenas pelo cansaço, por um recado ou por uma qualquer necessidade humana e inadiável. A disponibilidade de Júlio Resende é a do Mestre, a quem anos de convívio com as interrogações – e, supõe-se, por vezes, as impertinências – dos alunos, não roubaram o dom da paciência, nem a afabilidade ou uma tranquila bonomia.

O diálogo decorrerá ao sabor do improviso, como o gesto que flui sobre a tela, num desenho que nada se impõe a si próprio. Haverá digressões e regressos, pausas e retrocessos, motivos que se prolongam e temas recorrentes que salpicam a conversa, escorrendo imperceptivelmente de um momento para outros, mais adiante. Esta é, pois, uma conversa, sempre conduzida pela voz do Artista, que se organiza mais em curvas do que em rectas; em círculos, por vezes, mais do que numa geometria angulosa. Fala-se nela, naturalmente, das grandes coisas da Arte, tal como das pequenas coisas da vida. Ou vice-versa: com o a pequeno e um V maiúsculo. Só não se falará – e não foi nada de deliberado à partida; aconteceu assim, simplesmente, com naturalidade – do mercado da Arte, da chamada “bolsa” das cotações artísticas, de modas e tendências e investimentos. Eis uma omissão involuntária mas significativa. É que há situações em que é necessário saber expulsar os vendilhões do Templo.

  Diálogo I Onde o pintor lamenta a tendência actual, no mundo da Arte contemporânea, para se evitar falar de emoções; onde confessa que as três telas brancas que tem no atelier o inquietam permanentemente; onde admite que, em última análise, para cada obra devia ser criado um espaço próprio; e onde há-de confessar:

  “Se eu tinha algum sonho era o de fazer pinturas murais”

 Júlio Resende: Para mim, o espaço pictórico condiciona-me muito, em muita coisa. Embora isto custe a explicar. A minha ideia nem sempre vai para um quadrado ou para medidas certas.

 Carlos Vaz Marques: As ideias que lhe ocorrem têm a ver com um espaço fisicamente pré-definido?

 JR: No fundo, é uma arquitectura que se vai inserir num espaço. Não sei o que pensará um arquitecto. Tem outros problemas, decerto, mas naturalmente funciona muito com a natureza de um espaço. Eu também. 

CVM: É curioso dizê-lo porque talvez a sua faceta de muralista tenha a ver justamente com isso.

 JR: Tem muito, tem. É evidente. Acho que este assunto da visualização de uma obra no espaço urbano, vamos dizer assim, tem muitos problemas que condicionam, depois, o contacto do espectador com esse espaço físico. Há muitas interferências das periferias.

 CVM: É a interferência de tudo aquilo que envolve a obra?

 JR: É. No fundo, aquele espaço que podia ser directo, num ângulo frontal, também depende muito daquilo que se viu. Acho que este é um problema que a museologia, muitas vezes, talvez não afine bem. Se calhar por falta de espaço. Porque – estou a falar de um museu fechado, não é? - uma pessoa faz um percurso, entra…

 CVM: Até chegar à obra depara-se com aquilo a que os arquitectos chamam a envolvente.

 JR: Que é muito importante. Estou a imaginar, por exemplo, o Louvre na altura em que eu lá passei muito tempo. As pessoas chegam e já vêm de fora com toda a presença da cidade, naquele enquadramento: o Sena, ali, tem uma importância muito grande. Depois, o que é que se encontrava. A pessoa entrava – agora não sei se está tudo na mesma, que já não vou lá há muito tempo – e havia a “Vitória de Samotrácia” no cimo da escadaria…

 CVM: Ainda lá está.

 JR: Quer dizer, a pessoa sobe e vê logo aquilo. Depois, nos outros lanços de escada, aquilo mantém-se na memória visual.

 CVM: É logo um choque.

 JR: Suponho que isto condiciona muita coisa. Por razões óbvias, se calhar: não podem fazer um museu para uma peça só.

 CVM: O ideal seria isso: um museu para uma só peça?

 JR: Bem, não digo um museu, mas um espaço próprio. Admite-se que uma pessoa vem de um exterior para um interior…

 CVM: Não é isso que acontece, de certa forma, quando nos deparamos com aqueles frescos magníficos nalgumas igrejas italianas?

 JR: É muito isso.

 CVM: Aqueles frescos de Piero della Francesca que nós, hoje, visitamos com a sensação de que tudo o que está à volta daquelas obras está ali para as envolver.

 JR: Exactamente. Quando eu estava na Escola, isto foi um assunto que me preocupou e que tratei numa peça que fiz para os alunos: um estudo para o funcionamento da cerâmica. Tinha nela um capítulo que falava na arte mural. Aí, comecei a ver as várias hipóteses que há de leitura de uma peça. O confronto. O que se passa psicologicamente. Há muitas coisas que são profundamente importantes para quem vai, para quem se permite fazer a pintura.

 CVM: Quando pinta um quadro não pode considerar essas envolventes todas não sabendo, na maior parte dos casos, onde o quadro irá ficar exposto. JR: Uma coisa é um quadro que se faz num espaço para ir ocupar outro. Agora, se o trabalho é concebido já com essa premissa do espaço, isso tem de ser considerado.

 CVM: Na maior parte dos quadros que pinta isso não é assim.

 JR: Na maior parte, não é. Eu considero que o fim último da pintura é ser sempre uma arte mural. Acho que o atelier é um espaço para o ensaio. A prática da pintura não se baseia em coisas que estão já muito certas no nosso pensar. O atelier é um espaço que propicia as várias tentativas de chegar a uma coisa que nos parece melhor. É, portanto, um espaço de pesquisa. Quando se entra aqui não se pensa isso. Eu estou aqui e, às vezes, isto é um espaço de tortura.

 CVM: De tortura, porquê?

 JR: Porque nem sempre – ou raramente – as coisas correspondem. Quando entra a funcionar o sentido de auto-crítica tenho muitos momentos de desalento terrível.

CVM: Poder-se-ia dizer também que é uma espécie de laboratório?

JR: Bem, o laboratório é para a ciência. A actividade artística tem muito a ver também com a pesquisa, como cientista tem.

CVM: Dizia laboratório justamente no sentido de experimentar, de testar, de tentar algo de novo.

 JR: Sim, é um espaço altamente dinâmico: não estamos aqui adormecidos. É um espaço de provocação. 

CVM: Aquelas telas em branco, ali encostadas à parede, são uma provocação para si?

 JR: São, seguramente. Acontece que neste momento olho para elas e digo assim: será que vou pintá-las, será que ainda vou inscrever lá o meu sinal?

 CVM: Por duvidar da motivação de avançar para elas?

 JR: Não. É porque não sei se vou chegar lá. Ouça, isto é o que eu penso sinceramente. Sinto que ainda queria fazer umas coisas. Vamos a ver. Mas sorrio. Estas coisas não me provocam atitudes dramáticas. Por falar em dramatismo, na linguagem corrente neste universo, no meio artístico, há certas coisas de que as pessoas não falam: as questões do dramatismo, as emoções. Há uma certa tendência, hoje, para se evitar falar das emoções.

 CVM: Está a referir-se apenas ao mundo artístico ou ao mundo em geral?

 JR: A quem observa de fora estas coisas. Sobretudo o olho crítico não gosta, hoje, de falar dessas coisas das emoções. Não se fala muito nisso.

 CVM: Quando começou a pintar não era assim?

 JR: Não. Eu comecei num outro mundo. Hoje é mais difícil. Há pessoas que fazem profissão de serem analistas da Arte. Eu sinto que, hoje, tudo o que é emoção lhes merece um certo olhar pejorativo. Falar de coisas do coração, por exemplo, ou das coisas da alma é uma coisa… Às vezes, vejo artistas que são figuras indiscutíveis e que falam de um acto de amor. Eu não tenho pejo nenhum em dizer que o coração existe. Há talvez um excesso de racionalismo, a querer falar de coisas de uma grande transcendência. Há um bocado de mistificação nestas coisas. Eu acho que a Arte é uma maneira sensível de o Homem estar. De forma mais racional ou mais sensível, acho que o coração manda sempre.

 CVM: A sua atitude em relação à pintura mudou ou, na essência, mantém-se a mesma desde que começou a pintar?

 JR: Eu sou um pintor que sempre se interessou pela figura humana. Por mim e pelos meus semelhantes. A minha pintura raramente deixa de figurar o Homem.

 CVM: Não lhe perguntava tanto acerca do seu trabalho como pintor mas sobre o modo como encara a pintura: o essencial ainda é o mesmo?

 JR: Não se alterou em coisa nenhuma. O que se alterou foi a forma. A forma está variando sempre. Era por isso que eu gostava de viajar. E ainda gosto. Viajar é muito importante: até o ar que se respira é outro quando se muda de continente. Há sempre um despertar para coisas desconhecidas. Algo que não é o nosso comum, que não é o nosso particular.

 CVM: Está sempre sensível a estímulos externos?

 JR: Sim, o mais possível. A minha tentativa é sempre a de ver como as pessoas se comportam num outro clima e em toda uma outra envolvência. Não me foi difícil chegar a conclusões que são minhas. Minhas. Outra pessoa, se calhar, verá outras coisas. Para mim, um determinado povo que visitei é um conjunto de gestos, de atitudes, de cores. Tudo isso que eu sinto com os olhos e com o olfacto. Para mim, o olfacto é muito importante. Respirar é importante. Há cores que penso que se ligam muito a uma terra. Como também a luz, as diferenças de luminosidade, tudo isso.

 CVM: Foi isso que mudou para se manter, na essência, o mesmo pintor?

 JR: Isso é o que me faz mudar.

 CVM: Mas dizia-me há pouco que continua a ser, essencialmente, o mesmo artista.

 JR: Exactamente. Aí, creio, não mudei nada. Bem, eu sou expressionista. Uma vez, expus em Antuérpia – era uma exposição grande – e quando li a crítica (a gente, às vezes, vai lá fora para saber o que os outros dizem de nós, para ver quem somos) fiquei muito surpreendido porque diziam que eu era um expressionista lírico. Eu nunca tinha ouvido ou pensado aquilo. Parece que há uma dissonância nisto. O expressionista, de um modo geral, é alguém que acentua – e eu diria que acentua desalmadamente, embora tudo tenha o seu controlo – o gesto ou o traço ou a matéria ou a cor…

 CVM: Acentua certos aspectos para tornar o essencial mais expressivo.

 JR: Mais expressivo, exactamente. Aquilo que se assemelha ao que é a minha forma de pensar. Os outros vêem nisso um certo lirismo e, se calhar, até é verdade. Realmente, as formas, para mim, são sofridas. Fala-se de uma coisa muito séria que é a vivência das pessoas na busca de uma certa harmonia. Ou, se a não buscam, é porque se sentem bem assim. Eu estou persuadido de que os brasileiros não buscam coisa nenhuma. Estão em sintonia com aquele balanço da natureza: na forma de falar, de percutir com os dedos numa caixa de fósforos.

 CVM: Porque é que diz que, apesar de sentir que é pertinente chamarem-lhe expressionista lírico, encontra uma certa contradição entre o expressionismo e o lirismo?

 JR: Repare, eu não vejo o lirismo como uma expressão violentada. Parece-me que o lirismo tem alguma coisa a ver com algo de atmosférico, muito subtil, e que o lado táctil dificilmente pode atingir.

 CVM: Qualquer coisa de evanescente?

 JR: Exactamente: evanescente. Sabe, isso não me incomoda nada porque quando vim do estrangeiro – eu estive dois anos fora – o meu problema era o de tentar saber o que é que nos particulariza na pintura. 

CVM: Foi descobrir isso no Alentejo.

 JR: Fui. Primeiro, porque era um sítio extremamente sossegado. Segundo, porque era um espaço geográfico e humano que me interessava para os problemas que tinha então. Esqueci-me que era pintor cromático e comecei por ver os problemas mais instantes da arquitectura do quadro. Então digo: é evidente que, em Portugal, não seria possível existir o impressionismo.

 CVM: Porquê?

 JR: Não temos clima para isso. Aí, somos ibéricos. Em Espanha também não houve impressionismo. É uma questão de luz, uma questão geográfica, mesmo. Em Espanha, os bons pintores são todos pintores da matéria, do claro-escuro. Sempre foram. A determinada altura disse: está bem, é aí que eu vou ter de procurar saber como resolver a pintura. Depois, outra coisa foi ver qual seria a diferença entre portugueses e espanhóis. O primeiro ponto tinha-o resolvido: somos ibéricos. Depois, reparei: mas nós somos diferentes. Aí é que a coisa se torna um pouco mais difícil. Apercebi-me, tive a impressão – não posso explicar isto de uma maneira muito reflexiva – que os portugueses são muito dominados pelo oceano Atlântico. Mais do que os espanhóis. Percebi-o e a minha pintura, mais tarde, reflectiu isso mesmo sem eu querer. Quando deixei o Alentejo, vim para o norte e a minha pintura, realmente, alterou-se. Nós não estamos nunca muito seguros do que estamos a ver e ficamos hesitantes. Não fazemos como os espanhóis, decididos.

 CVM: Temos qualquer coisa de brumoso?

 JR: É isso mesmo. Se calhar por isso é que, aqui, o azulejo de fachada teve uma tão grande implantação. Porque o azulejo de fachada é uma coisa curiosa: é algo que varia muito segundo o ponto visual, segundo a luz, parece que é assim mas não é, espelha, etc. Eu não sei se isto é verdade mas parece-me que sim. Depois, pensei noutra coisa: Goya, nem pensar, mas o Velásquez é um pouco como nós. O pai, como sabe, era do Porto. O Velásquez é espanhol mas tem qualquer coisa nossa. Há até alguns analistas que dizem que ele terá sido um pouco percursor do impressionismo. Foram, portanto, estas as razões que me dominaram o pensamento.

 CVM: Isso foram coisas pensadas e reflectidas ou aconteceram e a reflexão sobre elas só veio depois?

 JR: Eu comecei por chegar a Viana do Alentejo e dizer: vou ter que resolver este problema. Era um problema que eu tinha. À medida que fui produzindo, os meus desenhos começaram a ver que, efectivamente, no Alentejo, tudo se pode resumir a rectas: era a planície. Eu olhava para as pessoas, inclusivamente, e via que os trajes são tudo formas recortadas, aparentemente agressivas. Rectas e sinais e pontos. Via tudo em termos de sinais gráficos. Isso deu-me essa estrutura. Depois, não tinha onde me agarrar porque a pintura portuguesa que se fazia era académica. Havia o Sousa-Cardozo, que ninguém conhecia. Aquilo foi a maneira de eu me safar de um compromisso que tinha com essa educação académica.

 CVM: Qual era o seu maior sonho artístico na altura em que se abalançou a fazer a sua primeira exposição, em 1943?

 JR: O meu maior sonho era continuar a fazer esta caminhada. As coisas, a mim, acontecem-me muitas vezes porque tive sorte. Eu sou uma pessoa com sorte. Tive sempre um clima ameno para poder fazer aquilo que me interessava. Quando estive em Itália não tive dúvida nenhuma. Como já disse, o fim último da pintura é levar a sua linguagem ao espaço público. Em Itália, tive a percepção disso. Se eu tinha algum sonho era o de fazer pinturas murais. Entretanto, vim para o Porto, estava aqui no Porto, numa escola secundária – a Gomes Teixeira – que tinha acabado de ser inaugurada e propus-me fazer um fresco na cantina. A escola fez as diligências necessárias junto do Ministério para ver se eles autorizavam que eu fizesse isso e a resposta foi positiva.

 CVM: Foi uma forma de satisfazer essa sua vontade de se dedicar à pintura mural?

 JR: Exactamente. Isso deu-me aquilo que eu desejava: uma certa emoção.

 CVM: Esse fresco ainda existe.

 JR: Ainda existe. Foi recuperado há pouco tempo. Foi uma coisa que eu fiz por gosto. Há muitas coisas que faço por gosto. Não é o resultado financeiro que mais importa. Ainda hoje considero que a pintura mural tem uma missão muito grande.

 CVM: Apesar disso, acabou por lhe dar alguns dissabores: o monumento ao Infante D. Henrique, que não se chegou a concretizar, também era uma obra de Arte mural.

 JR: Isso era mosaico. Mas, penso hoje, aquilo não poderia acontecer. Não estava em harmonia com o resto. Era qualquer coisa de insólito no ambiente de então. Uma coisa que se contou é que Salazar terá dito que o Estado não ia gastar dinheiro num sítio onde não ia ninguém, o Algarve.

 CVM: Chegou a fazer muita Arte mural, como frescos, por exemplo?

 JR: Bastante. Fiz fresco, cerâmica, tapeçaria, vitral.

 CVM: Trabalhos feitos a pensar já, previamente, em espaços específicos?

 JR: A servir o propósito de quem encomendava. Eu só aceito encomendas se elas estiverem de acordo com a minha reflexão. Não aceito fazer só por fazer, para pintar a parede. Primeiro, tenho que ver. Acho que qualquer pintor – ou qualquer artista –, dado que o seu trabalho vai ser inserido num espaço, tem que se rever nesse espaço. Se for uma arquitectura tem de haver uma certa comunhão no pensar arquitectónico entre o pintor e o arquitecto. Porque se não, é um desastre, naturalmente. O que eu acho é que o que se faz a nível de espaços não é o que se vê. Ou não é para ser visto.

 CVM: Então?

 JR: É para ser sentido. É diferente.

 CVM: É como quando passamos na estação do Jardim Zoológico, no Metropolitano de Lisboa, em que podemos não olhar para o seu trabalho mas sentimo-lo. Não estamos a olhar, sentimo-lo. A pessoa sente que aquilo domina aquele espaço. É uma coisa que lhe pertence. Quando se domina é algo que nos pertence. Se não a gente abomina, não domina. Mais: há certos problemas que têm de ser considerados atempadamente. Aquele espaço que parece uma brincadeira, ou um devaneio, não o foi tanto assim. Aquilo tem, também, uma função sinalética. Os corredores são todos mais ou menos iguais, depende da extensão. De maneira que o sinal também facilita. Serve para situar a pessoa. Depois, há problemas de leitura: se é uma praça, é diferente. Se é um corredor, aquilo que se faz tem que se sentir num ângulo determinado


  Diálogo II Onde o artista admite que ao ver certos quadros seus já não se revê neles; onde conta de como, por vezes, não se sente suficientemente crítico de si próprio; onde explica como sonhou, desde sempre, que a Arte pudesse ser algo que desse a toda a gente a percepção de que mundo é um lugar em que a harmonia é possível; e onde revelará: 


“Ribeira Negra foi talvez, para mim, a minha obra mais importante”

JR: A Ribeira Negra, que eu tenho aqui no Porto, é a segunda via da Ribeira, que eu pintei, com quarenta metros. É uma obra que nunca foi vista em Lisboa. Esteve em Madrid, uma vez. É um trabalho muito curioso. Foram 120 metros quadrados, quarenta por três, mas que foram feitos em segmentos de quatro metros cada um, aqui, num atelier pequenino de cerâmica. Dispunha de quatro metros, mandei pôr uma régua e cortei o pano que ia suspendendo com umas tachinhas e ia pintando. Foi uma coisa que saiu sem eu estar a ver o conjunto, embora sentisse mais ou menos o ritmo. Mas aquilo não tinha o espaço adequado. Medi a passos o local para onde foi feito o painel e vi que precisava de quarenta metros. Fiz aquilo rapidamente, em quinze dias.

 CVM: Tinha alguma urgência ou a rapidez foi uma necessidade íntima, sua?

 JR: Isso tem uma história. Eu tinha-me comprometido com o Álvaro Salazar, que tinha um projecto e que afinal não o fez. Não o fez ele, mas eu fiz o painel.

 CVM: Qual era o projecto?

JR: Ele é um homem interessante e estava com uma ideia que tinha um calendário preciso: todos os anos ia fazer uma manifestação musical que queria que fosse inaugurada com a participação de um artista plástico. A intenção era fazer uma comunhão de áreas criativas. A história é essa.

 CVM: Acabou por ficar, disso, apenas a sua Ribeira Negra.

 JR: Acabei por fazer aquilo e fiquei um bocado surpreendido com o efeito. As pessoas entravam numa sala decadente, com o soalho esburacado. Eu pensei: vou fazer a Ribeira no sítio próprio. Foi ali muito próximo da Ribeira.

 CVM: Onde?

 JR: Foi num edifício quase ao lado do sítio onde nasceu o Almeida Garrett. Numa zona histórica da cidade. Essa sala funcionava como uma sala de aula de um colega meu que me propôs: você não quer utilizar a minha sala que eu vou dar as aulas noutro sítio? Foi assim que me decidi a ir ver o local. Quando cheguei lá, disse: é isto mesmo, é para aqui que o vou fazer. Foi imediato. Dali, fui comprar o pano e foi tudo feito num ápice. Quando aquilo foi exposto as pessoas ficaram inseridas no espaço. Eu, agora, brinco com as ideias e digo que, sem querer, fiz um happening, porque as pessoas também participavam. Mas aquilo foi por acaso.

CVM: Terá sido mesmo, apenas, uma coisa do acaso?

 JR: Não sei. Eu não estava a pensar fazer nada de especial. Fiquei surpreendido com o resultado. As pessoas, realmente, participavam no painel.

 CVM: É a sua obra de que sentiu mais efeitos imediatos?

 JR: Para mim, foi talvez a minha obra mais importante. Para mim. Importante, porque foi uma obra a que eu me entreguei de uma maneira fora de todos os contextos. Tinha que ser.

 CVM: Fala de uma entrega em que sentido: artístico, emocional, físico?

 JR: Uma entrega física, total. Quis – vamos dizer assim – inserir-me naquelas manchas. Porque aquilo é tudo a preto e branco. Foi a preto e branco porque a Ribeira, para mim, é qualquer coisa que tem essa dicotomia. Tem cor, também, com certeza que tem, mas é sobretudo dramática, no aspecto humano. Sabe, isto tem a ver com os sons da Ribeira de então. As pessoas praguejavam umas com as outras mas, às tantas, havia uma harmonia e uma afectividade em que se ia de um extremo ao outro, de um modo imediato.

CVM: Aquela Ribeira Negra é a Ribeira do passado?

 JR: Sim, é a do passado. Eu nunca imaginei que houvesse um tal desnível na vida. Hoje, já não é aquilo. É o que tinha que ser. Se calhar, ela não podia manter-se assim muito tempo mais, dada a evolução da técnica e dos tempos.

 CVM: Lamenta que a Ribeira da sua juventude tenha mudado como mudou?

 JR: Sinceramente, lamento. Quando nos faltam estas referências tão fortes, tão vincadas nós caminhamos para uma regularidade em que tudo é semelhante ou parecido. É o que acontece hoje. As feiras, suponho eu, denotam isso. Mas não só aqui. Se uma pessoa for – sei lá! - à Índia ou àqueles sítios mais remotos vê que já tudo está meio padronizado. Os padrões são todos iguais. A vida é assim.

 CVM: Encara isso, portanto, como uma perda.

 JR: Fica, depois, na memória daqueles que o conheceram. Se a obra, de certo modo, evocar isso, acho que é uma maneira de as pessoas verem que o mundo mudou e isso também é bom.

 CVM: Já me disse que o seu sonho maior talvez tenha sido o muralismo…

 JR: Acho que sim.

 CVM: Concretizou todos os seus sonhos artísticos…

 JR: Sim.

 CVM: …ou ficaram alguns por concretizar?

 JR: Vou-lhe dizer uma coisa: não direi que estou totalmente satisfeito. Em consciência estou mas sei que não é fácil aquilo que eu queria. Não é fácil. Eu realmente queria que a Arte fosse – de certa maneira, nisso, a música tem vantagem – qualquer coisa em que as pessoas sentissem, através dela, que o mundo é um lugar onde é possível ver e sentir a harmonia. Para mim, a harmonia não é algo que seja apenas deleite para os olhos e para o espírito. A harmonia, para mim, é qualquer coisa de inquietante também. Mas é a inquietação própria do ser humano. Hoje, eu vejo que as coisas se encaminham muito para uma racionalização excessiva. A cibernética é uma coisa muito boa, vamos a ver se ela consegue aquilo que, até agora, não foi totalmente atingido. Um dos objectivos da Arte é que as pessoas se entendam. Não é para que se entendam na paróquia, é no mundo. Acho que a Arte tem nisso uma função muito importante.

 CVM: A sua Arte tem cumprido a função que lhe destina?

 JR: Aquela que eu podia com o meu – não digo talento mas com as minhas qualidades que, às vezes, afloram assim de repente… Eu participei, ou pelo menos tinha a intenção de participar nessa coisa de fazer uma harmonia que não é uma harmonia passiva. Uma coisa em que as pessoas ainda possam comungar. A música faz comungar as pessoas.

 CVM: Por se reunirem ao mesmo tempo, no mesmo espaço?

 JR: Sim. E não é só pela melodia, é sobretudo no ritmo, que obriga a pessoa a bater o pé. Mesmo se não se bate o pé está-se a senti-lo interiormente. É uma coisa magnífica. Sabe, eu gosto muito de ouvir música. E gosto muito de ver os executantes. Há uma coisa com que até deliro: é quando vejo um japonês ou um chinês inserido num conjunto musical, num naipe de violinos ou qualquer coisa assim. Digo assim: como é possível aquela cultura poder, depois, ser intérprete numa outra cultura? Fico sempre muito surpreendido com isso e é algo que gosto muito de ver.

 CVM: Sente a harmonia de que fala a realizar-se nesse encontro?

 JR: Sinto isso. Eu até gostava de pertencer a um grupo coral, se tivesse voz. Gostava muito de participar num colectivo. Isto do colectivo é muito comigo. Eu nunca ando sozinho. Os meus projectos são sempre acompanhados por colegas meus.

 CVM: Apesar de a pintura ser uma arte solitária.

 JR: Eu não sei se será solitária.

 CVM: Há quadros a quatro mãos?

 JR: Há. Também há. Já fiz isso, também. Digo-lhe: acho que o importante não é só o fazer. Há tanto de comunhão nestas coisas, não é? Bem sei que as pessoas estão um bocadinho esquecidas disso.

 CVM: Olhando, hoje, retrospectivamente, para o seu percurso, há nele alguma coisa que o surpreenda ou encontra nesse percurso uma lógica que se pudesse dizer pré-estabelecida à partida?

 JR: Vou dizer-lhe uma coisa que eu sinto, por vezes, quando há uma exposição e aparecem trabalhos meus mais antigos, dos anos quarenta ou cinquenta: a primeira sensação que eu tenho é de surpresa. Digo assim: será possível? Quase me vejo exteriormente. É quase como se não fosse o autor.

 CVM: “Je est un autre”, escreveu o Rimbaud.

 JR: Sim. Mas aqui é outra coisa: surpreendo-me. Agora, eu sei que houve momentos em que hesitei muito em dar certos passos. Isso é natural, não é? Eu acho que a obra de um artista não está num trabalho, está sempre no todo. É quase penoso ou abusivo estar a falar-se de um artista só por um trabalho. Bem sei que há trabalhos em que o artista pode achar que, ali, atingiu algo mais do que noutros. Embora os problemas sejam sempre diferentes porque variam conforme o tempo, o momento. Mas já não sei onde queria chegar com isto.

 CVM: Estava a dizer que lhe acontece ver trabalhos seus dos anos quarenta e cinquenta e sentir-se um pouco estranho a esses trabalhos.

 JR: Sim e fico surpreendido. Embora sinta que aquilo é qualquer coisa que eu consegui fazer. Não é em grande quantidade mas é qualquer coisa que teve uma certa posição, em determinado momento.

 CVM: Reconhece-se, ainda hoje, de alguma forma, nesses primeiros trabalhos?

 JR: Reconheço. Todas as minhas marcas que foram registadas, não o foram por uma atitude leviana. Naturalmente fui influenciado. Não há ninguém que não seja. Se calhar, aqui e ali, houve uma influência. Às vezes, isso vê-se isso a posteriori. Tive uma fase – sobretudo nos meus desenhos, na estrutura do quadro – em que, depois de os fazer, senti que aquilo tinha acontecido, suponhamos, até por influência de um escultor, o Henry Moore. Tudo isso foi necessário para chegar a outras coisas. Foi preciso passar por ali. Há um percurso.

 CVM: Encontra uma coerência clara nesse percurso?

JR: Eu encontro coerência. Agora, do que posso duvidar é de que esteja tudo afinado nessa onda. Não digo que haja retrocessos mas há coisas que vêm de trás. Há um sinal que eu fiz desde os meus dez anos, uma curva que nunca mais a larguei. Embora a minha pintura não sejam só curvas - no Alentejo não fiz essa curva.

 CVM: É uma espécie de marca registada, sua?

 JR: Isto sou eu que vejo, são aproximações a coisas.

 CVM: O que é que tem essa curva de particular?

 JR: Eu não lhe posso explicar como é: define-se pelos seus acidentes. Uma curva é uma linha que, em princípio, não tem acidentes. Mas tem sempre acidentes, embora não estejam lá. Uma curva não é o resultado de uma circunferência. Não tem a regularidade feita por um objecto, tem um sentimento. Uma vez, em Paris, fiz um quadro de uma coisa que vi da janela...

 CVM: "A Velha".

 JR: "A velha". Rapidamente, fiz o quadro. Que também não é assim muito grande. Essa figura tem essa curva. Era a curva que eu via nos xailes das mulheres da Ribeira. É um sinal que vem desde a Ribeira. Ainda hoje, nas coisas que faço, de Goa, existe essa curva. Quando a vejo ela agarra-me.

 CVM: Agarra-o: quer dizer que tenta escapar-lhe?

 JR: Às vezes. Eu não me queria repetir, nem na curva. Acho que quando se repete uma coisa está tudo estragado. Há aquela frase de um pintor alemão que diz: “o pintor procura; quando encontra está perdido”.

CVM: Alguma vez pensou que tinha encontrado?

 JR: Não, nem quero encontrar.

 CVM: Mas nunca teve a sensação de estar à beira de encontrar?

 JR: Sim, mas detesto. Isso dá lugar àqueles desaires que se passam, às vezes, dentro das quatro paredes. Não ser capaz, não encontrar a via. É algo que dá muitos amargos de boca.

 CVM: Tem tido muitos?

 JR: Tenho. Às vezes sou enganado porque parece que as coisas estão bem.

 CVM: É muito cáustico consigo próprio?

 JR: Não o sou suficientemente. Sabe, eu gosto do cachimbo: pois, às vezes saio e não levo o cachimbo, de propósito.

 CVM: Para se penalizar?

 JR: Sim. Porque é que hei-de estar a obedecer àquilo? Eu fumava cigarros mas não era um grande fumador. Estava a pintar e o fumo entrava-me para os olhos. Para mim, aquilo era um objecto. Quase como um pincel.

 CVM: Um adereço.

 JR: Às vezes, até me enganava e deitava fora o pincel. Desde Fevereiro de 1947 que fumo e continuo a fumar.

 CVM: Como é que sabe a data e o mês e tudo?

 JR: Foi quando cheguei a Paris. Nunca mais o esqueço. Foi num Inverno muito rigoroso. Era agradável sentir a mão um bocadinho quente.

 CVM: O cachimbo para a mão esquerda e o pincel para a mão direita: era isso?

 JR: O cachimbo na boca, às vezes. Estas coisas passam-se e a pessoa nem está a notar o que está a acontecer. Há muitas coisas que se passam e nós não damos por elas.

 CVM: Isto vinha a propósito dos amargos de boca.

 JR: Quem é que não os terá? Há certas coisas que me fazem pensar e que muitos artistas fizeram. O Van Gogh pintou três retratos. Não sei como foi possível.

 CVM: Também fez, em tempos, o seu auto-retrato.

 JR: Mas eu não sou muito retratista. Tenho um que fiz era eu… não digo imberbe, mas foi há muito tempo.

CVM: Depois disso não voltou a fazer mais nenhum?

 JR: Não, é raro. Às vezes, há umas silhuetas que, se calhar, sou eu. Mas não é retrato de maneira nenhuma. Já cheguei a pensar que gostava de experimentar fazer retrato. Tenho feito alguns mas a coisa não sai cá muito de dentro. Sai muito da vista.

 CVM: Há uma diferença grande entre o que sai da vista e o que vem de mais fundo?

 JR: Sim, sim. A vista é um dom. Mas não é um dom para criar. Agora, disse uma coisa que deve ser uma tolice.

 CVM: Ou, se calhar, não.

 JR: Sabe, eu gosto de ver o neo-realismo. Mesmo no cinema. Mas aquilo instaurou-se num certo tempo e depois passou. Porque é que aquilo passou? Se calhar, as pessoas acabam por ver que a realidade já se esgotou. Sobretudo, naquele período do cinema italiano. A realidade é qualquer coisa que nos surpreende e que nessa medida nos agita. E se somos pintores pegamos nela. Mas sem a ver.

 CVM: Interiormente?

 JR: Pois. Há coisas que não vale a pena estar a pintar.

 CVM: Por exemplo?

 JR: Eu nunca tive dúvidas de que a fotografia podia ser uma Arte. Agora é reconhecida mas eu sempre achei que era. Mas também é uma hipótese para atrair as pessoas. Uma coisa muito bela fotografada, se calhar, perdeu algo.

 CVM: O que me está a querer dizer é que as coisas não são só aquilo que se vê?

 JR: Pois. Quando eu ia para a Alemanha, uma coisa que gostava muito de fazer era aproveitar as paisagens para fazer desenhos. Os bosques, na Alemanha, fascinaram-me. Uma vez, em que cheguei lá, a casa da minha filha, ela tinha uma visita: era um fotógrafo. Quando viu as minhas coisas ele disse: eu estou a fazer isso em fotografia. Houve ali uma coisa curiosa: ele fazia fotografias dos troncos, sem efeitos nenhuns. O homem perdia horas e horas à espera da luz para fixar os troncos.

 CVM: Era aquilo que o mestre Resende também tinha captado no seu bloco?

 JR: Pois era. E então acabámos por fazer uma exposição - ainda tenho umas fotografias grandes, a cores - e demos àquilo o título "O reino das aparências". A exposição devia ser feita na Alemanha mas acabou por se fazer cá, em Lisboa, em Coimbra e aqui no Porto. Lembrei-me agora desta coincidência temática com meios diferentes. Aquilo que eu pensava que era uma maçada - estar num bosque - depende. Porque o bosque é uma paisagem extremamente dinâmica: se está sol vemos aquelas manchas que se vão modificando. Afinal, tudo pode ser curioso na vida.

 CVM: Então o dom de ver sempre tem as suas vantagens.

 JR: Tem, mas... Quero contar-lhe isto: uma vez fiz aqui uma série de aguarelas – tenho para aqui um documento com isso, feito em super-oito mas passado para vídeo – sobre o rio. Vi aqui a água, junto à margem. Sentia que tudo aquilo vinha à superfície, que se movimentava. Fiz uma série de aguarelas só disso. Parece uma coisa abstracta. A aguarela, para mim, é uma coisa espantosa como exercício. O trabalho foi filmado e quando vi aquilo projectado fiquei admiradíssimo. Parece o desenho de um coreógrafo, um bailado. Nunca tinha visto.

 CVM: É o bailado da mão a pintar?

 JR: A mão a pintar e o que faz o pincel. Faz assim… Parece que volta atrás. É uma dinâmica enorme. Uma coisa bonita.

 CVM: E tem um ritmo muito próprio, tem o seu tempo.

 JR: Pois tem. Eu, ao fazer, nunca tinha pensado nisso, mas ao ver… Isto tem servido para eu dizer aos jovens o que é o gesto. Às vezes, parece que não tem significado nenhum e afinal estamos sempre a escrever ritmos sem nos apercebermos.


  Diálogo III Onde se conta de como o jovem que parecia destinado à música teve de deixar de tocar piano depois de triste acidente de infância; onde recorda que as suas memórias mais antigas não são visuais mas sonoras; onde revela como travou conhecimento com a obra do pintor que mais viria a influenciá-lo; e onde adverte:

  “Uma tela branca é uma coisa em que é muito perigoso tocar”

 JR: Disse para mim próprio que queria ser pintor porque sofri um acidente, uma vez. Gostava muito de música e comecei a tocar com a minha mãe.

 CVM: Tocava piano?

 JR: Sim, todos sabíamos solfejo, tínhamos aquelas escalas... Depois tive o acidente.

 CVM: Foi o acidente em que ficou sem três falangetas.

 JR: Pensei então que usar os dedos para fazer música já não podia ser.

 CVM: Que acidente foi esse?

 JR: Na minha casa, havia uma caixa que tinha pregos e coisas assim. Eu tinha um tio que era militar e que, por descuido, deixou lá uma cápsula de uma bala. Eu, miúdo, quis apagar uma vela com ela. Aquilo tinha um fulminante e estalou-me na mão. Felizmente não me veio para os olhos.

 CVM: Que idade tinha nessa altura?

 JR: Sete anos. E como já desenhava, digo assim: vou desenhar porque também é uma coisa que me agrada muito. Depois, logo a seguir, veio o pintar.

 CVM: Tinha algum antecedente familiar nas artes visuais?

 JR: Não. A parte criativa da família partiu do meu avô materno. De certa maneira, ele era um artista, porque era encadernador. Era um homem muito culto. O nome dele ficou na história da encadernação. Era um homem muito dado à literatura. Em jovem, ainda esteve com o Camilo. Conhecia os escritores da época. Todos gostavam muito de falar com ele: ficavam horas a conversar com ele. A mim, também me influenciou muito. A filha, que era a minha mãe, cedo mostrou aptidões, não só para tocar mas também para compor. Nessa altura, nós fazíamos uns jornais, policopiados, que distribuíamos pelos vizinhos. Eles também entravam nas histórias que fazíamos.

 CVM: Esses jornais eram feitos por si e pelo seu irmão. Ele também tocava?

 JR: O meu irmão também era muito para a música. Eu fazia os textos e os desenhos. Andávamos sempre assim, com coisas, numa grande actividade sempre com os amigos. Criámos uns programas semanais que funcionaram em várias rádios da altura: a Ideal Rádio e a Invicta Rádio, por exemplo. Tivemos programas durante muitos anos. Havia muita gente que gostava. Eu era um bocado para a graça.

 CVM: Manteve esse lado espirituoso ao longo da vida?

 JR: Tem-me safado muito. Ainda bem que vejo, em tudo, uma graça.

 CVM: Se calhar foi por isso que continuou sempre a fazer cartoons. Costuma brincar, mesmo nas adversidades?

 JR: Na adversidade, não direi. Às vezes, sou um bocado cáustico. Há coisas que eu vejo e de que as pessoas não se apercebem. Aquilo que se passa nas cidades… As pessoas não sabem que estão a ser vistas. Eu, às vezes, dou com coisas espantosas.

 CVM: Coisas de que tipo?

 JR: Uma vez, estava na Alemanha, sentado num banco de rua - por acaso, até estava com o meu neto, numa rua de grande comércio – e, às tantas, sai um senhor de um estabelecimento. Trazia uma caixa e sentou-se ao nosso lado. Abre a caixa e começa a tirar umas coisas: eram uns suspensórios. E ele começa a querer pôr os suspensórios. As coisas que o homem fez para pôr os suspensórios! Quando cheguei a casa fiz o desenho… De outra vez, também estava lá na Alemanha - sou muito cáustico para os alemães, em certas coisas -, era um domingo, eu estava às portas de um castelo que, aos domingos, é um monumento muito movimentado, quando vi que havia uma família que se queria fotografar. E foram-se colocar entre um canhão para fazer a fotografia de família. Achei imensa graça àquilo.

 CVM: Acontece-lhe muito isso: ver qualquer coisa e fazer a anotação visual daquilo que observou?

 JR: Sim, sim. Agora, se calhar, já não tenho tanto tempo para isso como tinha.

 CVM: Essas anotações visuais são, frequentemente, de cariz humorístico?

 JR: Às vezes, são um bocado mordazes. Quando as mostro, as pessoas nem sempre se riem. Tenho uma em que há um senhor que se vê de costas, diante de uma paisagem: árvores e montes. Ele olha a paisagem. Simplesmente, no desenho, as árvores são cifrões. Não sei se é uma maneira lusitana de ver a paisagem. Isto é um bocado crítico, não é?

 CVM: O facto de ainda dar azo a essa mordacidade é uma espécie de regresso à infância?

 JR: Acho que sim. É a minha vontade de aligeirar a vida e de não ver as coisas de uma forma tão pessimista.

 CVM: Sente necessidade de evitar, por vezes, os temas mais duros ou mais trágicos?

 JR: Eu não faço destes desenhos – chamemos-lhes caricaturas – uma coisa muito importante para mim. É, mais, um passatempo. Tive uma fase, muito breve, na minha pintura, em que também usava assim uns títulos... Lembro-me de fazer alguns quadros com um certo sentido mordaz. Por exemplo, o de um senhor com uma faixa de condecoração, cartola, luvas, a pegar num pássaro. Não é uma coisa corrente. No título chamei-lhe " O pássaro com o senhor".

 CVM: Há qualquer coisa nisso de humor surrealista.

 JR: Eu acho graça a isso. E na pintura dá-me um certo gozo.

 CVM: A sua memória mais antiga é auditiva ou visual?

 JR: Não sei se a posso distinguir. Acho que o aspecto auditivo tem muita importância. Recordo-me de certas sensações da cidade, nos anos trinta, ou ainda nos finais de vinte: coisas que não se ouvem agora. Por exemplo, o som de uma praça que era vizinha do lugar onde eu nasci. Tenho esses sons muito presentes. Havia os trens e aí havia uma paragem.

 CVM: Os trens puxados por cavalos.

 JR: Sim. O barulho dos cascos dos cavalos nas pedras é uma coisa que ficou para sempre me mim.

 CVM: Mais do que a memória visual?

 JR: Se calhar, nesse caso, mais do que a imagem.

 CVM: O que é, em certo sentido, surpreendente, sendo pintor.

 JR: Exactamente. Embora haja imagens. Não me esqueço de uma vez em que cheguei à janela do meu quarto e vi uma coisa enorme a passar no céu: era um zepelim. Passou aqui, no Porto, e foi a primeira vez que o vi. Eu era miúdo.

 CVM: Tem outras imagens fortes, da infância, na memória?

 JR: Sim. Uma imagem muito forte que ficou, em mim, foi durante a revolução de 1927. Já eu tinha dez anos. Em casa dos meus pais havia a recomendação de fechar as janelas com as portadas de madeira. 

CVM: Isso foi durante a chamada revolta do Porto.

 JR: Sim. Mas eu, de noite, ouvi um barulho, abri a janela e vi os soldados que iam a correr; alguns pararam num fontanário. Aquela imagem ficou-me para sempre presente.

 CVM: Alguma vez a pintou?

 JR: Não.

 CVM: Nem a do zepelim?

 JR: Poderia tê-lo feito mas não. É uma emoção mas nunca fiz nada com isso.

 CVM: Normalmente pinta com emoções visuais imediatas ou coisas que são mais diferidas no tempo?

 JR: Se estou fora e paro, por alguma razão, já é qualquer coisa. A emoção é um certo tipo de sensações. Há coisas que me provocam, no melhor sentido. O ver, a exaltação de uma cor quente no meio de um ambiente de tons frios… Fico logo alertado para uma vibração assim. Pode ser o resultado cromático, pode ser o resultado de uma intensidade das figuras. Ou figuras que revelam um carácter estranho.

 CVM: Como caso da velha que pintou em Paris?

 JR: Sim. Por exemplo, as imagens que eu tenho do Brasil são imagens que se imprimiram por uma questão de graciosidade: uma figura, de um lenço. Figuras da arraia-miúda, porque são aquelas que se apresentam de uma maneira menos convencional relativamente à Arte.

 CVM: Nunca pintou grandes figuras?

 JR: Não. Normalmente foi gente que passa despercebida.

 CVM: Personalidades, nunca.

 JR: Nunca, não é uma coisa que me atraia muito. Gostaria de o conseguir mas não me puxa muito.

 CVM: Isso tem a ver com o seu pouco interesse pelo retrato?

 JR: Se calhar tem. Às vezes, vejo as pinturas de outras épocas que estão nos museus e quase invejo os pintores que tinham aquela variedade de assuntos para pintar. Hoje é diferente. De resto, acho que a pintura não é assim tão importante como isso. Eu não tive o objectivo de me projectar por coisa alguma. Faço a pintura porque me faz ocupar um tempo que julgo que foi bem ocupado. Também me satisfaz, dá-me calma. Uma calma que não será a calma da inércia. Uma calma de consciência. É aquilo que está ali a desafiar-me.

 CVM: Aquela tela branca.

 JR: A tela branca, sim. Uma tela branca é uma coisa virgem, em que é muito perigoso tocar. É muito comprometedor tocar. Uma pessoa arrisca uma coisa e depois tem que sair dela.

 CVM: Não lhe acontece chegar a momentos de bloqueio e inutilizar a tela, pura e simplesmente, ou leva sempre a tela até ao fim?

 JR: Vou o mais que posso.

 CVM: Mas acontece-lhe de vez em quando não ir até ao fim, ficar pelo caminho?

 JR: Acontece e digo para mim próprio: o melhor é virar isto para a parede e pronto. Digo: que bom não ser arquitecto!

 CVM: Porquê?

 JR: Se eu fosse arquitecto não podia fazer isso. Ainda bem que sou pintor. Tenho essa vantagem. O pintor esconde as coisas. Nem tudo se deve mostrar.

 CVM: Tem escondido muito?

 JR: Há coisas que não posso explicar e o melhor, então, é virá-las para a parede. Eu acho que as coisas não podem ser totalmente explicadas. Têm que ter algum mistério, alguma coisa que não se explica totalmente.

 CVM: Mesmo para si próprio?

 JR: Com certeza. Quando se explica tudo já não vale a pena. Eu gosto daqueles pintores que procuram a harmonia mas sem que isso seja uma coisa que se apresente de imediato: é isto. Há uma coisa curiosa nos japoneses: aquelas peças, na cerâmica, que tiveram um acidente, eles não as deitam fora porque entendem que são essas que revelam o homem na sua natureza falível. Acho isso bonito, muito interessante.

 CVM: O mestre Resende, às suas telas que revelam essa natureza falível, vira-as para a parede, apenas, ou deita-as fora?

 JR: Viro-as para a parede. Ou então desfaço-as para não ter essa sensação de desaire. Fartei-me de rasgar coisas, desenhos. Tentei não rasgar tudo porque algumas que são importantes na intenção com que foram feitas. Mas não cumpriram.

 CVM: O que é que quer deixar documentado: o melhor de si ou o lado falível, como diz que fazem os japoneses com a cerâmica?

 JR: Não me importo muito com isso. Nunca me esqueço que o Goya tem quadros grandes que nós sentimos que ele alterou. Aquele cavalo não estava assim e ele modificou-o: óptimo, está ali a marca. É assim mesmo. Acho que é um engano não mostrar o engano.

 CVM: Apesar de tudo, no entanto, quando rasga o que está a fazer é exactamente o contrário disso.

 JR: Logo que as coisas se definam não é preciso estar a insistir. Não é pela quantidade que ficamos com uma constatação rigorosa.

 CVM: Teve uma infância feliz?

 JR: Muito feliz. Muito animada. Sempre em actividade.

 CVM: O seu pai queria que fosse comerciante.

 JR: Pensava que eu o iria substituir ao balcão. Eu queria fazer-lhe ver que podia viver desenhando.

 CVM: Conseguiu.

 JR: Consegui. Foi um percurso progressivo e tive sorte. Nem sempre se tem.

 CVM: Nunca pôs a hipótese de herdar a loja e de garantir assim a sua segurança económica?

 JR: Não. Mas nunca tive nenhuma zanga com ele por não ficar com a loja. O meu pai gostava muito de música. Aos domingos, em família, todos tocávamos um instrumento.

 CVM: O seu foi sempre o piano?

 JR: Eu experimentava um bocadinho de tudo. O que é a maneira de não fazer nada. Isto, hoje, não se percebe mas, na altura, a vida social limitava-se a essas coisas. Havia os grupos como o Ateneu Comercial ou o Sport Clube do Porto. Eu e o meu irmão pertencíamos ao Sport Clube do Porto. Praticávamos ginástica. Havia lá pessoas com muito jeito e até tinham uma companhia de circo. Faziam espectáculos com os ginastas e a companhia de circo. Estas agremiações - que, se calhar, hoje, ainda perduram - naquela altura eram muito necessárias porque não havia as coisas que há hoje. Havia os ginastas, que faziam piruetas, e havia os palhaços.

 CVM: O mestre Júlio Resende também chegou a ser palhaço.

 JR: Fui palhaço, sim. Eu e o meu irmão também fazíamos de palhaços. Isto vinha a propósito do facto de tocarmos instrumentos. O meu irmão tocava muito bem concertina e eu se calhar acompanhei-o. Eu era o palhaço pobre e diziam que tinha graça. Fiquei muito admirado por ter graça. Íamos visitar crianças nos hospitais e assim.

 CVM: Isso com que idade?

 JR: Devia ter uns 14, 15 anos.

 CVM: Já andava na Academia Silva Porto?

 JR: Sim, sim.

 CVM: Quem é que o recomendou para a Academia?

 JR: Havia uma pessoa muito conhecida na cidade – escrevia no Jornal de Noticias, tinha uma grande projecção social – que era a Rosa Jardim, amiga da minha mãe. Eu comecei a fazer desenhos lá para o jornal, nas secções infantis que havia na altura. Ela conhecia o pintor Alberto Silva que orientava essa academia e lembrou-se de que eu podia ir para lá aprender. Era ali na Rua de Cedofeita, muito perto da minha casa.

 CVM: Ainda andava na escola, nessa altura?

 JR: Ainda.

 CVM: Acumulou uma coisa e outra?

 JR: Sim. Fiz um curso comercial para dar a satisfação ao meu pai. Depois preparei-me para ir para Belas Artes. Eu e os meus amigos.

 CVM: Já se dava com gente ligada às artes?

 JR: Tinha um primo, o Fernando Lenhas, mais novo do que eu. Havia outras pessoas que dominavam a área da música. Tínhamos também um grupo coral. Houve sempre uma participação activa no sentido de ocupar um espaço que nos parecia interessante ocupar.

 CVM: O ensino na Academia Silva Porto devia muito académico.

 JR: Sim, o professor era muito rigoroso. Não vou dizer que aquilo me tenha feito mal.

 CVM: Mas já disse uma vez que mais tarde veio a ter de desaprender.

 JR: Tive que desaprender certas coisas. Mas algumas das coisas que ele ensinava ainda hoje são respeitáveis.

 CVM: Por exemplo, o quê?

 JR: Por exemplo, o processo de desenhar. Ele ensinava-nos uma regra que toda a gente sabe para ver as proporções: medir, com o braço esticado, e ver a relação da altura máxima com a largura. Normalmente, começava-se por desenhar uma natureza morta, depois vinha o retrato. Ele dizia-me assim: tens um perfil mas temos que ver como é a expressão da curva; vê se consegues fazer isso com uma sucessão de rectas; depois podes usar essa relação numérica. Ora, isto é importante: é ver onde está o carácter de uma coisa, o carácter da forma.

 CVM: O que é que teve de desaprender, então?

 JR: O efeito final de ser muito preso a uma realidade. Não havia invenção. Não era entendível que se saísse daquilo que foi o princípio, o ponto de partida. Uma natureza morta tinha que ser aquilo que ali estava. Uma cebola era uma cebola. Eu achava que isso ainda tinha um aspecto de permissão, se fosse feito com uma expressão mais ou menos sensível de pincelada. De resto, tinha que obedecer. Mas na expressão da pincelada podia haver alguma diferença de um aluno para outro. Mas era muito pouco, não é? Tive de desaprender dessas regras presas a conceitos descabidos para uma pintura que deve reflectir um mundo mais dinâmico, mais universal.

 CVM: Quando é que teve consciência desse mundo mais dinâmico?

 JR: Com dez anos, quando conheço o Goya. Por acaso, ainda tenho aqui essa revista que comprei aos dez anos, "La esfera". Vi isto no escaparate de um alfarrabista, entrei e perguntei quanto era. Fui a casa buscar dinheiro e comprei-a. E era o Goya. Li isto muito bem com os meus olhos de criança.

 CVM: O que lhe chamou a atenção foi esta capa, com esta reprodução do Goya?

 JR: A capa e o que vi dentro. A minha primeira experiência efectiva foi, antes de ir para Paris, a de estar em Madrid durante quinze dias com as pinturas negras do Goya.

 CVM: Foi ao comprar esta revista, aos dez anos, que travou conhecimento, pela primeira vez, com o Goya?

 JR: Sim. E depois, ao entrever o Goya e ver as figuras da Ribeira da altura, perceber que há uma grande semelhança.

 CVM: Teve uma consciência imediata dessa semelhança?

 JR: Não. A consciência tem que vir a seu tempo, progressivamente. Esta vida, às vezes, parece um puzzle: encaixa aqui, encaixa ali… Realmente tive sorte com o puzzle!

 CVM: Encaixou sempre bem?

 JR: Foi bem ordenado. Eu recomendo a todos os jovens, que tenham na sua cabeça um projecto de vida. Eu entro numa sala cheia de crianças e há 65 cérebros ali dentro: ideias todas diferentes. Pois que essas ideias nos venham a servir a todos. Chamo a atenção para isso: insiram-se numa coisa de que gostem porque é a maneira de se sentirem felizes e fazerem algo de proveito efectivo. Esta ideia de transmitir foi sempre uma constante em mim. As instituições, às vezes, estabelecem-se e ficam com as suas regras inalteráveis. Não evoluem.


  Diálogo IV Onde o professor de pintura recorda o ambiente de Belas Artes quando ainda era aluno; onde conta como nasceu o grupo dos Independentes; onde não se lembra do primeiro quadro que vendeu mas recorda como era uma festa vender um quadro; e onde, a certa altura, conclui:

 "A pintura não se faz só para si próprio”

 JR: Eu, uma vez, estava a dar uma aula, no atelier de pintura dos últimos anos, e, de repente, veio-me isto à cabeça: o que é que estes jovens estão a fazer sem nenhuma hipótese de testarem os trabalhos que fazem? A pintura não se faz para cada um, só para si próprio. Então, perguntei quem, de entre eles, tinha carro e disse-lhes: vamos pegar nos trabalhos e vamos para um sítio qualquer, longe da cidade. Começámos, com isso, a fazer as exposições. Chegámos a bater grande parte do norte do país, com exposições nos sítios mais inesperados. Normalmente, era numa sala de uma escola e levávamos os alunos para responderem às perguntas das pessoas. Até tenho isso gravado.

 CVM: As perguntas, normalmente, eram pertinentes?

 JR: Eram de todo o sentido e havia algumas respostas surpreendentes. Tenho gravadas duas coisas que são importantes. Numa delas, em Viana do Castelo, um aluno pegou num microfone, chegou-se ao pé de um grupo de visitantes que estava diante de uma escultura e perguntou: vocês estão a apreciar isto? Eles disseram: “nós estamos aqui há meia hora e ainda não nos fomos embora; graças a Deus e ao 25 de Abril - é uma coisa engraçada, esta! – nós, que somos metalúrgicos, estamos a ver como esta peça foi feita”. Outra resposta interessante foi em Lamego. Era domingo e, à saída de uma exposição dos alunos, a uma senhora do campo, já de idade, perguntamos-lhe como lhe pareceu e ela diz assim: “ai menino, eu não sei, mas parece-me que agarrei o mundo!” Foi todo um trabalho que esclarecia a situação das pessoas fora dos contextos onde se passa o dia a dia. Chegámos a fazer uma exposição numa Faculdade de Belas Artes de Sevilha. Levámos lá os alunos do Porto e levámos connosco a poesia: foi o Eugénio de Andrade. Conseguimos levar também um grupo de música e estivemos lá uma temporada, uns cinco dias. Há uma necessidade muito grande de contacto. Pelo menos com a Espanha.

 CVM: Lembro-me de uma frase sua – que foi polémica – em que, depois de anos e anos com cargos de responsabilidade na Escola de Belas Artes do Porto, dizia que a pintura não se ensina.

 JR: Eu não vou dizer que não haja muito a aprender. Mas os conceitos que há não são para ser seguidos à regra. Mesmo a técnica é uma coisa que se aprende mas não é para ser usada. Cada um usa aquilo que é mais propício ao que tem para dizer. É preferível uma boa ideia dita com uma má técnica do que uma excelente técnica para dizer uma tolice.

 CVM: Essa ideia era aceite e aceitável na altura em que foi aluno em Belas Artes?

 JR: Na altura, não sei se alguém diria uma coisa destas. Se calhar aceitavam-na. Acho que o Dórdio Gomes era uma pessoa com uma apreensão das coisas que aceitava isso.

 CVM: Será por ter estado, também ele, durante algum tempo em Paris?

 JR: Em parte, sim. É um pintor que eu estimo não só por amizade. Ele foi generoso ao ponto de, na sua carreira, não ter sido eficiente, a nível de projecção, para se dedicar muito ao ensino. Em Paris, conheci uma pessoa que ele também conhecia: uma escultora americana admirável. Foi para Paris como enfermeira na primeira guerra.

 CVM: Parece uma personagem do Hemingway.

 JR: Era uma pessoa extraordinária. Dizia: “você, na escola, não faça como o Dórdio, tenha cuidado”. Ela sabia que ele tinha muitas qualidades e que se dedicava totalmente à vida da escola.

 CVM: Teve esse conselho em conta?

 JR: Não tive muito, não.

 CVM: A sua vida dividiu-se, sempre, entre a sua obra e a escola.

 JR: Eu costumo dizer que tenho 160 anos. Para cima disso! Fui sempre uma pessoa com duas vidas mas estou contente.

 CVM: Como era o ambiente na escola?

 JR: Não era mau. A escola era um matiz: havia pessoas interessantes e outras que tinham interesse naquilo por outras razões.

 CVM: Que outras razões?

 JR: Por uma maneira de ser insólita. Há de tudo.

 CVM: Havia por lá aves raras?

 JR: Com certeza que havia. Foi uma vivência muito rica.

 CVM: O grupo que se formou no seu tempo de estudante, os Independentes, reuniu-se por afinidade estética e artística ou proximidade de ordem pessoal?

 JR: Foram as duas coisas. Isso demonstra bem o tipo de escola que era: os próprios professores aderiram ao movimento dos estudantes e participavam.

 CVM: Pelos vistos, havia uma abertura que não tinha nada a ver com a escola de Lisboa.

 JR: Não conheci a escola de Lisboa.

 CVM: O Júlio Pomar, por exemplo, tinha ido para o Porto porque não se tinha dado bem em Lisboa.

 JR: O que eu acho realmente interessante é ter sido a escola a fazer o movimento de mudança de horizontes na sociedade do Porto.

 CVM: Da cidade: já não está a falar só de pintura?

 JR: Estou a falar de mais do que a pintura. Quando eu fui para a escola havia um conceito muito fechado. Era uma cidade de comércio. A zona da escola, em São Lázaro, estava no índex. Não se devia passar por lá porque aquilo era uma coisa de pessoas um bocado fora dos contextos. As meninas não podiam passar por lá.

 CVM: Só havia homens na escola?

 JR: Não eram só homens mas quase.

 CVM: Nos nomes do grupo dos Independentes só vejo homens.

 JR: É verdade. Foi uma coisa que aconteceu por acaso. Sei que na altura havia uma arquitecta. Depois, aos poucos, começou a ser um sítio menos perigoso.

 CVM: Eram independentes, de quê?

 JR: Não havia fórmulas. A nossa fórmula era sermos realmente independentes. O contexto era sermos diferentes.

 CVM: Na altura o que é que predominava: já era o neo-realismo, algum surrealismo?

 JR: Havia já um pouco de neo-realismo e havia também surrealismo e abstracção.

 CVM: Já havia gente, por cá, a praticar a abstracção?

 JR: Começou com o Lenhas. O Lenhas era o Lenhas, a abstracção era a abstracção. Não havia nada que nos ligasse a não ser o compromisso de sermos independentes. Parece um certo contra-senso mas era assim.

 CVM: Como é que fermentou esse espírito que deu origem ao grupo dos Independentes?

 JR: Foi acontecendo. Se calhar por causa das dificuldades que vinham de há muitos anos atrás e que as pessoas tinham medo de tocar. Mas havia na escola a circunstância do director ser uma pessoa altamente dinâmica. Não só ele. Era um trio excepcional: o arquitecto Carlos Ramos, o escultor Barata Feyo e o pintor Dórdio Gomes. Eram as três áreas.

 CVM: Os Independentes chegaram a fazer algum manifesto?

 JR: Devo ter para aí o primeiro catálogo com umas palavras a dizer a razão daquilo mas não estávamos com ideia de fazer sangue nem nada disso. Foi uma coisa natural que foi surgindo naturalmente.

 CVM: Ainda durou meia dúzia de anos.

 JR: Havia uma coisa que era interessante: nessa altura o curso englobava os artistas plásticos e a arquitectura. Mercê disso acontece que houve pintores que eram arquitectos e arquitectos que eram pintores. Foi uma época que teve os seus efeitos positivos. Apesar de tudo, a mim, fazia-me impressão que a escola fosse tão limitada nos contextos que tinha. Uma vez, anos mais tarde, perguntei quem estaria na disposição de participar numa peça de teatro? Ficaram assim todos a olhar uns para os outros. Se eu arranjar maneira de me autorizarem tenho um autor que me interessa, o Roger Avermaete. É um flamengo, que eu conheço. Sou capaz de lhe pedir se ele deixa pôr em cena um texto que tinha sido divulgado na rádio e que foi muito polémico: "A guerra da vaca". Era a história de uma guerra que surgiu motivada por causa de uma vaca de um senhor estar a comer o prado de outro senhor. Os alunos começaram a olhar e eu acrescentei: mas há uma condição, isto tem que ser representado por alunos, professores e também empregados.

 CVM: Isso foi numa altura em que já era professor.

 JR: Sim. Fez-se a peça e eu convidei o senhor para vir cá. Foi uma coisa muito interessante. Digo assim: isto é uma escola de Belas Artes, podem-se fazer os cenários e os figurinos também. Porque é que não há-de ser tudo feito dentro da escola? A escola é só pintura?

 CVM: Quando terminou o curso nunca pôs em dúvida que a pintura fosse o seu caminho?

 JR: Eu acabei o curso e estive ainda numa área de ensino a frequentar a Faculdade: na área da pedagogia. A nível de secundário ainda fiz um primeiro ano de estágio mas quando depois recebi um convite da Escola para ser assistente. Estive durante uma temporada como assistente.

 CVM: Já estava a pintar intensamente nessa altura?

 JR: Eu faço a vida dupla há muito. Já era casado e tudo. Tinha que fazer também os desenhos para ganhar dinheiro.

 CVM: Fazia desenhos para onde?

 JR: Para o Primeiro de Janeiro e para algumas revistas. Para a Papagaio que era uma revista de Lisboa. 

CVM: Lembra-se do primeiro quadro que vendeu?

 JR: Do primeiro quadro não tenho ideia mas lembro-me da primeira exposição. Foi a de 43.

 CVM: Terá vendido algum quadro nessa exposição?

 JR: Se calhar.

 CVM: Portanto, não o marcou especialmente esse acontecimento que foi ter conseguido vender um quadro.

 JR: Eu sei que houve momentos, em que estava casado, tinha muitos quadros e não vendia.

 CVM: Na altura, vender um quadro era ocasião, quase, para fazer uma festa.

 JR: Pois, eu às vezes queixava-me disso. Recordo-me da minha falecida mulher dizer: deixa lá, um dia se calhar queres vender um quadro e não tens. Fui sempre muito beneficiado por um ambiente propício.

 CVM: Por ser tão raro conseguirem vender-se quadros, nessa altura, é que pensei que o primeiro o teria marcado.

 JR: Não me lembro. Sei que havia pessoas… Por exemplo, o director do Primeiro de Janeiro, foi uma pessoa amiga.

 CVM: Comprava-lhe um quadro, de vez em quando?

 JR: Sim, por vezes pressentia que eu estava com dificuldades...

 CVM: Era uma espécie de um subsídio encapotado?

 JR: Não sei. Isso era muito apreciado quando eu chegava a casa e dizia: hoje, vendi uma coisa. Sabe, eu casei ainda estudante. Tivemos uma vida com dificuldades, mas gostosa, apesar de tudo. Era em minha casa que reunia os amigos dos Independentes. Fazíamos as nossas brincadeiras, claro. Que não tinham nada de maléfico.

 CVM: Brincadeiras de que tipo?

 JR: Eu não tinha móveis: púnhamos uma toalha no chão e era como se estivéssemos ao ar livre a fazer um piquenique. Ríamo-nos muito uns com os outros, tínhamos uma amizade franca e respeito mútuo.

 CVM: Foi depois desse período de aprendizagem que se deu a viagem a Madrid que o marcou bastante, por causa do Goya?

 JR: Foi. Quando fiz a primeira exposição senti que havia um senhor a olhar muito para os meus quadros. Era um inglês que vivia no Porto. Depois disso falámos muitas vezes e, a certa altura, recebo uma carta dele. Estava no corpo diplomático de Inglaterra, em Madrid, e convidava-me a ir lá passar uns tempos. Passei lá quinze dias. Com um carro às ordens e tudo! Foi uma maravilha. Na altura, estar fora, para um jovem, era muito difícil.

 CVM: O que é que aprendeu frente às telas de Goya, primeiro no Prado, em Madrid, e dois anos depois, no Louvre, em Paris?

 JR: O Goya, todos o sabem, era um temperamento vibrátil: era um espanhol que tinha o coração muito perto da superfície. A pintura dele resulta de coisas que dificilmente se conciliam: a precisão da pincelada sobre a tela, que respeita muito o desenho. O pincel é um material dúctil: conforme a pressão, assim o desenho da mancha surge ou não. Esta pintura resulta muito da maneira de respirar. Eu copiei vários quadros, inclusivamente Velásquez. O retrato que copiei de Goya foi já uma pintura do final da sua vida. Uma obra um pouco influenciada pelos retratistas ingleses: é uma figura feminina com um leque, que no antebraço tem uma luva. Há ali um tratamento de cor da pele do braço sobre o qual passou um tecido muito leve. Tudo aquilo é de uma grande subtileza. A cara também.

 CVM: Já me disse que tentou respirar até como Goya para conseguir copiá-lo.

 JR: Exactamente, é preciso um controlo extraordinário. O meu objectivo, com as cópias, era situar-me na época. Sei que é impossível. Mas tentei aproximar-se o mais possível. Ainda que haja um grande conhecimento do que se está a ver, nunca é como o fazer. Por exemplo, o Boticeli, que eu copiei, é uma coisa relativamente simples.

 CVM: Por estar mais perto do desenho?

 JR: Exactamente. A cor não tinha grandes problemas de qualidade. Não vou dizer que não era bom, claro! Mas é um resultado que se prepara na paleta. No Goya não é assim, porque o acontecimento é mesmo na superfície da tela.

 CVM: E quando pintou o Goya sentiu-se realmente a respirar com ele?

 JR: Pode ser apenas uma imagem mas senti que havia uma energia interior que faz um percurso no corpo. Uma energia que sai do coração, vai para o braço, para a mão, para o pincel e finalmente o resultado disso verifica-se, depois, na tela.

 CVM: Como uma espécie de presença do espírito de Goya?

 JR: Bem, mas isso é comigo. Como é uma personagem que me agrada, quis tentar fazer isso. Não será o melhor exemplo mas era o que o Louvre tinha na altura.

 CVM: É por isso que ainda tem aquela cópia ali num lugar especial da sua casa, na sala de jantar?

 JR: O Goya foi uma figura que sempre me fascinou. Apesar de toda a evolução que obriga a ver outras coisas também e que permite ver e descobrir outras qualidades.

 CVM: A fase final do Goya é muito pessimista e o mestre Júlio Resende costuma querer dizer que quer salientar permanentemente o lado optimista e positivo da vida. Não aqui uma certa dissonância?

 JR: Essa pergunta é muito curiosa. Ele era um homem que sentia, evidentemente, o que se estava a passar no exterior de si próprio: as crises sucessivas. Mas acho que, apesar de toda a enfermidade que teve, era um homem que, até ao fim, sentiu que a vida era uma coisa preciosa. O aspecto dramático é qualquer coisa que tem a ver também com a diferença. Acho que ele constitui uma forma muito eficiente de fazer ressaltar as coisas. Para isso é preciso também ter fé.

 CVM: É nessa fé que se sente irmanado com ele?

 JR: Sim. Não direi, sobretudo, nos retratos, mas nas pinturas que fez relativamente ao três de Maio… Não é aquela pintura que é muito ventilada: o fuzilamento em “El Tres de Mayo”. Não é esse quadro que me seduz mais. Muito embora seja importante. Vejo mais isso nas gravuras. Aí não era só o problema dos conflitos sociais que estava presente mas o conflito das pessoas em si.

 CVM: Um conflito interior.

 JR: Acho muito interessante a ligação que ele demonstrava em relação aos ingleses. Os ingleses têm um bocado aquela crença nas forças que não se vêem mas se sentem. Essa crença também teve influência no Goya. Não por via directa mas pelo conhecimento que ele tinha. Via-se que havia nele uma maneira de pensar muito semelhante à inglesa, na altura.

 CVM: Essa sua experiência de copiar no Louvre quadros de mestres do passado o que é que lhe ensinou?

JR: Ensinou-me a ver melhor certas coisas de ordem técnicas, de cor. As cores que nós vemos nos quadros fascinam-nos mas quem não é do métier não está com a preocupação de ver como é que foi conseguida partindo da gama que o mercado tem. Havia pintores que tratavam os seus próprios pigmentos. Quando se pretende fazer uma cópia como eu fiz é assim. É um devaneio. Não terá muito sentido porque a época é diferente, os materiais são outros. Mas, mesmo assim, quis tentar. Acho que aprendi bastante com isso. Copiei italianos, flamengos, espanhóis...

 CVM: E apanhou, de cada um, essa respiração tal respiração própria ou o caso do Goya foi um momento único?

 JR: O Goya foi muito particular. Eu também tinha que me cingir às pinturas que estavam na parede e que me interessavam. Nunca me interessou pintar a Gioconda. Mesmo assim, um dia, fui lá à secretaria, por curiosidade, saber quando é que poderia pintar a Gioconda, se fizesse o pedido. Abriram à minha frente um livro enorme e disseram-me: só no ano de não sei quantos...

 CVM: Alguns anos mais tarde?

 JR: Muitos anos depois! Era um quadro que tinha, realmente, uma lista de espera muito grande. O Bruegel, por exemplo, já me interessou. Se calhar, também pela linha curva: é tudo um desenho muito curvilíneo. Até copiei uns Vermeers: aquela pintura que tem pouco mais de um palmo mas que é uma maravilha. É um pintor que trata a figuração e a realidade mas com um refinamento extraordinário.


  Diálogo V Onde o Mestre adverte os falsários; onde explica de como se descobriu incapaz de franquear as fronteiras do abstraccionismo; onde confessa a rejeição por um pintor como Bacon; e onde admite:

  “A minha única regra é a de começar com o instinto”

 JR: Fiz algumas coisas para teatro. Se hoje há problemas, na altura, ainda havia mais. O que funcionava eram os teatros experimentais, portanto aquilo nunca era para ganhar dinheiro. Mas eu gostava porque podia experimentar materiais, fazer experiências. Metia na cabeça: agora vou experimentar a espuma de nylon, por exemplo. Eram trabalhos que serviam uma causa e ao mesmo tempo, com eles, eu estava a experimentar materiais.

 CVM: Isso depois tinha efeito e resultados práticos na sua pintura?

 JR: Talvez não. O pintor é um homem que trabalha um espaço. Aquilo dava-me a hipótese de criar um espaço de outra natureza. Com outro tipo de objectivo e outra movimentação. Aprendi muita coisa com a luz. Uma vez fiz um ciclorama com um pano de fundo para um bailado – o “Campo de Amor e de Morte”, do Fernando Lopes Graça. Recebi um convite do Teatro Nacional e disse: não sei, só vendo. Fui assistir a um ensaio e achei que o assunto me interessava. Fiz uma grande forma, dinâmica: uma espécie de forma presa ao centro mas deslocando-se do centro. Aquela peça tinha que funcionar com a luz. Para mim, foi um gozo. Vi, por acaso, um tecido que estava lá pousado e disse: isto é que vai ser o cenário. Fiz aquilo em grande mas tinha que ser iluminado. Depois fiz um gráfico do ritmo, do princípio ao fim, vi onde era o silêncio, onde era o clímax e escolhi: aqui vamos pôr luzes próximas, por exemplo, laranja; ali branco... Situei aquilo com luzes de cor. A certa altura, verifiquei que o painel tinha o que o coreógrafo procurava. Aquilo podia inclusivamente desaparecer. Depois, cheguei à conclusão de que nem valia a pena ter pintado os figurinos: só com as luzes fazia tudo. Quando foi o ensaio expliquei o que tinha feito e eles disseram-me que era isso que costumavam fazer: eu não sabia. Fiz por intuição. Foi uma experiência muito, muito interessante.

 CVM: A intuição tem sido mais importante que a razão, no seu trabalho?

 JR: Está a tocar numa coisa que para mim é muito importante. Não sei se toda a obra funciona com essa dicotomia. Eu funciono muito com a focalização do instinto. A triagem está na passagem para o consciente. 

CVM: Já uma vez disse que é um pintor do tálamo.

 JR: Dou muito importância ao tálamo. Depois, o raciocínio ás vezes diz: ele tinha razão!

 CVM: É do tálamo por oposição ao córtex?

 JR: Não é uma oposição: antecede. É uma percepção do que o córtex vai dizer. Para mim, isso é fundamental. É com isso que chego a muitas coisas.

 CVM: Tem feito muita coisa com a intuição?

 JR: Têm-me acontecido coisas com a intuição, que até fico surpreendido. Uma vez, estava em Coimbra, ia pernoitar lá, e ao fim do dia passei numa rua onde havia uma igreja com uma torre. Olhei para torre e disse assim: esta torre está muito inclinada. Quando me deitei ouvi dizer, no corredor, que tinha a torre caído. Já me têm acontecido outras coisas assim. Não tem nenhuma mágica, claro.

 CVM: Isso também funciona na pintura?

 JR: Eu não tenho uma regra. A única regra que tenho é a de que começo com o instinto. Depois, a seu tempo, vem a reflexão. Quantas vezes acontece que, para solucionar determinada área do espaço pictórico, quase tenho que voltar ao primeiro gesto. Há um encadeamento, curvilíneo ou não. As coisas, às tantas, mandam por si próprias. É esse gesto que vai conduzir os outros para depois haver uma ligação coerente, usando uma diversidade de posições e de forças.

 CVM: Parte para a tela com um esquiço, já com um esboço?

 JR: Sempre. Na decoração que fiz em Sete Rios, tinha que partir de uma lógica, fazer um esquema, que foi instintivo. Depois, quando fui para o espaço concreto, os painéis foram montados em pranchas com uma certa inclinação. Aí tive que me orientar pelas referências dos estudos mas os sinais são outros. Um gesto assim não se pode repetir: tem de ser outro gesto que obedeça àquelas regras.

 CVM: A sua arte é figurativa por não querer ou por não poder deixar de o ser?

 JR: Acho que a última hipótese acerta melhor.

 CVM: Não pode deixar de ser figurativa?

 JR: Não me forço a isso. É assim. Tem a ver com coisas um bocado insondáveis. Isto é uma maneira de ser. O artista é um criador. Quando está em acção não se deve querer imaginar uma outra pessoa.

 CVM: Tem de saber ser sempre ele próprio?

 JR: Sim. E o que sai daí é uma certeza disso mesmo. Quando não é, isso, na Arte, vê-se muito.

 CVM: Vê-se muito que alguém não está a ser autêntico?

 JR: Vê-se que há coisas que são falsas. Têm-me aparecido aqui trabalhos para eu testemunhar se são realmente meus. Na primeira impressão, às vezes, fico em dúvida, porque há quem copie bem. Mas entra logo no descalabro porque isso não é possível. Talvez por o meu sinal ser muito do instinto. Vamos imaginar que era um trabalho feito com linhas rectas e com um número em cima a dirigir tudo, era mais fácil. Agora, com um sinal instintivo nota-se mais claramente.

 CVM: Tem-lhe acontecido com frequência virem mostrar-lhe obras que lhe são atribuídas para detectar possíveis falsários?

 JR: Sim. Não é todos os dias. Eu sei que há pessoas que estão a fazer isso e acho que é pena. Se os trabalhos passassem pela minha visão, dizia-lhes logo: não faças isso, não é assim. Mesmo a assinatura. Essas coisas não enganam facilmente o próprio.

 CVM: Mas há gente por aí a tentar fazer Resendes?

 JR: Têm aparecido. Constou-me até que havia no Brasil. Não Resendes, especificamente. Pessoas altamente especializadas para fazer A, B, ou C. Neste mundo tudo é possível.

 CVM: Também é preciso algum talento para copiar, não?

 JR: Depende do quê. Talvez copiar um Picasso seja mais fácil do que copiar uma pessoa com uma técnica mais exigente. O Picasso tem coisas em que não está a cuidar muito da técnica: aquilo é expressividade e fá-lo com o que tem à mão.

 CVM: O Picasso não seria dos mais difíceis de imitar, portanto.

 JR: Depende. Há uma imitação que é apenas imitar um quadro. Isso é uma coisa. Agora, imitar o estilo engana só para as pessoas que não estão preparadas. Há coisas que saltam à vista.

 CVM: No seu caso especifico o quê que é impossível imitar?

 JR: Uma das coisas que me é reconhecida é que, normalmente, a minha pintura resulta do movimento de um instrumento: o pincel neste caso. Embora, por vezes, eu utilize aquilo a que chamamos pintura planificada, normalmente dou vitalidade ao tratamento da cor. Aquilo não é como se fosse uma tinta plana, uma superfície plana. Normalmente, deixo um sinal do pincel e isso é muito difícil de imitar porque tem a ver com um gesto próprio.

 CVM: É um sinal particular, só seu.

 JR: Penso que sim. A pintura é uma marca, não no que diz mas na forma como o diz, como se expressa. 

CVM: Chegámos aqui por causa da questão do figurativo e pela forma como a figuração se lhe impõe...

 JR: Não sinto que seja uma imposição. Naturalmente, estou nisso.

 CVM: Naturalmente, como respirar?

 JR: É. Eu posso fazer um trabalho sem pensar em nenhuma figuração. Depois, fico a olhar para aquilo e parece que falta ali qualquer coisa. A pintura não é resultado do acaso. Por vezes há uma procura. Vamos atrás dela nem sabemos bem porquê. Mas espera-se que dali saia qualquer coisa que seja provocante. 

CVM: Houve algum momento em que tenha estado à beira da abstracção?

 JR: Sim.

 CVM: Porque é que nunca chegou a dar esse passo?

 JR: Eu talvez pudesse ter prosseguido naquilo. Houve um momento em que dei à minha pintura uma expressão volumétrica. A minha pintura passou a ser um objecto. Trabalhei com resinas sintéticas. Finalmente, fiz um quadro pequeno e pensei que era ali a fronteira intransponível para mim.

 CVM: A fronteira do abstraccionismo?

 JR: Sim. Não me seduzia totalmente. Eu preciso de ter um sinal daquilo que é não só a cabeça mas o que eu estou a sentir. O sentir depende de muitos factores.

 CVM: Tem ali em cima da mesa um trabalho recente, ainda por acabar, sem assinatura, que se poderia dizer uma abstracção: é por isso que ainda não o deu por concluído?

 JR: Aquilo está a ali porque, de vez em quando, olho para lá e penso no problema que aquilo representa para mim. Agora, a pintura, para mim, é uma motivação para viver. Com todas as dúvidas que tenho. Já não me quero agora lançar em grandes aventuras. O tempo é muito pouco.

 CVM: Não se quer dispersar?

 JR: Não me quero dispersar. Sinto que o tempo está cada vez mais pequenino. Eu sei que isto não é bom mas não estou muito interessado em saber o que se passa. Bem, não queria dizer isto assim. Não queria ser assim mas não estou muito interessado em saber o que se está a passar.

 CVM: Já está menos receptivo aos estímulos externos?

 JR: Sim. Sinto que já não tenho cabimento neste mundo.

 CVM: Sente que não tem cabimento?!

 JR: Houve uma mudança de pontos de vista em que deixei de me empenhar. Eu, normalmente, contacto muito com jovens e gosto de falar com eles. O que significa que, se calhar, não estou assim tão pessimista. 

CVM: O que é que mudou mais nestes anos todos:, o mundo ou o mestre Júlio Resende?

 JR: O mundo mudou. A partir de certa altura deixei de o poder acompanhar. Mas não tenho que me queixar disso. Os interesses são outros. Se calhar, a Arte fixou-se apenas na tarefa de ser um testemunho. É uma das suas funções, claro, mas eu acho que a Arte não é só isso.

 CVM: A Arte que se faz hoje em dia parece-lhe, sobretudo, querer ser testemunho de quê?

 JR: Da evolução da técnica. Da evolução do pensamento. As sociedades mudaram. As pessoas têm ideais de vida diferentes. Não sei se são mais felizes, tenho a impressão que não são mais felizes por isso, mas o tempo é assim.

 CVM: Isso reflecte-se especificamente na Arte?

 JR: A Arte reflecte essa aparente crise que toca a tudo. Há muitos exemplos do homem que se aniquila com a Arte: o homem que gosta de tudo o que é mais humanamente degradante. Eu não aceito isso. Embora aceite o testemunho. A Arte não pode ser aniquilação. Tem que ser a perspectiva de um outro tipo de entendimento ou de harmonia.

 CVM: Isso quer dizer que um pintor como Francis Bacon, com todo aquele pessimismo negro, o perturba?

JR: É claro que é um grande pintor mas eu digo assim: Diacho, depois disto não há mais nada! Acho que a Arte deve ser a esperança convictamente expressa de que as coisas hão-de ser ultrapassadas.

 CVM: A pintura de Bacon não lhe interessa ou tem mesmo, perante ela, uma atitude de rejeição?

 JR: Provoca-me rejeição. Ele faz um harakiri em público. Uma das coisas que ainda vale a pena é pensar nas formas de espírito: se não estou dentro da razão, deixem-me pensar assim.

 CVM: Alguma vez passou por aquilo a que alguns artistas se referem como uma fase de bloqueio criativo?

JR: Esses bloqueios, às vezes, podem acontecer. Quando isso acontece, eu mudo a minha referência, procuro outra. O mundo está cheio de referências porque elas são dinâmicas.

 CVM: Mas nunca lhe aconteceu sentir-se num impasse, em termos criativos?

 JR: A autocrítica está sempre na pessoa e pode haver momentos desses. Eu não escondo isso: há momentos em que digo: e agora, a partir daqui?

 CVM: Quando chegou àquela fronteira que há pouco referia, a fronteira do abstraccionismo, teve que voltar para trás?

 JR: Tenho a impressão de que, no meu percurso, não há voltar para trás. Há, por vezes, coisas de que eu volto a ir à procura, mas isso não é voltar para trás. Simplesmente, a linha nem sempre é recta. Não tenho a sensação de ter voltado atrás ainda que, analisando a minha obra, veja que há coisas que estão ali e já estavam acolá. Por isso é que eu digo que a análise de um artista não se pode cingir a um quadro. Há uma série de momentos e todos eles são importantes. Nuns o passo foi dado com mais ênfase e noutros o passo foi mais curto. Mas em qualquer dos casos é sempre caminhar.

 CVM: Alguma vez esse questionamento sobre o que estava a fazer o fez parar e mudar de direcção?

 JR: Não digo que tenha estado parado. Eu não sou muito um pintor da intimidade. Sou mais um pintor das coisas que estão aos olhos de todos.

 CVM: Do espaço aberto e público?

 JR: Exactamente. Apesar disso, tenho tido alguns momentos em que me apetece pintar o enquadramento do trabalho. Ou da casa. Ou do lar. Tive isso, por exemplo, quando mudei de casa. Sinto isso quando vou visitar a minha filha, à Alemanha, aquilo é todo um enquadramento bastante íntimo. Isso satisfaz-me numa coisa que eu aparentemente pareço não ser.

 CVM: Esse pintor das coisas íntimas não está muito reflectido na maior parte da sua pintura.

 JR: Está se o puser perante certos quadros e lhe disser: está a ver? Os anos sessenta foram aqueles em que eu explorei mais as formas com matérias e tal. Depois, vim para aqui e é uma outra coisa. Há um outro silêncio. O exterior entra cá dentro, não é preciso ir lá fora.

 CVM: Estava a perguntar-lhe por algum eventual período de bloqueio, porque tenho a sensação de que, mesmo com as tarefas na escola de Belas Artes, sempre pintou muitíssimo. Impôs-se a si próprio esse ritmo de trabalho?

 JR: Tive que me compenetrar de que não tinha outra solução. Eu casei muito cedo. Isso obrigou-me a impor-me um método de trabalho.

 CVM: Tinha obrigações familiares a satisfazer.

 JR: Claro. Eu não herdei coisa nenhuma. Tenho apenas estes sonhos de fazer coisas que não são para comer nem para vestir.

 CVM: Obrigou-se sempre a um ritmo de trabalho intenso?

 JR: Sim, mas isso não me apoquentava. Felizmente, fui sempre uma pessoa com saúde. Se não fosse, se calhar, era diferente. Eu fui uma pessoa de sorte. As pessoas que fizeram parte de mim - a minha primeira mulher e esta, também – têm-me proporcionado trabalhar. Sobretudo, na altura das dificuldades por que passei, fui sempre muito bem acompanhado. O meu trabalho é um trabalho de busca que tem muito de aliciante, portanto não vou dizer que era um sacrifício. O trabalho excita, é qualquer coisa que nos desafia. 

CVM: Procura a inspiração ou ela vem ter consigo?

 JR: Quando faço uma viagem vou à procura. Mas uma pessoa que procura não sabe o que vai encontrar. A gente procura as diferenças. Sabe, estive a trabalhar, não há muito tempo, naqueles painéis do metropolitano. Trabalhei durante dois anos e meio. Agora pergunta-me: tive esforço? Se calhar tive, sim. Mas foi uma coisa que me satisfez muito. Há qualquer coisa que compensa o esforço.

 CVM: Nunca sentiu o trabalho como um fardo?

 JR: Não, não.


  Diálogo VI Onde se folheia o álbum de memórias de algumas das viagens marcantes do artista; onde se evocam tempos difíceis; onde se escolhe a banda sonora para o momento de pintar e onde fica dito, também, que

  “A pintura resulta de coisas que não são nada transcendentes”

 JR: Tenho certos rituais de que preciso, por vezes, no trabalho. Sou incapaz de escrever se não tiver o cachimbo. Para pintar, quando estou na fase mesmo do início, também preciso do cachimbo. Não sei explicar porquê. E, se calhar, muita gente que assume estas coisas também não sabe. De resto, acho que a pintura resulta de coisas que não são nada transcendentes, são coisas naturais.

 CVM: Pinta facilmente com gente à volta?

 JR: Olha, não gosto que me façam fotografias quando estou a pintar. Sobretudo quando me pedem para pôr o cachimbo. Eu ponho o cachimbo sem querer não porque me dizem para o pôr. Uma vez, há muitos anos, estava a fazer um trabalho ao ar livre e vi que passavam e comentavam. Isso não me importava nada. Às vezes até achava graça. Uma vez estava a fazer um pequeno painel na fronteira, aqui no Minho, passavam os espanhóis e diziam: mira, mira los colores! Não me importo nada de ter gente à volta. O que não gosto é que me digam: ora pinte lá para eu ver como é. Se eu estiver imbuído no trabalho pode estar quem quiser.

 CVM: Pinta com música?

 JR: Às vezes, tenho necessidade. Mas não é toda a música, calma aí! Por vezes estou a ouvir uma música e é tão importante que me chamam e eu respondo: agora não posso. Tenho que acabar aquele compasso. Porque a música não pode ser interrompida, senão fica engasgada. Já conheço a peça, muitas vezes, mas tenho que esperar para ouvir aquele acorde final. Eu posso estar a trabalhar e parece que não estou a ligar nenhuma àquilo, mas estou de tal maneira sintonizado com aquela linha melódica ou rítmica que tenho que acabar senão não fico bem.

 CVM: Disse-me que ouve música enquanto pinta mas que não é qualquer música.

 JR: Claro. Há músicas com que nem gosto de estar a trabalhar. Mas há outras que acho que estão em sintonia com os movimentos que vou fazendo. Gosto do Prokofiev, do Stravinski, do Mahler. São coisas diferentes: o Mahler já é outra coisa. Quando se trabalha a ouvir um Bach é uma coisa muito interessante: toda aquela organização de sobreposições impera ali. A música é uma coisa fantástica!

 CVM: Mas pinta tanto com Bach como com Stravinski, com Mahler como com Prokofiev?

 JR: Certas peças de Stravinski são muito boas para fazer a pintura que tenho a fazer.

 CVM: O quê, nomeadamente?

 JR: “O Pássaro de Fogo”.

 CVM: Essa sintonia faz com que a música empurre o gesto, propicia a dança da mão?

 JR: Não sei se é o gesto mas é uma coisa que se reflecte naquilo que temos dentro de nós e que passa a ser um ponto de partida. Suponho que isto acontece com toda a gente.

 CVM: A música não o distrai, uma vez que tem essa necessidade de ir até ao último compasso?

 JR: A música é um pouco uma pintura também. Há formas que se apresentam na sua dinâmica, pontos mais altos, pontos mais baixos. A música, toda ela, varia nesse gráfico imaginário. Nunca fiz uma pintura a ouvir música e a dizer: deixa ver o que é que vai dar isto. Isso nunca fiz. Se calhar, um dia ainda sou capaz de fazer. Estou a lembrar-me do Paul Klee, que era um homem espantoso para a música e que fez experiências pedagógicas nesse sentido de ligar a música às coisas visuais.

 CVM: O que lhe perguntava é se a música não o chega a distrair, por vezes, desviando-lhe a concentração e afastando-o do trabalho que está a fazer.

 JR; Há músicas que sou capaz de ouvir mas não quero trabalhar com elas. São aqueles quartetos…

 CVM: Mozart, Beethoven?

 JR: Posteriores. Os pós-românticos e isso. Acho que aquilo é uma quantidade de problemas que nunca se define. Quando parece que está um problema a acabar, já está outro a surgir. Tenho de parar. Não posso ouvir aquilo. Incomoda-me, porque nunca se chega a uma conclusão.

 CVM: Com o Beethoven, por exemplo, não se passa o mesmo?

 JR: Não me parece tanto. Ouvir a música é imaginar uma coisa em movimento naquilo. Parece que a finalidade de quem compõe é mostrar as virtualidades das interrogações. Fica tudo na interrogação. Bem, eu não sou músico. Estou a falar da música com todo o respeito. Mas quando são esses quartetos, não sei… Deve ser uma questão de naipes. Dá a impressão de que são especificamente para pôr problemas. Não sei se estou a dizer isto direito mas eu sinto isso. Agora, anda a ser descoberta nos arquivos antigos, medievais, a música antiga. Se calhar, felizmente, antigamente não havia nada disso. Eu não consigo ouvir horas e horas daquilo. Aí sou mais contemporâneo.

 CVM: Ouviu sempre mais ou menos as mesmas coisas ou as suas diferentes fases artísticas também têm correspondência naquilo que escolhe para ouvir enquanto pinta?

 JR: Eu gosto muito de voltar a ouvir as músicas que conheço. Até mesmo aquelas que têm a mesma interpretação. É assim tal como ao ver um quadro, à primeira vista há sempre um impacto. Mas nós gostamos, depois, de ver outra vez. E, se calhar, vamos lá encontrar coisas novas. Na pintura acontece muito isso: há um momento de apreensão do fenómeno em si e depois há um momento de descobrir coisas. Veja-se, por exemplo, “A Ronda da Noite”, do Rembrant. Veja-se como o Goya pintou a família real, que é uma composição um bocado semelhante, com a mesma zona de clímax, dada pela menina ou pelo pequenito que está num quadro e noutro. Na música, se a ouço pela primeira vez, se calhar, já não vou pintar. Deixem-me ouvir. Mas depois, se estou a pintar e se a conheço, aquilo não é para descobrir coisas mas é para me manter no ritmo.

 CVM: O que eu queria perceber é se as suas diferentes fases artísticas têm tido diferentes músicas a acompanhá-las.

 JR: Nunca especifiquei isso. Nem é que eu, por princípio, esteja sempre a ouvir música. Há momentos em que estou a pintar e não tenho música nenhuma. Nem quero ter.

 CVM: Um dos aspectos que tem sido marcante do seu percurso têm sido as viagens. Na viagem que é o seu percurso artístico, as viagens propriamente ditas parecem ter assumido um lugar central.

 JR: Sem dúvida.

 CVM: Considera-se um viajante, mesmo enquanto pintor?

 JR: Os tempos e o nosso sistema físico é que nos permitem viajar. Eu deixei de fazer viagens porque já não posso.

 CVM: Por recomendação médica?

 JR: Eu é que estou limitado. O médico até acha que estou bem para a idade que tenho. Agora, eu - para fazer as viagens que gostaria - se calhar não me sinto bem. Mas é uma coisa que não me importa nada. Tenho, de tal modo, uma motivação que me evoca essas coisas, que sou capaz de estar aqui e estar a pensar que estou em Cabo Verde.

 CVM: Ainda está a dar digerir aquilo que já viajou?

 JR: Foram experiências muito interiorizadas. Muito ricas. Tenho os blocos aqui. Há muita coisa que queria explorar e não explorei. Ainda ficaram resquícios, no entanto.

 CVM: Pode-se dizer que ainda está a viajar, recorrendo à memória dessas viagens que fez?

 JR: Sim, com certeza. Não tenho dificuldade nenhuma em me sentir noutro sítio, num outro ponto do globo, daqueles que eu conheci. Tenho aqui... Eu nem quero mexer nestas coisas. Há coisas que evocam muito. Há objectos que, por muito simples que pareçam, podem constituir uma enorme riqueza de evocação. Podemos olhar e pensar noutro continente, há uns anos. É fácil.

 CVM: Sem as viagens que fez a sua pintura não tinha seguido o rumo que seguiu?

 JR: Com certeza que não. A minha natureza obrigava-me a isso, talvez. Mas eu tive a sorte de ver muitas coisas. Se visse menos, no entanto, se calhar o que ficaria teria o mesmo efeito.

 CVM: A sua primeira viagem marcante é aquela visita a Madrid, de que já falámos, nos anos 40.

 JR: Pela Europa, foi.

 CVM: Foi a primeira vez que saiu de Portugal?

 JR: Sim. Teria ido, uma vez, ali a Vigo. Mas isso não teve significado nenhum. Para mim ver é ver um museu.

 CVM: Nessa primeira viagem a Madrid já copiou quadros?

 JR: Não. Mas já o conhecia pelos documentos.

 CVM: Durante esses quinze dias, passou muito tempo no Prado?

 JR: Fui lá todos os dias. Era aquilo que me levava lá. Ainda estive a falar com alguns pintores que me interessavam, como o Vasquez Diaz. Bati-lhe à porta e estivemos a falar.

 CVM: Já o conhecia?

 JR: Pessoalmente, não. Vasquez Diaz era um pintor que também tinha tido uma experiência em Itália e a sua obra reflectia um pouco os interesses que eu iria ter. Era uma pintura tematicamente espanhola mas, na forma, era muito mural: o espaço para ele era uma coisa muito importante. Interessaram-me outros pintores que vi, na altura, mas fui a Madrid para ficar no Prado e isso bastou-me. Quando cheguei lá disse assim: já vi tudo! Estava tão sequioso que com o Goya, ao ver o Goya, disse: eu já vi tudo.

 CVM: Depois teve uma bolsa e foi para Paris: passou esse ano e meio no Louvre?

 JR: As manhãs, normalmente, eram passadas no Louvre. Não foi o tempo todo porque, como eu também queria conhecer o método pedagógico que usavam nas Belas Artes, inscrevi-me num atelier de pintura. Estive lá pouco tempo. Era só para perceber como era o processo metodológico deles.

 CVM: Nessa altura já pensava ser professor?

 JR: Já era professor. Embora ainda não nas Belas Artes.

 CVM: Estava a dar aulas no liceu.

 JR: Sempre me interessou a parte pedagógica. Depois, lá em Paris, também estive num atelier de frescos, na escola de Belas Artes.

 CVM: Foi lá que teve um mestre fauvista?

 JR: Isso foi na academia de Othon Friesz. Havia um atelier livre de modelo vivo que eu também frequentava.

 CVM: E ele foi determinante nalgum aspecto ou foi apenas mais uma influência, entre tantas?

 JR: Um professor é sempre crítico e eu quis ver qual era a crítica dele. Foi importante. Mas em Paris não conta só o contacto com uma pessoa, o que conta é todo o ambiente: as exposições que eu vi - de fauvismo por exemplo - que me influenciaram muito.

 CVM: Foi lá, também, que viu, pela primeira vez, uma exposição surrealista.

 JR: Foi. Suponho que devia ser uma das primeiras exposições surrealistas em Paris.

 CVM: Na altura gostou?

 JR: Achei que era interessante.

 CVM: Mas não aderiu totalmente àquilo.

 JR: Não, mas achei que era uma experiência interessante. Lembro-me muito bem dessa exposição. A concepção estava bem feita: do exterior, para entrar na exposição, a pessoa tinha que passar por uma série de cortinas de água. E havia lá coisas curiosas, determinantes e até concludentes.

 CVM: Lembra-se se já havia nessa exposição alguma obra marcante?

 JR: Havia uma que achei curiosa. Era a primeira vez que se apresentava um trabalho que não era para ser visto, era para ser sentido. Era preciso meter a mão e sentir qualquer coisa. Para mim, são coisas de uma área um bocado estranha. Em Portugal nunca se tinha visto nada assim. Uma pessoa parte do princípio que uma pintura é uma coisa que está ali diante de nós, para ver. Uma coisa que era só para sentir, que não se via, para mim era algo de estranho. Nesse sentido foi interessante.

 CVM: Foi interessante mas não o entusiasmou.

 JR: Não. Foi um interesse de conhecimento lato das coisas. Vi que a Arte era coisa que aqui ainda não havia. Estávamos muito longe disso.

 CVM: Na altura, já contactou com a obra de Picasso?

 JR: Sim. A primeira exposição que vi foi em Avignon, no Palácio dos Papas. Foi a primeira vez que eu vi uma parede de pedra e os Picassos defronte da parede de pedra: uma coisa um bocado insólita. Gostei muito. Essa foi uma experiência muito rica para mim.

 CVM: Entretanto vai a Itália embora por um período de tempo limitado.

 JR: Fui, talvez, em Agosto e ainda estive até ao Natal. Natal de 47. Foi meio ano em que andei sempre de um lado para o outro.

 CVM: Como é que se deslocava?

 JR: De comboio. Fiz a viagem de Roma para Nápoles num J.

 CVM: O que era um J?

 JR: Era uma carruagem de animais ou coisa assim. Mas com bilhete.

 CVM: Ia mesmo à aventura?

 JR: Fui. Deixei a minha mulher e a minha filha em Génova, numa casa particular. Isto foi logo depois da guerra. Havia pessoas que tinham necessidade e recebiam hóspedes. Elas ficaram ali e eu fui fazer as minhas viagens de comboio.

 CVM: Tinha referências dos sítios concretos onde queria ir ou ia simplesmente à descoberta, levado pelo acaso?

 JR: Eu tinha que fazer as minhas contas. O dinheiro era muito limitado. Às vezes, não almoçava. Passava por um sítio, bebia um copo de vinho, comprava umas castanhas. Tenho isso tudo aqui anotado.

 CVM: Isso é o seu diário de viagem?

 JR: São coisas que eu ia apontando. Isto foi uma visita do Nadir Afonso, que passou por lá.

 CVM: Ia colando desenhos aí essas fotografias. E desenhos.

 JR: Aqui é outra vez França. Montparnasse. Aqui é o atelier de fresco. Isto foi uma viagem de bicicleta. 

CVM: Também viajou de bicicleta?

 JR: Fiz a Bretanha de bicicleta. E Ia desenhando.

 CVM: Mantinha um álbum de viagem com tudo organizadinho.

 JR: Tinha uma máquina pequenina e ia fazendo fotografias. Aqui está o sitio onde pintei: era um atelier que já não existe. Holanda, Inglaterra.

CVM: Foi para a Holanda e Inglaterra, também?

 JR: Sim, só depois é que fui para Itália. Cá está. Está a ver?

 CVM: "Castanhas 30; pequeno-almoço 40; correio 90". Isto é a lista das suas despesas. Anotava tudo.

 JR: Eu sei o que são as dificuldades. Sei bem o que isso é.

 CVM: Foram tempos difíceis?

 JR: Claro. Era preciso uma grande economia.

 CVM: Alguma vez teve momentos de quase desespero?

 JR: Tive. Quando estive em Itália, cheguei à conclusão de que não podia aguentar que a minha mulher e a minha menina estivessem tanto tempo fora, com dificuldades. Havia muitas dificuldades: o leite para a menina e tudo. Depois, queria regressar e estava numa situação em que me tinham dito que me iam voltar a dar a bolsa. Então, pensei vir a Portugal deixar a minha mulher e a menina, com a família, para eu ir sozinho. Havia uma instabilidade muito grande nos transportes, por causa de greves, etc. Eu estava a imaginar vir de Génova de barco, mas não consegui. Fiquei em Paris numas circunstâncias um bocado aflitivas. Passei lá o Natal. Só depois é que conseguimos regressar.

 CVM: Não tinha o dinheiro suficiente para voltar?

 JR: Não havia transportes e não havia assim dinheiro, também. Era uma situação um bocado aflitiva, de facto. Mas tudo se compôs. Depois, já voltei sozinho para Paris. Em determinada altura, recebo uma carta a dizer que tinha de regressar. A minha perspectiva era ficar mais um ano. Não soube porque é que me mandaram regressar. Eu sempre cumpri as minhas obrigações de bolseiro.

 CVM: Quais eram as obrigações de um bolseiro?

 JR: Ir comunicando onde é que estava inscrito, etc. Mandava os meus relatórios com o que tinha visto. Mensalmente, creio eu. Ainda tenho aí uma pasta com os relatórios.

 CVM: Esses relatórios eram trabalhos, desenhos ou apenas relatórios escritos?

 JR: Escritos. Também dava conta das cópias que estava a fazer no Louvre. Não havia razões para me tirarem a bolsa.

 CVM: Nunca chegou a saber, realmente, porque é que lha tiraram?

 JR: Não. Nunca. Quis saber e nunca me disseram nada. Isso levou-me a imaginar umas coisas.

 CVM: O que é que imaginou?

 JR: Imaginei que ma tiraram para a dar a outra pessoa. Qualquer coisa assim. Era uma bolsa de estudo para a qual eu tinha feito provas públicas, um trabalho.

 CVM: Soube de alguém que tivesse ido depois para o seu lugar?

 JR: Sei que foi uma senhora. Agora não me lembro do nome. Isso levou a que eu não ficasse totalmente satisfeito. Pensei assim: há uma coisa que eu quero que fique demonstrada, é que não estive lá a brincar! Então, durante dois anos, no Alentejo, estive às voltas com a ideia de fazer uma exposição. Para verem o que eu tinha estado a fazer. E assim foi. Foi aquela exposição onde esteve o Almada Negreiros e onde conheci a Vieira da Silva.

 CVM: A Vieira da Silva já era uma pintora reconhecida, nessa altura?

 JR: Ela estava de passagem, do Brasil para Paris. Ainda não tinha atingido a consagração mas já era uma pessoa conhecida. Mas, ouça, em Paris eu nunca a procurei.

 CVM: Porquê: por pudor?

 JR: Eu sabia que ela devia ser altamente incomodada por toda a gente que ia a Paris. E eu nunca quis isso. Não sou pessoa para me meter, assim.

 CVM: Estávamos a percorrer a memória de algumas das suas viagens e eu gostava de perceber o que é que, de tudo o que viu em Itália, foi o mais importante.

 JR: Sabe o que é termos aquela noção de estarmos na presença física das coisas? Diante de uma coisa de que já temos conhecimento. Ai, é uma maravilha! Por vezes, claro, há uma ou outra decepção.

 CVM: E houve decepções, para si, em Itália?

 JR: Não. Aí, tudo ultrapassou aquilo que eu imaginava. Vistas numa reprodução, as coisas, por muito que queiramos estar diante delas, não é possível.

 CVM: Foi a Veneza, Nápoles, Florença: o que é que o impressionou mais?

 JR: Primeiro, a profusão de coisas importantes com que me deparei e, depois, aquelas coisas com as quais, à partida, eu sentiria mais impacto. Tenho ali à entrada uma cópia que fiz. Eu tinha uma caixinha a tiracolo com óleos. Pintei, em Arezzo, um bocado de um fresco do Piero della Francesca, que estava na parede de uma igreja.

 CVM: Andava sempre com essa caixinha de óleos e com a paleta?

 JR: Não andava sempre, mas naquela altura levei-a justamente para isso: para reproduzir a óleo um bocadinho do fresco. Aquilo são coisas enormes e eu escolhi apenas um pormenor. Há que aproveitar as situações que nos são dadas. Já voltei a Itália mas, por todas as dificuldades que eu tive, essa viagem marcou-me muito.


  Diálogo VII Onde o pintor descobre o Brasil; onde as cores de Goa se infiltram na conversa; onde há episódios rocambolescos com agentes da autoridade e, a propósito deles, se percebe que


“A pintura pode ser perigosa”

 JR: Em Paris, uma coisa que considerei muito importante foi conhecer colegas estrangeiros, que estavam lá como eu. Entre alguns de que fiquei amigo há uma amizade importante com um pintor norueguês. Portanto a minha viagem seguinte foi ir aos países nórdicos.

 CVM: É por isso que a sua primeira exposição internacional acontece num país há partida tão improvável para um pintor português como é a Noruega?

 JR: É. Fiz uma em Oslo e outra em Olso, na Noruega.

 CVM: Por causa dessa amizade parisiense.

 JR: Sim. Eu convidei esse meu amigo norueguês, depois, para vir estar na minha casa no Porto e fizemos umas viagens por aqui. Já me estou a rir, porque nos aconteceu uma coisa engraçada. De uma das vezes em que ele cá veio, pensámos em fazer um trajecto de bicicleta. Era um dia muito quente. Partimos daqui, de uma cidadezinha do norte, até à beira-mar. A determinada altura, paramos para beber qualquer coisa. Havia uma tasquinha, à beira da estrada, e, quando estávamos a beber, chegou um jipe da Guarda Republicana. Entraram ali e pediram-nos os documentos. O norueguês era assim muito alto. Mostrámos tudo e eles foram-se embora. Depois alguém nos disse: houve qualquer coisa porque eles desconfiaram de vocês. Bem, chegámos perto do mar, a Ofir ou coisa que o valha. Ao fim da tarde já estávamos em Vila do Conde e o Oddvard - era assim que se chamava o meu amigo norueguês: Oddvard Straume - estava maravilhado com Vila do Conde. Decidimos, portanto, não ir para o Porto e ficar ali, para ele pintar. Como não havia lugares em hotéis, põe-se ele a dizer para mim: está uma noite formidável. Portanto, ficámos lá na areia. Assim adormecemos. Estava uma noite de luar. Às tantas, eu acordo e vejo um vulto a andar às voltas. O Oddvard a dormir e eu, cá para mim: que diacho, o que é isto? Até que vi que era um guarda. Digo assim: vou-lhe explicar que somos artistas. Quando me ia a aproximar, o tipo dá um salto e aponta-me a pistola. E eu: o que é? eu não tenho armas! E ele: ninguém perguntou nada! E eu voltei-me a deitar.

 CVM: E ele foi-se embora?

 JR: Foi-se embora mas foi um momento assim...

 CVM: Tenso?

 JR: Eu devia estar com medo mas só dizia: eu não tenho nada mesmo...

 CVM: Pelos vistos, havia qualquer coisa em si que atraía histórias insólitas com guardas: há uma outra em que chegou mesmo a ser detido.

 JR: Fui levado até à esquadra. Com as pessoas todas a olharem para mim…

 CVM: Dessa vez foi por estar a pintar.

 JR: Estava a pintar ali na Foz. Isto foi há muito tempo: durante a guerra, ainda. Eu também era novato: pensava que era preciso ir pintar lá para fora e não no atelier, como diziam os impressionistas. Tinha uma caixa – ainda a tenho! -, um cavalete, estava um dia bonito e fui ali para a Foz. Pensava que era preciso procurar um motivo. O motivo não estava aqui, na cabeça. Pus-me a pintar e, em dado momento, senti que estava uma pessoa atrás de mim. Nem me virei. Às tantas, tocam-me assim e dizem: o senhor o que é que está a fazer? Eu tentei explicar: está um dia bonito, aquelas ondas batem ali, reflectem nos rochedos... E ele, interrompe-me: bem, o senhor vai ter que me acompanhar à esquadra! Eu fui por ali fora e quando cheguei lá perguntaram-me se eu não estaria a fazer nenhum sinal a algum submarino ou alguma coisa assim. E eu: como?! Fiquei um bocado…

 CVM: Pelos vistos, a pintura pode ser perigosa.

 JR: Pode ser perigosa, pode. Depois eu lá disse: então um estudante de Belas Artes não pode pintar na rua, porquê? Até me queixei, lá na escola, ao director.

 CVM: A queixa teve algum seguimento?

 JR: O director parece que teria falado no Governo Civil para nos deixarem pintar. Mas pelo sim pelo não, de outra vez, estava eu ali num sítio muito típico, ia pintar um trecho da rua, quando vi um guarda e fui-lhe perguntar se podia pintar. Diz-me ele: o senhor quer pintar? Arranja dois paus põe um do lado do passeio, outro do outro e pode pintar à vontade. Eu disse: obrigado! Na altura, era hábito, antes de pintar paredes ou varrer, pôr uns paus na rua, para as pessoas não passarem. Enfim, coisas que têm graça, para se ver a cultura das pessoas.

 CVM: Sentia muito essa diferença de nível cultural quando saía do país?

 JR: Quando fui para Paris, era uma altura muito má: foi logo a seguir à guerra.

 CVM: Ainda estavam muito vivas as marcas da guerra?

 JR: Muito. Tenho uma fotografia de Florença em que estou em cima de um terreno que hoje é um edifício: estava tudo deitado abaixo. Vi muita coisa assim. Na Bretanha, Brest estava toda arrasada.

 CVM: Portanto, aqueles filmes neo-realistas do Rossellini, filmados logo a seguir à guerra, são experiências que viveu na primeira pessoa.

 JR: Vivi experiências, às vezes, até engraçadas. Eu estava em Paris e frequentava os restaurantes mais proletários. Havia, em Montparnasse, um restaurante que era só para artistas e jovens actores. Quem servia ao balcão e às mesas eram modelos da academia, que a gente conhecia de vista. Era todo um ambiente que agora, claro, já não existe. Uma vez, eu tinha recebido umas latas de sardinhas, aqui de Portugal, e lembrei-me de levar uma lata de sardinha e pedir um prato que lá era muito barato: as batatas cozidas, a que lá chamavam pommes à vinagrete. Eu estava a comer aquilo, com essas batatas, com o azeite da lata, e de repente estava um tipo ali que não tirava os olhos de mim. Por acaso, até era asiático. Às tantas, vem ter comigo. Olha para a lata e diz-me assim: se o senhor já não precisar posso levar esta lata? Até aquilo ele queria aproveitar! Era para aproveitar o molho. Uma das empregadas do restaurante estava sempre atenta ao que se estava a passar. Era a que estava no balcão, com a caixa. Depois, havia as empregadas que andavam a servir. Eu tinha pedido um copo de vinho e a empregada assim que me serve põe-se de lado, a tapar, para a outra não ver: tinha ultrapassado um bocadinho risco do copo e diz-me muito depressa: beba, beba.

 CVM: Para a outra não perceber que se tinha descuidado e tinha enchido demasiado o copo.

 JR: Quando queríamos tomar um café perguntavam sempre: du vrais? Era uma coisa tão má. Um pó preto. Eu cheguei a ir, algumas vezes, almoçar à cidade universitária. Havia lá sempre filas muito grandes de estudantes. Às vezes, também havia, pela cidade, umas correrias, porque desapareciam os tickets do pão. Nos restaurantes perguntavam: vous avez le ticket du pain? Não. Alors, pas de pain! Com a milha filha pequenita havia problemas por causa do leite. Passámos coisas assim. Mas as dificuldades foram superadas.

 CVM: Entretanto, voltou a Portugal, começou a expor, fez a primeira exposição internacional na Noruega…

 JR: A Noruega para mim foi uma coisa interessante. Dei-me conta de um poder enorme da Natureza. 

CVM: Isso alterou, de alguma forma, a sua maneira de pintar?

 JR: Não, mas foi um enorme enriquecimento: pela geografia, pela Natureza. Os fiordes, lá para cima, são uma coisa fantástica. E o clima, o tipo de vida. Além da pintura que havia lá e que eu desconhecia.

 CVM: O Munch?

 JR: Sim. Eu estive no atelier do Munch. É um museu. E ele é um expressionista.

 CVM: Sentiu, portanto, que tinha alguma familiaridade com aquela obra.

 JR: É. E vi as pinturas que nós aqui desconhecemos de artistas que são pintores da natureza. Há muitas coisas que eu aprendi lá.

 CVM: Quando é que se descobriu a si próprio expressionista?

 JR: O expressionismo depende da pessoa e da geografia onde a pessoa nasce. Há um expressionismo nórdico, há um expressionismo flamengo…

 CVM: Um expressionismo ibérico?

 JR: Ibérico, também se pode dizer.

 CVM: Mas em que momento é que teve consciência dessa sua filiação em termos estilísticos?

 JR: Aos poucos, vim-me apercebendo que - das etiquetas que havia - se calhar era aquela que mais me parecia condicente com a minha maneira de ser. Abstracto não sou…

 CVM: Apontaram-lhe isso ou foi o mestre Resende que o descobriu por si?

 JR: Não sei como é que foi. Sei que, quando uma vez, na Bélgica, disseram que eu era um expressionista lírico, eu já me imaginava expressionista. Não sei se conhece um poeta espanhol que é Angel Crespo. Fomos muito amigos.

 CVM: Até tinha uma galeria onde expôs obras suas.

 JR: Ele agora já morreu. Nessa altura, também ele já tinha dito que eu era expressionista. Hei-de ver nas críticas que tenho quem é que me chama expressionista. Mas também acho que não é um nome que faça assim muita impressão. Não é um nome impressionista! Suponho isto é algo que se passa com toda a gente. Não é preciso ser artista. Todos os nós temos o desejo de ver em que classificação nos podemos enquadrar. De certa maneira isto, tem a ver com a psicologia. Eu sou uma pessoa com mais tendência de reflectir para fora.

 CVM: Emotivo?

JR: Mais emotivo, sim. Olhe, tive uma vida muito plena. Sempre a apelar aos outros. Nunca me senti isolado. Senti-me sempre acompanhado e acompanhando também os outros.

 CVM: No capítulo das viagens, ainda não falámos de uma bastante mais recente e extraordinariamente importante: a sua descoberta do Brasil.

 JR: O Brasil, foi em 71. Então, senti de facto a diferença do peso e da herança da Europa. Senti que o Brasil era um país absolutamente aberto e descontraído. Sem fronteiras. Onde tudo podia chegar e coexistir. Senti que a Europa estava muito presa a regras estruturais. Hoje já não é assim mas, naquela altura, fazia-se uma grande reverência à estrutura derivada da vertical e da horizontal. Aquela estrutura de ângulo recto. O Brasil é outra coisa: são as oblíquas. Isso deu lugar a que a estrutura do quadro explore, a partir daí, todas as estruturas das oblíquas.

 CVM: Foi uma mudança imediata e consciente ou foi algo que só veio a reflectir-se mais tarde na forma como pinta?

 JR: Embora eu conhecesse um pouco certas coisas do Brasil - aquilo que era possível conhecer: a música do Villa-Lobos, alguma literatura - nunca é aquela realidade. Uma pessoa chega lá e sente-se no meio de toda aquela vibração. Uma vibração intensa mas um bocado dolente, cadenciada. Isso, sobretudo para a estrutura dos meus quadros, foi uma nova via.

 CVM: Teve imediatamente consciência de que aquilo provocaria essa alteração?

 JR: Houve um impacto, sim. Depois do impacto é que vem a concretização. Não é que a minha pintura fosse feita sempre a pensar no Brasil. Essa articulação vem quando nós estamos dispostos a aceitá-la. 

CVM: Em termos artísticos, foi a sua viagem mais determinante?

 JR: Se calhar. Até por essa tal razão básica de estrutura do quadro. Face àquela fixação rectilínea da Europa, no Brasil as leis físicas parece que não são as mesmas. Para um quadro a sua estrutura é fundamental, claro. E depois há o sinal.

 CVM: O sinal, em que sentido?

 JR: Há uma coisa muito importante, na pintura, que é a sintaxe que nós criamos. Cada um terá a sua. 

CVM: Está a falar da paleta cromática, por exemplo?

 JR: Não foi isso o que mais me impressionou. Embora a luminosidade, as cores, me tivessem impressionado muito. As cores avivaram-se, com certeza. Mas o mais importante foi a estrutura.

 CVM: O que é que mudou ao nível do sinal, para usar a sua expressão?

 JR: O sinal, de certa maneira, procurou ter uma expressividade maior. Aquilo que era o factor folclórico é terrível. A arte da Bahia obedece muito às coisas do folclore.

 CVM: Acaba por cair sempre nos mesmos clichés.

 JR: É isso. Muito, muito. O que eu conheci primeiro foi a Bahia e aí tive os cuidados necessários para não cair nessas coisas muito folclóricas. Mas, de alguma maneira, também fui seduzido por esse aspecto.

 CVM: Depois, em Cabo Verde, teve o mesmo choque ou já foi algo de mais atenuado?

 JR: Foi bastante mais atenuado. Embora a presença numa ilha como a ilha do Fogo seja uma coisa que nos toca interiormente.

 CVM: As ilhas têm um poder especial, não é?

 JR: A ilha onde estive mais tempo foi a de Santiago. O Mindelo tem um nível cultural muito curioso para uma natureza tão parca: é o mar, são aquelas fragas, o resultado vulcânico, a falta de verdura. Isso é que é o mais provocante para quem vai ali para o sentir. Foi aí que eu fiz aquela paisagem com os próprios pigmentos. Tentei, pelas cores, dar isso. A atitude das pessoas é de uma certa aceitação. Não há quem se lamente profundamente naquele desolamento.

 CVM: Aí, a influência artística foi mais a nível cromático?

 JR: Sim, cromática. Com aquela gama muito limitada. E, realmente, o facto de as pessoas, sobretudo as mulheres, terem uma maneira cromática de se vestir que contrasta muito. Ali, as vibrações são todas nas figuras das mulheres. Naquilo que elas vestem. Por exemplo, em Goa não é assim. Em Goa, os saris quase se confundem com o fundo.

 CVM: A ida a Goa foi outra das suas viagens com resultados artísticos muito importantes.

 JR: Mutismo marcante. Ainda estou nela.

 CVM: Ainda está na fase de Goa?

 JR: Ainda estou um bocado preso àquelas formas, àquela coisa extraordinária. Depois, passei muito levemente por África e percebi que aquilo era uma outra coisa muito diferente. Mas isso já não explorei. 

CVM: Goa deixou-lhe marcas a que nível: também na cor ou, sobretudo, de composição?

 JR: De composição, também. Com certeza. Mas sobretudo ao nível do desenho. É um desenho que vai ao infinito nas hipóteses de combinação de arcos, de círculos, com linhas curvilíneas. Aí, o meu gesto atingiu o máximo. Está ali uma coisa, naquele cartaz, ali na parede, que foi o ponto mais avançado a que cheguei de fazer a pintura por gestos. Agora, já não estou bem dentro daquilo mas, ali, a pintura eram gestos. E depois há aquele tom quase sem nome possível. Porque há cores que não têm nomes. É impossível fazer referências por nomes às cores todas. Elas são infinitas.

 CVM: Como é esse processo de absorção de todos esses estímulos: regista isso tudo, fica-lhe tudo armazenado nos olhos e na cabeça para depois ir saindo aos poucos?

 JR: Nesta variedade de hipóteses que encontro nas diversas culturas e nos diversos pontos geográficos, há depois qualquer coisa que vai sempre para a pintura. Não são aquisições que ficam eternamente, nem são esquecidas. Não posso determinar como é que algumas que têm mais a ver com a estrutura, outras com a cor. O Brasil, por exemplo, não é nada daquilo que as pessoas vêem no Carnaval. Não é aquela folia. É muito dramático. É a cor da terra. Não vejo aquilo com muitas cores. É uma coisa que não se sustém. Anda e baloiça, mas não é uma coisa nada efusiva.


  Diálogo VIII Onde o artista reflecte sobre o muito que a pintura lhe ensinou; onde revela o quanto é assaltado por dúvidas sobre a verdadeira importância da Arte; onde se fala do lugar do desenho e das garatujas e onde, a par com uma explicação breve sobre o conceito de “picassice”, o pintor confessa:

  “O Picasso foi um dos pintores que eu mais temi”

 JR: Eu tive muito medo do Picasso. Tive alturas em que não quis olhar para o Picasso. O Picasso tem sido desde sempre muito divulgado. Quando eu entrei para a escola de Belas Artes já se falava no Picasso. 

CVM: Quando entrou ainda como aluno.

 JR: Sim. Mas falava-se dele, sempre, num sentido pejorativo. Havia termos como "uma picassice", quando se queria falar de coisas muito esquisitas. Houve uma revista ilustrada, que saía em Lisboa, que teve a coragem de publicar um Picasso na capa. Agora não me lembro do nome dela. Eu admirei-me muito porque quem escreveu aquilo não disse tolices sobre o Picasso.

 CVM: Era habitual só se dizerem tolices?

 JR: Sim. Eu tinha uma madrinha que se ria muito com as coisas que eu fazia. Também dizia que eram umas picassices. Coitadinha, ela não tinha cultura. Eu ouvia aquilo e ficava assim um bocado... bem, pronto! Não era nada Picasso mas como era estranho…

 CVM: Tudo o que era estranho era Picasso.

 JR: O Picasso foi um homem que a determinada altura influenciou muito toda a Arte. Ele próprio foi influenciado pela Arte dos outros: dos negros, dos gregos, dos flamengos. Aquelas formas opulentas das tapeçarias flamengas, ele também as explorou. Houve uma altura, estava eu no Alentejo, em que tinha contacto com rapaz com muita qualidade - um colega que eu estimo e prezo muito, que é o Charrua. Nos anos de 47/48 encontrávamo-nos e ele às vezes mostrava-me as coisas dele e eu dizia-lhe assim: ó pá, o Picasso anda aqui! Ele sobressaltava-se: o quê?!

 CVM: Ficava aflito.

 JR: Com certeza. Ele não gostava, como ninguém gosta. Quando eu estava no Alentejo não queria ver Picassos nem queria nada. Estava ali com uma ideia muito reservada. Para mim, era fundamental aproveitar aquele tempo para estar a ver as coisas, claramente, sem olhar para elas. O que me interessava era ver como ia fazer a seguir.

 CVM: Procurar o seu caminho.

 JR: Exactamente. E isso começou pela estrutura. Pelo desenho. Pela arquitectura do quadro. Portanto, o Picasso foi um dos que eu temi mais. Mas houve outros.

 CVM: Por exemplo?

 JR: O Goya com certeza. Mas quanto ao Goya nem vale a pena meter-me nisso.

 CVM: O Goya que foi o pintor que mais admirou chegou a ser, também, para si, um peso?

 JR: Nunca me meteu medo. Mas houve outros pintores que sim. Alguns espanhóis, como o próprio Vasquez Diaz. Tive momentos em que achei que o caminho era aquele. As coisas que eu fiz em 43, 44 tinham um bocado a ver com as coisas do Vasquez Diaz, antes de o conhecer. Só o conheci mais tarde. O Van Gogh também me terá interessado. Mais até como pessoa. Como o sinal que ele representou. Há pintores que me disseram qualquer coisa, depois deixaram de dizer. Há pintores que me surpreenderam. Se calhar não tão positivamente como supunha, pelas reproduções que via.

 CVM: Houve decepções?

 JR: Algumas. Por exemplo - esta até dá vontade de rir porque também sou um bocado filho dele mas - quando vi o Cézanne estava a pensar que era outra coisa. Mas isto até nos acontece com as pessoas. A gente tem uma boa impressão e depois vê que afinal não é bem aquilo. Outras vezes é o contrário: olha, afinal é uma pessoa com quem me posso dar muito bem. Há essas coisas todas e com a pintura passa-se o mesmo.

 CVM: O Cézanne ficou aquém daquilo que imaginava porquê?

 JR: Não sei se foi pela escala. Fiquei um bocado decepcionado. Mas depois há uma revisão. Há uma expectativa que, às vezes, engana. A gente não deve ter tantas certezas no julgamento que faz das coisas. O Bonnard, por exemplo, é um grande pintor. O Picasso achava que não, que ele não sabia desenhar. Eu acho que o desenho diz muito da pessoa.

 CVM: Qual é o lugar do desenho, para si?

 JR: Acho que não há um lugar. Há os lugares do desenho. Tudo tem desenho, portanto, não há um lugar específico. O lugar do desenho… cada um terá o seu. O desenho é muito difícil de definir. Já encontrei tantas definições.

 CVM: Qual é a que prefere?

 JR: Há uma que vem sempre em tudo que é assim: Desenhar é ser e estar. É expor-se na nudez mais completa sem amparo.

 CVM: Sente o desenho como uma forma de se abrir por completo?

 JR: Isso, sinto. Sabe, não há marca no espaço que não tenha desenho. Se não, seria um simples borrão. Seria a mesma coisa que a garatuja: seria apenas uma garatuja. Se deixa de ser uma garatuja passa a ser pensamento, uma forma de pensar. Apesar de que, cuidado!, um sentimento que é indefinível também pode parecer uma garatuja.

 CVM: Embora, para usar a sua expressão, contenha pensamento.

 JR: Estou a referir-me àqueles pintores em que aquilo está lá muito interiorizado mas, em todo o caso, está ali. Eu ponho sempre um bocado de reserva nisto. Á partida, digo que uma garatuja é uma garatuja. É uma coisa que aconteceu, que não tem sentido. Mas a mão, se o fez, também deve estar a dizer alguma coisa. 

CVM: Não lhe interessam pintores como, por exemplo, o Jackson Pollock?

 JR: É por isso que estou a dizer: cuidado. Aí, cuidado!

 CVM: Interessa-lhe uma obra como a do Pollock?

 JR: Não particularmente. Embora me interesse ter feito disso uma coisa que é pressentida. Um pressentimento que cresce depois com uma referência mental. Foi interessante ver o Pollock. Tudo tem interesse na medida em que marca uma posição nesta coisa fantástica que é uma evolução das formas. 

CVM: Ele, de alguma forma, também é um pouco da sua família: também é expressionista, embora seja um expressionista abstracto.

 JR: Exactamente. Aquilo tinha que sair e saiu. que Tem que se cumprir, por natureza, e é até irreversível. Nisto não há regras definidas. Agora, eu continuo a dizer que o papel da Arte não é só testar as hipóteses. Vale a pena sentir que aquilo apareceu e que estamos atentos a alguma coisa, não estamos a viver por viver. Apareceu aquilo e damo-nos conta de que é diferente do que havia. Na mente da pessoa, se calhar, representa a consciência de que se está a viver. Há uma frase que me faz sorrir que é quando as pessoas dizem: eu estou aqui a passar tempo, a matar o tempo. Matar o tempo! Isso é uma coisa que não se pode fazer. O tempo é uma coisa preciosa.

 CVM: Como é que, normalmente, faz a distinção entre o que é garatuja e o que já tem por detrás uma intencionalidade, o tal pensamento?

 JR: Quando vêm aí uns garotos eu tenho comigo um papel e começo por dizer que vou fazer uma coisa qualquer: não estou a pensar em nada, saiu isto. Mas, reparem, se eu o quiser analisar, isto tem formas; estas sobreposições são provocantes. Tenho aqui um papel, vocês percebem que o papel não tem nada, mas os vossos olhos vão para lá, queiram ou não queiram, vão sempre para o vértice de um ângulo. Se o ângulo é recto, fala muito. Se não é, também tem um significado. Nós apercebemo-nos que isto está aqui a dizer qualquer coisa e que reclama a atenção dos nossos olhos. A psicologia baseia-se em coisas que também se podem explicar pela razão dos números. Há aqui uma coisa que não pode ser mais agressiva do que um ângulo recto, que são 90 graus. Se colocarmos aqui qualquer coisa, já começa a ser impacto demais. São referências em que não pensamos mas temos a noção de que estão lá. Um sarrabisco pode ser analisado. Eu olho para ele e a minha atenção vai para ali, porque houve ali cruzamento que tem uma forma assim e isso chama-nos a atenção.

 CVM: Então e quando é que o sarrabisco passa a ser Arte.

 JR: Não digo que se torne Arte mas passa a ser uma afirmação.

 CVM: Mas quando é que passa a ser Arte?

 JR: Passa a ser Arte quando houve um certo domínio. Não estou a defender os Pollocks. Estou a imaginar que aquilo talvez se perceba porque há uma constante: ele faz aquilo. Se calhar, um trabalho é diferente do outro mas usou um léxico.

 CVM: O século XX pôs muito em causa algumas das noções de Arte levando-as até ao extremo.

 JR: O século XX foi toda uma análise fria e procurando ser rigorosa, com conceitos que surgem por incidências.

 CVM: Há intervenções que se podem dizer quase terroristas em termos artísticos: o Duchamp é um terrorista artístico.

 JR: Foi. Mas essa fórmula já não aterroriza ninguém.

 CVM: Mas levou até aos limites aquilo que é definível dentro de um conceito de Arte.

 JR: Pois. Não sei se num sentido de evolução se repetem as atitudes. Quando há um excesso... Se calhar, agora a realidade nova pensa um super-realismo. Pensam em fazer ao contrário. Há um movimento sempre pendular. De qualquer modo, acho que essas coisas são naturais. É bom que aconteçam para evitarmos estar sempre a bater no ceguinho.

 CVM: A bater no ceguinho, em que sentido?

 JR: Temos que evoluir. Agora, que nessa evolução não se perca o sentido de que nós estamos vivos e todos num mesmo universo e temos que continuar a conviver.

 CVM: Isso já é o seu lado humanista a falar.

 JR: Sim. É aí que eu me sinto bem: em estar com os outros. Acho que as pessoas não devem estar mudas e quedas. Estamos no mundo para conviver uns com os outros. Cada um procurando as suas verdades. Na tentativa de encontrar uma verdade. Ela não existe, exactamente, mas a busca já é uma coisa dinâmica. Nós estamos aqui para a dinâmica. Não estamos aqui para a passividade.

 CVM: Diria que aquilo que pinta é algo que já trazia dentro de si ou é algo de exterior a si?

 JR: A minha busca é que o que está dentro de mim possa reflectir o que está no exterior. Que não exista uma fronteira entre o que está dentro e o que está fora. Cada pessoa tem a sua maneira de ver e, de certa maneira, as pessoas têm que ser preparadas para, elas próprias, serem criativas.

 CVM: Saber ver também é uma forma de criatividade?

 JR: Acho que é. Não há nada pior do que a pessoa ficar indiferente às coisas. Ao menos que diga mal! Há um dito em que se refere que os gostos não se discutem. Eu sou contrário a isso. Falemos dos gostos. Seria uma coisa interessante, falar dos gostos sem querer pretender tirar as ideias que cada um tem. Agora uma confissão: lamento muito que estejamos persuadidos de que diante destas coisas - não são as coisas da economia – haja que não tenham nada a dizer. Que digam que não percebem nada de pintura. Não é preciso perceber. É preciso é ver o que se sente. Isto não é uma coisa que se ponha diante dos olhos para deleite só dos olhos. As pessoas ficam perdidas a olhar para a Gioconda porque lhes disseram que aquilo era um sorriso que não se sabe se é assim, se é assado...

 CVM: Vê alguma mistificação nisso? JR: A riqueza daquilo não está no olhar, nem nada disso. Aquilo foi um avanço para a pintura. A pintura deixou de se limitar ao volume pelo tracejado das silhuetas. Aquilo pode ter imensos traçados porque há um envolvimento que não se fazia. Mas as pessoas não vêm isso. Ficam a ver as mãozinhas: será uma mulher, será um rapaz? Ficam presas à parte que é menos importante. Mas será que as pessoas ficam enriquecidas em ver que as formas evoluem? Se calhar não ficam.

 CVM: Tem momentos em que coloca tudo em causa?

 JR: Não sei se vale a pena estarmos a falar na fruição. Para que é que se vai falar numa coisa pensando que a pessoa fica enriquecida, se ela passa muito bem sem isso? A felicidade para as pessoas não está nisto, se calhar. Não sei se é bom conhecer a riqueza da Arte, o que a Arte tem de bom

 CVM: É bom para aqueles que souberem interpretá-la e souberem vivê-la.

 JR: Mas esses não reclamam isso, não precisam. Não sei se uma pessoa é mais feliz sabendo que existem estas coisas. Estou aqui num domínio que me perturba.

 CVM: Alguma vez, perante uma tela, pôs essa questão: para que é que eu vou fazer isto?

 JR: Não. Acho que pintura se deve mostrar. Se ela foi feita para ser comunicada vamos ver se resultou. Às vezes não sei é em que é aquilo resulta nas pessoas. Estou a pensar nas primeiras audições de uma música que revoluciona: as pessoas dão-lhe uma recepção pior. Aconteceu com o Stravinski.

 CVM: Com “A Sagração da Primavera”.

 JR: Pois. Que será que ele pensou depois daquilo? Hoje, já se sabe que aquilo é uma coisa extraordinária. Eu acho que é. Não sei se é.

 CVM: Tem sempre assim tantas dúvidas: é um homem com mais dúvidas do que certezas?

 JR: Sou.

 CVM: A idade deu-lhe mais interrogações ou atenuou essas dúvidas?

 JR: Ainda agora expressei uma dúvida. Mas será que alguém não tem dúvidas? Haverá alguém que não tenha dúvidas?

 CVM: Pode haver é quem tenha também certezas, independentemente delas serem certas ou não.

 JR: Não sei, mas acho que as dúvidas mantêm-nos… As certezas dão tranquilidade talvez mas quem é que é realmente tranquilo? Eu quero ter dúvidas.

 CVM: Lembra-se de todos os quadros que pintou?

 JR: De alguns não me lembro

 CVM: Tem ideia de quantos quadros já terá pintado?

 JR: Eu fico um bocado admirado, porque agora me vou dando conta de que afinal vivi muito. Tenho muita coisa! Mas não posso fazer uma contagem. Já nem sei onde elas estão. Nunca fui um homem muito organizado, para as minhas coisas. Sou um péssimo orientador. Costumo dizer: vocês guardem as coisas porque, depois, isso são referências onde vão poder ver o vosso passado. Eu não o fiz. Houve alturas em que tinha o atelier cheio de coisas. Aquilo desapareceu tudo e hoje já há coisas que me custa pensar que fiz. Mas a breve trecho eu vejo e recordo-me: ah, sim!

 CVM: O que é que a sua pintura lhe ensinou a si mesmo sobre si próprio?

 JR: Sei que não há coisas gratuitas.

 CVM: Está a referir-se a quê?

 JR: A qualquer coisa que esteja na origem de uma força que emana. Acho que há gestos que são próprios de um desalento, que são ineficazes.

 CVM: Foi a sua pintura que lhe ensinou isso?

 JR: Acho que a minha pintura tem de se submeter sempre a duas coisas: aquilo que está cá dentro - que eu não sei o que é mas se revela porque me obriga a não estar quieto - e aquilo que é, depois, a reflexão. Tem que ser sempre as duas coisas embora elas se possam sobrepor.

 CVM: O que é que aprendeu acerca de si mesmo?

 JR: Aprendi que devo desconfiar muito de coisas que faço e que se calhar mais tarde são irreversíveis. Tenho muito medo disso.

 CVM: Sente que fez coisas irreversíveis, em termos artísticos, de que se arrependa?

 JR: Não me devia arrepender porque ou se faz uma coisa convictamente ou então o melhor é não a fazer. Mas tenho dúvidas de algumas coisas que faço e que não foram testadas até ao fim. Estão ali, dão nas vistas, mas não sei se aquilo é muito eficiente. Se se enquadra numa reflexão. A reflexão é terrível, não é? 

CVM: Está a referir-se a obras concretas?

 JR: Estou a referir-me a situações que podem acontecer e que se calhar aconteceram. Nem sempre é assim, claro.

 CVM: Mas há casos concretos de obras que sente que podem cair nessa alçada do arrependimento?

 JR: Vou-lhe falar de uma coisa que não é uma anedota. O Bonnard, uma vez, tinha uma obra num museu. De vez em quando olhava para a obra e estava inquieto. Uma vez levou as tintas, esperou que o guarda não estivesse a olhar, e foi lá dar uma pincelada. Isto é um facto.

 CVM: Já lhe aconteceu ter vontade de fazer o mesmo?

 JR: Ai, sim. Apeteceu-me mesmo Há coisas que, hoje, olho com sentido critico e digo: isto não está bem resolvido.

 CVM: O que é que lhe acontece mais frequentemente: olhar para uma obra sua que já não vê há bastante tempo e dizer: sim senhor, está bem! Ou o contrário?

 JR: Se calhar, a maior parte do que fiz gostaria de a ter aqui, outra vez, no atelier.


  Entrevista de Carlos Vaz Marques para o catálogo que acompanhou a exposição retrospetiva de Júlio Resende na Sociedade Nacional de Belas Artes em 2006 (publicada aqui com autorização do entrevistador)