tag:blogger.com,1999:blog-27480322511943291782024-03-05T16:44:16.862+00:00EntrevistasJPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comBlogger165125tag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-2869227325874580382018-01-16T14:52:00.001+00:002018-01-16T14:53:15.660+00:00Clarice Lispector (1977)<div style="text-align: center;">
<iframe allow="autoplay; encrypted-media" allowfullscreen="" frameborder="0" height="415" src="https://www.youtube.com/embed/ohHP1l2EVnU" width="660"></iframe></div>
JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-48114504011189584712017-10-18T21:03:00.002+01:002017-10-18T21:03:48.269+01:00John R. Searle (2012)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi56l-RHSkgPdAqgA368i749iVl0jIq92fuqBjohOFhQU4ky6WIl_rpyWDvmqnE8r6NLnu07kcp0H6DYGRx3V4ZFom5mdzTGTpXuNyelz813O4Jtl1WrUs63kBLxvvGQ90o0EJu5-6XHa_N/s1600/675px-John_searle2.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="900" data-original-width="675" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi56l-RHSkgPdAqgA368i749iVl0jIq92fuqBjohOFhQU4ky6WIl_rpyWDvmqnE8r6NLnu07kcp0H6DYGRx3V4ZFom5mdzTGTpXuNyelz813O4Jtl1WrUs63kBLxvvGQ90o0EJu5-6XHa_N/s400/675px-John_searle2.jpg" width="300" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Conhecimento Prático Filosofia: Para começarmos gostaria que explicasse um pouco o que vem a ser a filosofia da linguagem e como ela dialoga entre estes dois campos: Filosofia e Linguística.</b></div>
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<br /></div>
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<b>John Rogers Searle:</b> Não há uma linha divisória entre a filosofia da linguagem e a Linguística, mas na prática as atividades dos filósofos da linguagem e linguistas são realmente muito diferentes. Filósofos estão mais interessados em questões relacionadas a como as linguagens se relacionam com a realidade, a natureza do significado, como a comunicação é possível, o que é a verdade, o que é necessidade lógica, como a linguagem se relaciona com a mente etc. Linguistas estão mais interessados em questões empíricas sobre línguas humanas atuais e naturais, como o inglês ou português. Como eu disse, não há uma linha divisória, mas ninguém trabalhando no campo irá reconhecer obras da filosofia da linguagem como sendo diferentes da Linguística. Dentro da Filosofia, a filosofia da linguagem é uma importante sub-disciplina, juntamente com a filosofia da mente, a epistemologia, a metafísica, a ética, a filosofia política e outras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – Uma discussão interessante que levanta é quanto a não necessidade da linguagem para a existência da mente. Ao partir desse pressuposto, trata da possibilidade dos animais terem mente. Isso presume a capacidade de eles terem consciência?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
J. R. Searle: Não há dúvida de que muitos animais sem linguagem são conscientes e, nesse sentido, eles têm mentes. Há uma visão despropositada defendida por alguns filósofos e psicólogos de que os animais não têm consciência, mas essa visão não é séria. Se você tem alguma dúvida, você deveria conhecer o meu cão Roger. Não há dúvida de que o Roger é consciente, e de fato seus antecessores, outros cães anteriores da minha família – Gilbert, Ludwig, Russell e Frege – eram todos bem conscientes. Há confusões filosóficas complexas que levam as pessoas como Descartes a negar que os animais têm consciência, mas eu não acho que isso pode ser seriamente considerado. O argumento decisivo para a existência da consciência animal é que os mecanismos que produzem a consciência nos seres humanos, tais como os mecanismos da visão, sede, fome, dor, movimento voluntário etc., são extremamente semelhantes a esses mesmos mecanismos em animais. Nós somos biologicamente e psicologicamente semelhantes a outras espécies animais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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<b>CPF – Recentemente foi divulgado em uma revista científica a possibilidade de determinados “estralos” emitidos pelas baleias cachalotes serem nomes. Ou seja, seria a indicação precisa do uso de uma linguagem complexa por animais não humanos. A validação de algo desse tipo acarretaria o que para o entendimento da mente e da consciência?</b></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
J. R. Searle: Nós realmente não sabemos o suficiente sobre outros animais para saber o quão complexa é a sua linguagem. Tem havido uma série de pesquisas sobre abelhas, e como resultado, agora entendemos razoavelmente sobre a linguagem das abelhas. Houve também algumas pesquisas sobre a notável capacidade dos papagaios para imitar a fala (língua) humana. Mas o nosso conhecimento da linguagem (língua) entre os mamíferos marinhos, como golfinhos e baleias, parece, para mim, muito rudimentar. Nós podemos apenas especular. Nós realmente não sabemos se cachalotes usam sons como palavras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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<b>CPF – Como reconhecer a consciência?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
J. R. Searle: Eu suponho que você queira dizer “consciousness” e não “conscience”. Há todos os tipos de formas de reconhecer que outros seres humanos são conscientes, assim como há muitas maneiras de reconhecer a consciência animal. O argumento usual na filosofia é dizer que é por causa do comportamento de um ser que se pode determinar que ele seja consciente, o que a mim parece estar totalmente equivocado. Por exemplo, podemos construir um robô que seja completamente inconsciente, mas que se comporte de uma maneira efetiva como seres conscientes. O argumento decisivo para a existência da consciência em outros seres é simplesmente que a coordenação entre o seu estímulo de entrada (input) e o seu comportamento aparente (output) é feita por mecanismos que são bastante semelhantes aos nossos e, portanto, não há dúvidas suficientemente sérias sobre se eles têm estados internos de consciência que mediem esses estímulos de entrada e comportamentos aparentes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – Acredita que será possível dotar máquinas de consciência? Qual seria o principal desafio?</b></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
J. R. Searle: Nós já temos consciência maquínica porque, naturalmente, o cérebro é uma máquina. Se uma máquina é um sistema físico capaz de executar certas funções, então não há dúvida de que os cérebros humanos e animais são máquinas. O que temos sido incapazes de fazer até agora é construir uma máquina artificial que seja consciente. O obstáculo para isso é óbvio: não sabemos como o cérebro faz isso, e por isso mesmo não sabemos como criar uma máquina artificial que o faça. Nós poderíamos perguntar: “podemos construir um cérebro artificial que crie a consciência?”. Da mesma maneira que nós poderíamos perguntar se “podemos construir um coração artificial que bombeie o sangue?”. Nós sabemos como o coração bombeia o sangue humano, por isso é bastante simples construir uma máquina que faça isso. Nós não sabemos como o cérebro humano cria a consciência, então não sabemos como criar uma máquina que o faça. É provável que ainda haja um longo tempo antes que possamos construir uma máquina artificial que duplique os poderes causais do cérebro-máquina humano real para produzir consciência.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – Não raras vezes o senhor aborda a importância da subjetividade na construção do indivíduo. Gostaria que o senhor explicasse a própria subjetividade, a influência dela no indivíduo e relevância geral.</b></div>
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<br /></div>
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J. R. Searle: A distinção entre objetivo e subjetivo é uma fonte de confusão enorme na nossa cultura intelectual, porque a distinção tem dois sentidos diferentes: um sentido epistêmico que tem a ver com diferentes tipos de afirmações de conhecimento e um sentido ontológico que tem a ver com os modos de existência. O que importa para essa discussão são os modos de existência. No sentido epistêmico, a distinção é sobre afirmações: uma afirmação é objetiva se sua verdade ou falsidade pode ser formulada de forma independente das opiniões e atitudes dos proponentes da afirmação. É subjetiva, se ocorrer o contrário. Assim, a afirmação de que Van Gogh morreu na França é epistemicamente objectiva. Já a afirmação de que Van Gogh é um pintor melhor do que Manet é epistemicamente subjetiva, ou seja, é uma questão de opinião subjetiva. No sentido ontológico, uma entidade tem existência objetiva se ela existe independentemente de qualquer sentimento humano. Tem uma existência subjetiva se ela só existir como experiência de um sujeito humano ou animal. Assim, dores, cócegas e coceiras são ontologicamente subjetivas, ao passo que montanhas, moléculas e placas tectônicas são ontologicamente objetivas. A confusão era enorme ao supor que, uma vez que a ciência é objetiva e a consciência é subjetiva, não poderia haver uma ciência da consciência. Essa é uma confusão entre o sentido epistêmico e o ontológico. Epistemicamente falando, a ciência é de fato objetiva na medida em que procura encontrar verdades que são independentes dos sentimentos e atitudes de investigadores particulares. Mas – e isto é um ponto importante – a subjetividade ontológica de um domínio não nos impede de ter uma ciência epistemicamente objetiva desse domínio. A consciência é realmente subjetiva, ontologicamente, mas isso não nos impede de ter uma ciência epistemologicamente objetiva da consciência. Na verdade, estamos trabalhando na criação de uma tal ciência agora.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – Ainda com relação à subjetividade, por exemplo, o psicanalista George F. Kneller considera a subjetividade sendo intrínseca ao homem, mas como resultado das interações dele com o meio ambiente. Concorda? Nesse ponto, até onde o indivíduo seria livre na construção de sua própria subjetividade/ identidade?</b></div>
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<br /></div>
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J. R. Searle: A subjetividade humana é uma característica dos estados conscientes criados pelo cérebro. Na verdade, o cérebro incorporado obtém experiências interagindo com seu ambiente, mas os processos necessários e suficientes para a criação de subjetividade são internos ao cérebro.</div>
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<br /></div>
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<b>CPF – Poderia discorrer quanto à “Natureza da Consciência”?</b></div>
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<br /></div>
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J. R. Searle: Escrevi vários livros sobre esse tema, então eu posso realmente apenas nomeá-los: The Mystery of Consciouness, Mind, a Bief Introduction; The Rediscovery of the Mind; e, Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind¹. Para os propósitos dessa discussão, vamos definir consciência (consciousness) como segue: a consciência é constituída por aqueles estados ontologicamente subjetivos de sentimento, sensibilidade, ou a consciência que, tipicamente, começa quando acordamos de um sono sem sonhos e continuamos durante todo o dia até que adormeçamos ou nos tornemos inconscientes de alguma outra forma. Sonhos, nessa definição, são uma forma de consciência. A consciência tem muitos recursos, mas o mais essencial é a subjetividade, como eu acabei de explicar, com suas características subordinadas de qualitatividade e unidade: para cada estado consciente há um certo caráter qualitativo referente a esse estado e a totalidade dos estados conscientes como parte de um campo consciente unificado. Todos os três estão relacionados a um quarto – intencionalidade – a capacidade da mente para representar objetos e estados de coisas no mundo independente de si mesmo. Nem todos os estados conscientes são intencionais e, claro, muitos estados intencionais são inconscientes. No entanto, existe uma estreita conexão entre consciência e intencionalidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – Ainda acredita que hoje uma das questões fundamentais da Filosofia seja o entendimento de nós mesmos como agentes conscientes inseridos em um universo formado basicamente por “seres e objetos não-pensantes”?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
J. R. Searle: Essa é a questão fundamental da Filosofia hoje. Como conciliar uma concepção que temos de nós mesmos como seres conscientes, mentais, racionais, livres, éticos, estéticos em um mundo que consiste inteiramente de partículas físicas sem consciência, sem sentido? Essa não é apenas “uma das questões fundamentais da Filosofia contemporânea”, é a questão fundamental.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – Quanto ao Realismo Externo?</b></div>
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<br /></div>
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J. R. Searle: Realismo externo é a visão de que há uma realidade que existe independentemente de nossas representações dela. Eu não penso que haja algum questionamento de que o realismo externo é verdadeiro e mais importante e que ele é um pressuposto necessário de grande parte da nossa ciência e de nossa comunicação com o outro. Se eu lhe perguntar “está chovendo?”, não estou perguntando sobre o seu estado de espírito, mas sobre o estado do tempo que existe de forma totalmente independente da sua mente ou de qualquer outra pessoa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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<b>CPF – Qual o problema semântico da Experiência Perceptiva?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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J. R. Searle: Percepção, como crenças, desejos etc, tem intencionalidade. Intencionalidade é apenas essa característica da mente pela qual é dirigida a ou sobre objetos e estados de coisas do mundo, e na medida em que há um “problema semântico” da experiência perceptiva, é precisamente o problema em explicar essa relação. Como é possível que as nossas experiências subjetivas internas qualitativas possam dar-nos conhecimento objetivo de uma realidade que existe independentemente?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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<b>CPF – Como entende a importância dos Estados Alterados de Consciência para a formação do indivíduo ou mesmo para o entendimento da mente?</b></div>
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<br /></div>
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J. R. Searle: Nós realmente não temos uma noção científica clara de “estados alterados de consciência”. Às vezes você pode obter uma melhor compreensão do caso normal estudando o caso degenerado ou patológico. A história da ciência da mente está cheia de exemplos. Talvez um dos exemplos mais interessantes é o que Weiskrantz chamou de visão-cega em que o paciente pode relatar eventos que ocorrem em seu campo visual, embora por causa dos danos ao seu cérebro, ele não possa ter qualquer experiência consciente desses eventos.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Outro exemplo famoso de estados alterados de consciência é o caso dos pacientes com cérebro dividido. São pacientes que, para curar a epilepsia, sofrem uma separação cirúrgica entre os dois hemisférios pelo corte do corpo caloso. Como resultado, verifica-se que o paciente aparentemente passa a ter dois centros de consciência, um em cada hemisfério; função essa, pelo menos em parte, independente uma da outra. Então, se você mostrar uma colher para o hemisfério direito e perguntar ao paciente: “O que você vê?”, o paciente diz, por seu hemisfério esquerdo ser onde ele tem a linguagem: “Não vejo nada”. Mas ele, então, estende a sua mão esquerda, que é controlada por seu hemisfério direito, e pega a colher.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Muito pode ser aprendido sobre a consciência através do estudo de tais estados patológicos.</div>
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<br /></div>
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<b>CPF – É comum em suas exposições de ideias o rompimento sistemático com várias linhas teóricas do conhecimento como o dualismo, estruturalismo etc. Acredita que isso se dê por quê? Teriam essas teorias filosóficas hoje, mais do que antes, a necessidade de serem revistas?</b></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
J. R. Searle: Eu penso que o vocabulário e categorias tradicionais para se discutir essas questões estão irremediavelmente confusos e inadequados. Estou pensando em categorias e conceitos como o dualismo, materialismo, mentalismo, o behaviorismo, o funcionalismo etc. Em um dos meus livros mais recentes: Mind – A Brief Introduction¹ (Oxford University Press 2005), eu exponho a falência da terminologia e categorias tradicionais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>CPF – O que destaca como sendo o principal problema filosófico do início do século?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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J.R.Searle: O principal problema filosófico da época atual é dar conta de nós mesmos como conscientes, mentais, racionais, tendo livre-arbítrio, políticos, estéticos, sociais, que falam uma língua, enfim, seres morais em um mundo conhecido que consiste inteiramente de inconsciência e partículas físicas sem sentido. Talvez tenhamos que desistir de alguns de nossos pressupostos sobre nós mesmos. Talvez, por exemplo, não sejamos capazes de manter a nossa concepção tradicional da liberdade da vontade. Mas a pergunta mais interessante na Filosofia de hoje, na verdade eu diria que a questão mais excitante na vida intelectual hoje, é encontrar uma forma de tornar a nossa realidade humana e consistente e uma extensão natural do que conhecemos como a realidade básica.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>¹Traduções literais dos títulos: o mistério da consciência e mente – uma breve introdução; A redescoberta da mente, e intencionalidade: um ensaio de filosofia da mente.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>²Tradução literal: Mente – uma breve introdução.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: x-small;">Entrevista publicada origialente em revista "Conhecimento Prático Filosofia" de Matheus Moura (Janeiro, 2012)</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: x-small;">Sobre J. R. Searle:<a href="https://draft.blogger.com/%C2%A0https://en.wikipedia.org/wiki/John_Searle" target="_blank"> https://en.wikipedia.org/wiki/John_Searle</a></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: x-small;">Imagem/créditos: Matthew Breindeluploader Matro at en.wikipedia - self madeOriginally from [1], CC BY-SA 3.0, <a href="https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1974017">https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1974017</a></span></div>
<br />JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-42485749759477454942017-02-16T03:03:00.001+00:002017-02-16T03:03:04.686+00:00Michel Serres (1999)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidU_jp4VFKNYUs_5YDIYcWIPCHeoxFraXZB5q11Fg8m5DaKMHjiur80meNuOzUFtTL34xMcfYtp5svzPZHK0t1sREsxFsKfhyphenhyphenAORj2V6PQnFiKciKO9pDIyHXob-ZFC2QxOsmD_XzyRzpO/s1600/9e4c54e176945b796fc4504c3b03e98f.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="312" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidU_jp4VFKNYUs_5YDIYcWIPCHeoxFraXZB5q11Fg8m5DaKMHjiur80meNuOzUFtTL34xMcfYtp5svzPZHK0t1sREsxFsKfhyphenhyphenAORj2V6PQnFiKciKO9pDIyHXob-ZFC2QxOsmD_XzyRzpO/s320/9e4c54e176945b796fc4504c3b03e98f.jpg" width="320" /></a></div>
<b>Paulo Markun: Boa noite. A trajetória intelectual e acadêmica do nosso convidado de hoje é absolutamente multidisciplinar. Filósofo, tem sólida formação em ciências exatas, como matemática e física, uma formação que o ajudou a formular suas primeiras teses em ciências humanas. Michel Serres nasceu na França em 1930, é também historiador da ciência e epistemólogo e seus trabalhos são tão variados quanto sua ampla formação. Escreveu sobre os contatos entre as ciências exatas, as ciências duras, e as ciências humanas e sobre literatura, estética, antropologia e as relações do homem com a natureza, além de tratar também dos desafios da educação no mundo de hoje e de amanhã. Todos os trabalhos de Serres refletem preocupações com questões éticas suscitadas a partir da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki. Ele é um intelectual comprometido com o uso do saber e da comunicação na construção da paz. Michel Serres veio para São Paulo participar do Congresso Internacional do Desenvolvimento Humano, na Universidade São Marcos. No centro do Roda Viva, esta noite, o filósofo francês Michel Serres. Para entrevistá-lo, nós convidamos: o coordenador do projeto Escola do Futuro, presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, Frederic Litto; o professor Norval Baitello Júnior, diretor da Faculdade de Comunicação da PUC de São Paulo; o editor de cultura da Gazeta Mercantil e coordenador da revista Bravo!, Daniel Piza; Scarlett Marton, professora de filosofia moderna e contemporânea da Universidade de São Paulo; o antropólogo Edgard Assis Carvalho; a psicóloga Elvira Souza Lima, professora das Universidades de Nova Iorque e Salamanca, e Rogério da Costa, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. E hoje, evidentemente, você não pode participar do programa, porque ele está sendo gravado neste momento e exibido posteriormente de modo a permitir a tradução e a legendagem das respostas do professor Serres. Boa noite, professor. </b><br />
<br />
Michel Serres: Boa noite.<br />
<br />
<b>Paulo Markun: Eu tomei contato superficial – como todo jornalista costuma fazer [risos] – com a obra do senhor, muito recentemente, mas sei que, entre outras coisas, o senhor chegou a pensar e a escrever também sobre o Brasil, inclusive sobre esse grande caldeirão de raças que é o nosso país. Eu sou um. Markun, sobrenome de origem iugoslava, mas não sei nem de que região da Iugoslávia vem meu sobrenome, porque sou, como muitos aqui, se o senhor verificar, a maior parte dos nossos entrevistadores tem sobrenomes estrangeiros, mas somos todos brasileiros. Então eu queria que o senhor definisse: no que isso é bom e é ruim para o país, esse caldeirão cultural?</b><br />
<br />
Michel Serres: Não pode ser ruim, muito pelo contrário. Parece-me, de fato, que, hoje, o mundo está em pleno processo de “mundialização” e esse processo de globalização é acompanhado – e vocês sabem bem disso – de conflitos, de guerras e oposições muito fortes entre diversas nações, entre diversas regiões e, há cerca de quinze anos, somos assolados por notícias cada vez mais trágicas. Por quê? Porque a globalização se opõe cada vez mais às pessoas, pois as fronteiras tornaram-se porosas. Quando lecionei, em 1973, na Universidade de São Paulo, no final de minha estadia, que foi muito feliz, fizeram-me exatamente esta mesma pergunta: "O que acha do Brasil?" Respondi – e continuo pensando assim – que o Brasil, antes de tudo, é um país muito grande, do ponde vista de área, já que é um dos países mais importantes do planeta e, por ser o maior ou um dos maiores, tem todos os problemas. Ou seja, é um modelo reduzido, absolutamente perfeito, do mundo atual. E, enquanto modelo reduzido, suporta quase todos os grandes problemas que o mundo inteiro está suportando. Mas...<br />
<br />
<b>Paulo Markun: E pode suportar as mesmas soluções?</b><br />
<br />
Michel Serres: Espere. Ele tem os mesmos problemas, do ponto de vista econômico, social, político etc. Mas, há muito tempo, está pronto porque tem uma solução que, raramente, o resto do mundo pode ter. Por quê? Pelo motivo que citou com relação aos seus ancestrais. Seus ancestrais iugoslavos, que você andou esquecendo. No Brasil, o que me encanta, é que a maioria dos brasileiros tem uma genealogia totalmente cruzada, múltipla, complexa, extremamente rica e que, em seus corpos vivos, há muito tempo, eles atenuaram os conflitos de hoje. Escrevi um livro, muito mais tarde, que chamei de O terceiro instruído e que foi traduzido por um belo título em português onde aparece o adjetivo "mestiço". E, nesse livro, eu dizia que todo processo de conhecimento é uma mestiçagem. Porque, quando falamos uma outra língua – e lamento muito não falar o português – temos um outro corpo. Quando pensamos em outra ciência, entramos em outro ser humano. E, de tanto falar línguas diferentes, de tanto conhecer disciplinas diferentes, fabricamos em nós um mestiço intelectual. E há, no conhecimento mestiço, uma espécie de paz entre as disciplinas, uma espécie de armistício entre as oposições do saber. É uma imagem intelectual do que acontece na vida real no Brasil. Vocês conseguiram tantas mestiçagens entre todas as populações do mundo, porque, no Brasil, o mundo inteiro está representado: asiáticos, europeus, americanos, nativos da América, do Hemisfério Sul etc. Portanto, vocês conseguiram tão bem, na paz, esse tipo de mestiçagem, que creio que deveriam ter consciência de que têm o modelo das soluções requeridas hoje pelas guerras mundiais.<br />
<br />
<b>Paulo Markun: Mas, quando nós falamos em soluções e falamos em ciência, imediatamente se coloca a questão de que... E, evidentemente, isso também acontece na economia, até na política – mas nós vamos ficar na ciência – da questão do modelo do Primeiro Mundo e do Terceiro Mundo. Aqui no Brasil, hoje em dia, a expressão "isso é uma coisa do Primeiro Mundo" é algo que é dito com enorme entusiasmo, pode ser um copo de água, pode ser um restaurante, pode ser um motel ou pode ser um automóvel ou uma tese de doutorado, tudo que é "coisa de Primeiro Mundo" é bom. E a pergunta que faço é a seguinte: como é que esses mestiços, que somos nós aqui, que temos esse potencial de desenvolver e achar uma solução para os grandes problemas que existem aqui, como lá fora, [como] o senhor disse, podemos almejar obter, não digo as fórmulas do Primeiro Mundo, mas as condições de produzir aqui as soluções nossas com recursos equivalentes, investimento equivalente em termos de pessoas, de tempo, de dinheiro, se nós somos, efetivamente, mestiços do Terceiro Mundo?</b><br />
<br />
Michel Serres: Acho que a distinção que fazemos, há muito tempo, entre o Primeiro e o Terceiro Mundo, por exemplo, é uma distinção que talvez esteja se apagando por causa do processo de globalização. E desejo que ela se apague. Porque, de certa forma, já que falou em saber, o saber já não tem mais fronteiras. Experimento, há muito tempo, em minha própria pele e em minha profissão, o fato de ter ensinado em quase todas as latitudes e longitudes, de ter me dirigido a populações de estudantes de todo tipo de cultura. E acho que, hoje, com as novas tecnologias, das quais falaremos depois, a distinção entre os mundos vai se apagar de certa forma. Quando você fala em modelo de Primeiro Mundo e de "nosso mundo", parece-me que faz parte de velhos conceitos da história antiga. Algo está acontecendo hoje que torna essa fronteira porosa. E eu, que nasci naquele que é chamado de Primeiro Mundo, quando vou à África, percebo, muitas vezes, que temos tanto a aprender em soluções humanas, em coisas que vejo na África, que hoje está em má situação econômica e sanitária, que temos muito mais a aprender do que pensamos. Em conseqüência, acho que essa distinção está se apagando. E quero muito que isso ocorra. Provavelmente, a ajuda das novas tecnologias vai ser eficaz para que essa distinção se apague completamente.<br />
<br />
<b>Norval Baitello Jr.: Professor Serres, essa verdade-realidade que todos nós temos que aprender também com os pobres, também com o chamado Terceiro Mundo, teve um filósofo alemão, chamado Dietmar Kamper [sociólogo, teórico da comunicação e criador da antropologia histórica] – que conhece o senhor e que talvez o senhor conheça – que tem veiculado hoje o conceito de "ocidentação", ao invés de "orientação". Enquanto o Oriente era considerado o princípio orientador, a própria palavra já mostra isso, Kamper fala hoje em ocidentação, então, talvez, o modelo ou a meta não seja mais o Oriente, talvez seja o Ocidente. E ele vai um pouco mais longe. Enquanto essa ocidentação, durante um longo tempo, foi considerada a Califórnia, ele disse que a ocidentação é São Paulo. Gostaria de que o senhor falasse um pouco sobre o seu contato com São Paulo, com essa realidade tão complexa que o senhor já conhece há longos anos.</b><br />
<br />
Michel Serres: Fico feliz ao ouvi-lo falar em orientação, porque sou parte da minoria humana chamada "os canhotos". E, quando era criança, ensinaram-me a escrever com a mão direita. Portanto, era canhoto e, no entanto, era obrigado a escrever com a direita. Acho que, hoje, os psicólogos não recomendam que se force a escrever com a direita. Acho que lamento um pouco isso, porque, quando meu professor, já falecido – e o abençôo por ter feito isso – me ensinou a escrever com a mão direita, nem assim me tornou um destro. Continuo a fazer gestos com a mão esquerda, seguro a raquete com a esquerda para jogar tênis, seguro o martelo com a esquerda para martelar, mas escrevo com a direita. Conseqüentemente, nesse processo de aprender o outro lado, a orientação, como o senhor disse, a orientação fez com que eu fosse um corpo completo. Diziam, na França, que quem fosse forçado a escrever com a direita era um "canhoto contrariado". Essa contrariedade nunca me fez sofrer. Digo sempre "canhoto completado". Isso é muito importante, por imagem, digamos assim. Tudo no corpo é muito importante, porque permite entender que os que são só destros ou só canhotos, os que têm corpos orientados ou ocidentados, se quiser, são pessoas hemiplégicas, têm o corpo dividido em dois. Têm um corpo vivo e um corpo morto. Mas, quando aprendemos os dois lados, temos os dois lados vivos. Portanto, estou apto para ensinar aos canhotos a fazer gestos com a direita e, aliás, como complemento, para ensinar aos destros a fazer gestos com a esquerda. Por quê? Pelo seguinte: isso lhes ensina que em seu corpo pode haver um outro. Ensina o altruísmo, ensina a tolerância. Ensina que, se diante de nós há alguém que pode ser um inimigo, podemos nos reconciliar, ser tolerantes com ele, entender seu ponto de vista. Entendo os destros, porque escrevo com a direita, embora seja canhoto. Entende? E tenho a impressão de que, ao falar em orientação ou ocidentação, é um pouco o mesmo problema. Eu transporia, no sentido social ou político, essa experiência fundamental do meu corpo.<br />
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<b>Scarlett Marton: Mas, professor, eu pergunto se nesse processo de globalização pelo qual nós estamos passando, que estamos testemunhando, não está também havendo a imposição de uma única e mesma forma de pensar, sentir e viver. De sorte de que o outro com o qual tenho contato nada mais é do que a imagem que faço do outro e que, portanto, é a minha própria?</b><br />
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Michel Serres: É verdade que muita gente teme a globalização, na medida em que tem-se a impressão de que uma só cultura vai dominar. E, de fato, hoje, estamos numa situação em que uma cultura domina. Talvez não por muito tempo, mas, por ora, é o que parece. Mas acho que posso tranqüilizá-la. Por quê? Porque nós somos feitos assim, criamos sempre diferenças. Suponhamos, cara amiga, que – mas pode acontecer – o mundo inteiro fale uma única língua. Pois bem, essa única língua, quando falada em São Paulo, ao ser falada no Japão e ao ser falada em Paris, seria tão diferente em sotaque, intenção, entonação e cultura geral, que, muito rapidamente, não seria mais a mesma. Aliás, alguns lingüistas acham que, na origem, graças aos computadores, pôde-se obter a hipótese de que talvez, na origem, houve uma única língua, mas ela logo se bifurcou numa árvore extremamente complexa de línguas diversas. Não tenho muito medo da globalização pelos seguintes motivos: o primeiro é que criamos diferenças e o segundo é que eu tenho uma cultura. Cresci num pequeno vilarejo agrícola no sul da França, que tem seus costumes, sua cultura etc. Mas o que é um homem culto em geral? É alguém que vai buscar a outra cultura, que vai procurar viajar, encontrar o outro e conhecer outras culturas. No fundo, ele está se globalizando um pouco. A palavra globalização tem seu lado positivo e negativo. Tem-se muito medo, mas ouçam: sou dessa cultura, mas estou encantado por estar no Brasil, porque estou em outra cultura. Ser culto é querer mudar a própria cultura. O movimento de globalização, que causa tanto medo, não me assusta por isso. Criamos diferenças e ser culto é ir em busca da diferença.<br />
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<b>Edgard Assis Carvalho: Professor Serres, uma das... Acho que na quinta entrevista do seu livro, o senhor, quando fala em "Terra global", usa uma série de termos de que particularmente gosto muito, o senhor fala da "Terra global" como sendo matizada, arlequinada, tigrada, zebrada em redes múltiplas e interligadas. Parece-me que essa "Terra global", como se pensa no futuro, no século XXI, exigirá uma ética da tolerância e da solidariedade transnacional. A pergunta que lhe faço é a seguinte: sei que o senhor participou, no final dos anos 60, do Grupo dos Dez [Grupo formado em 1966, no final de um colóquio entre filósofos, biólogos e sociólogos para refletir sobre as relações entre as ciências e as técnicas e também sobre as relações entre a cultura e a política. Os fundadores foram Robert Buron, Henri Laborit, Edgar Morin e Jacques Robin, aos quais não tardaram a se juntar Jacques Attali, René Passet e Joël de Rosnay. Contando com a participação de diversos intelectuais e cientistas de renome, o Grupo dos Dez se reuniu mensalmente - e informalmente- para discutir temas transversais até 1976]. Esse Grupo dos Dez, do qual faziam parte o Henri Atlan [médico, biólogo e filósofo francês], Edgard Morin [sociólogo e filósofo francês], Jacques Attali [escritor, economista francês especialista em política do desenvolvimento] e outros... Vendo agora, 30 anos depois, esse grupo, como o senhor vê esses seus colegas que, no final dos anos 60, também estavam investindo na reconciliação da parte e do todo, estavam investindo contra a fragmentação disciplinar, na convergência da cibernética, da teoria da informação e da biologia? Como é que o senhor mexe com essas idéias tendo em vista essa ética do futuro [em] que todos nós devemos nos empenhar? </b><br />
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Michel Serres: Na realidade, sua pergunta engloba duas. A primeira se refere à cor, ou seja, à própria estrutura dessa mistura e fico feliz por ter lembrado quantas vezes eu disse "tigrada", "zebrada", "mutante". São todas qualificações que fazem com que, ao misturarmos cores ou formas, cheguemos a um tipo de marchetaria muito diversa e, talvez, a globalização, da qual falamos há pouco, leve a essa marchetaria. Não seria, necessariamente, uma cultura que teria uma só cor ou forma, mas uma marchetaria de diferenças bem complexa. E a segunda pergunta é o que houve com esse grupo que, há cerca de 30 anos, projetava um certo tipo de "interdisciplinaridade" ou de modelo de saber. E responderei, de bom grado, que houve com ele o que ocorre com qualquer outro que, num dado momento, está feliz ou estabelece um paradigma numa certa geração, mas que, na geração seguinte, se transforma profundamente. Algumas das idéias que foram abordadas naquela época transformaram-se tanto, que desapareceram. Outras, pelo contrário, fortaleceram-se e passaram a ocupar o primeiro plano da cena. Se tivéssemos de voltar àquela época, eu diria que, hoje, a situação da ciência é irreconhecível com relação à situação de 30 anos atrás. Por quê? Porque o modelo cibernético se apagou um pouco, a idéia de ordem por meio do barulho quase desapareceu e, ao contrário, na biologia, surgiram idéias inovadoras, referentes à complexidade orgânica, ao suicídio celular, uma nova idéia da vida e da morte e assim por diante. Portanto, o que deveríamos fazer é criar outro grupo. Aliás, estamos juntos aqui, podíamos criar outro com o qual delinearíamos o modelo da ciência de amanhã. Nos enganaríamos tanto quanto nos enganamos há 30 anos, mas faríamos um balanço da situação atual e é sempre bom fazer isso. Foi o que fizemos.<br />
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<b>Elvira Souza Lima: O senhor leciona nos Estados Unidos já há 20 anos. Eu gostaria de voltar a essa questão da mestiçagem.</b><br />
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Michel Serres: Há 30 anos...<br />
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<b>Elvira Souza Lima: Trinta anos. E é um país – como o Markun estava falando – em que a gente se volta, nesse momento todo de globalização, como um dos modelos do Primeiro Mundo para nós brasileiros. E é um país com uma história também de misturas, de grandes movimentos de migração e tal. Que especificidade há no Brasil, nessa mestiçagem, em relação à sua experiência dos Estados Unidos? Por que o Brasil faria um modelo e os Estados Unidos não?</b><br />
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Michel Serres: Tenho vontade de dizer sim. Aliás, a senhora leciona em Nova Iorque e sabe bem, conhece os Estados Unidos tão bem quanto eu. Eu diria que, com relação ao Brasil, é um contra-modelo e que, de certa forma, essa idéia de que os Estados Unidos difundiram sua própria imagem, de que são um melting pot [expressão para designar sociedades formadas por indivíduos de diferentes raças e culturas] é uma coisa falsa, porque o que há, sobretudo, nos Estados Unidos, são comunidades diversas. Há o bairro chinês nas cidades, o bairro japonês, o italiano, o polonês, em certos casos e assim por diante, portanto as comunidades são realmente separadas. Estão agrupadas por outros motivos, pelo american way of life, um modo de viver, mas não há essa comunidade global que existe no Brasil e que chamei, há pouco, de mestiçagem. Em outras palavras, no Brasil a mestiçagem é muito forte e poderosa e bem-sucedida. É, talvez, da visita ao Brasil que nasceu a idéia do livro dez anos depois. Nos Estados Unidos, não há mestiçagem e é esse o problema. A solução do Brasil é o problema deles. E acho que há, aqui – para mim, que estou fora dos dois países – um avanço extraordinário, do ponto de vista social do Brasil em relação aos Estados Unidos. Talvez isso surpreenda os telespectadores, mas, do ponto de vista social, nesse ponto do qual falamos, o Brasil está muito à frente dos Estados Unidos. É uma sociedade muito mais futurista, enquanto os Estados Unidos são uma sociedade mais antiga, talvez mais arcaica.<br />
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<b>Paulo Markun: Professor, aqui no Brasil, no momento em que nós estamos fazendo esta entrevista – e imagino que, mesmo que a gente demore algum tempo a exibir este programa– a situação não vai mudar. Infelizmente, na cidade de São Paulo, como em outras grandes cidades brasileiras, existe um enorme problema relacionado à violência, relacionado até a uma questão de colocação geográfica da população mais pobre, que vive nas periferias. E acaba parecendo uma cidade em que existem guetos de classe média ou de classe alta e o restante da cidade – e fui repórter de cidade durante muitos anos na minha carreira – são áreas assustadoras, não apenas para aquelas pessoas que visitam ou que vão a serviço, mas evidentemente que também para as pessoas que ali vivem. E, muito recentemente, aconteceram algumas rebeliões em estabelecimentos ditos "de reeducação de menores", em que as condições de vida são absolutamente desumanas. Então, para jogar um pouco de tinta mais sombria sobre essa sua pintura tão agradável do Brasil e de São Paulo, pergunto ao senhor o seguinte: em algum trecho do seu livro de entrevistas, o senhor acena com que a possibilidade dessas realidades, que não são apenas exclusivas do Brasil, evidentemente, acabem sendo o nosso futuro? Quer dizer, na medida em que isso vai crescendo em uma velocidade tão grande, em que vai haver um dia em que não vão existir guetos suficientemente resistentes para sobreviver às condições de vida da cidade periférica, mal remunerada, sem condições de lazer, sem condições de educação etc. Então, a pergunta é isto: como é que, diante dessa realidade – que não é apenas brasileira, mas que aqui em São Paulo, principalmente, assusta – se posiciona uma pessoa como o senhor, que me parece ser um homem que tem uma visão otimista do futuro?</b><br />
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Michel Serres: Sou otimista, mas não posso deixar de confessar que o problema da violência, que você descreveu, no caso de São Paulo, por exemplo, é um problema absolutamente universal. Ele existe, hoje, não só nas grandes metrópoles do Hemisfério Sul ou até do Terceiro Mundo, mas também nos países do Primeiro Mundo do qual você falou. A prova é que nós, na França, inventamos a noção do Quarto Mundo. O Quarto Mundo é a introdução da miséria e da violência dentro daquele que você chamou de Primeiro Mundo. E isso me preocupa muito. Não tenho nenhuma solução milagrosa para o problema, mas posso dizer o que tento fazer. Eu sou professor. Portanto penso sempre que as soluções a longo prazo para problemas a longo prazo são problemas de ensino. Por conseqüência, eu me dediquei muito a questões de ensino para o Quarto Mundo. Mas, quando você fala no problema dos guetos, será que as pessoas têm idéia de que o gueto é gueto, não somente pela miséria, mas porque aqueles que lá moram são tão pobres que não podem sair dele? Ou seja, no caso deles, não podem comprar a passagem de ônibus ou metrô que permita sua saída física do lugar. E, por não poderem sair de seu lugar, são obrigados a permanecer nele e aí a violência reina. Creio que, no futuro, o problema será universal. Ele existe em todos os países. E uma das soluções, a que preconizo e que me parece a mais importante, é de fato a questão da educação. Mas gostaria de acrescentar que somos cada vez mais sensíveis às questões de violência, quando nos tocam de perto, individualmente, em nosso bairro e vizinhança. Mas, caro senhor, sabia que os problemas da violência próxima, esses problemas de pequena delinqüência, são problemas menores perto da enorme quantidade de violência referente à globalização? Por exemplo, os problemas da droga, a lavagem de dinheiro, os problemas da máfia, os problemas dos novos poderes: veiculam uma violência muito maior que a pequena violência próxima. Portanto, somos sensíveis aos pequenos problemas quando o verdadeiro grande problema é o das máfias, da droga etc. Calculou-se que, entre as pequenas dificuldades ou as dificuldades das cidades e os problemas globais que estou mencionando, há uma relação de 2 para 100. O verdadeiro grande problema da violência é global e está aí. E, se ele fosse resolvido, os pequenos problemas também seriam.<br />
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<b>Edgard Assis Carvalho: Professor Serres, gostaria de retomar o conceito de mestiçagem, porque, no Brasil, as interpretações que falam de um Brasil mestiço geralmente são interpretações conservadoras, que vêem no Brasil uma junção muito harmônica entre brancos, negros, índios etc. E, do meu entendimento do seu livro, O terceiro instruído, o seu conceito de mestiçagem envolve uma outra concepção da idéia e talvez seja esta a mais válida para o entendimento das altas taxas de exclusão que nós vivemos no Brasil de hoje.</b><br />
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Michel Serres: Agradeço a sua pergunta, porque vai me permitir especificar a minha forma de usar essa palavra. De fato, sei que, de maneira geral, essa palavra é considerada de forma pejorativa ou de forma negativa e, muitas vezes, é motivo de desprezo público. Foi o que chamou, há pouco, de interpretação conservadora. E é por isso que uso a palavra mestiçagem como um conceito filosófico maior, ou seja, eu o pego na rua, isto é, em seu estado pejorativo e lhe confiro uma função de modelo. E confiro essa função dentro da cultura. Não há uma cultura única e fechada em si mesma: ela é sempre mestiça. Não há uma ciência única e fechada em si mesma, está sempre relacionada com as ciências externas. Consequentemente, para mim, a noção de mestiçagem é um modelo concomitante de saber, de cultura e, do ponto de vista que você citou para mim, ao contrário, é um modelo quase revolucionário, que mostra um objetivo a ser alcançado. É isso. E fundamento essa análise numa análise das ciências e da cultura. Agradeço a pergunta, que me permitiu esclarecer o assunto.<br />
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<b>Frederic Litto: Professor, dentro do seu conceito de sociedades mestiçadas e não-mestiçadas, como fica a questão de valores humanos? É utópico ou não pensar na construção de um código de ética que permita que as culturas diferentes se interrelacionem de uma forma mais adequada? Qual é o seu pensamento sobre isso?</b><br />
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Michel Serres: Fico feliz pela pergunta, porque se, quando jovem, fiz filosofia, foi só para tentar obter essa resposta. Porque eu tinha uma formação científica, era matemático e físico e meus professores nos haviam ensinado – era nosso ambiente na época – que a ciência só podia fazer o bem à humanidade e que estava a seu serviço. E praticávamos a ciência com muito entusiasmo, porque tínhamos certeza de que era para o bem da humanidade, de que era algo sempre bom. E, de repente, em 1945, explodiu a bomba atômica americana em Hiroshima. E, para a minha geração, foi uma tomada de consciência quase tão forte quanto a que tivemos na Segunda Guerra Mundial, porque ela atingia o exercício da profissão e, mais ainda, o exercício da nossa razão. A física havia matado, positivamente, dezenas de milhares de pessoas, daí o problema de consciência. Mas o problema tornou a se repetir várias vezes em quase todas as ciências. Aconteceu na química e ocorre hoje, de forma bem aguda, em matéria de biologia e de medicina, em razão das biotecnologias e manipulações genéticas das quais vocês ouviram falar. Conseqüentemente, todas as grandes questões humanas, a questão ética, a moral, a própria questão de direito... Hoje, em todo lugar, há comissões bioéticas, comissões de ética médica e, em certos casos, foi preciso até inventar um novo direito. Os direitos de maternidade e paternidade estão totalmente abalados pelas manipulações genéticas, portanto as questões de humanismo ou de valores humanos têm duas componentes hoje. A primeira é tradicional, tem como fundamento o que de mais antigo existe em nossa tradição intelectual e cultural. Mas é também, de repente, extremamente novo, porque todos os problemas em questão – o que é o homem, o que é o indivíduo, o que é a relação familiar, por que vivemos?– voltaram à tona por causa das questões e aplicações científicas. Conseqüentemente, uma das verdadeiras soluções para o problema é tentar, na educação, não separar, entre nossos estudantes, os que conhecem as ciências exatas e os que conhecem as ciências humanas, porque, de um lado, haveria especialistas totalmente sem cultura e, do outro, pessoas cultas mas totalmente ignorantes, o que traria de volta a barbárie. Mas, ao contrário, inventar uma educação onde estejam casadas, mescladas, complementadas as ciências exatas e humanas. Acho que é dessa forma que se estabelece, hoje, a questão dos valores humanos.<br />
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<b>Daniel Piza: Esse hiato que existe entre as ciências humanas e as ciências exatas, que tem sido o seu tema esses anos todos... Como lidar com a área da educação quando a gente pensa no hiato, talvez maior, que exista entre a ciência, o grau de sofisticação a que a ciência chegou hoje e o desconhecimento científico de boa parte das pessoas?</b><br />
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Michel Serres: Acho que, para resolver a questão, que realmente é muito difícil, já que, como você disse, o nível de sofisticação é muito elevado, uma das formas seria introduzir no estudo das ciências exatas tão somente a sua própria história. Isso para que os estudantes não recebam os resultados, sejam teoremas, sejam experiências ou teorias, que não os recebam como verdades caídas do céu, mas entendam que foram inventados em uma certa época, por um certo grupo, em certo país e ambiente cultural e assim por diante, mostrando que a ciência é um fenômeno cultural, um fenômeno social que implica conseqüências políticas e, também, um certo progresso das condições sociais etc. Assim, a história das ciências seria, talvez, a disciplina oblíqua, transversal que permitiria tornar a fronteira entre as duas disciplinas mais porosa e leve, podendo-se passar de uma à outra mais facilmente. Por isso, caro amigo, durante toda a minha vida, fiz história das ciências. É claro que a solução é meio utópica, porque os estudantes de letras não entendiam ciências e os de ciências ignoravam totalmente a história. Era uma verdade na geração anterior, mas ainda me parece que se a educação adotasse procedimentos desse tipo, resolveríamos de vez essa questão.<br />
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<b>Daniel Piza: Haveria uma utopia de totalização do conhecimento que parece cada vez mais difícil?</b><br />
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Michel Serres: Não há progresso sem utopia. A maioria das grandes descobertas ou a maioria dos progressos locais que fazemos vem, sem dúvida, do sonho de alguém que nos precedeu, como uma espécie de utopia. Acontece que, na tradição filosófica, todos os grandes filósofos globalizaram o saber. Platão [filósofo que viveu na Grécia entre os anos 428 e 347 a.C. Foi fundador da Academia e mestre de Aristóteles] o fez, Aristóteles [filósofo grego que viveu no período de 384 a 322 a.C. Dentre suas obras, destaca-se Ética à Nicômaco, que é um tratado das virtudes] também; [René] Descartes [(1596-1650) matemático, geômetra e filósofo francês. Em O discurso do método, recomendou o uso da "dúvida metódica", por meio da qual chegou à conclusão de que as idéias claras e distintas, percebidas pelo intelecto, e não pelos sentidos, têm origem divina e de que o fato de poder duvidar, questionar, pensar mostra que estamos vivos], [Gottfried Wilhelm von] Leibniz [(1646-1716), filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão, a quem é atribuída a criação do termo "função", que usou para descrever uma quantidade relacionada a uma curva. Deve-se a ele, em parceria com Isaac Newton, o desenvolvimento do cálculo moderno, em particular o da integral e o da regra do produto]. E, mais próximas a nós, pessoas como [Henri] Bergson [(1859-1941), filósofo e diplomata francês. Doutor em Letras pela Universidade de Paris, foi professor no Collège de France] ou [Paul] Valéry [(1871-1945) filósofo, escritor e poeta simbolista francês. Possui escritos nas áreas de matemática, filosofia e música], na tradição francesa, globalizaram o saber. A Enciclopédia, no sentido do Iluminismo, isto é, no século XVIII, foi também uma tentativa de globalização do saber. Então, faço parte, embora seja utópico, de tal tradição e acredito que não se pode fazer filosofia sem ter uma sólida formação enciclopédica. Um filósofo deve empreender esses trabalhos um pouco heróicos e tentar, não se consegue isso todo dia, é claro... mas tentar, em sua vida, trazer algo como uma idéia global do saber. Sim, acredito nisso, embora seja utópico. É o papel da filosofia.<br />
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<b>Scarlett Marton: Professor, ao mesmo tempo em que ouço o senhor falar – e ouço com muito interesse – dessa globalização do saber, nesse sentido da totalidade do saber, também leio com muito interesse quando o senhor diz que a invenção é a viga-mestra da filosofia e das ciências e a invenção é sempre obra dos mais solitários. Pois é, fico pensando aqui como fica, qual é o lugar que a invenção encontra hoje se, por um lado, com a internet, nós temos, é claro, uma facilidade muito maior de acesso ao conhecimento, mas também corremos o risco da banalização do conhecimento, da informação. E, por outro lado, na universidade, como o senhor bem mostra, quem tem a evidência, quem dirige não é exatamente o mais criativo, o mais inventivo, mas é, sim, o mais habilidoso no que diz respeito às questões políticas. Então, por um lado, com a internet nós temos o risco da banalização e, nas universidades, ainda vigora o mandarinato. Qual seria o lugar, então, para essa invenção que é a mola propulsora do progresso, do conhecimento e, mais ainda, do próprio desenvolvimento do homem?</b><br />
<br />
Michel Serres: Essa pergunta é muito importante hoje. Porque hoje vivemos uma transformação que você descreveu, em parte, muito bem e de forma precisa. De fato, existem hoje, e se confrontando, uma técnica de ensino tradicional, nascida com os gregos no século VI antes de Cristo, chamada universidade; e, do outro lado, como você diz, uma certa banalização da totalidade da informação. Mas me parece que no século XV ou XVI, quando da invenção da impressão, essa pergunta surgiu exatamente da mesma forma. Diziam: "Mas por quê?" Temos uma biblioteca. Todos podem ter a sua, com todo tipo de livros. A informação está disponível. Ela será banalizada, porque qualquer um poderá ter em casa a sua biblioteca. A biblioteca da época é a internet de hoje. Ela é uma biblioteca. E do outro lado, havia a universidade tradicional, oriunda da Idade Média etc. Houve, portanto, uma espécie de crise que confrontou o ensino tradicional e a nova biblioteca, isto é, o novo suporte de transferências, estocagem e transmissão da informação. E de repente, nasceram pessoas que globalizavam o saber. Ou seja, Erasmo [de Roterdã, (1466-1536) pensador, nascido na região dos Países Baixos, cujas idéias humanistas sintetizaram o pensamento liberal e progressista do Renascimento], [François] Rabelais [(1484-1553), foi um escritor e padre francês do Renascimento, cujas obras satíricas, Pantagruel e Gargântua, tornaram-no célebre. Tinha sólidos conhecimentos sobre direito, teologia, ciências naturais, política, arte militar e navegação]... Rabelais é o inventor do termo "enciclopédia", que não existia antes. [Michel de] Montaigne [(1533-1592) pensador, ensaísta e escritor humanista francês, autor dos <i>Ensaios</i> obra que deu origem ao termo que passou a designar a exploração de um tema por diversas tentativas], que também agia assim, os grandes pensadores, os grandes universalistas do Renascimento. Então, já houve uma oposição, na época da impressão, por causa da invenção de um novo suporte de estocagem e transmissão de informação. Vivemos, hoje, exatamente a mesma revolução. Acabamos de inventar um novo suporte que estoca, transmite, recebe e emite informação a uma velocidade, é claro, incomparável à anterior. E, por outro lado, há a universidade, que tem seus problemas, sérios problemas financeiros, de organização, problemas políticos, que você mencionou. Será que hoje nascerão totalizadores do saber exatamente nos mesmos termos colocados há pouco? Eles serão os paralelos ou equivalentes a Erasmo, Rabelais ou Montaigne do século XVI? Sim, estamos vivendo, com a crise dessa oposição, um novo Renascimento. E esse novo Renascimento me parece já estar surgindo, ao menos nas ciências exatas, e me torna um filósofo perfeitamente otimista.<br />
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<b>Scarlett Marton: E nesse renascimento o senhor vê também um renascimento das humanidades?</b><br />
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Michel Serres: Eu tinha um professor... era um homem admirável e que descrevia a maneira pela qual o homem se levantou. Ele estava de quatro e levantou. E ele nos mostrava, ficando de quatro, mostrava que as duas mãos sustentavam o corpo. E quando o corpo se levantou, dizia ele, as mãos perderam a função de sustentar. Perderam a função de sustentar, mas adquiriram a função de pegar, portanto, a mão apareceu. Mas, antes, quando estávamos de quatro, a boca tinha a função de pegar, já que as mãos estavam ocupadas. Portanto a boca perdeu a função de pegar, não é? Mas ganhou a função de falar. E, desde que esse professor me explicou tal fenômeno, tornei-me um homem otimista, porque ouço todo mundo dizer: "Perdemos o humanismo, perdemos os valores, perdemos a memória. Os jovens não têm mais memória, não têm mais imaginação por causa das imagens. Não têm possibilidade de fazer cálculos, porque existe a calculadora". Mas é melhor assim, não é? Porque é justamente quando se perde a função que percebem que perder a sustentação não é nada, já que os pés dão conta. Mas ganhar as mãos nos tornou uma espécie que pode ser pianista ou então cirurgião, prestidigitador. As mãos são um órgão extraordinário, portanto ganha-se muito mais do que se perde. Perder isso ou aquilo implica ganhar coisas extraordinárias, porque, de certa forma, até o cérebro perdeu algumas coisas e está livre para inventar. E, como historiador de ciências, posso testemunhar isso. É porque no Renascimento perdeu-se a memória da erudição que inventaram as ciências experimentais, porque, ao invés de copiar as ciências em livros, olhava-se apenas a realidade das coisas. Sou otimista por causa disso.<br />
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<b>Elvira Souza Lima: Nessa questão da banalização, que ela estava colocando, e nessa situação em que nós estamos, com um novo suporte, quer dizer, nós não sabemos exatamente o que a gente vai perder e o que a gente vai ganhar. O senhor colocou aqui, já duas vezes nesta entrevista, a questão da educação. E, no final da sua conferência, outro dia, o senhor falou da formação e disse que o próximo século é o século da formação. Gostaria de que o senhor discutisse essa questão em relação ao que ela acabou de dizer sobre o novo suporte e como o senhor vê essa questão.</b><br />
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Michel Serres: Acho que, quando digo que o próximo século –e o próximo milênio, já que as datas vão coincidir – será o século da formação, não o digo como uma idéia filosófica ou uma utopia. Vejo isso experimentalmente. Em meu país, há um centro chamado Centro de Ensino a Distância e nesse centro há uma central telefônica. Ora, mundialmente, meu país é considerado razoavelmente bem equipado em termos de formação. Mas, quando fui visitar esse centro telefônico, observei que recebia 20 mil chamadas ao dia. Significa que, na França, há quatro milhões de pessoas que chamam pelo telefone para serem formadas, ou seja, sem formação. Quatro milhões de pessoas por ano! É um número extraordinário. É certo que, 20 ou 30 anos atrás, não teríamos esse número, o que mostra que a demanda por formação está crescendo de forma vertiginosa. Baseado em experiências, digo que, amanhã, a demanda de formação será cada vez maior. Porém nossas técnicas de formação e ensino são limitadas, como você disse há pouco, por questões de orçamento, de finanças etc. Estamos, portanto, num momento muito preciso. O crescimento da formação está cortando o limite máximo dos meios financeiros. Esse ponto sem volta é chamado de crise. Portanto estamos aqui numa encruzilhada. Ou mudamos a maneira de educar ou será uma catástrofe. É isso. E acontece que justamente as novas tecnologias oferecem uma maneira de educação diferente, portanto existe a crise e existe a solução para o problema da crise.<br />
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<b>Rogério da Costa: Professor, junto com esse problema da formação e lembrando a distinção que o senhor fez entre a passagem da imprensão e a internet, hoje, gostaria de saber o seguinte: nós verificamos que há igualmente uma superprodução de conhecimentos, ou seja, os saberes, os conhecimentos estão em explosão. E, reconhecidamente, não é apenas na universidade que se produzem o saber e o conhecimento. Toda a sociedade é rica em produção de saberes e conhecimentos e passa por aí também o problema da formação. Então gostaria de saber do senhor o que a educação a distância pode desempenhar nesse momento?</b><br />
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Michel Serres: Novamente, a sua pergunta engloba duas. Uma se refere à quantidade de informação e sua explosão e a outra se refere à educação a distância. Com relação à explosão da informação, a pergunta, a preocupação, a própria angústia que o senhor manifestou é uma angústia que não é de hoje. Vou citar, de cor, a frase dita por um grande filósofo do século XVII, após a invenção da impressão. Ele dizia... Vou citar: "Essa horrível massa de livros que estamos imprimindo ocupará tanto espaço nas bibliotecas, com seu volume, que podemos prever, com certeza, a volta da barbárie em vez do ensino". Fim da citação. [risos] Desse modo, já há quatro séculos, quando da invenção da impressão, houve um pavor total com a explosão da informação e com razão, porque, de fato, os milhares, ou melhor, as dezenas de milhões de livros que foram impressos, você não leu nem vocês – e eu também não. A questão da formação está na filtragem da referida biblioteca. Não tenho a intenção, não tenho planos, nunca me decidi a ler toda a biblioteca dos estabelecimentos onde fui aluno ou professor. Nunca teria conseguido. A cultura não é absorver toda a informação, e sim filtrá-la. E o que é a formação? É a filtragem da informação. Aliás, caro senhor, o senhor é um filtrador de informação. Seu trabalho é filtrar. E o senhor, que é professor, eu, que também sou, nós filtramos a informação. Não despejamos toda a carga de informação sobre nossos estudantes, senão os esmagaríamos. A questão da formação é justamente essa. Entendem? Portanto, não me apavoro. Ao contrário, fico feliz por ter à disposição uma quantidade enorme de informação. Mas ela é virtual. Assim como a biblioteca da Sorbonne ou a da USP são virtuais para mim. Nunca terei todos os livros. A educação a distância não traz novos problemas com relação à educação tradicional.<br />
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<b>Norval Baitello Jr.: O senhor fala dos "filtradores de informação” e eu tomei contato, agora, por conta da entrevista, com um belíssimo livro do senhor, publicado em português, que se chama A lenda dos anjos. E eu queria que o senhor falasse um pouco se os anjos são os filtradores da informação também. Então os jornalistas, se são os anjos, os professores, se são os anjos...</b><br />
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Paulo Markun: Pelo amor de Deus, não transforme jornalistas em anjos, é a última coisa que me faltava! [risos]<br />
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<b>Norval Baitello Jr.: É um tema ao mesmo tempo poético e ao mesmo tempo uma forte metáfora da contemporaneidade, como o senhor retrata no seu livro.</b><br />
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Michel Serres: Fico feliz com a pergunta porque, se eu escrevi A lenda dos anjos, livro que teve uma exímia tradução para o português, é porque... É muito simples. A palavra "anjo" tanto em português, como em francês, em inglês, como alemão, vem do grego angelos, que significa mensageiro, aquele que leva a mensagem. Vejamos. Ao nosso redor, quem leva a mensagem? É o câmera quem leva a mensagem. É o engenheiro de som, o apresentador do programa. Os senhores são professores e levam a mensagem. Mas, em nossa sociedade, quem não leva mensagens? O piloto do Boeing leva a mensagem, o carteiro, ao entregar cartas, leva mensagens, estamos numa sociedade de comunicação. E temos de entender esse papel do mensageiro. Quem emite as mensagens, quem as recebe, quem as transporta, quem as interrompe, quem as parasita, quem as intercepta. E eu lembrei, antes de escrever o livro, que não tínhamos nenhuma teoria filosófica referente à sociedade de informação. E, como todos temos profissões de transportadores e interceptadores de mensagens, pensei "mas, afinal, quando na Idade Média os filósofos inventaram a teoria dos anjos, isto é, a angelologia, o que tinham em mente?" Eles tinham em mente, meu senhor, a utopia da sociedade da informação. Eles tinham tido a idéia de que se podia imaginar operadores encarregados justamente de tarefas que só a tecnologia de hoje permitiu realizar. Então, nesse livro, fiz um tipo de curto-circuito entre a angelologia da Idade Média e a teoria moderna de comunicação. E vocês sabem que curtos-circuitos causam muita luz, causam muito fogo. [risos] E acho que permitiu esclarecer muito bem duas coisas. Por exemplo, dizem sempre que os anjos são invisíveis. É verdade, vocês nunca os viram, eu também não. Mas por que são invisíveis? Eu vou dizer. Estou falando em francês, mas os telespectadores estão ouvindo a mensagem em português. Há, portanto, entre mim, o emissor da mensagem, e o telespectador, o receptor da mensagem, alguém que trata a mensagem. Onde ele está? Ele não está aqui. O telespectador não o vê. Eu não o vejo. Vocês também não, mas, sem ele, nada seria possível, já que falo em francês e vocês ouvem em português. Conseqüentemente, é um anjo. E quanto melhor ele faz seu trabalho, menos ele aparece. O tradutor está ausente. Aliás, agradeçamos a ele por estar ausente; ele não apareceu ainda. Suponhamos agora que, em vez de traduzir fielmente a minha mensagem, ele diga o contrário. Vamos ficar preocupados. Vamos ficar bravos. Isso pode causar, entre nós, discussões que não teriam acontecido, talvez afrontas, talvez até guerras. Neste momento, ele existe. Ele afirmou sua presença. Eu o vejo. E, quando o vejo, significa que é um anjo mau. Entendem? E isso, o apresentador de TV sabe melhor do que ninguém. Um professor, também. Por quê? Porque o apresentador quando deve passar a mensagem de outro, precisa sempre escolher. Por que não confessa? Quando o senhor deve transmitir algum discurso feito na Assembléia Nacional, deixa falar o deputado, ou fala no lugar dele? Há uma escolha jornalística a fazer, e torna-se um hábito. Da mesma forma, quando damos aula, damos a palavra ao poeta que estamos explicando ou tomamos seu lugar? É sempre um problema delicado. Portanto a questão dos anjos é muito mais profunda. Vou contar mais uma história. Eu estava em Silicon Valley [o Vale do Silício, localizado na Califórnia, Estados Unidos, corresponde a um conjunto de empresas implantadas a partir da década de 1950 com o objetivo de produzir inovações científicas e tecnológicas na áreas de eletrônica e informática, principalmente para produção de chips e microchips], moro lá e um de meus ex-estudantes ficou rico ao inventar uma máquina que permite a conexão entre computadores. Fui visitar a fábrica, ele ficou feliz, eu era seu ex-professor. Então, eu disse: "Meu Deus, só vejo querubins na sua fábrica!" Ele me olhou como se eu fosse louco. Porém, se lembrarmos a tradição dos querubins, a palavra "querubim", que parece hebraica, é uma palavra que os hebreus tomaram dos assírios. E, nos templos da Assíria, não sei se lembram, há uma espécie de animal, um tipo de leão agachado diante do templo, com asas nas costas e o rosto de um ancião de barba. É um animal com três corpos. É um leão, portanto é um animal terrestre; tem asas, portanto é um animal que voa; tem rosto de ancião, portanto é um homem que pensa. Então, quando entramos num templo da Assíria, passamos da terra – o leão – para o ar, a águia, e para o pensamento, a sabedoria do ancião. É por meio desse animal com três corpos que podemos nos conectar com um outro mundo. Então, nós, ao conectarmos várias redes entre si, temos de fabricar uma máquina com três corpos: é seu computador com o seu com o dela. E temos de fazer um tipo de permutador para poder conectá-los. É um querubim. É o conceito filosófico de anjo que corresponde à teoria da comunicação. Meu livro está cheio dessas descobertas, que foram maravilhosas para mim. De repente, eu ressuscitava uma velha teoria filosófica, conferindo uma forma de pensamento inovadora à nossa sociedade de comunicação.<br />
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<b>Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o filósofo francês Michel Serres. Professor Serres, no seu livro Luzes, que é um livro de cinco entrevistas com Bruno Latour [sociólogo das ciências e das técnicas. É professor de sociologia na École Nationale Supérieure des Mines de Paris e na Universidade da Califórnia, San Diego. Publicou diversas obras e artigos sobre a relação entre as ciências, a cultura e a sociedade, como Jamais fomos modernos, Ciência em ação e Políticas da natureza], que acaba de ser lançado pela Unimarco, além de outras observações, há um trecho aqui que me remete à questão do meio ambiente. O senhor diz: "Somos agora os senhores da Terra e do mundo, não há dúvida, mas o nosso domínio mesmo parece escapar ao nosso domínio. Nós nos apossamos de tudo, mas não temos controle sobre os nossos atos. É como se nossos poderes escapassem a nossos poderes cujos projetos parciais – bons, às vezes, e com freqüência, conscientes – pudessem somar-se de maneira involuntária ou à nossa revelia, de maneira maléfica. Não dominamos ainda", diz o senhor, "o caminho inesperado que vai da calçada local da intenção boa para um possível inferno global". Então queria colocar em questão, neste terceiro bloco, justamente, esse tema, que é o tema de como... O senhor fala também, nesse livro, da questão do mal e de sua presença, tão freqüente quanto a desses anjos a que o senhor se refere, do mal que não tem face, de um mal que parece onipresente e todo-poderoso e que, do ponto de vista do planeta em que vivemos, pode significar, evidentemente, o fim da nossa história. Como é que escapamos dessa?</b><br />
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Michel Serres: Creio que, novamente, sua pergunta engloba duas. A primeira é o problema do mal, como é chamado em filosofia, e que remete, em boa parte, à questão da violência da qual falamos há pouco. E, de outro lado, uma pergunta um pouco mais precisa, que é a questão do ambiente, hoje, já que, de certa forma, há muitas espécies vivas, animais ou vegetais, em perigo de extinção. E a questão do ambiente está ficando muito séria no mundo todo, sobretudo nas grandes cidades, tanto em São Paulo como em Paris. Com relação ao ambiente, começarei pela segunda, já que é mais precisa. Fui muito solicitado sobre esse assunto pelo seguinte motivo. Devem ter ouvido falar da reunião do G7. É a famosa reunião de alta cúpula dos países mais desenvolvidos [Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, Japão]. Quando houve essa reunião, há 15 anos, no Japão, na época em que Yasuhiro Nakasone era primeiro-ministro, ele teve a ótima idéia de reunir, ao mesmo tempo, juntamente com a cúpula, três representantes das ciências de cada país. Havia um biólogo, um médico e um outro. A Alemanha mandou um jesuíta, o Canadá um pastor protestante e a França um filósofo – este seu entrevistado de hoje. Éramos 21 pessoas e fizemos perguntas referentes à ética da ciência, ao ambiente etc. E no final da primeira reunião... Nos reunimos três vezes, em Paris, Berlim e Tóquio, e fracassamos totalmente. Não conseguimos resolver nenhum problema. E por quê? Porque percebemos que não podíamos formular as perguntas da mesma forma, pelo fato de um ser japonês, outro canadense, enfim, de culturas diferentes. Portanto, as questões éticas, sobretudo, mesmo as oriundas da ciência, tiveram o obstáculo da diversidade de cultura. E pensei muito a respeito, desde esse fracasso, já que estava lá e o senti de forma dolorosa. E me perguntei se, num dado momento, não nos havíamos enganado de disciplina. Talvez aquelas fossem perguntas de direito e não de ética. De fato, há um certo direito, já que há o direito comercial internacional, os direitos internacionais do homem, portanto o discurso de direito pode ser intercultural. As questões do ambiente poderiam ser abordadas de acordo com o discurso jurídico. Escrevi um livro chamado O contrato natural, que foi traduzido para o português, porque a idéia de contrato é uma idéia compreensível para todos, é intercultural. O japonês pode entender tão bem quanto o brasileiro ou uma pessoa conhecedora de várias línguas. Tive a idéia de examinar a história do direito e percebi que, na medida em que o direito evoluía, as pessoas que tinham direitos legais não os tinham antes, como os escravos, que não tinham direitos legais e passaram a tê-los depois. As crianças não os tinham e em um dado momento, passaram a tê-los; as mulheres também não e depois passaram a tê-los e foram as últimas para vergonha da humanidade. E, enfim, vêm os direitos humanos, ou seja, todos ganham direitos legais. E a pergunta com relação ao ambiente é que talvez os seres vivos devam ter direitos legais. Significa que todas as espécies do planeta assinam com a humanidade um contrato natural, absolutamente paralelo, ao contrato social que fundou as democracias.<br />
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<b>Paulo Markun: Quem seriam os representantes das outras espécies? Nós mesmos?</b><br />
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Michel Serres: É claro que se trata de uma idéia totalmente filosófica e abstrata. É o caso do contrato social também. Não conhecemos as pessoas que assinaram o tal contrato, elas nunca existiram. É tão abstrato quanto, mas é a idéia de que pode haver equilíbrio entre os homens e que pode haver... Porque contrato significa parceiros em pé de igualdade. Aliás, quem será o representante? Tive a felicidade, desde que escrevi esse livro, de ver nos jornais que estavam sendo instaurados processos. De um lado, havia os usuários e, de outro, a reserva de Yellowstone. Houve processos que foram instaurados em que uma das partes não tinha direitos legais, a reserva de Yellowstone –ou a outra reserva ou, então, outro parque. Embora seja uma idéia abstrata, a idéia do contrato social também era abstrata e fundou a democracia. Acho que essa idéia, que é uma idéia jurídica, poderia fundar, um dia, um verdadeiro equilíbrio entre a humanidade e o planeta em que vivemos e que exploramos cegamente. E isso vai servir de base para uma idéia... No século XVII, o filósofo francês chamado [René] Descartes, enveredou todo o Ocidente, durante a modernidade por uma via, em que dizia: "O homem deve se tornar mestre e senhor da natureza". Ter o domínio sobre ela. No [livro] O contrato natural digo: "Temos o controle da natureza”. É uma certeza. Não há mais dúvida de que o conseguimos. Mas, agora, temos de ter o controle de nosso controle. Ter o controle, não só da natureza, mas também de nosso controle sobre ela. Com relação à sua pergunta sobre o meio ambiente, propus, então, uma solução filosófica que teve uma certa repercussão do ponto de vista jurídico. Com relação à questão do mal, pergunta fundamental que me fez no início, que é como a questão da violência, o senhor disse algo muito profundo, que consiste em dizer que, talvez, desde o princípio, o mal exista na humanidade. E era um pouco isso que tinham em mente os teólogos ao falar do pecado original. Ou será que o mal é erradicável? Será que a violência que nos rodeia – e este é o mal essencial – será que a violência pode ser suprimida? E minha resposta é, infelizmente: provavelmente não. É provável que a violência nunca possa ser erradicada, mas o que temos à nossa disposição é negociar sempre a violência a fim de dirigi-la, canalizá-la e transformá-la. Talvez se não estivesse discursando durante uma hora e meia com vocês, minha violência se voltasse para atos mais baixos. Eu tinha uns amigos com os quais eu jogava futebol e rugby quando garoto e que, quando não jogavam aos domingos, faziam bobagens na semana e eram presos na sexta-feira. [risos] É como se a violência deles fosse necessária: precisavam encontrar uma válvula de escape no esporte. Outros a encontram na política, outros na religião. Caro amigo, o que é cultura? Já que aqui é a televisão da cultura... A cultura é a negociação de nossa violência essencial. Ela nos salva da violência. Por muito tempo? Talvez não. Para sempre? Certamente não. Por enquanto sim. A cultura é o que nos salva da violência e nós, homens, inventamos a cultura para não nos matarmos uns aos outros.<br />
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<b>Edgard Assis Carvalho: Professor Serres, vou retomar um pouco esse magnífico livro que é O contrato natural. Vejo O contrato natural como um manifesto, uma declaração universal dos direitos da natureza, como o senhor o chama. Na verdade, o senhor falou do contrato, então, o contrato parece ser um traço jurídico que determina a relações dos homens na Terra, mas que os afasta da terra. E esse contrato natural, acho que há uma questão importante aí, que é a seguinte: é um manifesto contra Descartes. Nós não somos mais "senhores e mestres da natureza". Então, na verdade, é uma mudança de paradigma entre a questão da dominação para a simbiose homem-natureza, homem-cosmos. Trata-se de um problema ético, científico, político etc. O livro foi escrito em 1990, se estou correto. Hoje, [em] 1999, o senhor mantém essa mesma posição, de que nós devemos ser anticartesianos para nos tornarmos simbióticos planetários e ver a Terra como mãe?</b><br />
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Michel Serres: Acho que, se tivesse de reescrevê-lo, eu o reescreveria talvez melhor, porque todos os livros podem ser melhorados. Manteria as mesmas teses, mas, desde que o escrevi, encontrei mais motivos que reafirmam minha tese em vez de criticá-la. Por quê? Porque aprofundei muito a palavra que mencionou e que me parece uma palavra muito decisiva: simbiose. E a palavra simbiose é um termo de biologia, de bioquímica. E, mais adiante, no estudo do funcionamento dos órgãos, do funcionamento das células, da relação dos elementos entre si, das células entre si, dos vírus, de nosso combate contra micróbios e bactérias, quanto mais evoluímos nessa ciência, mais percebemos que o reino do ser vivo é um equilíbrio movediço entre o parasitismo e a simbiose. Ou seja, estamos sempre lutando, em busca de um equilíbrio que não temos. De certa forma, o que é a educação? É ensinar alguém a deixar de ser o parasita do outro. Ensinar-lhe a autonomia. Ensinar de uma forma que não tenha de pedir sempre assistência à mãe, ao pai, ao irmão, aos vizinhos. Ele é autônomo e tem de assinar um contrato com o outro. Ele tem de dar, na medida em que recebe, estar em simbiose consigo mesmo. No fundo, um contrato é a tradução jurídica da realidade biológica da simbiose. Quem não está em simbiose é um ser abusivo. Por isso, eu disse parasita. Existe um abuso. De uma certa forma, não éramos usuários da natureza, éramos abusivos em relação a ela. E foi para interromper esse abuso que imaginei essa tradução jurídica da simbiose natural. E, nove anos depois, aprendi muita biologia desde então - trabalhei muito nessas questões e percebi até que ponto... Por exemplo, a senhora [Lynn] Margulis, há três anos, ganhou o prêmio Nobel de biologia sobre a simbiose, porque ela descobriu que até os monocelulares estavam em simbiose. Admiro muito a senhora Margulis, porque disse, em matéria biológica, em relação ao minúsculo, o que eu havia tentado dizer em O contrato natural.<br />
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<b>Elvira Souza Lima: O senhor publicou, recentemente, Nouvelles du monde, já traduzido no Brasil como Notícias do mundo. Essa é uma nova forma de pensar o contrato natural, esse livro que leva o leitor a viajar naquilo que você disse, "o mundo é a biblioteca do filósofo". Esse livro faz a gente fazer esse percurso onde essa questão da simbiose parece trazida de maneira bastante poética.</b><br />
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Michel Serres: Agradeço a menção a esse livro, de que gosto muito, porque ele me permitiu colocar em destaque, às vezes, grandes amigos. Vou até confessar que há uma heroína nesse livro, cujo nome é Elvire. E você sabe por quê. Tenho uma ótima amiga brasileira com esse nome. Escrevi o livro por uma razão especial, que é a seguinte: na Antigüidade, os sábios gregos e latinos, quando eram filósofos, achavam que a filosofia não era algo abstrato. Não era escrever livros, mas podia-se até escrever. Não era conhecer as ciências, mas podia-se até conhecê-las. Mas era viver. E o verdadeiro filósofo era aquele que vivia bem, isto é, tinha uma boa vida. É claro, havia divergências quanto à definição de "boa vida". Cada um achava uma coisa. Eu simplesmente quis fazer um livro de vida. O livro, antes de mais nada, é um mergulho... Primeiro, são narrativas, não são teorias. São narrativas muito simples, quase sempre otimistas e a repreensão foi grande, pois, em geral, a literatura é muito pessimista e sombria. Não... é, antes de tudo, otimista. E também dei um grande papel à paisagem. Não quero contar minha vida, mas uma de minhas paixões é o mundo exterior. Gosto do mar, da montanha, das margens, dos desertos. Gosto da América do Sul, da Austrália, da Nova Zelândia, até de meu país, [risos] gosto do meu país. Gosto de viver fora. Gosto de viver no mar, na montanha e, por conseqüência, você estava certa, Elvire, quando disse que O contrato natural aparece em Notícias do mundo, já que existem paisagens, paisagens de seu país, bem como as do Japão etc. Depois, há os protagonistas cuja vida tento mostrar. E como viviam bem, no sentido da boa vida, segundo os filósofos gregos! Claro, é um livro de moral. Mas os livros de moral não podem ser livros de moral. Eles têm de contar histórias. Então é isso. São histórias. Contei histórias e gosto muito de fazer isso.<br />
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<b>Scarlett Marton: Professor, eu tenho a impressão de que são raros os filósofos que tematizam a relação entre vida e reflexão. E o senhor não hesita em momento algum em falar das suas experiências, na Marinha, por exemplo, falar desse aprendizado com o livro do mundo. Como o senhor vê essa relação entre vida e filosofia?</b><br />
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Michel Serres: Bem, tentei começar a dizer isso e dizer que somos, muitas vezes, cercados por filósofos cuja vida não é interessante. A filosofia tem de servir para a vida. E, não somente isso, ela deve transformar, transfigurar, transcender a vida. E a felicidade de minha vida foi ter feito filosofia. E a felicidade da filosofia é nos permitir viver e da melhor forma possível. E tentei contar assim, de forma simples. Não são grandes romances nem grandes contos, é apenas o cotidiano de pessoas muito simples que conheci. E, para mim, a boa vida... Agora há pouco, disse ao nosso amigo que um filósofo devia conhecer a enciclopédia, praticar todas as ciências. É a mesma coisa para a vida, minha senhora. Um filósofo que não conheceu os pobres, os miseráveis, os rejeitados e não conviveu com eles, mas que teria convivido com reis, ministros, os poderosos, por que não? Para eles, são os mesmos. Para um filósofo é a mesma pessoa, quer seja miserável, pobre, rejeitado, quer seja rico, poderoso. Poderoso e miserável, é tudo igual. E ele precisa ter feito três viagens. Três viagens. A viagem por todas as ciências, a viagem pelo mundo todo, pelas paisagens – América do Norte, do Sul, Ásia, as ilhas, o mar, a montanha – e a viagem pelo corpo social. São as viagens do filósofo. Ele deve ter trabalhado com agricultores, com operários, ter feito todo tipo de trabalho, ter conhecido as pessoas e a situação real dos pobres, ricos, poderosos, ter sido ele mesmo miserável, ter feito, portanto, uma viagem franca no corpo social, bem como no mundo do saber. Foi o que tentei expressar.<br />
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<b>Frederic Litto: Professor, as suas idéias sobre simbiose são extremamente interessantes, tendo em vista o fato de que hoje, através da internet, podemos criar comunidades de pessoas comunicando e trocando idéias. Mas, em outros lugares, nos seus escritos, o senhor fala do trabalho solitário individual e de sua importância. Como reconciliar essas duas idéias?</b><br />
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Michel Serres: Eu não as reconcilio. [risos] Não se pode reconciliar tudo. E, muitas vezes, entramos em contradição com nossa própria vida ou teorias. Mas tento reconciliar isso. Por quê? Porque está nascendo, acho, um novo conceito do universal. O que é universal? Podemos ter do universal o conceito de extensão. Talvez as três viagens das quais eu falei sejam essa busca do universal. O universal do mundo, dos homens e do saber. Desculpem-me por bancar o sábio, mas segundo a lógica, o julgamento sobre um indivíduo é universal. "Sócrates é um homem" é um julgamento universal. Porque, dentro de um indivíduo, o universal pode estar presente. Tenho uma grande sorte por ser escritor ou autor de livros. É verdade que, para escrever, é preciso ter uma vida solitária, implacavelmente solitária. É preciso estar, quase todos os dias, a maior parte do tempo, só. Mas se você soubesse quantas pessoas já passaram por meu escritório [junta as mãos como numa prece]... Sozinho. Estou sozinho. Mas toda a história passou por meu escritório, todas as profissões, todos os países, todas as línguas, todas as ciências. Um escritor é um homem que goza da totalidade do real, mas que tenta juntar essa totalidade do real na ponta fina de sua caneta. E aqui há uma verdadeira reconciliação do universal, no sentido amplo, e do universal no sentido individual. Creio que o que hoje é chamado de virtual, o potencial, a imagem virtual, há muito tempo que nós, escritores, conhecemos isso. Nossos heróis são virtuais, nossos pensamentos, nossos presentes são virtuais. Mas, apesar dessa virtualidade, como é imenso o prazer da totalidade do real. Acho que não há contradição entre o entrelaçamento que podemos ter com o mundo e a vida monástica do filósofo.<br />
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<b>Daniel Piza: Eu queria fazer uma provocação: quem fez mais mal às ciências humanas? Foi a hegemonia crescente das ciências exatas e biológicas, que o senhor chama de “ciências duras", ou a tentativa, neste século XX, das próprias ciências humanas de serem ciências duras? </b><br />
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Michel Serres: Nem uma coisa nem outra. O que mais prejudicou as ciências humanas foi o seguinte: quando se fazem "ciências duras", não se pode resolver tudo. Quero dizer que nenhum cientista lhe dirá o que é a matéria. Ele não pode. Ele sabe o que é um átomo, o que é um elétron, mas não sabe o que é matéria. Sendo assim, há um certo número de perguntas muito específicas que ele não pode responder. Um físico é um homem que se faz um certo número de perguntas bem definidas. E, quando são mal definidas, não a chamam mais de física, chamam-na de metafísica [o que está além da física]. Há um certo contato que talvez seja a afirmação de humildade. Há humildade nas “ciências duras", porque as questões fundamentais ficam a cargo dos filósofos e metafísicos. As ciências humanas não têm metafísica. Resolvem todas as questões humanas ou tentam resolvê-las. Elas não deixaram em outro lugar a resposta às perguntas fundamentais. Talvez a religião seja sua metafísica, talvez, mas deixemos isso de lado. Não há metafísica das ciências humanas, por isso a maioria delas não é falsificável, como diz Popper. É por isso, talvez, que elas sejam talvez não doentes, mas um pouco cansadas. [risos] Não creio que a limitação das “ciências duras" ou a proximidade com elas causaram muito mal, ou então a pretensão científica etc, mas o problema está em seu próprio interior. A longa história das "ciências duras" fez com que elas amadurecessem e permitiu que deixassem certas coisas de lado, cientes de que só faziam questões falsificáveis. É o que falta, provavelmente, às ciências humanas: a noção do falsificável.<br />
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<b>Paulo Markun: Professor, o nosso tempo está acabando, mas queria pedir... Se fosse possível, o senhor sintetizar... No final desse livro, na quinta entrevista do livro Luzes, o senhor insinua ou estabelece aqui três leis para que a gente consiga operar neste mundo tão complicado, tão cheio de mal, no sentido de que ele seja menos cheio de mal. Imagino que o senhor conhece de memória, com certeza, a essência dessas três leis e queria que o senhor resumisse, neste final de programa, quais são elas.</b><br />
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Michel Serres: As três leis que eu coloquei...<br />
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<b>Paulo Markun: "Não te entregarás à violência, nem contra o indivíduo nem contra estranho ou próximo, mas também contra a espécie humana”. É isso? A segundo seria: "Não te entregarás à violência, mas somente contra o que jaz ou vive na tua vizinhança, mas contra toda a espécie global". E, finalmente, "não praticarás nenhuma violência em espírito, porque quando se ingressa na ciência, o espírito supera a consciência". Então queria que... Em síntese, dessas três leis, qual é o resumo da história?</b><br />
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Michel Serres: Diria de bom grado que a questão da violência é a questão fundamental. E toda vez que falamos em violência, esta tarde, quase interrompi minha resposta pela minha dificuldade em dominar essa questão. Disse que podíamos negociá-la e que estava sempre à nossa porta. Portanto, diria que o importante, para mim, é o saber, transmitir o saber, sem nunca esquecer a piedade. Se eu tivesse uma ou duas palavras a dizer, antes de encerrar, seria isto: o saber e a piedade. Não se pode ter um sem o outro e vice-versa. O ser humano é um ser que conhece e... Em francês, a palavra "humano" significa também essa bondade ou piedade. Em português, também. É a mesma coisa. Todas as línguas latinas contêm essa idéia e talvez eu dissesse isto: o saber e a piedade.<br />
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<b>Paulo Markun: Professor Michel Serres, muito obrigado pela sua entrevista. Obrigado aos nossos entrevistadores e a você, que está em casa.</b><br />
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<span style="font-size: x-small;">Entrevista no programa "<a href="http://tvcultura.com.br/programas/rodaviva/" target="_blank">Roda Viva</a>" da TV Cultura, a 8/11/1999 (<a href="http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/386/entre" target="_blank">link</a>)</span>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-45128624144873172632016-11-29T00:19:00.004+00:002016-11-29T00:19:51.426+00:00Harold Bloom (1996)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEge6b8Hz4ca3BpuWnX5UAx5edWDykGmvbD93foZCjRKNtinQI6FpskEKTirdAyGEuQqzYe0oIeYPtnH42WJtoyMPNFnnf42bzS31a-vyK1kqlRc5KNDGUTGrtjhFalJQ8xqInYuNUE8nEOq/s1600/bloom80.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEge6b8Hz4ca3BpuWnX5UAx5edWDykGmvbD93foZCjRKNtinQI6FpskEKTirdAyGEuQqzYe0oIeYPtnH42WJtoyMPNFnnf42bzS31a-vyK1kqlRc5KNDGUTGrtjhFalJQ8xqInYuNUE8nEOq/s1600/bloom80.jpg" /></a></div>
José Antonio Gurpegui: What's the reason for writing a book about the Western Canon, particularly now?<br />
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Harold Bloom: Well, this brings one to the question of a national context: in fact people in American universities and colleges and in the secondary schools and in academies throughout the English-speaking world, are very much worried about canonical matters because a tremendous debate has been going on now for about the last twenty years or so, which in one very bad sense is settled: that the people who would argue for humanistic education, in English at least (the study of the traditional Western Canon, from Homer through Shakespeare, Cervantes and Tolstoy, down to Marcel Proust, say, or Samuel Beckett), we have been defeated. A traditional Western Canon is largely not studied anymore in American colleges, universities, preparatory schools, secondary schools, and this is trae also in Australia, New Zealand, Canadá, Great Britain, and so forth.<br />
But the personal reason is really quite different, and had nothing to do with polemic.<br />
I am a literary critic in my middle sixties; Tve been writing about literature, publishing on literature since 1957. I've been a student of literature really from the time I was a very small boy; in any language I could teach myself to read. And I've written a number of books, and I just thought it was time that I write a kind of general study of literature, trying to see if I could isolate those qualities that in the end unify Shakespeare, Cervantes, Dante, Chaucer, Tolstoy, and so on, and trying to extend Walter Pater's notion of the aesthetic or Oscar Wilde's notion of the aesthetic to a kind of general defense of the aesthetic study of literature.<br />
From a Spanish perspective, a number of things that I talk about the book in would not make much sense: thus my favorite sentence in the entire book must be totally incomprehensible to a Spanish reader, an Iberian reader. And that is the rather bitter and ironic sentence, which I quote verbatim from the book, "If multiculturalism meant Cervantes, then who could protest?" There is in the English-speaking countries, but particularly in the United States, a terrible movement in the academies called "multiculturalism," which holds that the racial, sexual, and class origin of a work of<br />
literature is far more important than any other aspect of a work of literature, and which insists that aesthetic value is merely a mask, or disguise, for, as they would say, sexist, racist, economic exploitative forces.<br />
The plague of American universities and colleges, and indeed of all academic institutions now throughout the English-speaking world, are the extraordinary collection of what I would call "pseudo-Marxists" (because they are not Marxists), and "pseudo-feminists," "feministists" as I like to call them (because they are not really feminists), and the "pseudo-historicists," disciples of Foucault, who, in conjunction with multiculturalists and various kinds of so-called theoreticians, mostly of the French variety, have pretty much destroyed the traditional study of Western literature in the English-speaking world. I think this process has gone much further in the United States and Great Britain than it has in Spain, which is after all ethnically a homogenous country, so that multiculturalism would appear only, say, in the distinction between Catalán literature and Castilian literature, or perhaps, I don't know how much Basque literature there is, really, so... I think that might be a little bewildering to a Spanish reader if they did not understand how bad the situation is here. The situation really is very bad here.<br />
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JAG: Well, this book follows the line of the others in two ways: in its content, that it follows your line of research, and also in the criticism it has followed, as in the others. But in this one it seems you were more open, in the sense that you didn't worry what others might think when you use expressions such as "The School of Resentment"... unless you were trying to be provocative...<br />
<br />
HB: Well, I explain what the School of Resentment is. It's a six-headed beast. The six heads of the beast are: they call themselves feminists, they call themselves Marxists, they call themselves New Historicists, which means disciples of Foucault, they call themselves Lacanians, disciples of Lacan, deconstructionists, disciples of Derrida, and finally, you know, semioticians. I think the six-headed apocalyptic beast has ruined the very idea that any writer in any language could be preferred to any other writer on the basis of greater aesthetic eminence. That is now denounced as a mystification and a mask, for social, economic, and political exploitation. But of course, the grim effect upon this is<br />
double: on the one hand, this movement, which is always talking rather tediously about what it calls political responsibilities of the critic, has in fact turned the United States against the universities and colleges, has helped elect a neo-fascist Republican congress, because it's this School of Resentment that has given rise to the hideous notion of political correctness, and there has been a national backlash against this, against affirmative action (as it is called), against multiculturalism, against political correctness, and the universities are going to pay a very high price for this.<br />
But that interests me less, even though I think it's very unfortunate socially and politically speaking... that interests me much less than the fact that the ability to read closely and well is being destroyed in the United States. It was already in trouble because of visual technology, because of the computer, the television set, the cinema, and so forth.<br />
Reading is, after all, not something that directs itself to the eye, but to the inner ear, and if you have a culture that tums against the inner ear, it's going to be very difficult for reading in the deeper sense, particularly of poetry or of difficult prose, to survive. And indeed, serious poetry, first-class poetry, is being less and less read and studied in the United States. There is a serious breakdown in literary standards in the United States and Great Britain.<br />
The United States is now so much the leading world power, and even though the so-called culture that it exports is mostly the culture of hamburgers and blue jeans and this hideous non-music called rock (horrible stuff which has blasted the eardrums apart), in some sense, since also the English language has become the lingua franca, replacing French, with only Spanish really as a rival, it's very curious. I'm not sure you can destroy all aesthetic standards in the United States, particularly in the study of literature, and it not be felt sooner or later in Madrid, or in Rome, or in Berlín.<br />
<br />
JAG: To finish with this question, how would you feel if somebody considered you as belonging to "The School of Nostalgia"?<br />
<br />
HB: My book argües as much against what could be called "The School of Nostalgia," but I don't call them that (our right-wing, or moralistic, or Christianizing critics). I've gotten more nasty reviews in right-wing publications even than in fashionable left-wing publications. I say right at the beginning of the book that my enemies are not only the School of Resentment, but are what you just named, the School of Nostalgia, the people who feel that the Western Canon is justified, and that its function is to inculcate democratic ideals or moral sanctions or traditional Christianity or middle class morality<br />
or whatever you want to call it. No... first of all I'm not a school; I am absolutely an eccentric and isolated individual. Even in my own university I am a non-department of one: I have no followers, no disciples, no allies, no critical cousins.<br />
<br />
JAG: I remember you telling me sometime ago that you were a Professor of Nothing.<br />
<br />
HB: Yes, yes: I regard myself as the Sterling Professor of Nothing, both here and at NYU [New York University]. No, one cannot speak of the School of Nostalgia, nor I think do I indulge in nostalgia. The last Western writer who seems to me incontrovertably canonical was Samuel Beckett. I don't know that a high regard for Samuel Beckett makes one part of a school of nostalgia. If you asked me what living writer is likeliest to be canonical I would probably have to say it would have to be [Gabriel] García Márquez.<br />
<br />
JAG: I'd like to talk about that.<br />
<br />
HB: Yes, there's no living...well, we have Thomas Pynchon in the United States. I suspect that Pynchon is going to be a canonical author. But no, I don't think I am nostalgic. You know, the heart of my book (I think this has not been understood)... I intend to in fact, when I finish writing a book called <i>Omens of Millennium: Angels, Dreams, Resurrection, and Gnosis</i>, which I'm writing for the moment, which is a religious book, as <i>The American Religion and The Book of J</i> was...I hope to devote three or four years of very hard writing to writing what I hope will be my magnum opus, which will be a huge book called <i>Shakespeare and Originality</i>, and, which will be an attempt to revive the study of character in Shakespeare, and which will be a commentary really on every major and every important minor character in Shakespeare's plays, because I think Shakespeare invents literary character as we know it. In some sense this book, on the Western Canon, is a prolegomenon to a study of Shakespeare and originality, because, as I say a hundred times in this book, Shakespeare is the Western Canon. I mean, one also says that Shakespeare and Dante and Cervantes and Tolstoy are the Western Canon, but above all else Shakespeare is the Western Canon. I mean, if Shakespeare does not manifest what it means to have supreme aesthetic value, then indeed there is no such thing as aesthetic value, which of course I don't believe for a second.<br />
<br />
JAG: Ezra Pound at a certain point said that the history of literature was the history of about ten writers. You've taken it to one, plus twenty-five.<br />
<br />
HB: Well, not really. I do not say that these are the twenty-six best writers, something which was widely misunderstood, even though I made very clear at the beginning of the book [...] there is one, plus the others. I don't think Pound would have dared disagree with that. James Joyce was once asked by his friend Frank Budgen, you know, the author of <i>The Making of Ulysses</i>, was asked by him the traditional "desert island" question: if you were on a desert island and you could take only one book, what would it be? And Joyce hesitated (I talk about this in the book), and said, <i>"I might want to take Dante, but I would have to take Shakespeare, because the Englishman is richer." </i>And, I think that's all you have to say. I mean, the Western writer, forgetting the ancients — I am not talking about Homer, or Plato, or Sophocles, or Virgil, or the Bible — but the Western writer is Shakespeare, and after that the Western writer is Dante, and Cervantes, and Chaucer, and six or seven others. I mean, in that sense, Pound is probably right, even if we wouldn't necessarily agree on the same ten. I suppose he would've put a Provençal poet or two in there. Bertrand de Born or someone.<br />
There is some sense in which, if you take the period from Dante to the present (which is all I tried to do in this book, forget that list), there is some sense in which, if you take the Aristocratic Age, and the Democratic Age, and the Chaotic Age, which is ebbing out now, in which in some sense there are about ten or twelve writers: I mean, Shakespeare, Dante, Chaucer, Montaigne, Cervantes, and just a handful of others...Tolstoy, Proust.<br />
<br />
JAG: Goethe.<br />
<br />
HB: Joyce. Goethe? Yes. There are about maybe twelve or thirteen who really are universal authors. But Shakespeare's different from the others, it seems to me, different even from Cervantes, who is his closest rival after Dante.<br />
<br />
JAG: Okay. The Aristocratic Period is dominated by Shakespeare; the Democratic by Whitman.<br />
<br />
HB: Well, in a sense, yes.<br />
<br />
JAG: In a sense. And the Chaotic, though you recognize Kafka as the heart of the period, by Joyce.<br />
<br />
HB: Well, Joyce or Proust, or Freud, I don't know. I mean, they're all equally great figures. Freud for me is basically, you know, an aesthetic author, though he would have been very furious if I had said so. If you were going to talk about the twentieth century, the one possible rival of Joyce is certainly Marcel Proust. I mean, you could make a very considerable argument that <i>In Search of Lost Time</i> is as large a monument as <i>Ulysses</i> and <i>Finnegans Wake</i>. I don't think there's a third who competes with those two aesthetically. In the nineteenth century, one is thinking more, much as I love Whitman, one is thinking more of Whitman's influence perhaps than of Whitman himself. If I had to think of a single nineteenth century author who is the largest, I suppose it would have to be Tolstoy.<br />
<br />
JAG: Now, the question concerning this is, don't you consider Anglo-Saxon literature as overwhelming? In the three periods, there were three Anglo-Saxon writers at the center, how about a Spanish or an Italian or a Russian writer?<br />
<br />
HB: Well, but as a matter of fact I don't think of Shakespeare as an English writer, because he is universal. He has been translated into every language; his plays are performed in every language and I don't think it makes any sense any more to think of him as being any more an English writer than he is, say, a German writer or an Italian writer.<br />
And he is so universal. I can't really think of Cervantes as primarily a Spanish writer, or of Dante as primarily an Italian writer. As for Whitman, I haven't agreed with you: I don't think Whitman is the dominant figure of the Democratic Age. He happens to be a democrat, that's why you think of him, but, if I had to look at a single writer of overwhelming aesthetic power in the nineteenth century, I could not legitimately argue [for] Whitman: I think Wordsworth is a greater poet than Whitman. Víctor Hugo, whom I don't write about in the book, may be as large a figure as Whitman. Flaubert may be as large a figure as Whitman. There just wasn't room...<br />
I don't think the book has an Anglo-Saxon bias. Besides, Joyce is not an Anglo-Saxon: he writes in English, but he writes it like a foreign language: he is a Celt. He is a Catholic, though he doesn't believe in Catholicism, he is raised as a Catholic Irishman. He is Celt, and not, not Anglo-Saxon. That's why he says rather bitterly to Frank Budgen, "I would have to take the Englishman," meaning Shakespeare. Who but Joyce would have referred to Shakespeare as "the Englishman." Besides, I mean, what is Beckett? All of the really important work is written in French, except for Krapp 's Last Tape at the end and Murphy at the beginning, but everything else is written in French. And then usually it's translated into English by Beckett. You can call the prose trilogy of Malloy and Malone and so on... you can't call the major plays, especially Endgame...are they French works or English<br />
works? It's written by an Irishman, whose French is at least as good as his English. So I think these distinctions break down.<br />
For a long time, until he died, Beckett was certainly the best writer alive. And besides, you know, what do these things mean? Borges, whom I write about, writes in Spanish, but starts in English. He learned English when he was a child. Pessoa learned English as a child, and wrote poems in English, as Borges wrote prose in English. It's very difficult to know. I don't think there's an Anglo-Saxon bias in the book. I myself am not Anglo-Saxon; I'm Jewish. Maybe you can see if there's a Jewish bias in the book, I don't know.<br />
<br />
JAG: In other works you recognize the influence of the Greek and Latin writers on subsequent authors. But here they're not mentioned so much as before. Why?<br />
<br />
HB: I was thinking about my readers. I provide them with absolutely no guidance on Homer, no guidance on Virgil, very little, almost nothing, about the Bible, nothing about medieval literature before Dante, nothing about Saint Augustine. It just seemed to me that I had not earned the right. I mean, look, the important thing for me about the book... I have tried to learn now throughout my life, how to write in a fashion which would not vulgarize what I was trying to say, but would make me more accessible to what I would think of, following my great hero Doctor Samuel Johnson, as the common reader.<br />
And that necessarily involves trying to write in a less learned fashion. And I think of the books that I've written so far, this is probably the least opaque and the most accessible, even though I realize that there are opacities in it, and there are many things in it which are not immediately accessible to a common reader.<br />
One still hopes, you know... one's critical hero is Doctor Samuel Johnson, who wrote for the common, educated reader —we don't have a common educated reader anymore, whether in Spain or the United States. We just don't. This is the age of visual technology.<br />
So I made a deliberate attempt not to use classical references. I did not, for instance, in talking about Joyce, I talked about Joyce only in relation to Shakespeare. I deliberately excluded the whole question of Homer. In Dante, I almost deliberately excluded the relationship both to Virgil and to the whole question of Saint Augustine. With Cervantes, I had to deliberately exclude the relationship to what, after all, the Don Quixote satirizes, what comes before him. It was a deliberate restriction that I placed upon myself. I did not feel, for instance, in talking about Goethe, the second part of Faust, which so clearly is a bacchanalia on classical themes, as in the classical Walpurgis Nacht, I did not feel that I had a right to talk about Aristophenes, or even about Horace. I just felt that I had to exclude these things... I mean when I realized that for reasons of length I had to exclude what Vico calls the Theocratic Age, then I passed a limitation upon myself and I said, well, I will try to give literary references only from Dante to the present day. It produces beyond a doubt considerable lacunae, as for instance in the case of Joyce.<br />
And the book starts with the pretext, the false assumption, which it realizes and says is a false assumption, that Western literature begins with Dante. Western literature obviously doesn't begin with Dante; Western literature begins with Homer, and the Bible. But in this book, which is limited, it begins with Dante. So I didn't feel I had any references I could give before Dante. Thus, when I got to Chaucer, for instance, I only mentioned Dante, and Boccaccio, even though in fact, Chaucer has a very complex relationship to classical literature.<br />
<br />
JAG: You of course praise Cervantes, but it's only to point him out as a third place — Cervantes to you is the only possible peer of Dante and Shakespeare... isn't it relegating him to a third place?<br />
<br />
HB: I think that if you were to speak of the major writers from Dante to the present day. Shakespeare, Dante, and Cervantes...<br />
<br />
JAG: And why not Cervantes, Shakespeare, and Dante? Especially considering that the literary genre par excellence in the nineteenth and twentieth century is the novel.<br />
<br />
HB: You could well, yes, you could well argue that since Cervantes, in the deepest sense, is the transition from the romance to the novel and is also the inventor of literary irony, even in the Kafkian sense, as I point out. But you know, Shakespeare's one advantage over Cervantes is the dramatic medium, since Shakespeare in fact is playing on all the stages of the world. And somehow Japanese Shakespeare remains Shakespeare, even though Cervantes is read all over the world and has an incalculable influence. But you know, it doesn't really matter. I mean, I repeat what I said: my favorite sentence of the book is, if multiculturalism meant Cervantes, then I would not protest. I would be perfectly happy to substitute Cervantes for Shakespeare. The order of achievement is<br />
exactly comparable. I would add a fourth figure, greater even than Tolstoy, Chaucer. Chaucer is a writer as strong as Cervantes, as strong as Dante, as inexhaustible as Shakespeare. There are very few such writers. You might want to argue that Rabelais, whom I don't write about, is such a writer. I'm not sure whether he is or is not, but you could make an argument for it.<br />
<br />
JAG: Of course we can always make arguments in literature. For example, you've just mentioned that Shakespeare invents the literary character. Somehow that could be said as well of Cervantes.<br />
<br />
HB: No, no, no, what I said was a literary character in the sense of dramatic representation. Cervantes, after all, was a dismal failure as a writer for the theater, which he blamed on Lope de Vega, of course, and gets his revenge, I think, by showing Lope as Don Pedro, the master of the puppet show, the trickster, and so on. I think I say in the book that it's very difficult to choose between Falstaff, Hamlet, Sancho Panza, and the Don [Quixote] as the supreme characters...and the Wife of Bath, and the Pardoner in Chaucer.<br />
And Dante the pilgrim, himself. It would be very difficult to choose between them in the order of literary representation.<br />
Certainly if you set Dante aside, if you just go from the Renaissance to the present day, there is no third author comparable to Cervantes and Shakespeare. And if somebody were going to argue with me and say Cervantes is as great a writer as Shakespeare, I could not question it. The single book, the book, as Herman Melville said, the book above all books — I mean Shakespeare's not a single book; Shakespeare wrote thirty-eight plays, though Cervantes wrote The Exemplary Tales, which are very magnificent — in the end, the single book in Western literature after the Bible, as Unamuno says, is the Don [Quixote], beyond any question. I always keep a copy of it in English translation literally at my right hand. I have just reached down and touched it. Tucked away there.<br />
<br />
JAG: You've just mentioned Unamuno, and it seems you really admire him.<br />
<br />
HB: Oh, I love Unamuno. Unamuno is a great writer, and a great critic. As I say in the book, my chapter on Cervantes is entirely in the spirit of Unamuno. I follow Unamuno at every point. I don't know how many references there are...<br />
<br />
JAG: At every paragraph.<br />
<br />
HB: Yes, at every point he's guiding me in what I'm saying. I'm in love with that book: Our Lord Don Quixote is a very great book. And Unamuno's Exemplary Tales are almost as interesting as Cervantes'. They're quite remarkable. Have you read them? Astonishing, astonishing. The three Exemplary Tales that he writes, in imitation of Cervantes, one of them contains the very great sentence (which all feminists hate): "All women are one woman," which is very Unamuno-esque. Is Unamuno still highly regarded in Spain, or is he neglected?<br />
<br />
JAG: Yes, he is still highly regarded.<br />
<br />
HB: Oh yes? Well. Remarkable intellect... Ortega is, of course, a very considerable literary intellectual. A very powerful literary intellectual. But Unamuno has that touch of madness, you know, that touch of the sublime, that touch of the fantastic [...].<br />
<br />
JAG: Okay, there is one ñame in this conversation that you've named only very briefly, and it's Goethe.<br />
<br />
HB: Oh well, my favorite. If I had to vote for what I think is the best chapter in the book, I would say that the best and funniest chapter in the book is the chapter on the second part of Faust, which I've had some response to in Germany, but very little response to in the United States, or Great Britain, or abroad. I think that's a hilarious chapter, on the most outrageous piece of canonical work.<br />
<br />
JAG: But what happens with the other Romantics? What happens with Byron,Shelley, Keats?<br />
<br />
HB: Well, there isn't room! Wordsworth is there and Goethe is there. But there is no room for Byron, Shelley, and Keats. Well, what am I to do? It's like people complaining, why is Flaubert not there? And I have a friend, a former student, who teaches Renaissance literature, who said he was completely shocked that there isn't a chapter on Tasso. I mean, what can one say? Rabelais isn't there. Ariosto isn't there. Racine isn't there. Baudelaire isn't there. I mean, Henry James isn't there. Hermán Melville isn't there. Ah, what can one do? I had thought I was going to write a book on fifty writers; I<br />
discovered it was impossible. So I wound up with just half that number.<br />
The book was unwritable, as I discovered. And, in the end, Paul Valéry has, as you know, a very great remark: Paul Valéry says, and I've quoted this in many places, that no poem is ever finished, it is merely abandoned. And this book was never finished; I had to abandon it, because I didn't know what else to do. I didn't know what one did. I felt very badly... my favorite writer in Spanish, after Cervantes, is Calderón. I wanted very much to write a chapter on Calderón, if only so as to make him better known in this country. I just didn't have space for it.<br />
And if I had to talk about the great poet of the twentieth century, even though Neruda is very powerful at his best, and I have great passion for Pessoa; obviously Neruda and Pessoa are not as good poets as Luis Cernuda was. Cernuda's a very great poet. Let alone [García] Lorca. And, as I said to you before, the greatest poets of the century (Wallace Stevens, Lorca, Hart Crane, Paul Valéry, Paul Celan, Georg Trakl, Rainer Maria Rilke, Eugenio Móntale) are not in that book. They're just not in that book, and it's too bad. But you can only do so much in one book.<br />
<br />
JAG: And of course, you have to choose, and to choose means to reject.<br />
<br />
HB: Well, to choose doesn't so much mean to reject, but you need to cover the major national literatures.<br />
<br />
JAG: This is the point: Why Dickens, and not Henry James? And why Tolstoy and not the one you have not mentioned...<br />
<br />
HB: Dostoevsky?<br />
<br />
JAG: Of course!<br />
<br />
HB: Well, Tolstoy may be the greatest writer in the Russian language, but the Russians themselves think that the center of their canon, the way Goethe is the center of a canon or Cervantes is the center of a canon, or Dante, is Pushkin. Pushkin is absent from the book; Dostoevsky is absent from the book; Chekhov, as great a dramatist in his way as Moliere or Ibsen. Chekhov is not in the book. There was a real problem. Had I been able to write about fifty writers, Flaubert would have been in the book, and Dostoevsky would have been in the book, and Henry James would have been in the book. Indeed my personal favorites among Western writers, are mostly not in the book. Emerson is not in the book.<br />
<br />
JAG: Yes, but what I mean is, if you have to choose one...<br />
<br />
HB: If you have to choose one Russian writer, and I had only space for one, the three I considered were Pushkin, Tolstoy, and Dostoevsky, and, in the end, it has to be Tolstoy. And I didn't want to choose War and Peace or Arma Karenina, because I wanted an instance where his aesthetic sensibility overwhelms his moral obsessions, and his anti-Shakespeareanism, and he writes a powerfully Shakespearean, or even if you want to have it so, Cervantine, story, in the late story "Hadji Murad," which is puré storytelling, which is an aesthetic masterpiece, which is a very great piece of writing. It's the best story I've read in my life, as a story. Dostoevsky may or may not be more profoundly<br />
introspective than Tolstoy... he's certainly more Shakespearean than Tolstoy (he loved Shakespeare), and, as I remark several times, you wouldn't have Svidrigailov and Stavrogan, if you didn't have Iago, if you didn't have the Shakespearean hero-villains, if you didn't have Edmund in King Lear.<br />
Nihilism is invented by Shakespeare, and Dostoevsky knows it. Indeed I would argue myself, and the right-wing critics in this country would be very angry at me for saying, they imply it very clearly: I think Shakespeare is a nihilist, ultimately, and that he is the greatest nihilistic writer, you know, in the West, and that ultimately our literature is nihilistic because of Shakespeare. As to whether Cervantes is ultimately nihilistic, I am not prepared to say. I think one could make an argument that perhaps he is, which is what Unamuno I think is secretly saying —he's always on the verge of saying, it's what<br />
Nietzsche says. They're not willing to cross over. Why is Nietzsche not in the book? Nietzsche and Emerson and Kierkegaard, those three writers, are far more important to me personally than Tolstoy is. They are much more important to me than, say, Montaigne or Moliere are.<br />
<br />
JAG: My question was why you chose those you did.<br />
<br />
HB: One tries to choose writers who are exemplary. Thus for France, for instance, one has to leave out Rousseau, one has to leave out Balzac, who is my personal favorite. One has to leave out Victor Hugo, whose poetry I think is immensely underrated, for he was a great poet.<br />
<br />
JAG: And then you overrate Dickens.<br />
<br />
HB: Oh no. No, no, no. How can you overrate a writer of that fecundity and power? Dickens is as close to a novelist of the stature of a Cervantes that you can find in English. Dickens is the major novelist of the English language, surpassing Henry James, surpassing even George Eliot. But I wanted an instance of a canonical novel in the nineteenth century, and since I wasn't writing about Anna Karenina or War and Peace, or Dostoevsky, I had to ask myself, well, who are the exemplary novelists in the nineteenth century? Probably I should have taken one French and one English, but George Eliot and Dickens are at such extremes from one another... probably I should have left out George Eliot, and used Flaubert or Stendhal. But what could I do? I mean, it's very hard to choose,<br />
they're very hard to choose. You cannot exclude the arbitrary when you try to write a book called The Western Canon. Obviously you cannot write such a book, and leave out Shakespeare and Cervantes, and Dante, if you're going to start from Dante on. And you cannot leave out Proust. I didn't see how you could leave out Tolstoy, whereas you could leave out Dostoevsky, finally, if you had to choose. How can you leave Melville, who is in many ways the most powerful nineteenth century American writer, and if I had to vote for one American book, it would have to be Moby Dick, more even than Huckleberry Finn and Leaves of Grass: I would vote for Moby Dick, but, there just wasn't room.<br />
<br />
JAG: That I understand, of course, and in your book you also did mention that one cannot read everything. But let's go to the next period, the Chaotic.<br />
<br />
HB: The Chaotic Age, yes.<br />
<br />
JAG: I think the novel is brilliantly represented, and nobody can say otherwise, I think.<br />
<br />
HB: I have deliberately underrepresented the poets and dramatists of the age. The leading dramatist in the twentieth century is probably not Beckett, remarkable as it is, and is certainly not Brecht; it is probably Pirandello. Luigi Pirandello is probably more important in the history of the twentieth century drama than anyone else is.<br />
<br />
JAG: I was about to ask you why poetry is not fully represented.<br />
<br />
HB: Well, I happen to love poetry much more than I love the novel, but as it happens the audience for poetry is smaller in the twentieth century than it's ever been before, and though it is a great age, one would have a very hard time arguing that even a Valéry, and Rilke, and Trakl, and Wallace Stevens, and Móntale, and Lorca, and Cernuda, and all the others, one would have a very hard time arguing that they were of the greatness of Joyce and Proust. But again, I have a real problem, which is space. If I had had to put in a single twentieth century poet, I don't know, it would have to be probably Yeats or Lorca, or Wallace Stevens, or Rilke. I don't know.<br />
<br />
JAG: It seems you are not very fond of modernism in poetry.<br />
<br />
HB: How can you say that? What do you mean by modernism? If modernism means Ezra Pound, no I'm not fond of Pound's poetry. If modernism means Eliot, even though I hold my nose, because I find Eliot loathsome, particularly his prose criticism, yes.<br />
<br />
JAG: Yes, I meant exactly Eliot, Pound, and William Carlos Williams.<br />
<br />
HB: Eliot is a great poet. William Carlos Williams at his best is a very good poet. Pound at his best is almost a great poet.<br />
<br />
JAG: And you did not mention Lowell and Larkin...<br />
<br />
HB: Lowell and Larkin are I think stuffed owls, you know. I think they're period pieces. But, it depends what you want to cali modernism: Hart Crane and Lorca are modernist poets... Pessoa is a modernist poet.<br />
<br />
JAG: Rubén Darío.<br />
<br />
HB: Oh, yes, yes, he's an interesting poet. It's interesting that Nora Cartelli, in her article in one of the Spanish newspapers criticized me for bringing him in, saying that she didn't think he was first-rate; but he's a precursor figure for the South American poets in general, or Latin American poets if we have to call them that. I put in Neruda because he's representative. Vallejo I think is probably a more powerful poet.<br />
It's very difficult to say. You could argue that the poet of the twentieth century is Paul Valéry, and that if one has a chapter on Proust, one should have a chapter on Valéry. It's hopeless. You know, there's just so much space. The book in that sense was unwritable.<br />
But I thought it was important to write the book if only so as to start the argument again. Look, if there is value in the book, and I would like to think there is value in the book, it can only be two things in the end: on the one hand to insist that there is such a thing as the aesthetic, and that it stands absolutely separate from the economic, the social, and the political.<br />
<br />
JAG: And that's why after Beckett, and I quote you, everything is "fresh technologies for distraction?"<br />
<br />
HB: Yes, yes. Well, what I was saying was that part of the enormous relevance of Thomas Pynchon, is that that is very much at the center of his concern. I was saying that I am rather surprised that both the Latin American novelists and poets, and Spanish and Catalan novelists and poets, seem less concerned with this question of the technological nightmare, since after all, particularly since the end of the Franco regime, Spain has been very rapidly modernized, and visual technology is going to be as large a problem for the aesthetic in Spain as it is now in the United States.<br />
<br />
JAG: The aesthetic component in literature is of main importance to your criticism. But could it be understood as if you were jailing the writer in his ivory tower?<br />
<br />
HB: Pooh. Absolute pooh, I am not talking about that at all. I'm not talking about art for art's sake, which is a phrase of Walter Pater's that has been very much misunderstood and mangled anyway. What I am talking about is the fact that some writers are better than other writers, that's all that I'm saying, and that the reason why some writers are better than other writers has nothing to do with their political, social, or economic relevance. That's all I'm saying; I'm not talking about ivory towers at all.<br />
You can't jail writers in ivory towers, obviously. I mean, the outstanding novel in the twentieth century is Proust's In Search of Lost Time, and it is a mirror of everything that has been happening in France in the era of Dreyfus. Nevertheless, the great insight of Proust, the great achievement of his last book, is a kind of aesthetic clarification which is finally a kind of salvation, not so very different from Unamuno's reading of Cervantes, I must say. What Unamuno is saying, as I understand him, is that the religion of Spain should cease to be Catholic and should become that of Don Quixote —which is a shocking and brilliant idea. In the same way, I think Proust, who is descended from the aesthetes by way of Ruskin, is essentially an aesthetic sensibility: I'm not trying to lock Proust in any<br />
ivory tower; I'm not trying to lock Joyce in any ivory tower. I really am simply reminding us that some books are better than others for intrinsic, rather than extrinsic, reasons, and that if we lose sight of that, we may as well stop reading. And if you can say, well, that's so commonplace, why do you bother to say it? Alas, alas, alas, I wish it were still commonplace, particularly in the United States and Great Britain. But it isn't commonplace anymore. It's not commonplace at all.<br />
<br />
JAG: We've been talking about writers, but let's have a question about the readers. Your approach, as opposed to that of Leslie Fiedler, who considers the readers the only ones entitled to write a canon, in the sense that...<br />
<br />
HB: I think Leslie, who is an old friend, is quite wrong, I think. I even say at one point... I was thinking of his phrase, "opening up the canon." I'm saying that's a redundant phrase, an unnecessary phrase, because the canon is never closed. The canon, and ultimately this is the second reason I wrote my book: my book is the logical endpoint for my study of what I would call the idea of influence in Western literature. My book is The Anxiety of Influence written on a large scale.<br />
<br />
JAG: You mean The Western Canon.<br />
<br />
HB: Yes. I mean, in some sense it's about the influence of Dante, and the influence of Shakespeare, and the influence of Cervantes.<br />
<br />
JAG: Shakespeare, according to you, had a kind of anti-Semitic feeling.<br />
<br />
HB: I think that beyond any question, The Merchant of Venice is an anti-Semitic play, alas. And in that sense, Shakespeare was very much of his own time in England.<br />
<br />
JAG: I mentioned it as a kind of introduction for my next question. In the Chaotic Period list, and I would like to comment on the list at the end, you name twelve works written in Yiddish, and only thirteen written in Spain (I'm not saying in Spanish, in Spain). Does it have anything to do with your Jewish origin, and do you think that Yiddish and Spanish are balanced?<br />
<br />
HB: I hadn't thought of it in that sense... I undoubtedly, I mean, Yiddish is my native language: it is what I spoke as a child, it undoubtedly reflects the fact that I know Yiddish literature better than I know Spanish literature. I think in Yiddish, when I get tired. I dream in Yiddish. When I think of my parents, I think in Yiddish. Spanish for me is an acquired language, which I can read but I cannot speak. I wish I could speak Spanish. I don't think that's a fair question. I say we're now in that area, primarily, of my list, which is twentieth century, where I call it a canonical prophecy, unlike the other three lists, and I begin by saying canonical prophecy is a mug's game. I make very clear that the list is<br />
provisional, that it is personal, that it is provocative, that it's suggestive, that it's subject to revision, and that it cannot possibly be right. No one can really tell until fifty years at least have passed by, whether something is a period piece or not. It is not possible. It is not possible... I was thinking primarily of readers in the United States and other English-speaking countries.<br />
<br />
JAG: Right.<br />
<br />
HB: What do you do with an extremely difficult writer, where your Spanish would have to be far better than mine is to make any sense of him, and where there is no adequate English translation at this time? That simply is a limitation that I have to accept. He may well be, he probably is as great a writer as you tell me he is, but I have no way of knowing this, because my Spanish is not good enough, and we need some translator like Samuel Putnam, who did such a wonderful translation of Cervantes into English, who is dead now, of course. We need some translator of genius to come along and render him into English.<br />
<br />
JAG: Well, somehow you've answered part of my next question. I do not pretend to make a case of the Spanish importance in your book. I do recognize that one cannot read everything. I can admit that you don't include the Arcipreste de Hita, Santa Teresa, Don Juan Manuel, Garcilaso de la Vega, Pedro Salinas... but to me, and it has nothing to do with me being Spanish, it's difficult to understand why Valle Inclán is not included.<br />
<br />
HB: Yes, no, I can understand that, but it would have been dishonest for me to include him, because the Spanish is too difficult for me, and I have not found an adequate English translation, which could suggest what his aesthetic qualities are, so I would have to take it strictly on faith. And that would be dishonest. One could argue one has left out many figures in Spanish literature. Had my book been written by a Spaniard, there would be fewer works of English and American literature, as well as Yiddish literature, and many more of Spanish literature, of course. So there is to some extent now a universal canon, and a world canon, and a Western canon —in the end the canon is a national idea, and probably can never cease to be, to some extent, a national idea. It happens that I can read Catalan poetry because I studied Provencal, and...<br />
<br />
JAG: Is that the reason why you include a chapter on Catalán?<br />
<br />
HB: Yes, because, you know, Catalán poetry is in some ways easier for me than Castilian poetry, because even though I studied Spanish, I probably did not study it as well as I studied Provençal. And it is surprising how close Catalán poetry is to Provençal. Spanish poetry is very difficult for me, although, you know, with the help of good translations and good commentaries...<br />
<br />
JAG: For example, Góngora; you've shown me his Soledades...<br />
<br />
HB: Góngora is a poet who I've come to appreciate; Quevedo is a poet I find much more difficult. Very difficult.<br />
<br />
JAG: Even more than Góngora?<br />
<br />
HB: Yes, well, because the commentaries and concordances are not as good. I've had great trouble penetrating him. Calderón I can appreciate much better than I can Lope de Vega; I find his Spanish for some reason more difficult, though my friends María Rosa Medical and Roberto González Echevarría, tell me that I'm mistaken, that Calderón's Spanish is actually more difficult than Lope de Vega's. I wonder why I've had that difficulty. I guess I'm just more sympathetic to it than I am to Lope de Vega, who is prodigious, I must say: his energy is amazing — clearly has great verbal power, but has never been the influence on English and German poetry as Calderón. Calderón has an immense influence on Shelley, an immense influence on Goethe. It's very hard to conceive either part of Faust without Calderón. [It's] very difficult to think of Shelley without Calderón...very difficult to think of [Hugo] von Hofmannsthal. There, there's someone...I greatly prefer von Hofmannsthal as a playwright and poet to many of the people that I wrote about in the twentieth century. But I just did not have space for him. And he is pure, he is pure Calderón; he's inconceivable without Calderón, he is a disciple of Calderón.<br />
<br />
JAG: Okay, but let's take Lorca, whom I know you really appreciate...<br />
<br />
HB: Oh, I love Lorca's poetry.<br />
<br />
JAG: ... but you mention him just once in the book.<br />
<br />
HB: (Sighs) Ah. I don't think I mention Cernuda at all, and I love Cernuda's poetry. What can one do? I love Hart Crane's poetry more than any poet in the twentieth century; I doubt that he's mentioned in the book. I mean, what can one do? It's not meant to be a purely personal book, though it is partly, necessarily personal and arbitrary. To that extent I think the book is probably a failure. That is to say that, as a total impression, it falls short of what I wanted to do. But I discovered that what I wanted to do was beyond my powers — perhaps beyond the powers of any single national critic. I don't know. I don't know. I'm not sure that even Wallace Stevens is as great a poet as Cernuda, at least in terms of the traditional highest sublime. Cernuda is a very great poet, almost unknown in the United States. But there is one good translation into English by a man named Reginald Gibbons, I believe, which I listed.<br />
<br />
JAG: And which one would you praise more, Cernuda or Lorca?<br />
<br />
HB: Well, Lorca is a greater genius, beyond a doubt. He's more original and fecund, and influences Cernuda. But Cernuda had more time to mature, of course... and of course Lorca is a dramatist; Cernuda is not a dramatist. He meditates the lyrical sublime almost in the old sense, the Pindaric sense. He is, I think, shockingly underrated in contemporary Spanish criticism.<br />
<br />
JAG: Unfortunatly, he is.<br />
<br />
HB: I mean, there are poets who are praised more from the great generation [Generation of 27]. There's much more interest in contemporary Spain than in Cernuda. I think you could argüe that after Lorca, the great poetic genius of the twentieth century in Spanish is Cernuda, surpassing the Latin American poets. Certainly surpassing Pessoa. Pessoa is a wonderful, crazy poet, is an astonishing literary phenomenon, but I don't think that in the end he is as pure a poet as Cernuda.<br />
<br />
JAG: Before the interview you told me that if you had a second edition, you would take off the lists at the end. Has it been so controversial?<br />
<br />
HB: Well, there is already a second edition. I mean if I lived long enough and I got the book back from the publisher, which I never will...ideally, if I could get the book back again (and I can't), I would probably leave off the first and the last chapters, which are argumentative, and which are sure to be period pieces someday, and I would omit the list, particularly the fourth part of that list, because I think these things are distractions, and I would use this space instead for writing about more authors —maybe I would write about Lorca and Cernuda. I think I regret now writing about Neruda. But you know it was very curious what happened. I wanted to write about Whitman and the Latin Americans, and originally, in fact, that was going to be a chapter about Octavio Paz, Pablo Neruda, and Borges [...]. I wasn't going to write about Pessoa at all, even though he fascinates me, probably because of his strange affinities with Hart Crane, though the two poets never heard of each other —though Hart Crane also has tremendous affinities with Lorca, and I think they met once, Lorca and Crane.<br />
<br />
JAG: While they were in New York.<br />
<br />
HB: Yes, though I think the least impressive of Lorca's works is Poet in New York. I think that is just not vintage Lorca: it doesn't compare to the great...<br />
<br />
JAG: Romancero gitano.<br />
<br />
HB: Yes, yes. It doesn't compare to Yerma, or Blood Wedding, or the other great... It doesn't compare to that great "Sleepwalker's Bailad," which is a great poem.<br />
<br />
JAG: It's not the sublime Lorca.<br />
<br />
HB: That kind of thing Hart Crane does better, much better, I think. The surrealistic Lorca is not Lorca at his best. But I wanted to write about... it's a book about influence, and after addressing the question of Dante's influence and Shakespeare's influence I wanted to talk about Whitman's influence, and that got me into Neruda. It could have gotten me into César Vallejo, as you say. But I would in the end read a great deal of Neruda: some of it is very wonderful; some of it is very powerful; some of it not. And while Borges fascinates me, he is rather repetitious.<br />
<br />
JAG: Regarding South American literature you talk about Neruda, and to many people Borges, and García Márquez are much more powerful.<br />
<br />
HB: Are larger figures. Well, I wanted a South American poet, in relation to Whitman, so I came up with Neruda. I could have chosen Octavio Paz, but I don't think he is primarily a poet: he's a better essayist than he is a poet. Borges is a better storyteller, and a better essayist, than he is a poet. Even though the Spanish American novelists are, I think, more powerful than the Spanish novelists in the twentieth century, setting aside Valle Inclán, I don't think that the Spanish-American poets, Neruda, Vallejo, and Guillén in Cuba, you know, the black Nicolás Guillén not the Spanish Guillen, I don't think they are as powerful as the great Spanish poets in the twentieth century. I think that Lorca, and<br />
Cernuda, and that fellow that has all those fantastic angels (my mind is a little tired at the moment)... [Rafael] Alberti [...] I think of the poets of the twentieth century, the one whom I would rank with García Lorca, and Cernuda, would be Rafael Alberti.<br />
<br />
JAG: Why Alberti?<br />
<br />
HB: For sheer originality, for that crazy humor, and those angels, don't you remember his angels? He has these weird angels, they're not like any other angels in literature: they're much more oppressive than the rather dull angels of Rilke. My friend Mark Strand did a very nice volume of selections from Rafael Alberti.<br />
<br />
JAG: Would you prefer Alberti rather than Aleixandre?<br />
<br />
HB: No, no. It's neck and neck. It's neck and neck. Those, those four are very difficult to choose between. I suppose Lorca, Cernuda, Aleixandre, and then Alberti. Alberti is still alive, is he?<br />
<br />
JAG: Yes. Very much still alive.<br />
<br />
HB: He must be... ninety years old.<br />
<br />
JAG: Ninety-three.<br />
<br />
HB: Ninety-three! He is the last survivor of the great generation.<br />
<br />
JAG: It seems the tone of thebook, somehow to me it's very pessimistic. And I'm going to quote: "We approach the second millennium expecting farther shadowing." Are we coming to another Theocratic Age?<br />
<br />
HB: Theocratic Age? Well yes, that's what I say throughout the book. You know, you talked about people who don't like what I've done, saying that I want to put the poet back in an ivory tower. I haven't put myself in an ivory tower. What shadows my book prophetically, because when I wrote it, the Republicans had not triumphed in the last election, but I went around prophesying that they would—the Republican party has become a ghastly thing called the Christian Coalition, the American Fundamentalists of Ralph Reed and Pat Robertson and so on. I fear that the United States by the year 2000 will be a much more Theocratic country; that they will eat away at the Constitution, and that they will impose a religious censorship, and I don't know where that will end. On the one hand,<br />
you have a reactionary Catholic church: the Polish Pope [has] quite certainly packed the college of cardinals with very conservative people. There's not going tó be any more Pope John. This Pope will be followed by popes even more reactionary.<br />
<br />
JAG: Which Pope John are you referring to? John XXIII?<br />
<br />
HB: Yes, yes, the one who brought about the Great Reform, John XXIII. There's not going to be any more Pope John XXIII. The Polish Pope, John Paul II, who was brought in as we know (because they murdered John Paul I. All my friends in Italy insist on that), has appointed extremely conservative cardinals all over the world: black ones, yellow ones, you know, all over. We're going to have a more and more theocratic Catholicism, which doesn't have much power in Spain, you know, having to do with reasons of Spanish history, because of its alliance with Franco and its oppressiveness before that. The United States is in real danger of becoming a theocracy. The Muslim world is increasingly dominated by the most terrible fanatics, both Shiites in Iran and Sunni elsewhere. And in a strange way, I think that what I cali the School of Resentment are just as much theocrats of their kind of orthodoxy, as the right-wing in America are theocrats. I think political correctness is a theocratic notion. I think so-called multiculturalism is theocratic in its bias. I think the attempt to politicize criticism and overpoliticize literature is theocratic. I think aesthetic sensibilities are going to be more<br />
and more in a state of siege. I prophesy in the book that literary criticism, which is already dying in the universities of the English-speaking world, will die completely, that real literary study will end in the English-speaking world. Well, I believe so. It will be replaced...<br />
<br />
JAG: That's extremely pessimistic.<br />
<br />
HB: Well, it's happening all over the country and in England: cultural criticism, so-called, has crowded out literary criticism. People don't teach poetry. You don't have people reading John Donne or reading Góngora. You don't have people reading Edmund Spenser, you don't have people reading difficult poetry in any language. The very idea of difficulty has been deprecated. I think literary criticism will survive, but it will survive outside the universities, the way literature will survive outside the universities. I also think that technologically —virtual reality and the cyber-text— may do a great deal towards destroying literature. I think it's very, very hard for young people in the western world to read very deeply, because they haven't been taught patience, and you have to be very<br />
patient to read Wallace Stevens or to read Cernuda. You have to be very patient indeed.<br />
So I don't know... I feel pessimistic, I feel pessimistic. On the other hand, literature always survives, and literary criticism always survives, sometimes in strange forms. Maybe there's a lot of personal pessimism in it, you know: I am not, in many ways, the happiest of human beings, which I don't want to get into obviously for an interview.<br />
<br />
JAG: Let's finish with a little joke.<br />
<br />
HB: Yes, certainly.<br />
<br />
JAG: What would you do if tomorrow there would be the certainty that the legend that Shakespeare never existed, became true?<br />
<br />
HB: It wouldn't make the slightest difference. I sometimes tell my students that I've occasionally felt like arguing that Shakespeare is not a dead white European male, but that I wish that all of Shakespeare we could prove was written by a well-known prostitute of the time named Lucy Negro, who was an East Indian black or brown lady, Lucy Negro; and I wish we could prove she was the Dark Lady of the Sonnets, though she wasn't, and that she wrote all of Shakespeare, because it wouldn't make the slightest bit of difference.<br />
Freud wanted to say that the Earl of Oxford had written Shakespeare. Other people want to say that Sir Francis Bacon had written Shakespeare. This is all nonsense, but it doesn't make the slightest bit of difference because the plays are there. They happen to have been written by evidently, a very commonplace and colorless human being, with only a grammar school education, an apprentice actor of astonishing genius —but then, how can you predict human genius? Cervantes was a soldier... I don't know what scholars currently think, whether his family was New Christian or not, though I feel a shadow at times, as I read...<br />
<br />
JAG: Cristiano viejo. Old Christian.<br />
<br />
HB: Old Christian. Well, he obviously wants to be Old Christian because it isn't safe to be New Christian. But I don't know. At an ecclesiastical procession at one point... there are strange, dark moments in the book. Very strange moments. I don't quite know what to make of them. I mean there's his great fondness for the Celestina... by Fernando de Rojas. One of the greatest books ever written. I thought actually of writing about Rojas. I don't think there is a greater work in the Spanish language except for Cervantes, than the Celestina. A shocking book.<br />
<br />
JAG: And El libro de buen amor by the Arcipreste de Hita?<br />
<br />
HB: Yes, yes, I should have talked about that also, and Usted it. What can one do? You know, one makes mistakes; there are errors of omission. I was surprised to be told that Saint Teresa was not there. I'm a great admirer of The Interior Castle: I thought that, as with Luis de León and Juan de la Cruz, I had put it in. You know I did the list entirely from memory.<br />
<br />
JAG: Really?<br />
<br />
HB: I have a very good memory, you know. But the reason why the list is in such a curious order, not chronological for instance, and so on, is because I thought the honest way to put it down was to rely upon memory. I have never for instance verified a quotation in my life. William Hazlitt once said if you can't quote it from memory, you have no right to quote it at all. I remember everything, and so I write it down that way. And so I just listed the authors whom I remembered. I didn't consult guide books or histories of literature. You know, this is a personal canon, this is what I remembered, but of course my memory, in at least a dozen cases, betrayed me. I can think of a dozen authors I would<br />
have included if I realized that I was leaving them out. At first, it surprised me to find that they were not there, but, what can you do? What can you do? We, all of us, are trapped; Wallace Stevens has a great passage of poetry in which he says: each of us condemned to be, himself or herself, that inescapable animal. That's how I would end.<br />
<br />
<br />
<i>Entrevista de José Antonio Gurpegui, Universidad de Alcalá, Revista Alicantina de Estudios Ingleses 9 (1996): 165-181 (<a href="https://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/5391/1/RAEI_09_12.pdf" target="_blank">fonte</a>)</i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-15954302180458696212016-04-26T18:31:00.001+01:002016-04-26T18:31:17.327+01:00Jean Paul Sartre (1966)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrlB8qUgOFbJv9nfYsP9OGQ9u10j2Ppxwq2mIol5Y1imwxhNy8ACKNdzmPcJ7MM2QTB3dB7jja5WFHwkgB-RgdwaQLUk-g2TnwX0hCgJsgOywmYR3sFltVcQ5qK7Cj6qnHxJBduIzwnRjf/s1600/sartre1.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrlB8qUgOFbJv9nfYsP9OGQ9u10j2Ppxwq2mIol5Y1imwxhNy8ACKNdzmPcJ7MM2QTB3dB7jja5WFHwkgB-RgdwaQLUk-g2TnwX0hCgJsgOywmYR3sFltVcQ5qK7Cj6qnHxJBduIzwnRjf/s1600/sartre1.jpg" /></a></div>
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<b>“Cahiers de Philosophie”: Admitindo que possa haver uma antropologia verdadeira que não seja filosofia: a antropologia esgotaria todo o campo filosófico?</b></div>
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<br /></div>
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Jean-Paul Sartre: Considero que o campo filosófico é o homem, ou seja, que qualquer problema deve ser concebido em relação ao homem. Que se trate da metafísica ou de fenomenologia, em nenhum caso podemos colocar a questão senão em relação ao homem, em relação ao homem no mundo. Tudo o que concerne filosoficamente ao mundo, é o mundo no qual está o homem, e necessariamente o mundo no qual está o homem em relação com outro homem que está no mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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O campo filosófico está limitado pelo homem. Isto que dizer que a antropologia pode ser por si mesma filosófica? O objetivo que as ciências humanas querem alcançar: é aquele mesmo que a filosofia quer alcançar? Está aqui o problema tal como eu o colocaria. Tentaria mostrar que são, sobre tudo, os métodos que provocam uma mudança na realidade estudada, ou, se vocês preferem, o homem da antropologia é objeto, ao passo que, o homem da filosofia é objeto-sujeito. A antropologia toma o homem como objeto, isto é, que os homens que são sujeitos, etnólogos, historiadores, analistas, tomam o homem como objeto de estudo. O homem é o objeto para o homem, não pode deixar de ser. Não é assim? O problema é saber se esgotamos a sua realidade na objetividade.</div>
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<br /></div>
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No número de Esprit consagrado à infância retardada, há um acordo completo entre os médicos, analistas ou não, sobre o fato de que o erro nestes últimos vinte e cinco anos, tem sido tomar a criança retardada como objeto, e considerar que ela teria uma língua. Determinavam-se estruturas que pareciam fixas, e a partir disso, começava-se a terapia clínica. A única maneira é, agora, tratar a criança como sujeito – o que nos leva a tangenciar a filosofia -, não como um objeto que se insere na sociedade, mas como processo em curso de desenvolvimento, que muda historicamente, que se encontra inserido num projeto geral e que, ao mesmo tempo, é uma subjetividade. Ainda no domínio prático, ético, a noção de sujeito aparece sobre o objeto. Desde o momento em que, como disse claramente Merleau-Ponty, o homem é objeto para certos homens, etnólogos, sociólogos, estamos diante de uma coisa que não pode ser senão tangenciada. Sem impugnar o conjunto desses conhecimentos, estamos obrigados a dizer que se trata de uma relação de homem para homem; o homem entra a título de antropólogo numa certa relação com o outro, não está frente ao outro senão em situação com relação a este outro. Filosoficamente, a noção de homem não se encerra jamais sobre si mesma.</div>
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<br /></div>
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Na medida em que a antropologia apresenta objetos, deve estudar algo no homem que não é o homem total e que, de certo modo, é um reflexo puramente objetivo do homem. É o que eu chamei na Crítica da Razão Dialética, o prático-inerte, isto é, as atividades humanas enquanto que são mediadas por um material rigorosamente objetivo, que lhes remete à objetividade. Em economia, por exemplo, não temos um conhecimento do homem tal como a filosofia o pode definir, mas um conhecimento da atividade do homem enquanto que esta é refletida pelo prático-inerte, atividade do homem retornada.</div>
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<br /></div>
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Nessas condições, o conjunto de conhecimentos sociológicos e etnológicos, remete a questões que não são questões da antropologia, mas que vão além do nível da antropologia. Temos por exemplo a noção de estrutura, e das relações entre a estrutura e a história.</div>
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Os trabalhos de Jean Pouillon sobre os Korbos, mostram-nos a constituição interna de pequenos grupos sociais nos quais as relações políticas, religiosas, são determinadas de certas maneiras. Os grupos são distintos e, contudo, compreendem-se muito bem entre si. E quando os comparamos constata-se que o conjunto dessas práticas, representa exemplos diferenciados de uma estrutura mais geral, que concerne à relação do político e o religioso. Do estudo de sociedades que se dão à observação, passa-se ao estudo reconstrutivo de uma sociedade estruturada, que não pode realizar-se senão através de uma pluralidade de casos concretos e, por isso mesmo, diferenciados – aqueles, precisamente, a partir dos quais nos temos remontado à estrutura-objeto -. O papel que uma certa antropologia estruturalista dá à história é muito particular: a partir da estrutura reconstruída se pode, abstratamente, recorrer a todas as possibilidades diferenciadas que procederam dela; de outra maneira, resulta que um certo número dessas possibilidades é dados no campo da experiência. O papel da História seria, por conseguinte, dá conta de que esse conjunto determinado (todas as possibilidades ou algumas delas) seja realizado. Dizendo de outro modo: reduzindo-a à pura contingência e à exterioridade. A estrutura torna-se constituinte.</div>
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<br /></div>
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Ora bem, nós constatamos que as estruturas se as expomos em si como fazem certos estruturalistas, são sínteses falsas: de facto, nada pode dar a unidade estrutural, senão a práxis unitária que as mantém. Não é duvidoso que a estrutura produza comportamentos. Mas o que irrita no estruturalismo radical – onde a História tem aspectos de exterioridade e de contingência em relação a tal conjunto estruturado; puro desenvolvimento da ordem enquanto se considera como uma estrutura que se dá a si mesma a regra do seu desenvolvimento temporal -, é que o reverso dialético ficou em silêncio e não se mostra jamais à História produzindo as estruturas. Portanto, a estrutura faz o homem na medida em que a História – isto é: a práxis-processo – faz a História. Se consideramos o homem como objeto do estruturalismo radical, falta-nos uma dimensão da práxis; não se vê que o ator social conduz o seu destino sobre a base de circunstâncias exteriores e que, como ser histórico, exerce uma dupla acção sobre as estruturas: por sua vez não cessa de mantê-las por suas condutas e, por estas mesmas condutas, não cessa de destruí-las. Todo o movimento se reduz a um trabalho da História sobre a estrutura, que encontra nesta sua inteligibilidade dialética e que, sem referência a esta, permanecerá no terreno da exterioridade analítica, oferecendo a sua unidade sem acção unificadora como uma mistificação. Se nos perguntarmos, ao contrário, como essas estruturas inertes têm sido preservadas, mantidas e modificadas pela prática, voltamos a encontrar a História como disciplina antropológica: a estrutura é mediação; deve-se buscar – quando os materiais e documentos existem, o que nem sempre acontece ao nível de trabalhos de etnografia – como a práxis abisma-se no prático-inerte e não deixa de corroe-lo. Este problema remete-nos, por outro lado, para a investigação puramente filosófica: o historiador é histórico, isto é, que está situado em relação ao grupo social do qual faz o estudo histórico. A filosofia – ela mesma situada – faz o estudo dessas situações a partir de um ponto de vista dialético.</div>
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Podemos distinguir três momentos: a acção do homem sobre a matéria modifica a relação entre os homens, enquanto que a materialidade trabalhada é a mediação entre eles. Quando um conjunto prático-inerte é assim constituído, se o seu desenvolvimento se faz mais lentamente, pode – este é o segundo momento – ser o objeto de análise estrutural. Mas esses movimentos mais lentos não deixam de ser evoluções: pode-se estudar as instituições da república romana, mas – este é o terceiro momento - esse estudo em si mesmo remete ao das forças profundas e desequilíbrios que as fazem deslizar lentamente até as instituições do império. Assim o estudo estrutural é um momento de uma antropologia, que deve ser por sua vez histórica e estrutural. A esse nível, coloca-se a questão filosófica, aquela da totalização: o agente volta a ser sujeito-objeto, posto que se perde nesse feito. A filosofia começa no momento em que o vínculo dialético história-estrutura nos revela que, em todos os casos, o homem – enquanto que membro real de uma sociedade dada, e não enquanto que abstrata natureza humana – é um quase-objeto para o homem. Não se trata de um conhecimento do objeto nem de um conhecimento do sujeito por ele mesmo, mas de um conhecimento que, enquanto temos que ver com sujeitos, determina o que pode ser alcançado considerando que o homem é por sua vez objeto, quase objeto e sujeito, e que por conseguinte o filósofo está sempre situado com relação a ele. Neste sentido, pode-se conceber um fundamento da antropologia que delimitaria limites e possibilidades do homem para alcançar a si mesmo. O campo antropológico vai do objeto ao quase objeto, e determina os caracteres reais do objeto.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A questão filosófica é, primeiro: como passar do quase-objeto ao objeto-sujeito e ao sujeito-objeto; esta questão pode ser formulada assim: como um objeto deve ser para que possa apreender-se como sujeito (o filósofo forma parte da interrogação), e como um sujeito deve ser para que nós o apreendamos como quase-objeto (e no limite como objeto). Em outros termos: o conjunto dos processos de interiorização e reexteriorização, define o domínio da filosofia enquanto esta busca o fundamento das suas possibilidades. O desenvolvimento da antropologia, mesmo que ela venha a integrar todas as disciplinas, não suprimirá jamais a filosofia enquanto esta questiona o homo sapiens mesmo e por esse lado o põe em alerta contra a tentação de o objetivar. Mostra-lhe que se o homem é, no limite, objeto para o homem, é também aquele pelo qual os homens realizam objetos. A este nível coloca-se novamente a questão: É possível a totalização?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>P.: Existem ciências humanas autónomas, ou antes existe uma ciência do homem e diversas antropologias para tratar as mediações que intervém na relação do homem com o mundo? Pode estabelecer-se de dentro uma unidade?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
R.: Se a unidade não está no princípio, não será dada no final, aparecerá uma coleção. A partir de uma certa intenção comum há uma diversificação, mas que não tem sentido senão na medida em que se expressa dentro de uma mesma preocupação. No fundo existem duas preocupações: uma é tratar o homem em exterioridade, por isso é indispensável tomá-lo como um ser natural no mundo e estudá-lo como objeto, a esse nível da diversificação não vem da intenção, que é a mesma, tanto quanto não se pode estudar tudo de uma vez. A outra tendência é retomar sempre o homem em interioridade. Há um momento de diversificação que vem do homem objeto e que deveria supor o momento dialético de totalização. Existem muitas disciplinas separadas, mas nenhuma disciplina tem inteligibilidade por si mesma.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Todo o estudo fragmentário remete a outra coisa, por detrás de cada conhecimento fragmentário está a idéia de uma totalização dos conhecimentos. Todo o estudo é um momento analítico de racionalização, mas supõe uma totalização dialética. Considero o marxismo, tal como deveria desenvolver-se, como esse esforço para reintroduzir a totalização. Certos marxistas de hoje, arrastando-se ao estruturalismo, roubam ao marxismo as suas possibilidades totalizadoras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>P.: O modelo linguístico: pode ser o modelo de inteligibilidade de todos os fenómenos humanos?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
R.: O modelo linguístico em si mesmo é ininteligível, se você não o remeter ao homem falante. Ininteligível a menos que não o apreendamos através de um informe histórico de comunicação. Mas há que falar. A verdadeira inteligibilidade da linguística remete-nos necessariamente à práxis. O modelo linguístico é o modelo de estrutura mais claro, mas remete necessariamente a outra coisa, à totalização que é a palavra. Eu faço a língua e ela faz-me. Há um momento de independência que é propriamente linguístico, mas esse momento deve ser considerado como provisório, como um esquema abstrato, um estancamento. Enquanto não é superado pela comunicação, a linguagem pertence ao prático-inerte. Nele reencontramos uma imagem invertida do homem, o inerte que está dentro, mas é uma falsa síntese.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O modelo sustenta-se no inerte. Todo o modelo estruturalista é um modelo inerte. O homem perde-se na linguagem porque ele mesmo mergulha dentro dela. Em linguística estamos ao nível da síntese inerte.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>P.: Qual é a significação antropológica de seu conceito de totalidade-destotalizada?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
R.: A noção de totalidade-destotalizada tem, por sua vez, pluralidade de sujeitos e ação dialética do sujeito e dos sujeitos sobre uma matéria, que é mediação entre estes. Chamo totalidade-destotalizada ao momento da estrutura, precisamente. Nesse momento, é a intelecção quem deve intervir primeiro. São as diversas disciplinas, economia, linguística... Que devem inteligir, que devem aproximar-se ao modelo científico das ciências da natureza, porque não há na natureza sínteses inertes. A passagem da intelecção à compreensão é a passagem do estancamento de onde se trata de analisar os dados ou de descreve-los, estancamento analítico e também fenomenológico, da dialética. É necessário voltar a colocar o objeto estudado na atividade humana; não existe compreensão senão da práxis e não se compreende senão pela práxis. A compreensão torna a colocar no interior dela mesma, a título de totalização prática, o momento analítico do estudo estrutural. Aparece o momento da intelecção, que é o do estudo linguístico, momento analítico que é a razão dialética do grau zero. A compreensão é, depois do estudo do modelo, vê o modelo em marcha através da História. O momento da compreensão total, será o momento em que se compreenderá o grupo histórico pela sua linguagem, e a linguagem pelo seu grupo histórico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>P.: No plano de sua crítica das tentativas positivas e gestaltistas (Kardiner e Lewin) de constituir disciplinas antropológicas: Você pensa que uma antropologia compreensiva retomará os dados descobertos por essas disciplinas sem mais, ou melhor, que a adição do fundamento humano às disciplinas antropológicas, transformará aquelas? Em outros termos: Não é verdade que uma antropologia verdadeira nos permitirá compreender os discursos e a gestão do positivismo em sua significação social e humana?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
R.: Se tivermos que retomar o positivismo, é necessário transformá-lo. Contra o positivismo que queria dividir o conhecimento, o verdadeiro problema é que não há verdade parcial, campo separado; que a única vinculação entre elementos diversos de um conjunto em vias de totalização deve ser aquele das partes às partes, das partes ao todo. Devemos sempre tomar o todo desde o ponto de vista da parte, e a parte desde o ponto de vista do todo. Isto supõe que a verdade humana é total, isto é, que há uma possibilidade, através de destotalizações constantes, de apreender a História como totalização em curso. Todo o fenómeno estudado não encontra a sua inteligibilidade a não ser na totalização de outros fenómenos do mundo histórico. Somos, cada um de nós, um produto desse mundo e expressa-mo-lo de maneiras diversas, mas expressa-mo-los totalmente enquanto estamos ligados à totalidade. Em cada grupo, eu vejo um certo tipo de relação da parte com o todo. Na medida em que expressamos aqui a realidade da guerra do Vietnam, pode dizer-se que as pessoas do Vietnam expressam-nos. O objeto da História é testemunha do sujeito, tanto quanto o sujeito é testemunha do objeto. Assim mesmo, podemos dizer que o proletariado e o patrão definem-se reciprocamente pela sua luta. Há um certo tipo de relação própria de Sant-Nazaire, em outra parte, outra tática, outra luta. Podemos dizer que um patrão de Saint-Nazaire expressa os seus operários, da mesma maneira que o operário expressa o seu patrão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
P.: Tem feito uma distinção entre o principio metodológico e o princípio antropológico. O princípio antropológico define o homem pela sua materialidade, Marx tinha definido a materialidade do homem mediante duas características, a saber a necessidade e o nível de sensibilidade. Você pode explicar o sentido que dá à materialidade do homem?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
R.: A materialidade é o facto de que o ponto de partida é o homem como organismo animal criando conjuntos materiais a partir de suas necessidades. Quando não se parte disso, nunca se terá um conceito justo daquilo em que o homem é um ser material. Não estou totalmente de acordo com um certo marxismo sobre as superestruturas, a distinção entre infra e superestrutura não existe no sentido em que penso que as significações profundas estão dadas desde o princípio. O trabalho é uma postura diante do mundo, e esta varia segundo um utensílio. Não se tem que fazer ideologia de uma coisa morta, desde que a ideologia se situa no nível do trabalhador que apreende o mundo de certa maneira. Se considerarmos a ideia ao nível filosófico – Lachelier ou Kant – é a morte da ideia. O trabalho já aparece como ideológico, e o trabalhador cria-se através do uso de utensílios. A verdadeira ideia está no nível do operário, do útil, do instrumento, das relações de produção.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>P.: I. A questão da relação do campo psicanalítico e da experiência instaurada por esse campo, da dimensão de existência que ele instaura e dos fundamentos de sua reflexão, constituirá o objeto de uma pergunta, de uma interrogação. Eu considero que a teoria dos conjuntos práticos como uma ontologia da consciência, que se prossegue e se determina melhor. O problema da relação de sua ontologia da consciência e da psicanálise, coloca-se a partir da “negação”, que é o centro de sua existência comprometida. Dessa negação você tem feito o recurso de seus protestos e do reconhecimento humano – uma negação humanizada -. Ela está vinculada a uma interpretação da consciência intencional, do para-si como negação de si e do todo revelado como de todo dado que revela; do para-si como nada de ser que se sustenta ao preço de uma perpétua aniquilação de si, ao preço de uma transcendência, incessante facticidade. Você tem mostrado ao para-si, essa liberdade prática, determinada por sua objetividade histórica – tendendo a superar por uma “praxis” revolucionária do trabalho alienado -, essa “práxis” original.</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>II. Mas o problema da negação, que é o para-si, existe e recoloca o problema da alteridade ao ponto em que a psicanálise descobre sua ascensão – a partir de um lugar que é o lugar de um discurso -, o discurso do outro. Gostaria então que você precisa-se exatamente a relação que estabelece com Lacan, e que nenhum de seus textos que eu conheço precisa. Qual é a relação entre a consciência e o outro simbólico? A consciência como negação desse outro – como negação do discurso desse outro -, não está condenada a engendrar toda a linguagem, ou melhor, a substituir a reflexão à palavra? Não é a negação do outro simbólico, o não da ausência desejada que se volta contra o sujeito para deixá-lo com uma consciência vazia, aniquilante, negação de si obrigada a impugnar sem cessar para reconhecer?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Assim, a consciência prática está ligada à necessidade cuja satisfação supõe um corpo indiferenciado. O trabalho ainda desalienado, dá ao corpo uma diferença sexual – não supõe o trabalho, a “práxis”, uma desaparição do mundo, uma neutralidade do corpo?</b></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
R.: Na sua pergunta há, para começar, uma confusão entre negação e aniquilação. A aniquilação constitui a existência mesma da consciência, enquanto que a negação se faz ao nível da práxis histórica; é acompanhada sempre de uma afirmação, um se afirma negando e se nega afirmando.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Você faz-me uma objeção não dialética, a saber: a negação não vai conduzir à negação do outro? Você toma a negação como se não houvesse o seu contrário. Eu reprovaria na psicanálise a sua insistência em ficar no plano não dialético. Você pode considerar que todo o projeto é uma fuga, mas você deveria também considerar que toda a fuga é um projeto. Sempre que há fuga, é necessário ver se não há afirmação pelo outro lado. Flaubert, fugindo, pinta-se. Na luta de Flaubert contra uma situação invertida, existe um primeiro momento negativo. Essa negação condu-lo a confusões de linguagem, solipsismos e lirismos; contudo, não é Madame Bovary, mas realiza-se como signo de um grande talento futuro. Nós não explicamos as obras de juventude, se não admitimos que essa negação não pode fazer-se salvo sob a forma de uma afirmação. Acreditando repelir a sua condição, ele entregava-a. A Peste em Florença, obra escrita na idade de quatorze anos, dá muitas mais informações sobre ele que os seus escritos desde os dezassete aos dezanove anos, onde pinta a adolescência em geral. Na medida em que fugia de si mesmo, se pintava. Começa a ler as suas obras para os seus amigos e instaurar um certo tipo de comunicação. Levando o caso de Flaubert à dialética como método, eu diria que a dialética deu voltas.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O terceiro termo é forçosamente uma pessoa, “o outro simbólico” pode ser público. A relação com o público não é uma relação com um terceiro simbólico, existe realmente sem que tenha necessidade de proximidade imediata. Flaubert tinha uma visão muito clara do seu público, uma certa maneira de vê-lo. Mas esse terceiro não era simbólico posto que era real. A relação com o público é uma realidade, e não a inserção de um terceiro que não existiria. Flaubert escreve para negar o seu estado de criança atrasada, para afirmar-se, para recuperar a linguagem; ele apoderou-se da linguagem porque o negaram. Escreve para fazer-se reconhecer pelo doutor Flaubert. O reconhecimento do pai passa pelo reconhecimento da família, pelo público – terceiro diminuído – o elemento a convencer é o pai.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Flaubert estava condenado por essa negação a ver escapar-lhe a linguagem? Penso que a linguagem tinha escapado de Flaubert aos três anos, com isso quero dizer que era um filho não desejado, sobreprotegido, passivo. Não tinha um tipo de comunicação original, a linguagem era algo mágico, o outro em si mesmo e não o reconhecimento. Flaubert não começou a ler precocemente, havia uma espécie de ruptura de comunicação que fazia dele uma criança atrasada. Escreve para recuperar a linguagem, a negação tinha vindo de fora, a negação da negação é uma afirmação; escreve porque a linguagem é para ele um reconhecimento mágico.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Estou de acordo com as análises dos psicanalistas, sobre o fato de que há um conjunto de elementos estruturais dos quais não dá conta a filosofia; mas Madame Bovary não é uma série de compensações, mas também um objeto positivo, uma certa relação de comunicação com cada um de nós.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A imagem é uma ausência, mas isso não significa que o único vínculo entre os homens seja a ausência-presença, existem esquemas intermediários. No que concerne à estrutura inconsciente da linguagem, devemos ver que a presença de certas estruturas de linguagem dão conta do inconsciente. Para mim, Lacan tem clarificado o inconsciente enquanto que contra-finalidade da palavra: conjuntos verbais se estruturam como conjunto prático-inerte através do acto da fala. Esses conjuntos expressam ou constituem – e na mesma medida em que estou de acordo com Lacan -, há que conceber a intencionalidade como fundamental. Não há processo mental que não seja intencional; não há, portanto, nenhum que não seja tragado, desviado, traído pela linguagem; mas reciprocamente, nós somos cúmplices dessas traições que constituem a nossa profundidade.</div>
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<br /></div>
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Estou longe de impugnar a existência de um corpo sexual, nem a da sexualidade como necessidade fundamental que implica no seu desenvolvimento uma certa vinculação com o outro. Constato apenas que essa necessidade depende da totalidade individual: o estudo de factos de subalimentação crónica mostra que a ausência de proteínas na alimentação leva ao desaparecimento da sexualidade como necessidade. Por outro lado, as condições de trabalho – a brusca migração de camponeses para a cidade e as novas atividades, que entram em contradição com o seu antigo ritmo de vida -, podem trazer a impotência desde os vinte e cinco aos vinte e oitos anos. A necessidade sexual não pode superar-se até o outro sob forma de desejo, se não acontecem certas condições históricas e sociais. Noutros termos: a verdadeira função da análise é a de uma mediação.</div>
<br />
<br />
<span style="font-size: x-small;">Entrevista de Jean-Paul Sartre à "Cahiers de Philosophie", Paris: Institut d'Art Contemporain, nº 2, fevereiro de 1966. Trad. Walter Matias Lima. Edição deste blog.</span>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-48474543267739913182016-01-20T23:15:00.003+00:002016-01-20T23:15:21.305+00:00Geoffrey Miller (2002)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSKUPDGuEXnA-wiIZfdzaobe-Gy_NPcLcKVaajIT0wjpBxC47TSScsKGJC4gRg6GQe3hjl0mlrfxihIsUnAlG3-bq9evtmSxpdfaQntdXVDwO78wJgOV0Fgv1R3VVCM_rvxUYnfHP9eKzU/s1600/maxresdefault.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="225" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSKUPDGuEXnA-wiIZfdzaobe-Gy_NPcLcKVaajIT0wjpBxC47TSScsKGJC4gRg6GQe3hjl0mlrfxihIsUnAlG3-bq9evtmSxpdfaQntdXVDwO78wJgOV0Fgv1R3VVCM_rvxUYnfHP9eKzU/s400/maxresdefault.jpg" width="400" /></a></div>
<b>O que é a psicologia evolutiva?</b><br />
<br />
Ela tenta entender a natureza humana perguntando como nossos ancestrais sobreviveram e se reproduziram. Quanto melhor nós entendermos nossa evolução, melhor nós entenderemos nossos cérebros, nossas mentes e o comportamento moderno. A psicologia evolutiva procura compreender, por exemplo, por que buscamos status, achamos alguém sexualmente atraente, fazemos amigos, fofocamos e outras respostas para perguntas que tradicionalmente foram negligenciadas pela psicologia. O que estamos compreendendo agora é que boa parte do nosso comportamento é produzido por circuitos do cérebro que evoluíram, originalmente, para que os nossos ancestrais se tornassem sexualmente atrativos.<br />
<br />
<b>Ou seja, tudo tem uma base sexual?</b><br />
<br />
Os comportamentos humanos evoluíram, sim, devido ao sexo. Mas isso não significa que hoje eles tenham uma conotação sexual. Os pássaros não cantam apenas para o acasalamento, mesmo que essa habilidade tenha tido originalmente essa função. Não deve ser à toa que nos interessamos por música, dança e humor depois da puberdade, no momento exato em que começamos a estar predispostos a atrair parceiros sexuais.<br />
<br />
<b>Em seu livro <a href="https://www.nytimes.com/books/first/m/miller-mating.html" target="_blank">A Mente Seletiva</a>, o senhor também trata das diferenças entre homens e mulheres quanto ao comportamento sexual.</b><br />
<br />
Enfoco as semelhanças entre homens e mulheres, enquanto outros psicólogos evolucionistas normalmente prestam atenção nas diferenças. As diferenças são importantes, mas podem ser exageradas. Homens podem potencialmente ter muitos filhos com muitas mulheres. Mulheres podem somente ter, no máximo, cerca de uma dezena de filhos. Isso faria, portanto, que elas sejam mais interessadas na qualidade dos seus parceiros que na quantidade. Mas apesar de os homens, em geral, serem menos exigentes na escolha de suas parceiras, isso muda quando ele tem que escolher alguém com quem viver por muito tempo. Tornam-se quase tão exigentes quanto as mulheres. Isso não é comum na natureza, onde apenas a fêmea costuma ser exigente e o macho acasala com todas as fêmeas que pode conseguir.<br />
<br />
<b>O que torna uma pessoa interessante ou sexualmente atrativa?</b><br />
<br />
Quando se trata de apaixonar-se, há muitas evidências de que nós nos importamos muito com a inteligência, a amabilidade, a criatividade e o senso de humor. Enquanto os animais focam basicamente a aparência física e um ritual de cortejo mais simples, estamos interessados também nos pensamentos e sentimentos dos nossos parceiros. É por isso que a seleção sexual gerou os pensamentos e sentimentos humanos. Preocupa-nos muito, por exemplo, se alguém é interessante para conversar. A maioria do cortejo humano é verbal, e eu calculo que os amantes trocam, em média, cerca de 1 milhão de palavras antes de manter relações sexuais que acabem em gravidez. Isso deu à seleção sexual enorme poder para formar a linguagem humana e qualquer outro meio para expressar emoções.<br />
<br />
<b>Além da linguagem, a “seleção sexual” também teria importante papel no desenvolvimento das artes plásticas, da música e da literatura?</b><br />
<br />
Foi por isso que escrevi A Mente Seletiva. Acho que é importante reconhecer que todas essas manifestações do comportamento humano são relacionadas com exibir-se, como formas de conquistar status social e de atrair parceiros. Daí meu argumento de que tudo isso evoluiu, em parte, por conta da seleção sexual. Isso parece razoável porque a maioria das características mais bonitas e impressionantes dos seres vivos — as flores, a cauda do pavão, o som dos rouxinóis — é também fruto da seleção sexual. A teoria da seleção sexual diz que somos atraídos pelos trabalhos artísticos mais difíceis e custosos de fazer, em termos de tempo, energia e capacidade. Acredito que isso define boa parte das nossas preferências estéticas. Nosso senso de belo na arte evoluiu para que pudéssemos escolher os artistas mais talentosos como parceiros sexuais. Há exemplos disso acontecendo em outras espécies. Há pássaros na Austrália que constroem ninhos com pedras e conchas. As fêmeas passam, fazem uma inspeção de cada ninho e acasalam com o macho que construiu o ninho mais bonito. Assim, os genes para construir ninhos bonitos espalharam-se através dessa espécie de pássaros. Meu livro tenta entender como algumas das aptidões que mais valorizamos, como a arte, surgiram de maneira similar.<br />
<br />
<b>O que, no comportamento humano, poderia ser determinado pela seleção sexual?</b><br />
<br />
A seleção sexual determinou nossa necessidade de status, prestígio e respeito social. Status não é tão útil para a sobrevivência, mas é muito importante para a reprodução. Quando competimos no local de trabalho, nós estamos buscando status do mesmo jeito que nossos ancestrais tentaram alcançar status sendo bons caçadores ou contadores de histórias. Ou seja: estamos sempre atuando para impressionar e atrair parceiros sexuais. Nossa cultura não está separada da nossa evolução biológica.<br />
<br />
<b>O senhor acredita que sua teoria poderia ajudar outras ciências humanas. Para a economia, por exemplo, qual seria a contribuição dela?</b><br />
<br />
Muitos aspectos importantes da economia não são explicados muito bem pelos economistas. Eles não conseguiram explicar, por exemplo, por que compramos artigos de luxo ou por que trabalhamos para ganhar mais do que precisamos para sobreviver. Todos esses fenômenos são resultado da seleção sexual. Em economias modernas, nós não adquirimos status caçando animais ou alegando ter poderes espirituais, mas por meio da ascensão profissional. Isso explica, também, por que os homens são mais ambiciosos financeiramente que as mulheres — afinal, eles são propensos a ter mais parceiras. Nós não somos conscientes de tudo isso, claro, mas a maioria de nós se comporta exatamente de acordo com a teoria de Darwin.<br />
<br />
<b>Se sua teoria baseia-se no instinto de reprodução, como o senhor explicaria a homossexualidade?</b><br />
<br />
Eu não tenho uma explicação para a homossexualidade. Ela ainda é um mistério do ponto de vista evolutivo e, até onde eu sei, ninguém tem uma explicação satisfatória.<br />
<br />
<br />
In revista Super Interessante (<a href="http://ateus.net/artigos/entrevistas/tudo-por-sexo/" target="_blank">fonte</a>)JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-50995794444984550882015-11-30T14:13:00.001+00:002015-11-30T14:13:24.242+00:00Alexandre O’Neill (1982)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQrMEWUowYf4fE68qGhdJkdT4attKM7GVsojZ-vtcRbLvSoBpjETSGZQMJsja2D4cX3RwTXycw6GTaVkLuZ3KIThRsGrY7fUNbYaSEtuCP75Ao1XisTgphRDSPe3Cbt-JbJBTEb-DxY5qM/s1600/Alex.O%25C2%25B4Neill%252858%2529.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="260" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQrMEWUowYf4fE68qGhdJkdT4attKM7GVsojZ-vtcRbLvSoBpjETSGZQMJsja2D4cX3RwTXycw6GTaVkLuZ3KIThRsGrY7fUNbYaSEtuCP75Ao1XisTgphRDSPe3Cbt-JbJBTEb-DxY5qM/s400/Alex.O%25C2%25B4Neill%252858%2529.jpg" width="400" /></a></div>
<i>«Portugal / meu remorso» – é ele a falar do País. «Eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá» – é também ele. Alexandre O’Neill, 57 anos, diante do seu fantasma, o tempo. Trinta anos de versos estão reunidos em volume e o «JL» quis ouvir este lisboeta com nome de aristocrata irlandês, recuperado de uma «panne» onde todas estas coisas mais doem, que é no coração.</i><br />
<i><br /></i>
<i>«Sempre ‘sofri’ Portugal», diz Alexandre O’Neill ao «JL» nesta breve – porém laboriosa: já lá vamos – entrevista com o pretexto na publicação das suas Poesias Completas. O sofrimento deve entender-se, acrescenta o autor de Feira Cabisbaixa, «tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança», fórmula onde se descobriria, arrisca o poeta ecoando velhos versos parnasianos, um intenso, verdadeiro amor.</i><br />
<i><br /></i>
<i>Foi Vasco Graça Moura que o convenceu a reunir a obra poética. Trinta anos de escrita, do Tempo de Fantasmas a As horas já de número vestidas, com exclusão apenas daquilo que O’Neill arruma formalmente sob a designação de ‘crónicas’. Mas dá-se o caso de as Poesias Completas incluírem precisamente alguns textos elaborados de raiz para jornais e que ao entrevistador pareciam resolver-se como prosa. Também sobre isso fala Alexandre O’Neill. Que entretanto, anfitrião simpático, irá buscar ao frigorífico uma garrafa de água mineral sem gás – ele não bebe bebidas alcoólicas – e pedirá a Laurinda, na hora de esta chegar a casa, «ora arranja lá um chá para nós três».</i><br />
<i><br /></i>
<i>A casa é na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, a curta distância desse Jardim do Príncipe Real que entrou por direito próprio na poesia de O’Neill. Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso de livros: a poesia em força, mas também artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever «HCESAR». Cinzeiros. Luz sem excesso. Entro às 10 da noite e saio quatro horas depois. A última hora, porém, gastamo-la a ouvir Laurinda contar como foi um ‘show’ de José Afonso em Oeiras e a comentar a ‘gaffe’ de dois jornais brasileiros que aqui há semanas deram Octávio Paz por morto.</i><br />
<i><br /></i>
<i>A entrevista fez-se com duas máquinas de escrever: o repórter do «JL» batia a pergunta, tirava a folha, estendia-a ao entrevistado, este batia a resposta, perguntava «está bem?», o repórter respondia «está, claro», e assim por diante.</i><br />
<i><br /></i>
<i>Para a ficha do poeta: 57 anos de idade, lisboeta, redivorciado, dois filhos, um matulão, Alexandre, outro pequeno, Afonso; trabalha na Lápis – Estudos Promocionais, Lda., à Travessa da Condessa do Rio; andou pela TV como ‘pivot’ de vários programas e jurado da infausta Prata da Casa, que deu mosquitos por cordas; é tão bom conversador como sovina nas respostas dactilografadas, o que se perceberá lendo a continuação; sempre ‘sofreu’ Portugal, e sempre se gastou à velocidade de um fósforo, e sempre foi vítima de nervosos miudinhos; tudo junto, (en)fartou-se e poisou o canastro na UTIC de Santa Maria, a reparar avarias cardíacas; recuperado, ri com os dentes todos.</i><br />
<i><br /></i>
<i>Começámos assim:</i><br />
<br />
<b>«JL» – reunir trinta anos de poesia tem algum significado especial para si? Digamos, sente-se etiquetado, arrumado, com um bilhetinho por cima a dizer «trinta anos»?</b><br />
<br />
Alexandre O’Neill – De modo nenhum! Trinta anos é apenas para passar para outra coisa. Para dizer a verdade, estava farto de tudo o que tinha escrito até à publicação destas Poesias Completas. Você sabe o que é conviver demasiado com o que se vai fazendo, não sabe?<br />
<br />
<b>P – Calculo o que seja. Agora falando de biografia: você é de Lisboa, é um O’Neill Vahia de Bulhões (cheira-me a Santo António, desculpará) e no dizer do Cesariny em 1945, «no Café ‘A Cubana’, da Avenida da República», travou conhecimento com ele ou ele consigo. Essas aventuras surrealistas ainda têm alguma coisa que valha a pena contar? Dá-me a impressão de que vários surrealistas portugueses quiseram rasurar, a partir de certa altura, o nome «Alexandre O’Neill». Responde a esta longa pergunta?</b><br />
<br />
R – Houve um especialista em hagiografia e, particularmente em Santo António, que me disse, para grande desgosto meu, que essa de o Santo se chamar Fernando de Bulhões era uma grande lenda. Claro que não me revelou o verdadeiro nome, de modo que eu continuo a aguentar a lenda e a dizer que sou… parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático!) milagreiro… Quanto às aventuras surrealistas está tudo contado, precisamente pelo Cesariny, que deve ter um baú quase tão grande como o do Pessoa. A rasura deveu-se à circunstância de eu ter abandonado a actividade grupal do surrealismo para me dedicar à política, calcule você! À política, mas naquele sentido estrito da militância nos movimentos juvenis por onde já o Cesariny tinha andado. Depois, ao publicar o primeiro livro, introduzi-lhe uma nota proeminal que demonstrava o fervor ridículo de todos os neoconvertidos e que dava pancada nos surrealistas ficantes chamando-lhes aventureiros, o que era perfeitamente desnecessário…<br />
<br />
<b>P – Exacto, e os que você apelida de «ficantes» mandaram cá para fora um papel basto feroz intitulado Do Capítulo da Probidade. Parecia tudo, pois, uma família com as partilhas feitas. Mas em 1961 na Antologia surrealista do cadáver esquisito, para espanto dos observadores, o Cesariny não esteve com mais aquelas e antologiou-o mesmo. Dá para entender?</b><br />
<br />
R – Dá, dá! O Cesariny não me cita uma única vez no Surreal-Abjeccionismo, que é de 1963, mas já me inclui na Antologia, que você refere porque eu ajudei muito (e com muita honra!) a fazer cadáver.<br />
<br />
<b>P – Passemos a outra família, a sua. Nos Poemas com endereço o O’Neill escreve: «Estou no murmúrio de desgosto da minha família / da minha família imóvel diante de mim / (…) / da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos / pronta a saltar-me em cima a reduzir-me / a mais um da família.» O jovem poeta foi mal aceite? Ou foi aceite, mas em transe pejorativo?</b><br />
<br />
R – A minha mãe (que já lá está, coitada!), quando apanhava um poema meu – melhor seria dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa (casa onde estive só até aos 16 anos). No fim da vida, já sentia um certo prazer em ser a mãe do poeta O’Neill, mas eu fingia que não a percebia, quando a questão era abordada…<br />
<br />
<b>P – Profissionalmente você está – para mim, que o conheço há uma dúzia de anos, sempre esteve – metido nas publicidades, sendo considerado inclusive um óptimo «copy-writer». Passe por cima do adjectivo «óptimo» e diga-me rapidamente o que é isso do «copy-writer», pode ser?</b><br />
<br />
R – Pode. Ser «copy-writer» é uma actividade engraçada pelo lado da invenção de «slogans», por exemplo. Só é chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal. O jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc., vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho. Eu descobri a publicidade através do cinema publicitário. Propus uma vez a alguém (por brincadeira, claro) que oferecesse um «slogan» ao Metropolitano de Lisboa. O «slogan» era: «Vá de metro, Satanás!» Esta brincadeira ia-me custando o emprego. Mas também fiz um, a sério, que foi muito conhecido e ainda hoje é usado (que pena não o ter registado!): «Há mar e mar / há ir e voltar.» Os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração: «Há bar e bar / Há ir e voltar…»<br />
<br />
<b>P – De vez em quando o O’Neill aparece a colaborar em jornais. Para mim é uma complicação, porque eu tendo, numa primeira leitura, a ler «crónicas» onde não havia nada disso, mas poemas. Por outras palavras, dessas pretensas crónicas há algumas lançadas nas próprias Poesias Completas, como poemas em prosa. Ajuda-me a descalçar este escarpim?</b><br />
<br />
R – Dê cá o pé! O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para os jornais que, depois, reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que não ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que lhe podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar ou apressar, e tomar por poema o que não é…<br />
<br />
<b>P – Eu diria, socorrendo-me aliás de leitores mais atentos do que eu, que você tem um tema dominante, Portugal (a Feira cabisbaixa aparece em italiano, na versão de Joyce Lussu, como Portogallo, mio rimorso, e muito bem), e um fantasma omnipresente, o tempo (cá vai uma de O’Neill entre aspas «Quandonde foi? / quandonde será? / / eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá»). Concorda?</b><br />
<br />
R – É verdade. Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.<br />
<br />
<b>P – Quando se começa com o jogo do acerta é fatal: O’Neill herdeiro de Nicolau Tolentino e do abade de Jazente (quando não de Junqueiro, mas essa já eu não levo a sério). Em 1982, repetido o dito até à exaustão, que pensa você? Um tolentinista, um jazentista?</b><br />
<br />
R – Nem herdeiro de um, nem de outro. A minha excelente prefaciadora diz que tanto o Tolentino como eu temos em comum fazermos uma poesia do feio. Mas se tudo é feio à nossa volta, por que havia precisamente de ser o Tolentino a inculcar-me o feio? Quanto ao Jazente, há uma coisa que pouca gente sabe: eu conheço perfeitamente Padornelo, o Marão (o do lado de cá) e aquela paisagem é-me bem familiar. Familiar no sentido exacto: a minha família materna é de Amarante, o concelho de que Padornelo é freguesia (ou era).<br />
<br />
<b>P – Eu por acaso, ao ler agora as Poesias Completas, fui outrossim sensível à insistência com que você refere os espanhóis, do Século de Ouro (Lope, Góngora) ou contemporâneos (António Machado). E também vi claramente visto como o O’Neill se entusiasma – exagero meu? – com brasileiros com o Manuel Bandeira ou o João Cabral de Mello Neto. Resultado: a sua família poética é um bocado mais complexa do que se tem escrito. Estou a sair dos carris?</b><br />
<br />
R – De modo algum. Lope e Góngora sempre gostaram um do outro através de mim… Machado é um poeta que releio constantemente, tanto na poesia como na prosa. É um universo. E gosto dele em boa parte pelo que tem de «velho» (isto demoraria muito tempo a explicar, mas um dia sempre explicarei). Bandeira só é grande poeta menor, como disse a minha amiga Luciana Stegagno Picchio, para quem estiver distraído. Mello Neto é um velho amigo e um altíssimo poeta (sem saída aparente, diga-se). Não se esqueça que eu fui o curador da edição da «Quaderna» em Portugal, que se não foi a 1ª foi a 2ª do livro.<br />
<br />
<b>P – Morreu agora um dos seus «amigos pensados», o Belarmino Fragoso. Boxeou com ele? Hm… Conheceu-o bem, suponho. Como era?</b><br />
<br />
R – Não conheci. Foi o Fernando Lopes que me pediu um poema para o programa de lançamento do filme «Belarmino». Sei que o Belarmino leu o poema e achou que eu era maluco…<br />
<br />
<b>P – E eu à espera de um perfil com luvas! Essa, O’Neill, é um «uppercut» na barbela! Bom, não o maçando mais, sempre queria saber como reagiu você quando o levaram, faz anos (poucos, creio), à UTIC do Hospital de Santa Maria com uma «panne» cardíaca. «É trivial a morte»? (in Abandono vigiado)</b><br />
<br />
R – Quando se está com «panne» cardíaca o universo mingua e um sujeito «desliga». Passa para a categoria de «bom doente» para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta a casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…<br />
<br />
<br />
<span style="font-size: x-small;">Entrevista de Fernando Assis Pacheco para o Jornal de Letras, nº 36, 06-07-1982 (<a href="http://ofuncionariocansado.blogspot.pt/2009/09/alexandre-oneill-entrevista-ao-jornal.html" target="_blank">fonte</a>)</span>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-19989703576083605762015-11-06T17:40:00.001+00:002015-11-06T17:40:07.220+00:00David Landes (2000)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEht1pLAFAB2vROfK-IF5EzOgvcTX6DZyXtpdSJSRlsyEvj2gkV2lCF7GlMbm2mLg-qPwFEgSkp0wchX6q6arOQmkRbS8i2QPsffV0VvMJwBlFJIbctUn1ZSK7AdMMr4gx6sT8oTU2Gqn1OF/s1600/Landes_David_605.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEht1pLAFAB2vROfK-IF5EzOgvcTX6DZyXtpdSJSRlsyEvj2gkV2lCF7GlMbm2mLg-qPwFEgSkp0wchX6q6arOQmkRbS8i2QPsffV0VvMJwBlFJIbctUn1ZSK7AdMMr4gx6sT8oTU2Gqn1OF/s400/Landes_David_605.jpg" width="400" /></a></div>
<i>Para o historiador americano David Landes, a humanidade se divide em duas classes: a dos que vivem para trabalhar e a dos que apenas trabalham para sobreviver. "Quanto mais pessoas do primeiro tipo houver, mais chances uma nação terá de sair ganhando no jogo da globalização", diz ele. Landes tem 75 anos. Em décadas de trabalho como professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele se dedicou a desenvolver a idéia lançada pelo pensador alemão Max Weber de que a cultura e os valores de um povo são tão ou mais importantes para o seu crescimento econômico do que os fatores materiais. Suas teses ganharam forma de livro em 1998 e deram notoriedade ao autor. Escrito com verve e lidando com uma vasta quantidade de informações, A Riqueza e a Pobreza das Nações alcançou a lista de mais vendidos em diversos países, inclusive o Brasil, onde foi lançado pela Editora Campus. Na semana passada Landes visitou São Paulo para uma série de palestras, a convite da Fundação Armando Álvares Penteado e do Instituto Fernand Braudel, e deu a seguinte entrevista a VEJA.</i><br />
<br />
<b>Veja – Quais são as causas da riqueza e da pobreza das nações?</b><br />
<br />
Landes – Não há dúvida de que fatores "clássicos", como o acesso a recursos naturais ou mão-de-obra, são importantes. Também estou certo de que a geografia e o clima podem ser determinantes, embora muita gente não concorde com isso. Mas eu gostaria de insistir em uma variável pouco lembrada: a cultura. Ela é preponderante no sucesso material de algumas nações e no insucesso de outras. Falo de cultura em sentido amplo. Não me refiro a obras de arte, mas aos valores e atitudes vigentes numa sociedade. Foi por prezar a liberdade individual, a curiosidade e a criatividade, e por assumir uma atitude positiva com relação ao trabalho, que a Europa Ocidental tomou a dianteira na corrida pelo desenvolvimento, 500 anos atrás. Fora da Europa, os países que assimilaram esses valores, como os da América anglo-saxônica, ou dispunham de tradições semelhantes em sua própria cultura, caso dos asiáticos, entraram para o clube dos vitoriosos.<br />
<br />
<b>Veja – Assim como o pensador alemão Max Weber, o senhor diria que o espírito protestante está diretamente ligado à ascensão do capitalismo? </b><br />
<br />
Landes – Certamente. As outras religiões monoteístas, incluindo o judaísmo, ao qual pertenço, fazem da pobreza uma virtude. Quase toda a história da cristandade inclui uma louvação da pobreza: os pobres vão para o céu, enquanto a riqueza é uma forma de corrupção. Nos países islâmicos, a pobreza é considerada um antídoto para os modos, o luxo, a auto-indulgência do Ocidente. O protestantismo foi importante por causa de sua atitude positiva com relação ao trabalho e ao enriquecimento. Também foi importante porque desde o começo os protestantes discordaram e discutiram entre si. O protestantismo era na origem pluralista, enquanto o catolicismo sempre foi centralizador.<br />
<br />
<b>Veja – E no que esse aspecto centralizador atrapalhou o desenvolvimento? </b><br />
<br />
Landes – O catolicismo não apenas tinha uma atitude ambivalente com relação aos empreendedores como também segregava os que pensavam diferente. Na sociedade colonial, comandada por espanhóis e portugueses, a imigração de europeus do norte era evitada a todo o custo. Imperava o fechamento. Além disso, o homem que vencia nos negócios era incentivado a retirar-se para uma vida aristocrática e não esperava que seus filhos repetissem seu itinerário de trabalho. Empreendimentos são realizados por pessoas que vivem para trabalhar, e não por aquelas que trabalham para viver. É preciso ter prazer no trabalho para tornar-se um empresário bem-sucedido.<br />
<br />
<b>Veja – O Brasil é mesmo "o país do futuro"? </b><br />
<br />
Landes – Acho que o Brasil vai conseguir diminuir suas taxas de pobreza. Quanto a tornar-se um dos países mais desenvolvidos, isso é outra história. Isoladamente, a Região Sul do país teria boas chances. <br />
<br />
<b>Veja – O senhor está sugerindo que o país se divida em dois?</b><br />
<br />
Landes – Estou dizendo que se o Sul se separasse do Norte teria boas chances de alcançar os países mais avançados. Sei que as pessoas logo vão pensar em coisas do tipo: mas como assim, abrir mão dos infindáveis recursos da Amazônia? Pois eu lhe digo que, se vivesse em São Paulo, não me preocuparia muito com o destino do Amazonas. Minerais? Madeira? Tudo isso pode ser comprado. Não é preciso ser dono desses recursos. É mais fácil comprar e vender do que ser proprietário. Em nossa época, não existe nenhuma virtude intrínseca, política ou econômica, em manter um grande território e ser uma grande unidade. <br />
<br />
<b>Veja – Os Estados Unidos deveriam, então, abrir mão do Estado associado de Porto Rico, por exemplo? </b><br />
<br />
Landes – Não tenho a menor dúvida que sim. Se a população de Porto Rico votasse pela independência com relação aos Estados Unidos, não haveria nenhum bom motivo para que nós, americanos, permanecêssemos no país. Acho também que os russos estão loucos em fazer o que fizeram na Chechênia. O imperialismo e o expansionismo foram constantes na história do século XIX. Mas, na passagem do século XX para o XXI, numa era de comércio global livre, não há nada que nos obrigue a pensar que maior é melhor. Europeus e japoneses aprenderam essa lição e se deram muito bem.<br />
<br />
<b>Veja – Ao longo da década de 90, falou-se muito em "consenso de Washington" ou "consenso neoliberal". O senhor acha que existe realmente consenso no campo da economia? </b><br />
<br />
Landes – Creio que o único consenso existente é no que diz respeito à utilidade do livre comércio. É notável observar nos Estados Unidos, por exemplo, a concordância cada vez maior em torno da idéia de que o comércio com a China é desejável. Mesmo os republicanos, mesmo os visceralmente anticomunistas, têm defendido essa idéia. O que mostra que empreendimentos econômicos não são uma questão de ideologia. Tudo que os empreendedores querem é fazer dinheiro. Quando vêem um país onde é lucrativo investir, eles investirão, não importa quem esteja comandando o show.<br />
<br />
<b>Veja – Os Estados Unidos, no entanto, mantêm barreiras tarifárias contra vários produtos brasileiros. </b><br />
<br />
Landes – Pois deveriam derrubá-las. O único argumento protecionista que faz algum sentido é o da indústria incipiente. Para desenvolver internamente uma indústria nova, você precisa protegê-la de alguma forma, para que não seja esmagada pela concorrência. Foi o que os brasileiros fizeram nos anos 80 com relação à informática. Mesmo assim o argumento é perigoso, porque o protecionismo é um péssimo hábito, que tende a criar raízes. Muito tempo depois de uma indústria ter crescido, as pessoas querem manter as tarifas de proteção.<br />
<br />
<b>Veja – Recentemente, o Fundo Monetário Internacional passou a mostrar preocupação com causas sociais. Qual será o impacto disso? </b><br />
<br />
Landes – Talvez me chamem de cínico, mas creio que a razão por trás de muitas ações e palavras desses organismos internacionais é a simples gratificação de se sentir virtuosos doando fundos e recursos aos países pobres. Ações desse tipo podem aliviar a miséria e melhorar um pouco a expectativa de vida em alguns lugares. Mas existe uma diferença entre diminuição da miséria e desenvolvimento. A lacuna de desenvolvimento entre ricos e pobres continua a crescer. Não sei quantas gerações mais terão de passar sobre a Terra para que isso mude.<br />
<br />
<b>Veja – Em seu livro, o senhor fez altas apostas no Sudeste Asiático. Mas, nos últimos anos, essa região atravessou uma séria crise e os sinais de recuperação são incertos. O senhor mantém a sua aposta? </b><br />
<br />
Landes – Sim, mantenho. A Ásia vai continuar sendo um dos maiores centros de crescimento do mundo, pois as bases culturais do crescimento estão presentes lá. Os asiáticos têm um profundo senso de responsabilidade, são trabalhadores dedicados. Nesse período, foram vítimas da conjuntura global.<br />
<br />
<b>Veja – Fala-se muito que, com a globalização, os Estados nacionais perderam poder. Quando o senhor diz que países asiáticos foram vítimas da conjuntura global, está corroborando essa idéia? </b><br />
<br />
Landes – Não. Eu não acredito que os Estados nacionais perderam toda a importância com a globalização, nem que as comunidades locais estejam indefesas diante do que vem de fora. Veja o caso da Malásia. Eles adotaram uma atitude bastante inflexível diante de organismos internacionais como o FMI, recusando-se a adotar as regras dos gerentes do dinheiro internacional. Nem por isso afundaram. Hoje, há muitas pessoas prontas a emprestar novamente para a Malásia. <br />
<br />
<b>Veja – E a China? </b><br />
<br />
Landes – A China é uma região de risco. Se você quer investir seu dinheiro com segurança, deve fazê-lo em um país governado por leis, não por homens. A China é governada por homens, que ficam muito nervosos vendo toda a movimentação ocasionada pelo crescimento do comércio livre em algumas regiões do país. <br />
<br />
<b>Veja – Em muitos países da Ásia, o desenvolvimento econômico se deu graças à utilização de métodos autoritários pelos governantes. O que acha disso? </b><br />
<br />
Landes – Podemos voltar ao caso da Malásia. Lá, boa parte da economia é operada por uma classe empreendedora formada sobretudo por expatriados chineses, enquanto o governo, de fato autoritário, é comandado por uma elite local. Há precedentes históricos consideráveis para esse tipo de arranjo. Pense, por exemplo, na Alemanha do III Reich. Naquele tempo, a burguesia deixou de lado qualquer ambição de influir no governo ou de usufruir de um comando mais democrático, em troca da liberdade na condução da economia e oportunidade de criar cartéis, impor barreiras protecionistas e outras medidas desse tipo. Eu creio que esse tipo de arranjo só é sustentável durante algum tempo. Não pode haver capitalismo verdadeiro sem democracia real. E creio que, felizmente, o capitalismo tende a promover as liberdades individuais e instituições democráticas. <br />
<br />
<b>Veja – A esquerda diria o contrário. </b><br />
<br />
Landes – O capitalismo supõe desigualdades de riqueza e estas, por sua vez, podem se traduzir em desigualdades de poder. Até aí, concordamos. Mas, no que diz respeito à promoção de liberdades e oportunidades para todos, acredito firmemente que o capitalismo está muito à frente de todas as outras formas de organização já experimentadas. <br />
<br />
<b>Veja – A corrupção governamental sempre foi mencionada como uma das causas da pobreza em países como o Brasil. O que dizer então do escândalo que acaba de estourar na Alemanha envolvendo uma das figuras mais proeminentes da política européia, o ex-chanceler Helmut Kohl? </b><br />
<br />
Landes – Confesso que o caso de Kohl me surpreendeu. Mas a moral é simples: em todos os lugares e em todas as épocas, sempre houve quem achasse mais fácil tomar dinheiro do que fazer dinheiro. A política favorece aqueles que conseguem parecer bons, mesmo que não sejam. Às vezes, a falta de moral aparece em questões de dinheiro. Noutras vezes, em questões de sexo. Definitivamente, a política não é uma esfera da vida onde deveríamos procurar pela virtude. <br />
<br />
<b>Veja – Fala-se muito em liberdade de comércio, mas quando o assunto é liberdade na circulação de pessoas o discurso é outro. Basta ver os movimentos de direita na Europa contra os imigrantes. Qual é sua opinião? </b><br />
<br />
Landes – Meus avós chegaram aos Estados Unidos como imigrantes. Eu creio que as portas nunca deveriam ser fechadas. É claro que algum controle é necessário. Mas não fechamento. Os imigrantes são uma fonte potencial de energia. Nos Estados Unidos, um dos grupos mais efetivos em assimilar as técnicas e o conhecimento necessários para ter sucesso na nova economia é o dos imigrantes asiáticos. Na América Latina, os imigrantes protestantes teriam feito toda a diferença. Dito isso, gostaria de ressaltar que a atitude de desconfiança com relação aos estrangeiros não se limita aos países ricos. Veja a África Ocidental: há casos de expulsão maciça na região. É um problema da natureza humana. Isso é algo que aprendi em minha profissão: coisas ruins estão espalhadas por todas as épocas e lugares. <br />
<br />
<b>Veja – Como especialista na história da Revolução Industrial, o senhor acha que hoje estamos mesmo diante de uma nova revolução, baseada na informática e nas tecnologias de ponta?</b><br />
<br />
Landes – Sim, acho que podemos utilizar essa palavra. Estamos assistindo a uma mudança profunda. Os países que tiverem a oportunidade de não apenas utilizar mas também de melhorar as novas tecnologias estarão em posição de vantagem na nova economia. Foi essa capacidade que salvou os Estados Unidos depois de anos de estagnação. Os Estados Unidos apostaram na importância do que chamamos de software. O hardware é muito importante. Mas eu creio que a longo prazo é o software que vai dominar. Qualquer um pode aprender como fazer um computador. Ou você pode importar uma fábrica de hardware – correndo o risco de que ela se mude para o vizinho se ele oferecer trabalho mais barato. Mas hoje já temos hardware melhor do que precisamos para muitas tarefas. Por isso, é na área do software que os novos países devem fazer suas apostas atualmente. E isso significa que precisam ter um sistema educacional eficiente e universal. Singapura conta com uma estrutura universitária muito forte. Talvez a China também possa ser citada como exemplo. A América Latina é uma interrogação – mas, se o continente tem de apostar em algo, é nos investimentos culturais e sociais capazes de criar pessoas aptas a ser inventivas na nova economia. Infelizmente, é o contrário do que países como o México, por exemplo, têm feito. Lá as universidades se encontram em péssimas condições. Se você não tiver cérebros, está acabado.<br />
<br />
<br />
<i>Entrevista à Revista Veja, nº 1641, 22/03/2000 (<a href="http://simplesmenteeconomia.blogspot.pt/2012/11/david-landes-em-entrevista-revista-veja.html" target="_blank">link</a>)</i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-70477424144416030282015-10-11T01:01:00.001+01:002015-10-11T01:01:22.663+01:00Colin Renfrew (2008)<iframe width="640" height="480" src="https://www.youtube.com/embed/-MYzj6qyfNU?rel=0" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVHsafuXv_Hz_o2MHLjtkmS0bYlylW27HEO8Z5rLSVmEc2pIcaRcMg8oi2mo2eNpQLzf8aLIPXz49Wh-pwx4fCRnY7QhV8saToN5wfKY_1vs8txOWKAroegkpnGuPG0ezl0c0ZXlI0fXbQ/s1600/Aron5.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="281" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVHsafuXv_Hz_o2MHLjtkmS0bYlylW27HEO8Z5rLSVmEc2pIcaRcMg8oi2mo2eNpQLzf8aLIPXz49Wh-pwx4fCRnY7QhV8saToN5wfKY_1vs8txOWKAroegkpnGuPG0ezl0c0ZXlI0fXbQ/s400/Aron5.jpg" width="400" /></a></div>
En las últimas fechas, y especialmente a partir de la desaparición de Jean-Paul Sartre, mucho se ha escrito, y revisado, sobre Raymond Aron (París, 1905, doctor en filosofía, sociólogo y comentarista político en las páginas de Le Figaro primero y de L 'Express después, autor de una serie de libros entre los que destacan <i>L'hommecontreles tyrans, Introducción a la filosofía de la historia, El gran cisma, El opio de los intelectuales, Dieciocho lecciones sobre la sociedad industrial, La lucha de clases, Democracia y totalitarismo</i>). Esa notóridad creciente no se debe tan sólo - es seguro - a que Aron sea uno de los escasos sobrevivientes de una generación que incluyó al propio Sartre, a Paul Nizan, a Daniel Lagache. No. Hay algo más que la estimula y pronuncia : el hecho de que el tiempo, y lo que es encarnación de ese tiempo: la historia, ha dado la razón a la mayor parte de sus opiniones y pareceres. En efecto, y desde fechas muy lejanas, Aron se pronunció por la independencia de Argelia, postuló la urgencia y la necesidad de una Europa unida, denunció el carácter totalitario y expansionista del sistema soviético, defendió la Alianza Atlántica, se adhirió a Tocqueville (quien definió a la sociedad moderna por la igualdad de condiciones, es decir, por la democracia) y no a Marx (quien profetizó una revolución contra la miseria que la elevación del nivel de vida en Occidente ha evitado). Porqué Aron, que nadó casi siempre a contracorriente, acertó en sus pronósticos? La razón la ofrece él mismo en un pasaje del reciente libro-entrevista titulado <i>Le Spectateur engagé</i>: porque desde muy joven entendió que debía pensar los problemas nacionales e internacionales políticamente y no ideológicamente (o, podría añadirse, mágicamente). Esa actitud le viene, sin duda, de su profesión de fe liberal: es sabido que uno de los rasgos fundamentales de las democracias liberales es que su ideología ha sido, hasta cierto punto, una antiideología.<br />
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La Revista dela Universidad publica ahora la versión completa de la conferencia de prensa que Aron ofreció en la Asociación de la Prensa Extranjera en París , a comienzos de diciembre pasado. Allí abordó los temas que más le preocupan, y si alguno de ellos pudiera parecer alejado de los problemas latinoamericanos más acuciantes se trata, de seguro de una ilusión óptica: lo que Aron dice puede aplicarse con mínimas variantes al examen de nuestras virtudes y nuestras miserias .<br />
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<div style="text-align: right;">
Santiago Real de Azúa</div>
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<b>- Cómo surgió <i>Le spectateur engagé</i>?</b><br />
<br />
- No había idea ni programa ni conocía a los dos entrevistadores, Dominique Wolton y Jean-Louis Missika. Ellos me propusieron realizar tres programas para la televisión y les respondí que hicieran como quisieran, con una sola condición: que no me dijeran de antemano las preguntas que me iban a formular. Las entrevistas duraron casi veintidós horas durante nueve tardes, ellos eligieron los temas más pertinentes, más " telegénicos", y luego montaron los programas.<br />
Cuando leyeron los textos los juzgaron interesantes y propusieron su publicación, a la que en principio me opuse , pues no estaba prevista. Luego el editor, un viejo amigo, me decidió a publicar un texto que fue corregido por un ex alumno del Liceo de Le Havre en 1934, el año en que Sartre se fue a Berlín y me dejó su cátedra. Yo me limité a corregir dos o tres pasajes, pero salvo esos pasajes es un verdadero libro de entrevistas, a diferencia de otros, empezando por mi propio libro <i>La révolution introuvable</i> en el que hay un pseudo-diálogo, compuesto por mi, aunque elaborado en un diálogo con un periodista (Alain Duhamel). En cambio, <i>Le spectateur engagé</i> no es un libro escrito sino hablado. Wolton y Missika trabajaron durante casi un año ; leyeron casi todas mis obras y artículos, se hicieron una idea de lo que había hecho en la vida y prepararon las preguntas, algunas molestas - de manera que el diálogo fue auténtico. No teníamos las mismas opiniones - por ejemplo, en 1968 ellos eran contestatarios y yo no - pero a lo largo de las entrevistas nos hicimos amigos, y aun si no estuvimos de acuerdo en todo, nunca hubo conflicto o querella entre nosotros. Así surgió este libro, al que yo no otorgaba ninguna importancia, pero al que algunos amigos, aun los más serios, le conceden cierto valor.<br />
<br />
<b>- Cómo se sitúa usted en el panorama político francés actual y cómo ve la actitud, sorprendente a primera vista, de la mayoría de los intelectuales?</b><br />
<br />
- Estoy fuera de todos los partidos, e incluso cuando Giscard d'Estaing estaba en el poder mi situación no era muy diferente: no tenía demasiadas relaciones con él. Evidentemente, la prensa soviética decía que yo era el intérprete oficial del gobierno, pero como lo criticaba por lo menos dos veces de cada tres, era "un intérprete libre"... Actualmente atravesamos un periodo interesante: no hay un movimiento popular ni intelectual comparable al de 1936, época en la que hubo un movimiento popular sin parangón posible con el que llevó a Mitterrand al poder. El pueblo francés mira con curiosidad lo que va a hacer el gobierno y espera que lo haga bien, pero no hace nada especial para apoyarlo. Por lo demás, el propio Partido Socialista lamenta que haya tan poca participación. Por otra parte, los intelectuales franceses no dicen nada, ni a favor ni en contra. La inteligencia francesa no está especialmente excitada. Compruebo que no hay entusiasmo ni participación popular, yeso en medio de una gran tranquilidad. Pero - insisto - ninguno de los grandes intelectuales se ha manifestado para decir que estamos en la aurora de tiempos gloriosos.<br />
<br />
- <b>Quienes son, a su juicio, esos "grandes intelectuales"?</b><br />
<br />
- Foucault, Lévi-Strauss, los llamados "nuevos filósofos"... Es difícil responder a esta pregunta después de la muerte de Sartre, porque no hay ninguna figura equivalente a la suya. Cuando la misma pregunta fue formulada a 450 intelectuales hace algún tiempo, ninguno de los votados obtuvo un cuarto de los sufragios, pero en todo caso puede decirse que los escritores más dotados no toman partido con la misma claridad con que lo hicieron en el pasado. Pienso en los años treinta, cuando todos los intelectuales de la NouVelle Revue Française (NRF) estaban comprometidos de un modo u otro. Hoy en día, los intelectuales se quedan quietos, no dicen nada; eso no quiere decir que lo lamente - me limito a comprobar un hecho que me parece interesante. Así, en el momento en que los socialistas llegan al poder se observa una despolitización, un menor interés por la política. Ese silencio resulta comprensible en la medida en que los intelectuales siempre prefieren estar en contra, y si ahora vacilan en adoptar esa actitud es porque la izquierda está en el poder.<br />
También ocurre que no pasa nada que despierte entusiasmo: todo transcurre en calma.<br />
<br />
<b>- En qué medida estima que el proceso político que vive Francia desde mayo pasado es innovador?</b><br />
<br />
- Pienso que Francia ya ha practicado la socialdemocracia. Mi argumentación al respecto es muy simple. Todas lás sociedades llamadas socialdemocracias - Alemania Federal, Dinamarca - tienen aproximadamente las siguientes características: la mayoría de las empresas son privadas y hay un sector público más o menos vasto, pero añadamos de inmediato que la extensión de ese sector no es el criterio de definición de la socialdemocracia, porque en ese caso podría decirse que Gran Bretaña es más socialdemócrata que la RFA. En cambio, una sociedad socialdemócrata actual, en Europa en todo caso, pertence a una economía internacional que se llama Comunidad Europea o bien mercado mundial.<br />
Así, las socialdemocracias no escapan al mercado mundial y su principal característica es que practican a diferentes grados la redistribución de la renta, en particular através de un sistema de seguridad social extraordinariamente desarrollado. Por eso consideré que Giscard d'Estaing, a su modo, practicó la socialdemocracia, ya que el total del producto interno bruto consagrado a la seguridad social al principio de su mandato, en 1974, era de un 36%y al final ese porcentaje se elevaba a un 43%. Quiero decir que si lo esencial de la socialdemocracia es la redistribución de ingresos combinada con una economía de mercado y con una participación en la economía mundial y en la construcción europea, el movimiento socialdemócrata continuó desarrollándose bajo Giscard. El porcentaje consagrado a la seguridad social fue tan considerable que Mitterrand se comprometió a no superarlo - y, no obstante, ya lo superó y lo seguirá superando.<br />
Aquí hay que destacar que la seguridad social francesa es una de las más desarrolladas de Europa - lo que es diferente es su financiación, ya que aquí el impuesto a la renta es más bajo que en los demás países. Pero si se considera que la seguridad social es el criterio rector de la socialdemocracia, Giscard era socialdemócrata y Mitterrand también lo es. En cambio, si ese criterio es la extensión del sector público, la RFA no es una socialdemocracia pues los alemanes consideran que las nacionalizaciones son contrarias a la eficacia económica.<br />
<br />
<b>- La tendencia hacia la socialdemocracia es irreversible?</b><br />
<br />
- Es un problema que me interesa mucho y que me lo he planteado varias veces. Incluso pronuncié una conferencia en la London School of Economics sobre este tema y expliqué que una de las razones por las cuales nuestras sociedades occidentales se dirigen casi necesariamente hacia la socialdemocracia radica en que cuando los conservadores o la derecha están en el poder el movimiento se reduce, o se detiene completamente cuando se trata de la extrema derecha, como ocurre hoy en la Gran Bretaña de Margaret Thatcher. Pero en la mayoría de los casos, se practica un poco de socialdemocracia, aunque en dosis cuidadas y medidas. Después llega la izquierda y va mucho más allá y lo que hace es irreversible. La explicación es un poco simple, pero lo cierto es que hay una tendencia a que se cumpla este ciclo.<br />
<br />
<b>- Cuáles son las transformaciones más difícilmente reversibles?</b><br />
<br />
- Las nacionalizaciones. La dificultad en devolver al sector privado lo que ha sido nacionalizado estriba en que hay que encontrar en el sector privado el capital necesario para volver a comprar. Y como el sector privado ha sido reducido, y como por otra parte esas grandes empresas son el resultado de una larga historia de alianzas y fusiones, es muy difícil volver a hacer lo que se ha hecho. La privatización es posible, pero buena parte de las nacionalizaciones me parece irreversible. En cuanto a los derechos sociales, todavía es más difícil poder dar marcha atrás. Todos los derechos otorgados al ciudadano se convierten en todos los países, y en particular en Francia, en lo que se suele llamar derechos adquiridos; y resulta muy difícil privar a talo cual categoría de los derechos que se le han concedido. En este punto tampoco hay que ser dogmático, ya que el proceso no es totalmente irreversible. Hay que esperar y ver lo que hace el gobierno en lo que concierne ala seguridad social.<br />
<br />
<b>- El Estado-Providencia tiene entonces un largo futuro todavía?</b><br />
<br />
- El movimiento hacia el Estado-Providencia va a continuar en la mayoría de las democracias occidentales hasta el momento en que sea imposible practicarlo, es decir: sólo habrá marcha atrás cuando el sistema no funcione más, y ese momento - digámoslo - no es tan lejano. En todos los países, el aumento del porcentaje del producto nacional redistribuido es tal que a partir de cierto momento habrá dificultades crecientes. No afirmo que el movimiento socialdemocrático vaya a continuar indefinidamente, pero sí digo que es tan difícil detenerlo que las fuerzas capaces de frenarlo sólo estarán en condiciones de hacerlo cuando llegue la instancia en que sea imposible proseguir. Por el momento va a continuar, pero cada vez con mayores problemas por la sencilla razón de que es más difícil redistribuir ahora que cuando había una tasa de crecimiento del 4 o 5 por ciento anual.<br />
Mientras contábamos con esa tasa de crecimiento, el Estado-Providencia podía funcionar, pero ahora, con sólo un 2 o 3 por ciento anual, y mientras el costo de la Seguridad Social aumenta en valor real el 5 o 6 por ciento, es más arduo financiarlo. Día llegará en que esas dificultades serán insuperables.<br />
<br />
<b>- Cómo establecer la línea conceptual que separa a la socialdemocracia del socialismo, dos regímenes que encarnan también dos tradiciones, dos familias políticas?</b><br />
<br />
-Socialdemocracia y socialismo son dos términos equívocos y nadie sabe con certeza cuáles son las características que definen a uno u otro. Los regímenes que llamamos socialdemócratas son, en términos generales, los que aceptan los mecanismos del mercado y están integrados a la economía mundial. Todas las sociedades europeas aceptan las reglas del mercado internacional, están obligadas a exportar para comprar materias primas y deben limitar la planificación en la medida en que las exportaciones dependen del mercado mundial. Todas esas socialdemocracias comportan la redistribución del ingreso y un sector público, pero éste no es un factor decisivo, ya que Suecia es el país que más redistribuye y que menos empresas nacionalizad as tiene.<br />
Así, Mitterrand ha dicho siempre el ex-primer ministro sueco Olaf Palme que su obra es muy buena, pero que cometió un error capital al no nacionalizar las grandes empresas.<br />
Por su parte, los suecos contestan que para redistribuir ha y que obtener beneficios y que para conseguirlos se necesitan grandes empresas que exporten. Las socialdemocracias, me parece, se definen de manera aproximativa por las características que acabo de enumerar; sin olvidar que todas las libertades clásicas - personales, civiles y políticas - son respetadas, lo que la diferencia radicalmente del régimen soviético,<br />
<br />
<b>- Cómo reconocer al menos el pasaje de un régimen socialdemócrata a otro socialista?</b><br />
<br />
- La dificultad para saber a partir de qué momento estamos no en un régimen socialdemócrata sino socialista radica en que, como admite Mitterrand en privado, la belleza del socialismo estriba en que no se le conoce. También dice que no hay que definirlo de manera muy precisa, pues es una aventura, una creación. Y cuando se deja llevar por sus impulsos líricos, Mitterrand también afirma que el socialismo representa "la revancha de Blum sobre Lenin". De ahí esa idea que tiene de que él representa otra cosa que la socialdemocracia: algo más aventurero, más rico , mucho más socialista entre comillas, y que no sería tan sólo la economía de mercado con justa redistribución. De ahí, también, la dificultad de saber cuándo Francia dejará de ser socialdemócrata para pasar a ser socialista. Antes de la experiencia actual, yo sostenía siempre que el test o las características estaban constituidos por las libertades cívicas, políticas y personales, primero, y, segundo, por la integración o no al mercado mundial - porque si uno se integra al mercado mundial está obligado en gran medida a respetar los mecanismos de ese mercado:<br />
<br />
<b>- Concretamente, cuál sería ese criterio en el caso francés?</b><br />
<br />
- Francia ya ha abandonado la socialdemocracia para entrar en un régimen socialista? Mi respuesta es que no, porque hasta ahora Francia quiere permanecer en la Comunidad Económica Europea y en la economía mundial, y por lo tanto, acepta las reglas del mercado mundial y hasta trabaja con Satán, es decir con los multinacionales (ya que para el sentimentalismo de Mitterrand las multinacionales son Satán). Claro que pueden buscarse otros criterios de demarcación y afirmar que a partir del momento en que los bancos han sido nacionalizados el mundo ha cambiado. En realidad, todo dependerá de la manera en que esos bancos sean dirigidos. Si el sector estatal es usado para imponer la planificación, si usa y abusa de los bancos, en ese caso podrá hablarse de ruptura con la economía de mercado. En todo caso, la importancia del sector estatal da al Estado la posibilidad de conducir la economía de manera diferente a las socialdemocracias.<br />
<br />
-<b> Actitud por lo menos reticente...</b><br />
<br />
- La segunda reserva que formularía a mi respuesta concierne a las instituciones : hay en los programas socialistas desde 1972 hasta 1981 el proyecto de crear un gran servicio de estado de la educación (lo que implica un cambio de estatuto de la escuela privada), un servicio nacional de salud (lo que significa cualquier cosa), y también un servicio nacional de la información. Por lo tanto, yo de eso no extraigo ninguna conclusión rápida pero señalo que hay cierto número de transformaciones institucionales que pueden producirse bajo el gobierno socialista. Una última reserva, un último punto que me pare ce interesante desta car y sobre el que no me pronunciar é pues todavía es prematuro: por primera vez tenemos simultáneamente un presidente electo por sufragio universal, lo que le confiere una autoridad considerable, y en la Asamblea General un partido que dispone sólo de la mayoría absoluta, y ni ese pr esidente ni ese partido son combatidos por los sindicatos. Este es el primer gobierno en los últimos veintidós años que cuenta con el favor de los sindicatos, de los sindicatos pro cornun ista s provisoriamente y de los otros sinceramente. Por lo tanto, hay actualmente un partido que dispone de un poder y de una capacidad de acción mucho mayores que los del propio general de Gaulle.<br />
En efecto, una de las particularidades de nuestra constitución - ahora lo observamos - es que permite actuar al gobierno - pero también crear situaciones donde no hay contrapoderes. Cuando gobernaba la derecha o los conservadores, existían contrapoderes: los sindicatos , la hostilidad de los intelectuales, etc...<br />
<br />
<b>- En qué medida la victoria de Francois Mitterrand en mayo pasado, y la del PS en las legislativas de junio, modifican el sistema político francés?</b><br />
<br />
- El partido socialista es un partido predominante que comparte el poder con el Presidente, lo que no ocurría desde comienzos de la V República, lo que permite afirmar que aunque eso supone un cambio de mayoría dentro de la V República, se trata de una República con un rostro diferente. El general de Gaulle gobernó durante cinco años (1962-1967) con un partido predominante - el gaullista -, y que fue un partido de circunstancias asociado a una persona, un accidente histórico que no tenía ni una estructura ni una ideología comparables a las del PS. Por primera vez, entonces, hoy tenemos un partido predominante que tiende a confundirse con la República, lo que a mi juicio constituye un aspecto original que justifica la expresión "nuevo régimen", ya que el cambio de mayoría fue brutal. A menudo escribí que el inconveniente del régimen establecido en la V República es que ofrece la posibilidad de gobernar aun si no se tiene la mayoría, pero da también al presidente la posibilidad de hacer todo o, en cualquier caso, muchas cosas. En Francia está, de cualquier manera, limitado por la propia realidad francesa, por el hecho de que no se puede hacer cierto número de cosas que implicarían salirse de la República liberal. Por último, se trata de una República original, con el mismo presidente, la misma mayoría decisiva, la misma capacidad de pronunciar la última palabra, pero también con un Presidente de la República que está obligado a discutir permanentemente con su partido. Un partido que, por lo demás, es un animal muy particular, con una estructura histórica original, hecha en la controversia permanente, institucionalizada, bajo la forma de conflictos de tendencias.<br />
<br />
<b>- Qué partido no tiene sus líneas, sus grupos, sus sensibilidades?</b><br />
<br />
- En todos los partidos hay conflictos de tendencias, pero nunca están institucionalizados como en el PS, que es el partido francés que mayor predilección tiene por la discusión permanente entre las tendencias. El PS, después del congreso de Epina y de 1972, acunó siempre una batalla interna, y Mitterrand para conservar su posición se vio obligado a cambiar de mayoría varias veces. Que haya una izquierda y un ala derecha en un partido es natural, pero el juego interno tal como se desarrolla en el PS es un rasgo original y propio de un partido terriblemente ideológico o, si se prefiere, el PS es un partido de profesores a los que les gusta hablar.<br />
<br />
<b>- Qué futuro le asigna al buen entendimiento, al menos aparente, entre el Partido Socialista y el Partido Comunista?</b><br />
<br />
- El PS quiere conservar la alianza con el PCF hasta las elecciones municipales de 1983 y eventualmente reducir más aún el porcentaje electora l de este último, quizás a través de una modificación del modo de escrutinio. No sé cuál será el modo de escrutinio que se elija, pero estoy convencido de que será modificado en beneficio de la mayoría. De ahí que el PS quiera conservar la alianza con el Partido comunista, necesaria para llevar a cabo la fase brutal de transformaciones bruscas. Así, tiene interés en contar con la semineutralidad de los sindicatos comunistas, y está decidido a conservar esa neutralidad hasta tanto juzgue que lo positivo supera a lo negativo, es decir, que el aspecto negativo de las posiciones del PCF quedan más que compensadas por las "ventajas del semiapoyo obtenido. Además, el PS tiene la posibilidad de expulsar a los comunistas en el momento en que lo juzgue necesario. Por el momento logra, por ejemplo, que el diario comunista L'Humanité no ataque la política exterior, y que sea muy moderado en la crítica de las posiciones atlantistas de Mitterrand.<br />
<br />
<b>- Qué valor le atribuye a la nueva política francesa hacia la URSS?</b><br />
<br />
- La posición de Mitterrand ante la Unión Soviética es la misma que la de Giscard, con la diferencia de que este último reservaba sus opiniones a los consejos de ministros y no decía nada en público, apoyándose en el argumento de que Francia no pertenece al comando integrado de.la OTAN Y que, por lo tanto, el problema soviético no le concernía: Miterrand, por su'parte, le hizo un favor a Helmut Schmidt diciendo claramente que es partidario de los euromisiles, con lo que respaldó al canciller federal alemán e impidió que la Internacional Socialista hiciera presión sobre Schmidt. Por lo demás, la Internacional Socialista se convirtió en una fuerza en la escena diplomática, cosa que Leonid Brezhnev comprendió perfectamente. El hecho de que Mitterrand haya impedido que la Internacional tomara posición contra los Pershing fue un elemento positivo en el juego diplomático.<br />
<br />
<b>- Dónde está la supremacía en ese juego?</b><br />
<br />
- Nunca se conoce el valor real de un ejército antes de la guerra, aunque existen elementos de comparación. Anatole France recordaba una broma que sostenía que se sabe de antemano cuál es la primera marina del mundo y que por eso no hay guerras navales; en cambio, todos los ejércitos son los mejores del mundo y por eso hay guerras en tierra.<br />
<br />
<b>- Usted hablaba de elementos de comparación...</b><br />
<br />
- Si consideramos a los tanques y cañones , el arsenal soviético es muy superior al de EEUU, y lo mismo ocurre con los carros de asalto. En cuanto a las armas clásicas; la superioridad soviética es indiscutible. Las marinas son difícilmente comparables pues una tiene, al parecer, como objetivo la defensa de la libertad de los mares mientras que la función de la otra es impedírselo. Así, la estructura de las respectivas, marinas es muy diferente y no pueden compararse.<br />
Todo lo que sabemos es que, en los últimos quince años, la URSS se dotó de una marina con mayor número de navíos que la de EEUU, lo que en sí mismo no significa nada, pues - insisto - no puede compararse navío contra navío. En cuanto a las armas nucleares estratégicas, se sabe concerteza lo que posee cada superpotencia (con certeza en cuanto a las armas norteamericanas y con cierto margen de inseguridad en cuanto a las soviéticas) ya que la verificación se efectúa a partir de satélites, lo que deja pendiente apenas un mínimo margen de incertidumbre. Tomemos, por ejemplo, el número de misiles soviéticos: lo que se cuenta realmente es la cantidad de rampas de lanzamiento, pero las rampas soviéticas pueden lanzar varios misiles, mientras que las norteamericanas sólo pueden ser utilizadas una vez. Por lo tanto, no sabernos si cada abertura de misil que ven los satélites implíca un misil soviético o varios. Pero aun admitiendo las cifras oficiales, la superioridad soviética es indiscutible.<br />
<br />
<b>- En todos los planos?</b><br />
<br />
- Simplificando un poco podemos decir que en materia nuclear estratégica las fuerzas son aproximadamente iguales; en armamento clásico, la superioridad soviética es indesmentible.<br />
En cuanto a los misiles de mediano alcance, los norteamericanos no tienen ninguno y los soviéticos por lo menos unos 200 ya desplegados - los famosos SS-20. Los misiles de alcance mediano son los que cubren una distancia de 4 o 5 mil kilómetros, es decir que no pueden viajar de un continente a otro, pero sí pueden hacerlo lo suficientemente lejos como para atacar cualquier punto en Europa occidental desde los Urales. Los norteamericanos tendrán los Pershing en 1983, si todo evoluciona de acuerdo a las previsiones, pero éstos son menos potentes que los SS-20. Cuando se sostiene que la URSS es la mayor potencia nuclear actual, la afirmación se basa en las cifras, pero las cifras no son todo: hay que tomar en cuenta la población, la calidad de sus dirigentes, etc... Es posible que la Unión Soviética sea una superpotencia ficticia - cada uno puede tener al respecto su opinión o, mejor dicho , su impresión. Pero en cuanto a las cifras, la URSS es la primer potencia militar del mundo, con todas las incertidumbres que se derivan del hecho de sacar conclusiones a partir de datos tan precarios.<br />
<br />
<b>- A primera vista, y tomando en cuenta su razonamiento, la ola pacifista que sacude a Europa Occidental - pero que en Francia ha sido muy débil - aparece como un fenómeno inexplicable.</b><br />
<br />
- La ola neutralista es especialmente importante en Alemania Federal, y se explica a mijuicio por diversos factores: el horror comprensible y legítimo a la guerra en primer lugar, y, segundo, el deseo de hablar de los jóvenes, ya que esas grandes manifestaciones son un modo de expresión contra un mundo sobre el cual esos jóvenes tienen una influencia limitada. En tercer término, esos movimientos son financiados y están manipulados de un modo u otro a partir del Este, lo que no significa que los que participan en las manifestaciones estén vinculados a ese bloque. La URSS considera que los movimientos neutralistas le son muy útiles, ya que protestan contra los futuros Pershing, pero no contra los SS-20, que están ahí desde hace años. El único sentido de la acción pacifista, y puesto que rechazan totalmente la guerra, es privarse de la capacidad de defensa: la sola manera de estar completamente seguro de que no ha ya guerra es no tener los medios de defendernos. Por supuesto: en ese caso queda excluido el riesgo de guerra, pero no el riesgo de la servidumbre. Entonces seguramente no habrá libertades, pero tampoco riesgo de guerra. Si los pacifistas quieren ir hasta el fondo de su lógica, debieran colocarse bajo la protección de la URSS y de los EEUU: la protección norteamericana comporta el riesgo de guerra y la soviética no después del retiro de EEUU de Europa.<br />
<br />
<b>- Sus adversarios lo han presentado a menudo un poco como el defensor de causas perdidas. Ha tenido alguna vez esa sensación?</b><br />
<br />
- No tengo la impresión de haber estado siempre en el campo perdedor, pero sí de haber defendido causas impopulares que en gran medida el futuro justificó posteriormente.<br />
Por ejemplo, fui partidario de la independencia de Argelia y en 1957 publiqué <i>La trágedie algerienne,</i> libro que fue criticado por la izquierda porque sostenía que había que reconocer a<br />
Argelia el derecho a la independencia. Después publiqué, cuando el general de Gaulle volvió al poder,<i> L'Algérie et la République</i>, cuya última frase sostenía que "la vuelta del general de Gaulle puede ser un renovamiento de la República a condición de que la Revolución sepa devorar a sus hijos" - es decir, exactamente lo que ocurrió. Siempre estuve a favor de la Alianza Atlántica, incluso en la época en que todos los intelectuales se oponían. Hoy todo el mundo es partidario de ella, incluido Mitterrand.<br />
<br />
<br />
Conferência de Imprensa, Paris, fevereiro de 1982, in Revista de La Universidad de México, abril de 1982. (<a href="http://www.revistadelauniversidad.unam.mx/ojs_rum/index.php/rum/article/view/11463/12701" target="_blank">fonte</a>)JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-26092970980136907852015-02-28T17:22:00.001+00:002015-02-28T17:23:23.845+00:00François Colbert (2006)<table cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="float: right; margin-left: 1em; text-align: right;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilSnyKPWdy3WORZSw3Mh20U9vpDv2JyGgNoFJPGPyOUdL3Jzh8z2-LdePdmmEaq0cUpGKyXzsztxhPu2UmRzxzI0TwLmUyWaYmGmUw6grmGNJToLobdM7-FbDzLyTEtblna3KMdvvoCr8a/s1600/image.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; margin-bottom: 1em; margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilSnyKPWdy3WORZSw3Mh20U9vpDv2JyGgNoFJPGPyOUdL3Jzh8z2-LdePdmmEaq0cUpGKyXzsztxhPu2UmRzxzI0TwLmUyWaYmGmUw6grmGNJToLobdM7-FbDzLyTEtblna3KMdvvoCr8a/s1600/image.jpg" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imagem de Pedro Ruiz - Le Devoir</td></tr>
</tbody></table>
<b>François Colbert é um dos mais afamados especialistas mundiais em Marketing das Artes e da Cultura da actualidade. Com mais de 30 anos de carreira, já publicou diversos livros e dezenas de artigos nas mais prestigiadas publicações internacionais. Professor Catedrático em Marketing na École de Hautes Études Commerciales de Montréal, onde é titular da cátedra de Gestão das Artes Carmelle e Remi-Marcoux, é também o principal responsável da pós-graduação de Management of Cultural Organizations, um curso de estudos superiores especializado em gestão dos organismos culturais. Paralelamente, exerce ainda o cargo de director e principal redactor da publicação International Journal of Arts Management (IJAM), tendo dedicado grande parte dos seus estudos à gestão das artes do palco, dos museus e do cinema. François Colbert dirigiu igualmente numerosos seminários e conferências em todo o mundo, subordinados ao tema Arts Management, tendo como principal preocupação o marketing management num contexto cultural.</b><br />
<b>Membro do Board of Directors of the Canadian Association of Arts Administration Educators desde 1986, o Professor Colbert consegue ainda conciliar todas as suas actividades com uma vasta experiência profissional nos sectores público e privado, trabalhando como consultor de empresas, associações e governos.</b><br />
<b>Da sua vasta obra publicada, destacam-se os livros Le marketing des arts et de la culture (considerada a obra fundamental neste domínio), La gestion dans les médias, em colaboração com Cynthia Fortin, La population active du secteur culturel: bibliographie analytique et sélective, em colaboração com Benoît Légaré, Le marketing des arts d’interprétation: bibliographie, em colaboração com Chantal Pelletier e Diane Perrin, ou ainda La commandite dans le domaine des arts et de la culture: bibliographie, em colaboração com Normand Turgeon.</b><br />
<br />
Qual é actualmente a importância de um ensino universitário da gestão cultural?<br />
<br />
Em primeiro lugar, de há uns anos a esta parte, tem-se assistido a uma grande mudança nas estratégias do marketing da cultura. Existe um mercado maior e uma cada vez mais visível afirmação das organizações que fazem o marketing das artes, por oposição a todas aquelas que, por exemplo, se dedicam à venda de bens de consumo. Na essência estamos a falar de um artista que cria alguma coisa, e o papel dos estudiosos do marketing da cultura é precisamente o de encontrar um mercado onde as suas obras possam ser apreciadas. Dada a proliferação da oferta cultural nos dias de hoje, torna-se essencial uma especialização neste domínio.<br />
<br />
A que públicos é que este estudo do marketing das artes deve ser dirigido? Alunos de Economia? Alunos de Comunicação Social ou Publicidade?<br />
<br />
Na minha opinião poderá ser dirigido a qualquer um, desde que tenha uma verdadeira paixão pelo mundo artístico. Trata-se de um campo difícil, dado que, quando falamos de artes, a “estrela” não é o cliente e sim o artista. Ao contrário do que acontece no marketing tradicional, onde temos em mente<br />
a venda de produtos de consumo que satisfaçam as necessidades dos consumidores, no campo das artes tudo se inverte! O papel do manager das artes deverá ser o de colocar no mercado os sonhos do artista que representa. Nós não podemos exigir ao artista alterações nas suas obras para que estas possam agradar um público mais vasto; temos é de encontrar as pessoas certas, aquelas que dêem à obra de arte o valor que ela merece. Se no marketing tradicional o CEO é a figura que assume maior protagonismo, no cultural é o artista.<br />
E, enquanto marketeers, só poderemos divulgar o seu trabalho se nos apaixonarmos por ele, dado que a nossa remuneração é muito mais psicológica do que económica. A satisfação de fazer que as coisas aconteçam, de tornar o projecto do artista uma realidade visível no mercado, é a principal motivação<br />
do marketeer cultural.<br />
<br />
O que devem então fazer os profissionais do marketing das artes para promover as obras dos seus artistas?<br />
<br />
Primeiro há que fazer uma distinção entre a chamada arte popular e a arte mais erudita. A primeira está mais associada a um produto tradicional, é mais fácil de ser vendida, dado que atrai todos os tipos de público, independentemente da sua condição social ou grau académico.<br />
Quando pensamos em concertos sinfónicos, exposições de arte contemporânea, dança ou teatro, parte-se do produto, tendo por preocupação arranjar o mercado ou segmento certos para ele. É inútil tentarmos chamar pessoas ao teatro que não tenham qualquer interesse pela representação, elas só ficarão ainda mais desiludidas. Por isso o papel do marketing para grandes massas aqui não faz qualquer sentido! Nas artes não podemos mudar o produto tendo em mente as preferências do nosso potencial consumidor. Daí que, volto a sublinhar, é fundamental encontrar o público certo, que geralmente é muito mais pequeno do que o segmento-alvo da cultura popular.<br />
<br />
Qual deve ser o papel do Estado na cultura?<br />
<br />
De um modo geral, as pessoas encaram a arte como um serviço público. A produção artística per se assume um valor particular para a maior parte dos cidadãos. Acontece que nem toda a oferta cultural poderá sobreviver no mercado e, como nem todos os artistas conseguirão vingar no mundo artístico, há a percepção de que nós, enquanto sociedade, deveríamos investir colectivamente na divulgação e subsídios dos seus trabalhos, pois, para nós, conseguir receber os reflexos dessa arte que nos traz constantemente uma percepção diferente da realidade é sempre um valor acrescentado.<br />
<br />
Entende que existem diferenças entre os eventos culturais patrocinados pelo Estado e todos aqueles que têm por sponsor uma entidade particular?<br />
<br />
Quando falamos de patrocínios privados, parte-se do pressuposto de que a entidade patrocinadora se identifica com o projecto artístico e que, por essa mesma razão, decide incentivá-lo, apoiá-lo. No Canadá, por exemplo, o consumidor entende que deve ser o Estado a apoiar os museus, sendo que, quando se trata de um financiamento privado, é da opinião que este deverá existir, não por razões comerciais ou de promoção de imagem, mas tão simplesmente por solidariedade com o artista. Se, pelo contrário, for uma forma de arte mais popular, o canadiano já não se importa que a empresa patrocinadora use a publicidade para se promover a si mesma enquanto promove a obra de arte.<br />
Hoje em dia, devido à diversidade da oferta, é cada vez mais comum vermos a banca tradicional associada à arte mais tradicional. Paralelamente, existem certas empresas que, por quererem assumir-se como diferentes, se associam mais à arte contemporânea. Ou seja, também aqui poderemos falar de uma pluralidade, desta vez de patrocinadores.<br />
Devo acrescentar ainda que a questão da falta de subsídios para a cultura é uma constante em todos os países industrializados. Todos eles sofrem do mesmo tipo de dificuldades, não só em termos de verbas que possam patrocinar os espectáculos, como em termos de público, que, na maior parte dos casos, é manifestamente insuficiente. É errado pensar que a situação em Portugal é diferente da que existe em França, nos Estados Unidos ou no Japão. Nestes e noutros países a situação precária da cultura é uma realidade mais ou menos preocupante.<br />
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Se lhe fosse pedido para dar três razões para que o Estado apoiasse a cultura, quais seriam as mais importantes?<br />
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A primeira razão é aquela que já mencionei anteriormente: pela diversidade da oferta. Em segundo lugar, penso que alguns dos nossos artistas são como os grandes filósofos. Os seus pensamentos levam a que a sociedade evolua, trazem-nos sempre uma interpretação diferente da realidade. Por vezes, são muito críticos dos valores que defendemos como os mais certos, são cépticos acerca dos nossos modos de vida, por isso é sempre útil conviver em sociedade com uma multiplicidade de opiniões. Não penso que o Estado deva apoiar a arte segundo o argumento de que, sem os seus subsídios, a arte não sobrevive. O Estado deve exercer um papel importante no apoio à cultura porque esta deve ser encarada não como um custo, mas como um benefício para a sociedade, por adoptar constantemente um discurso diferente que só nos enriquece.<br />
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O que é que um manager cultural vende? Artistas? Produtos? Experiências?<br />
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Vende sobretudo experiências. Podem ser intelectuais, emocionais ou mesmo físicas, mas são, antes de tudo, experiências. Há quem procure preencher com as artes a sua sede de conhecimento. Este tipo de consumidor é geralmente aquele que procura benefícios culturais directos no produto artístico. Para o conseguir, visita um museu, de modo a poder aprofundar conhecimentos sobre esta ou aquela civilização, sobre este ou aquele movimento artístico. Existe depois aquele segmento que procura preencher certas necessidades simbólicas, algo que está relacionado com o entendimento psicológico que o produto tem para a pessoa em causa (o deslocar-se, por exemplo, à ópera, não por gostar deste estilo musical, mas para ser visto na ópera). Temos ainda todos aqueles que vêem nas artes a fórmula mágica de satisfazer as suas necessidades mais emocionais. Neste caso particular estamos a falar de indivíduos que procuram a evasão, a fuga aos problemas no emprego e às rotinas. Este tipo de pessoas geralmente opta, por exemplo, por deslocar-se a parques temáticos.<br />
Seja qual for a necessidade, há contudo uma certeza: a maior parte das pessoas hoje em dia sai de casa para ir passear, e não propriamente para ver uma exposição. Esta atitude enquadra-se muito na indústria do lazer que temos actualmente. As pessoas têm gostos muito diferentes. Gostam de desporto, mas também gostam de viajar, gostam de passear ao ar livre, gostam de ir para os centros comerciais, daí que saiam simplesmente de casa para viver experiências diferentes. E é aqui que a arte cumpre actualmente o seu papel: ela é uma experiência diferente.<br />
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Na sua opinião, qual entende ser a arte mais difícil de promover?<br />
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Qualquer forma de expressão contemporânea, dado que precisa de um mercado muito específico para a apreciar devidamente. Quando falamos de arte contemporânea não é só o sentir ou a beleza da obra que estão em causa, mas também as nossas capacidades intelectuais para entender a mensagem do artista.<br />
Arte contemporânea é “intelecto”, é reflectir sobre a sociedade em que vivemos, chegando mesmo a assumir um discurso filosófico, daí que sejam poucos aqueles que verdadeiramente gostam deste tipo de abordagem. Já no campo da arte dita popular temos muito mais pessoas interessadas! Comparemos, a título de exemplo, o número de pessoas que vai assistir a um filme norte-americano no cinema ou que vai a um concerto de rock, ao número e indivíduos que, no mesmo dia, decide visitar uma exposição num museu.<br />
A arte contemporânea nunca poderá ser tão lucrativa como a arte mais clássica, pois ainda não há uma abertura suficiente de mentalidades sensível à novidade, à inovação.<br />
<br />
Então como é que poderemos vender a arte contemporânea?<br />
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Mais uma vez, temos de encontrar o mercado certo, prepará-lo e levá-lo até à obra de arte. Temos de estudar os seus hábitos de leitura, o que gosta de ouvir, o que verdadeiramente o entusiasma, e só depois estabelecer uma comunicação própria com o nosso consumidor cultural.<br />
<br />
E quem é geralmente esse consumidor?<br />
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Se tivermos em mente a arte dita erudita, são todos aqueles que tiveram alto níveis de educação ou instrução. São pessoas cuja família e escola os educou para o gosto pelas artes. De um modo geral, esta apetência forma-se até aos 20 anos de idade. Será pois muito difícil arrastar alguém de 50 anos que nunca teve grande contacto com a música clássica a um concerto de uma orquestra sinfónica, por exemplo.<br />
Quanto mais contemporâneo for o estilo de arte, mais formação terão os nossos consumidores (70% a 80% são licenciados). As mulheres são o nosso principal target, mas também depende muito do tipo de arte. Na dança, por exemplo, talvez 70% a 75% do público seja feminino, nos concertos de música<br />
clássica não há grandes distinções, no jazz temos mais homens na assistência, enquanto nos museus e no teatro temos dois terços de mulheres como consumidoras.<br />
Quanto a hábitos de leitura, temos mais mulheres a ler romances e mais homens a ler jornais. Relativamente ao sector cinematográfico, existem dois grandes segmentos: aquele que engloba pessoas entre os 15 e os 25 anos; e outro que reúne pessoas com idades superiores a 25 anos. E já que falamos em idades, devo acrescentar que, na música clássica, no bailado e no teatro teremos tendencialmente um público mais velho, enquanto no jazz e na dança contemporânea existe uma audiência mais jovem. Mais uma vez, o tipo de consumidor varia muito consoante o tipo de arte que lhe é oferecido.<br />
No que toca à arte mais popular temos um público-alvo mais vasto, falamos então da população em geral, independentemente do seu grau académico ou da sua origem geográfica ou social.<br />
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Se, tradicionalmente, o público feminino é o principal consumidor de arte, porque foi desde a infância mais educado para a cultura, qual a razão de existirem mais artistas masculinos no mercado?<br />
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Porque tradicionalmente era mais fácil para os homens ingressarem no mundo artístico. Para as mulheres era inaceitável. Se escolhiam, por exemplo, ser actrizes, tendiam a ser mal aceites pela sociedade. Mas esta visão, nos dias de hoje, é cada vez menos recorrente, por isso é que, cada vez mais, vemos mulheres como actrizes, coreógrafas, maestrinas. E eu creio que esta mudança de<br />
mentalidades talvez se deva ao papel que as artes, com as suas visões alternativas de vida, têm vindo a desenvolver na sociedade.<br />
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Numa das suas obras dá particular destaque à crítica: qual é verdadeiramente a sua importância? As pessoas seguem, de facto, as opiniões dos críticos de arte?<br />
<br />
As pessoas que costumam seguir a opinião dos críticos sobre determinados espectáculos, filmes ou exposições são geralmente pouco autoconfiantes, ou então entendem que, por terem pouco tempo ou dinheiro, devem fazer a escolha certa. Ao invés, as pessoas que percebem de arte preferem saber a opinião dos críticos após o visionamento dos eventos, para poderem comparar. Se a crítica é bem conceituada e unânime, pode dizer-se que influenciará a afluência das pessoas; se se divide, o efeito causado é muito menor; se pensarmos, finalmente, em críticos desconhecidos, o feedback é nulo.<br />
Considero mais importante, por exemplo, o fenónemo do “boca-a-boca”. Somos mais levados a ver um filme ou uma peça de teatro se os nossos amigos ou familiares tiverem dito muito bem dos mesmos. No caso do cinema, por exemplo, ainda temos outro factor que pode ditar as nossas escolhas: se o filme for realizado por um cineasta de que gostemos muito, ou se do seu elenco constarem os actores ou actrizes da nossa preferência, será sempre mais bem acolhido.<br />
<br />
Portugal é conhecido como sendo um país com uma história vastíssima e, consequentemente, uma cultura bastante rica. Todavia, essa cultura não é bem preservada internamente, sendo pouco divulgada internacionalmente. Assim sendo, como é que poderíamos construir uma marca nacional<br />
baseada na arte e cultura portuguesas?<br />
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Primeiro, temos de pensar muito bem no que temos de oferecer. O mercado do turismo está a expandir-se cada vez mais, e a principal razão que leva as pessoas a viajar para outro país é precisamente a sua necessidade de conhecer diferentes culturas. Para se posicionar no mercado internacional, Portugal tem de juntar pessoas e instituições culturais. Estas devem passar a trabalhar, não como concorrentes, mas como uma equipa que tem a “marca Portugal” para oferecer. Uma vez conseguida esta união de esforços, será necessário fazer uma reflexão sobre o que é que Portugal tem para oferecer de realmente diferente, e fazer convergir todas as energias para a divulgação dessa diferença!<br />
<br />
Acontece que a maior parte dos visitantes que se desloca anualmente ao nosso país vem em busca de sol, mar e de um estilo de vida mais barato. Nestas circunstâncias, como é que poderemos divulgar de forma mais eficaz a nossa cultura?<br />
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Se Portugal já recebe muitos visitantes por outras razões que não a sua cultura, há que procurar manter esses mesmos visitantes durante mais tempo no país, oferecendo-lhes mais alternativas, que não o clima ou as praias. Há que tentar abrir as suas mentes para novas experiências, que deverão ser únicas e inesquecíveis. Actualmente, a expansão da indústria do turismo é notável, sobretudo quando<br />
pensamos nos países europeus, que estão numa posição muito favorável, devido ao seu passado histórico riquíssimo. No entanto, apesar de a sua oferta cultural ser mais vasta, terão de se preocupar, agora mais do que nunca, em desenvolver uma marca sua, que os distinga além-fronteiras.<br />
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Em 30 anos de estudo, o que é que acha que mudou mais na gestão cultural?<br />
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É cada vez mais profissional, utiliza actualmente instrumentos de pesquisa muito inovadores para aferir as preferências do público. Nas minhas aulas, costumo dizer que nós devemos sempre procurar aperfeiçoar as técnicas de marketing aplicadas à cultura, primeiro para termos a certeza de que o artista é (bem) pago por aquilo que faz e, em segundo lugar, para que possamos maximizar a sua exposição pública. Falar em marketing cultural é falar da promoção da obra de arte, é aumentar a sua visibilidade e a sua aceitação.<br />
Nos Estados Unidos, por exemplo, o conceito surgiu mais cedo do que na Europa, dado que o Estado tinha um papel muito pouco interventor na cultura. De qualquer modo, na grande maioria dos países industrializados, como já referi, existe sempre o mesmo problema: pouco dinheiro dos governos e um<br />
cada vez maior número de artistas a querer mostrar o seu trabalho. Como o orçamento do Estado para a cultura é quase sempre insuficiente, é necessário contar, cada vez mais, com o trabalho dos marketeers culturais, sobretudo quando falamos em angariação de sponsors. Como vê, não é um problema português. Esta é uma realidade que está presente em quase todos os países europeus e também na América.<br />
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<i><span style="font-size: x-small;">"Marketing das Artes: importância e actualidade", entrevista de Rita Curvelo, então Assistente Convidada da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, in Comunicação & Cultura, n.º 1, 2006, pp. 173-180 (<a href="http://comunicacaoecultura.com.pt/wp-content/uploads/2010/07/01_09_Entrevista_a_Francois_Colbert.pdf" target="_blank">fonte</a>)</span></i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-69557497116877589372015-01-18T17:50:00.000+00:002015-01-18T17:50:14.215+00:00Ian Buruma (2014)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtQi3lVP6xbVj_atSM-MbFLZ5nVa7Q8HIEvb5xr1Y3vV89hWYbBw74n1T1z9-vcO1BKKegTPz5rlYwAk1NETuYJBbh5B_ZcsDpQ8hfEW7_MiGj3OBKp_eBMhyphenhyphen77ixXR14q8Dsqj8w9OAd0/s1600/ian-buruma.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtQi3lVP6xbVj_atSM-MbFLZ5nVa7Q8HIEvb5xr1Y3vV89hWYbBw74n1T1z9-vcO1BKKegTPz5rlYwAk1NETuYJBbh5B_ZcsDpQ8hfEW7_MiGj3OBKp_eBMhyphenhyphen77ixXR14q8Dsqj8w9OAd0/s1600/ian-buruma.jpg" height="240" width="400" /></a></div>
<b>Valor: Em seu mais novo livro, 1945 é apresentado como o ano zero da era contemporânea. Por que não 1914, com o começo do fim dos velhos impérios europeus, ou 1918, com o fardo imposto à Europa Central pelo Tratado de Versalhes?</b><br />
<br />
Ian Buruma: São dois marcos importantes e podemos pensar em paralelos históricos, mas precisamos considerar diferenças importantes. A primeira delas é a ideia, clara entre os Aliados, de que a Segunda Guerra, ao contrário da Primeira, era, de fato, “justa”. Acreditava-se profundamente que era preciso lutar. Entre 1914 e 1918, as razões de enfrentamento foram diversas e muito mais nebulosas. Outra diferença fundamental é o fato de que algumas lições da Primeira Guerra haviam sido aprendidas em 1939 e houve, com o fim das hostilidades, seis anos depois, uma tentativa real de não se repetir certos erros. Os julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg e no Japão, são o exemplo mais claro, mas podemos ir além: a ONU é uma instituição mais ambiciosa do que a Liga das Nações e até mesmo as terríveis limpezas étnicas na Europa Central e Oriental no pós-Segunda Guerra, que relato no livro, têm um caráter diferente do da vingança orquestrada e institucionalizada em Versalhes.<br />
<br />
<b>Valor: Esse não é seu primeiro livro sobre a Segunda Guerra. O senhor lançou, há 20 anos, “Wages of Guilt: Memories of War in Germany and Japan”. O que o estimulou a voltar ao tema?</b><br />
<br />
Buruma: Em “Wages” tratei especificamente da maneira como o conflito é lembrado no Japão e na Alemanha. O fio da meada para “Ano Zero” foi a história recuperada de meu pai, quando ele retornou da Alemanha para sua cidade na Holanda e viu como a necessidade da população local de voltar à normalidade incluía, por exemplo, trotes violentos em sua universidade. O que se aprendeu, afinal, com o conflito? Que tipo de mundo se criou a partir de tamanha destruição, e o que mantivemos do passado, se é que havia essa possibilidade em meio a tanta ruína? Ao mesmo tempo, reflito sobre esse novo mundo, iniciado em 1945, que parece estar gradualmente se acabando, chegando, agora mesmo, enquanto conversamos, próximo de seu fim.<br />
<br />
<b>Valor: O senhor também trata do esquecimento recente das lições de 1945...</b><br />
<br />
Buruma: Sim, a quantidade de pequenas guerras comandadas nas últimas décadas pelos EUA, culminadas em invasões cujas consequências não foram levadas em consideração, também me instigaram a escrever “Ano Zero”. Foram guerras comandadas nos EUA e Europa por líderes inexperientes, comandantes civis e militares que nunca haviam tido a experiência real de guerra, nem mesmo no Vietnã. Talvez por isso tenham sido ingênuos o suficiente para acreditar na fórmula de enviar tropas, derrubar o ditador da hora e pronto. Obviamente, essas ocupações, como podemos observar agora no Iraque e no Afeganistão, criam novos problemas, incitam rebeliões, semeiam o caos. Humildemente, achei que era um bom momento para lembrar as pessoas das reais e duradouras consequências das ocupações civil-militares. Voltei, pois, à Segunda Guerra.<br />
<br />
<b>Valor: Um dos aspectos mais definidores de “Ano Zero” é sua decisão de contar a história a partir de personagens mais ou menos comuns, ignorando teorias históricas sobre o período abordado.</b><br />
<br />
Buruma: Sim, foi algo que decidi logo no início das minhas pesquisas: estão proibidas nesse livro declarações de acadêmicos ou historiadores. Somente contaria com depoimentos de testemunhas, de gente que viveu o conflito, incluindo diários, relatos, reportagens. A experiência pessoal e a capacidade de descrever o mundo em transformação à sua volta usando seus olhos foi um pré-requisito para determinado trecho, fato ou relato entrar no livro. Não queria escrever mais um livro oferecendo alguma teoria histórica inovadora sobre as causas e efeitos da Segunda Guerra. Meu objetivo foi o de criar, tal qual um romancista, um quadro da vida cotidiana naquele momento e locais específicos. A ideia era levar a vida daquela gente, em 1945, para o livro.<br />
<br />
<b>Valor: Um de seus personagens é Nobusuke Kishi, importante na terrível campanha da Manchúria. Ele jamais é julgado e sai da prisão para se tornar, no fim dos anos 50, primeiro-ministro do Japão. Para o senhor, a ocupação aliada do Japão e da Alemanha nazista, mesmo com a permanência no palco público de atores importantes no teatro de guerra, foi muito mais inteligente do que a do Iraque e do Afeganistão na primeira década deste século, não?</b><br />
<br />
Buruma: Nesse aspecto, 1945 oferece uma lição política para as atuais gerações. Quando a invasão do Iraque começou, falava-se da necessidade de destruir o Partido Baath, de Saddam Hussein, da “desbaathificação” do país. O modelo usado pelos neoconservadores era o que eles imaginavam ter sido a “desnazificação” da Alemanha. Mas eles não perceberam que o Iraque ficaria ingovernável se toda a elite sunita fosse marginalizada. Obviamente, era preciso fazer algo em relação aos mandachuvas da ditadura, mas é de uma ingenuidade ímpar desmantelar toda a burocracia estatal e querer governar o país ocupado a partir do zero. O resultado foi a anarquia a médio prazo e o risco de uma guerra civil de longa duração. Esse foi um caso terrível de falta de conhecimento cultural dos que estavam no comando.<br />
<br />
<b>Valor: Com o fim da Guerra Fria, o senhor diria que a integração econômica, desde o “ano zero”, em formas diversas, serviu de nova barreira para evitar a eclosão de um conflito de proporções globais?</b><br />
<br />
Buruma: Antes de mais nada, precisamos lembrar que a economia europeia, em 1914, era muitíssimo integrada. E já havia a Liga das Nações. Então, não se trata de uma barreira tão forte assim. Mas interdependência econômica sempre ajuda. Como imaginar os EUA em guerra com a China? Seria economicamente terrível para os dois países. O federalismo, por sua vez, tem seus limites. Veja a Comunidade Europeia. Como classificar essa instituição federalista? Não é uma democracia liberal. Não é um império. Não é uma monarquia. É um híbrido que ninguém de fato deseja. O idealismo de 1945 ofereceu à Europa a possibilidade de criação de uma série de instituições fabulosas, mas as melhores intenções às vezes mascaram graves problemas para o futuro.<br />
<br />
<b>Valor: Para o senhor, três das heranças mais importantes de 1945, especificamente no mundo ocidental, mas não só, foram a consolidação da democracia liberal, a defesa do Estado de bem-estar social e o combate moral das desigualdades sociais. O que observamos desde os anos 1980, no entanto, é o questionamento desses três pilares incrementados no “ano zero”, não?</b><br />
<br />
Buruma: Sim. O fim da Segunda Guerra trouxe, como um de seus efeitos principais, uma “explosão de idealismo”, em que a construção de um mundo mais justo, mais igual, se tornou imperativa. Mas esse idealismo não pode durar para sempre. Ele ficou mais caro com o passar do tempo. Os interesses da burocracia e dos sindicatos ganharam poder com a rigidez desse idealismo e se tornam alvos de outros setores, críticos dos limites da social-democracia e da solidificação do Estado de bem-estar social. O que se vê, hoje, no Hemisfério Norte, são os últimos suspiros desse momento histórico.<br />
<br />
<b>Valor: O senhor vê alguma “explosão de idealismo” no momento, o aparecimento de pensadores interessados em criar alternativas ao capitalismo de Estado chinês ou ao neoliberalismo euro-americano?</b><br />
<br />
Buruma: Decididamente, não. A esquerda parou no tempo. Os ideais clássicos de esquerda se revelaram, na prática, ou muito caros, ou muito rígidos, ou acabaram cooptados por interesses corporativos. O colapso do império soviético no fim dos anos 80 e começo dos 90 ainda nutre, duas décadas depois, terríveis sequelas, de certa forma subtraindo o crédito de tudo o que esteja relacionado ao marxismo. A base ideológica da esquerda foi varrida do mapa. E nada ocupou de fato o espaço da velha esquerda do século XX na era do materialismo individualista em que vivemos.<br />
<br />
<b>Valor: As políticas de redistribuição de renda no Brasil não dariam a pista de um caminho possível para as esquerdas neste milênio, como, por exemplo, na denúncia da desigualdade social que se vê hoje nos Estados Unidos?</b><br />
<br />
Buruma: Sim, mas especificamente para a esquerda latino-americana ou, quiçá, a de parcela significativa do Hemisfério Sul. Os caminhos da América Latina, desde o “ano zero”, foram bem diferentes dos da Europa Ocidental, por exemplo, que experimentou a social-democracia a partir de 1945. As seguidas ditaduras e governos de direita ao sul do Rio Grande ofereceram uma reação natural na figura, por exemplo, de um Lula. Uma encarnação de esquerda que classifico de moderada e, ouso dizer, provavelmente saudável para o Brasil. Mas não vejo como os dois principais modelos de social-democracia oferecidos à sociedade brasileira poderiam ser aplicados fora da América Latina.<br />
<br />
<b>Valor: O senhor ocupa a cadeira de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo da Universidade Bard. E há de considerar que esses três importantes pilares da vida social mudaram muito desde 1945, não?</b><br />
<br />
Buruma: Enormemente. E o jornalismo, provavelmente, foi o que se transformou de forma mais radical, por causa da emergência da era digital. A maior preocupação que tenho é com a qualidade do chamado jornalismo internacional, vital para a aproximação e compreensão de culturas, função exercida pelos correspondentes durante todo o século XX. Mas as empresas não conseguem mais bancar esses profissionais, o que é uma tremenda perda. E se o acesso via internet aumentou a sensação de conexão com o estrangeiro, a autoridade da imprensa diminuiu decididamente. A internet, com as redes sociais, não reconhece mais a autoridade do jornalista. Ela se tornou o reino das opiniões, dos desabafos, dos diários disfarçados de notícia. Os filtros se foram, há de tudo no mesmo saco: reportagens de alta qualidade, opiniões de todos os naipes e importância, polêmica gratuita, tudo dividindo o mesmo espaço. Espaço que, talvez, até seja mesmo muito mais democrático, no entanto carente da importância e da capacidade de interferência de antes.<br />
<br />
<b>Valor: Por outro lado, a era digital ofereceu a possibilidade do desmascaramento de delitos oficiais, dos vazamentos de informação sigilosa, em uma proporção jamais vista.</b><br />
<br />
Buruma: Sem dúvida, mas então precisamos deixar algo muito claro: isso não é jornalismo, é uma outra coisa, algo completamente diferente. Revelar dados não é jornalismo. Jornalismo é quando o “Guardian” ou o “New York Times” exercem sua capacidade de edição, de decidir o que é mais ou menos vital, o que deve ser publicado, e como esses documentos serão explicados, seu contexto, sua importância. Edward Snowden precisou de um jornalista e dos velhos dinossauros da imprensa escrita para divulgar seus achados.<br />
<br />
<b>Valor: Passemos aos direitos humanos. Houve, nas últimas sete décadas, uma avanço inegável nessa área, não?</b><br />
<br />
Buruma: Sim, mas talvez tenhamos ido longe demais. A defesa dos direitos humanos se tornou quase uma religião, uma versão laica das missões cristãs. A ideia de guerras modernas em outros países, justificadas pelo ideário dos direitos humanos, é um equívoco prático, com a inevitável transformação do que era ruim em algo muito pior. Veja a Líbia. O resultado da deposição de Muamar Gadafi, em um primeiro momento fato histórico difícil de não considerar positivo, foi a produção de uma sociedade civil ainda mais violenta. Os direitos humanos só podem ser de fato universais se você os estreita a pontos racionalmente globais, como, por exemplo, o direito de não ser torturado. Quanto mais você os alarga, mais difícil se torna a tarefa de aplicá-los universalmente, ao menos de forma honesta.<br />
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<b>Valor: O senhor mencionou a crença dos aliados de que 1945 foi uma “guerra justa”. Onde o senhor estabeleceria o limite do uso da força com a justificativa da defesa dos direitos humanos?</b><br />
<br />
Buruma: Direitos humanos e dogmatismo não podem caminhar juntos. Há casos em que é preciso usar força militar para impedir, por exemplo, genocídios ou limpezas étnicas, mas não pode ser nunca a norma. Chegamos ao limite da ideia de que temos de intervir sempre que se detectar abuso de direitos humanos. Essa pode ser até, paradoxalmente, a semente para a criação de um novo Hitler.<br />
<br />
<b>Valor: Ao mesmo tempo, a justificativa de ações militares em “guerras justas”, guiadas pela necessidade de proteger a população de povos estrangeiros de seus governantes, tem força moral diminuída quando se enfrenta a crítica do desrespeito aos direitos humanos em casa.</b><br />
<br />
Buruma: Sim, e imagino que você esteja se referindo à prisão de Guantánamo. Uma crítica honesta à administração Obama é justamente a timidez em relação às violações de direitos humanos praticadas pelos EUA. Não houve uma mudança política significativa de rompimento com as diretrizes da era Bush. A principal diferença é que Bush usava de forma cínica a noção de intervenção humanitária para justificar ações militares. Os “neo-cons”, curiosamente, usaram esse viés missionário cristão e se apropriaram, de certa forma, do ideário da velha esquerda, ocupando, nos EUA, o posto de internacionalistas da hora, acreditando de fato que tinham o dever moral de intervir e estabelecer democracias mundo afora. Alguns dos principais colaboradores de Obama, como a chefe da missão dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power, comungam, pelo viés liberal, do mesmo ideário, mas trata-se, em geral, de uma administração mais cautelosa, como se viu recentemente na Síria.<br />
<br />
<b>Valor: E a democracia? Há de fato uma crise do modelo das democracias liberais?</b><br />
<br />
Buruma: Os governos nacionais, desde o “ano zero”, foram gradualmente perdendo sua importância, submetidos ao interesse de corporações globais poderosíssimas, que ultrapassam os limites históricos da nação. Consequentemente, as pessoas que elegemos são cada vez menos efetivas para lidar com o mundo à sua volta. Cria-se uma crise de confiança: mais e mais pessoas acreditam que a democracia liberal e a classe política não são mais aptas a nos governar. O resultado é a emergência de magnatas como Berlusconi, na Itália, ou, em países com economia em desenvolvimento, como Egito, Tailândia, Turquia e Ucrânia, uma crescente oposição de interesses entre a elite urbana e as populações interioranas. Há um consenso democrático de que todos os egípcios, turcos e tailandeses devem ter o direito ao voto. Mas também há uma enorme dificuldade de entender que o eleitor nos grotões desses países elegerá candidatos de acordo com seu interesse regional, quase sempre diverso do das elites urbanas e, muitas vezes, desrespeitando uma das fundações da democracia: a garantia dos direitos das minorias, outra herança importante do “ano zero”.<br />
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<br />
<i>Entrevista de Eduardo Graça para a revista Valor Económico em janeiro de 2014 (<a href="http://www.eduardograca.com/2014/01/entrevista-ian-buruma/" target="_blank">fonte</a>)</i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-20155586151671670872015-01-06T03:24:00.001+00:002015-01-06T03:26:34.084+00:00Tom Holland (2012)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMXZKzdBxuWsNtNhFA-xiLYdPJ_hVYM6-kYOpAQEAzO2EHe7jAgiWuP6jkwLJHbI-2CzjvTQJH4A9XHr7ppTKd59mx4qKdkx9L6BVN_KsGQ4lPd7O3nS4ISlQ4sDtxn09FKOMjXyPIRBVV/s1600/Tom-Holland-011.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMXZKzdBxuWsNtNhFA-xiLYdPJ_hVYM6-kYOpAQEAzO2EHe7jAgiWuP6jkwLJHbI-2CzjvTQJH4A9XHr7ppTKd59mx4qKdkx9L6BVN_KsGQ4lPd7O3nS4ISlQ4sDtxn09FKOMjXyPIRBVV/s1600/Tom-Holland-011.jpg" height="240" width="400" /></a></div>
<b>ÉPOCA – Como surgiram as dúvidas em relação à história do islamismo?</b><br />
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Tom Holland – Nos anos 1950 e 1960, historiadores começaram a estudar os hadiths, as citações de Maomé, e a questionar se eram realmente do tempo do profeta. Quando ficou claro que, nesse caso, as “provas” que a tradição islâmica oferecia eram fracas, a estrutura toda começou a ruir. As biografias do profeta, os comentários ao Corão, as informações sobre o surgimento do islamismo, tudo ficou sob suspeita. Recentemente, os historiadores começaram a se perguntar se aquilo que os historiadores islâmicos dos séculos IX e X escreveram sobre o começo de sua fé era historicamente verdadeiro. A conclusão tem sido que, para entender o islamismo, as fontes islâmicas não são suficientes. Assim como se questiona se as narrativas sobre a vida de Cristo, escritas dois ou três séculos depois que as coisas aconteceram, correspondem aos fatos, o mesmo começa a ser feito com o islã.<br />
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<b>ÉPOCA – Como surgiu a história do islã que conhecemos hoje?</b><br />
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Holland – Os bispos que triunfaram no Concílio de Niceia, no século IV, reescreveram a história do cristianismo para assegurar que houvesse uma única narrativa, linear, desde os tempos de Cristo. Provavelmente ocorreu o mesmo no islamismo. Existem diferentes interpretações dentro do islã, que parecem recuar no tempo até o século VII. Aquilo que conhecemos hoje como islamismo demorou pelo menos tanto tempo quanto o cristianismo para se consolidar. A história mostra que religiões e grandes civilizações não emergem formadas. Elas surgem pela confluência de circunstâncias e influências. Evoluem lentamente.<br />
<br />
<b>ÉPOCA – O senhor diz que o Corão é composto de várias influências – inclusive mitologia grega –, mas afirma que como documento histórico ele é sólido. Como é isso?</b><br />
<br />
Holland – Quando se estudam as citações atribuídas a Maomé (os hadiths), percebe-se nitidamente que foram moldadas pelo período em que foram escritas. Elas contêm alusões claras a eventos históricos que tiveram lugar décadas e mesmo séculos depois da morte do profeta. Com o Corão, não é assim. Tanto quanto podemos perceber pelas cópias mais antigas, parece que todos aqueles que o copiaram agiram como se estivessem lidando com algo extremamente sagrado. Eles tentavam não mudar nada. Mesmo quando havia problemas entre o texto do Corão e rituais e leis islâmicas correntes, o texto foi preservado. Por exemplo, os muçulmanos rezam cinco vezes ao dia, e isso parece ter origem nas práticas do zoroastrismo, a religião dos persas. Mas o Corão diz que se deve rezar três vezes. Não se tentou alterar o texto do Corão para adequá-lo à realidade, embora isso pudesse facilmente ter sido feito. Ao que tudo indica, o Corão foi tratado como o livro mais sagrado, com que não se podia brincar. Portanto, o texto que temos hoje parece ser algo original, que veio de um período remoto e foi preservado através dos séculos.<br />
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<b>ÉPOCA – O Corão foi escrito quando se diz que ele foi escrito?</b><br />
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Holland – Um de nossos desafios é descobrir precisamente de que período veio esse documento. A tradição islâmica diz que esse texto emergiu pronto da boca de alguém chamado Maomé, que viveu num certo período (570-632 d.C.). O peso das evidências dá apoio à tradição. O Corão parece aludir a episódios que tiveram lugar no início do século VII, um dos quais é uma derrota romana para os persas, que ocorreu na Palestina, exatamente no período em que a tradição diz que o profeta viveu. Há também uma passagem referente a Alexandre, o Grande. Ela ecoa, quase palavra por palavra, um texto escrito no Irã em 630 por um sírio ligado ao Império Romano. Essa é a data mais antiga em que podemos identificar uma fonte no Corão, e ela corresponde ao que nos informa a tradição. Uma vez que você aceita isso, pode aceitar o Corão como uma fonte de informação legítima, primária, capaz de nos dar pistas sobre onde, como e por que Maomé agia.<br />
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<b>ÉPOCA – O senhor diz que Meca talvez não tenha sido o lugar onde Maomé nasceu e deu origem ao islamismo. Por quê?</b><br />
<br />
Holland – Meca é um problema. De acordo com a tradição islâmica, ela era uma cidade pagã, sem traços de comunidades cristãs ou judaicas, e estava localizada num deserto. Maomé, vivendo ali, era analfabeto, porque não poderia ter aprendido a ler. Entretanto, no Corão há centenas de referências a profecias judaicas e cristãs. A Virgem Maria aparece no Corão mais que no Novo Testamento. Não só o profeta parece familiarizado com essas citações, como parece contar com uma audiência igualmente familiarizada com as tradições bíblicas – embora a tradição afirme que em Meca havia apenas pagãos. Algo ainda mais problemático é Meca ser mencionada uma única vez no Corão, de uma forma ambígua. Pode ser uma referência a um vale tanto como a uma vila. Não está claro. E nenhuma outra fonte do período menciona a cidade. De nenhuma forma. A primeira vez que o nome da cidade aparece é em 741. Quase um século depois da morte de Maomé. Mesmo assim, a cidade é localizada num deserto no interior do atual Iraque, não na Arábia. Não acho que Maomé seja originário de Meca. Ele provavelmente veio mais do norte. As evidências do Corão sugerem isso.<br />
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<b>ÉPOCA – Por que a tradição islâmica situa o nascimento da religião em Meca?</b><br />
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Holland – Justamente porque ela é tão remota, tão isolada. Se você acredita que o Corão veio direto de Deus, você tem de deixar claro que não poderia ter vindo de nenhuma fonte mortal. O paralelo é com a virgindade de Maria, na tradição cristã. Se os cristãos acreditam que Jesus é o filho de Deus, divino, eles não podem tolerar que Jesus seja filho de um pai terreno. Logo, Maria tem de ser virgem. Então, se o Corão é divino, se vem diretamente de Deus, os muçulmanos não podem tolerar nenhuma menção de que ele possa ter vindo de influências judaicas ou cristãs. Eles precisavam situar sua origem num lugar o mais remoto possível. Esse lugar é Meca.<br />
<br />
<b>ÉPOCA – Qual sua conclusão sobre Maomé? Ele existiu ou é apenas uma lenda?</b><br />
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Holland – Tenho certeza de que existiu. A dificuldade está em saber quanto mais do que isso podemos dizer. Sabemos que ele existiu porque há um texto de propaganda cristã, em 634, que descreve os árabes num ataque à Palestina sob a liderança de um “profeta dos sarracenos”. Quem poderia ser senão Maomé? Isso parece demonstrar, no mínimo, que alguém muito parecido com Maomé estava ativo na Palestina durante aquele período. Mas Maomé, de acordo com a tradição islâmica, morreu em 632. O mesmo texto que confirma a existência do profeta contradiz a tradição sobre a data de sua morte.<br />
<br />
<b>ÉPOCA – O que os muçulmanos acham de seu livro e de suas conclusões?</b><br />
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Holland – Isso depende. Alguns estão furiosos. Outros reconhecem que o debate é parte do processo de que emergirá uma forma ocidental de islamismo. Na tradição ocidental, é natural que a religião seja alvo de investigação intelectual e acadêmica. Agora que o islã está se tornando uma religião europeia, ele será alvo do mesmo tipo de abordagem histórica que foi feita em relação ao cristianismo e ao judaísmo. Quase todos os muçulmanos com quem conversei foram muito generosos e abertos a respeito de minhas ideias.<br />
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<b>ÉPOCA – O senhor não tem medo de sofrer perseguições por causa de seus pontos de vista?</b><br />
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Holland – Acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém que não é muçulmano duvidar que o Corão tenha vindo de Deus. A presunção muito difundida de que questionar a origem do islamismo significa receber automaticamente uma sentença de morte e que barbudos furiosos atacarão quem fizer isso está muito distante da verdade. A islamofobia assume que os muçulmanos são tão violentos e irracionais que, se você apenas questionar sua religião, eles virão matá-lo. Não acredito nisso. Essa imagem não corresponde a nenhum muçulmano que conheço.<br />
<br />
<b>ÉPOCA</b> – <b>O escritor Salmam Rushdie talvez discordasse dessa afirmação.</b><br />
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<b>Holland </b>– Bem, Salmam Rushdie era originalmente muçulmano. No caso dele, havia uma acusação de apostasia (trocar uma religião por outra). Mas ele também estava fazendo um esforço deliberado de provocar. Defendo seu direito de fazer isso como artista, mas insultar propositalmente a figura do profeta é muito diferente de questionar as bases históricas do que sabemos a respeito dele.<br />
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<br />
<i>Entrevista de Ivan Martins para a revista brasileira Época (<a href="http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/09/tom-holland-religiao-deve-ser-investigada.html" target="_blank">fonte</a>)</i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-37886719351499386952014-12-22T00:25:00.001+00:002014-12-22T00:25:37.798+00:00Richard Feynman (1981)<iframe width="640" height="360" src="//www.youtube.com/embed/R7eeOVp9du0?rel=0" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-42229072436062131632014-12-14T16:06:00.003+00:002014-12-14T16:06:58.781+00:00Ronald L. Numbers (2013)<iframe width="640" height="360" src="//www.youtube.com/embed/CQY7oNhsUXQ?rel=0" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-2597676940924082652014-12-13T23:52:00.002+00:002014-12-13T23:52:58.661+00:00Cláudio Torres (2001)<p style=" margin: 12px auto 6px auto; font-family: Helvetica,Arial,Sans-serif; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; font-size: 14px; line-height: normal; font-size-adjust: none; font-stretch: normal; -x-system-font: none; display: block;"> <a title="View Entrevista Cláudio Torres on Scribd" href="https://pt.scribd.com/doc/250060910/Entrevista-Claudio-Torres" style="text-decoration: underline;" >Entrevista Cláudio Torres</a></p><iframe class="scribd_iframe_embed" src="https://www.scribd.com/embeds/250060910/content?start_page=1&view_mode=scroll&show_recommendations=true" data-auto-height="false" data-aspect-ratio="undefined" scrolling="no" id="doc_76352" width="100%" height="600" frameborder="0"></iframe>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-19114246823222872652014-11-23T21:54:00.002+00:002014-11-23T21:54:38.223+00:00Zygmunt Bauman (2011)<div style="text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="315" src="//www.youtube.com/embed/in4u3zWwxOM?rel=0" width="560"></iframe></div>
JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-91843558784830309212014-11-13T01:49:00.001+00:002014-11-13T01:49:40.174+00:00Maria Filomena Mónica (2011)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh91yrupdv601gRWuuR1RvqI8wwBgWIqKqLNL7Gtnl5fmXNontn0Vwr3p3JUzUzISQEDJYPMYGUNtn8Qa6aqjJk6q-_djkmGgMPDP3-Dj4JTxwtx8SwNx5VuTtnS6FcG2-g7LoJg4VoDUsY/s1600/mariafilomenamonica.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh91yrupdv601gRWuuR1RvqI8wwBgWIqKqLNL7Gtnl5fmXNontn0Vwr3p3JUzUzISQEDJYPMYGUNtn8Qa6aqjJk6q-_djkmGgMPDP3-Dj4JTxwtx8SwNx5VuTtnS6FcG2-g7LoJg4VoDUsY/s400/mariafilomenamonica.jpg" width="300" /></a></div>
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<b>Luísa Schmidt (LS): Como se consolidou do ponto de vista institucional o campo das ciências sociais em Portugal?</b></div>
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<br /></div>
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Maria Filomena Mónica (MFM): Antes da institucionalização, seja o que for que isto queira dizer, houve um homem, Adérito Sedas Nunes. O Gabinete de Investigações Sociais, o GIS, existiu porque existia o Adérito. Tal aliás como o ISCTE. O Adérito, como a certa altura desejou que o tratássemos, era um economista desiludido. Licenciara-se pelo ISCEF (agora ISEG), onde, durante anos, deu aulas, com base numa "sebenta" escrita por ele, sobre a história das ideias políticas e sociais. Nesta altura, ainda o não conhecia, porque, embora economia tivesse sido a minha primeira opção, acabei por a trocar por filosofia, curso em que me inscrevi em 1961. Em 1969, licenciei-me e, em 1970, entrei, como bolseira-estagiária para o Gabinete de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian, chefiado pelo Rui Grácio. Eu queria saber que tipo de cultura tinham os jovens de diversas classes sociais. Elaborei um formulário, aplicado em todo o país, aos alunos do ciclo preparatório, miúdos de 11 ou 12 anos, com base numa amostra de 8 000 crianças. Para meu espanto, descobri que a obra mais lida em Portugal pelos jovens escolarizados era A Rosa do Adro (1), de que nunca tinha ouvido falar. Comecei a tentar interpretar os dados, mas sobre alguns pontos tinha dúvidas. Um amigo, o José Carlos Ferreira de Almeida, que era sociólogo, criticou a composição da amostra, o que me levou à paralisia. Quando expus ao Rui Grácio as minhas hesitações, este aconselhou-me a falar com o professor Sedas Nunes, uma vez que ele não se sentia competente para me ajudar. Pedi uma audiência a Sedas Nunes, mas recusou. Rui Grácio sugeriu-me então que fosse estudar para o estrangeiro, com uma bolsa da Fundação. Escolhi sociologia, uma disciplina que, à época, era proibida em Portugal. Tendo sido admitida na Universidade de Oxford, em 1971, parti para Inglaterra, onde, em 1962, já tinha vivido. Inscrevi-me numa espécie de mestrado, o B. Phil, que exigia uma série de exames finais, de que o mais difícil era o de estatística. Farta de números e dos seminários que pouco me interessavam, a sociologia inglesa era muito influenciada pela americana, pedi ao departamento para subir um grau, passando, desde logo, ao doutoramento, o que me foi concedido. Comecei então a investigar o salazarismo, a fim de compreender o que tinha diante dos olhos, ou seja, o regime de Marcello Caetano. Eu não tinha uma liberdade total de escolha do tema: segundo as regras da Fundação, a tese tinha de ser sobre Portugal e, no meu caso, de se centrar em sociologia da educação. Foi assim que, após descobrir que nunca entenderia o que o ministro Veiga Simão andava a fazer sem recuar no tempo, acabei a estudar as políticas educativas de Salazar. O departamento de sociologia de Oxford ainda torceu o nariz, considerava que aquilo era demasiado histórico, mas era suficientemente flexível para me deixar fazer o que pretendia. No Natal de 1973, depois de um ano de leitura da bibliografia estrangeira, vim para Portugal a fim de fazer a investigação que desejava na Biblioteca Nacional.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
LS: Estávamos então nas vésperas da Revolução de Abril?</div>
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<br /></div>
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MFM: Estávamos, mas ninguém o sabia. Lembro-me de ter ido a um jogo de futebol, um de apenas dois a que assisti, com o João Cravinho e de ter visto o estádio em pé, aplaudindo Marcello Caetano. Convenci-me de que o regime estava para dar e durar. Sabia que, se queria fazer a tese, teria de passar um ano na Biblioteca Nacional, mas temia que a estadia em Portugal me "estragasse" a cabeça. Sem a ajuda do Adérito, sem as suas conversas, sem o seu estímulo, sem a sua disponibilidade, é provável que tudo tivesse sido mais difícil. Subitamente, a minha vida alterou-se. Apesar de mal me conhecer, convidou-me para sua assistente no curso de sociologia que estava a preparar no ISCTE. Disse-lhe que não tendo a tese terminada, não me sentia preparada. Da equipa faziam parte vários amigos meus, como o Afonso de Barros e o Armando Trigo de Abreu. Mais importante, no ISCTE estava também a ensinar o Vasco Pulido Valente, o qual, tanto quanto me lembro, era assistente do Alfredo de Sousa. Eu continuava a resistir. A certa altura, disse ao Adérito que não me sentia preparada para leccionar uma cadeira chamada "Demografia e recursos humanos" (não se podia chamar "sociologia" por ser proibido). Depois, sob pressão do Vasco, que era o meu maior amigo, acabei por aceder ao convite do Adérito. A equipa começou a preparar as aulas em Fevereiro de 1974. Um mês antes da Revolução, dei comigo a falar do Exército Industrial de Reserva a 20 alunos. A coisa parecia, e era, surrealista. A certa altura, o Adérito informou-me ter eu na aula um PIDE, mas não me impediu de mandar os alunos ler Marx, o que fiz, em doses industriais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A 25 de Abril, chegou o golpe de Estado. Nos dias que se seguiram, viveu-se, no ISCTE, um clima de incrível turbulência. A maior parte dos docentes era do MES e, entre eles, havia quem tivesse relações com os militares, por isso estávamos sempre a par de tudo o que se preparava. Criado para servir de contraponto ao insurrecto ISCEF, o ISCTE foi a primeira faculdade do país a entrar em auto-gestão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No final de Abril, os assistentes invadiram o gabinete de Sedas Nunes, declarando que não o deixariam convocar o Conselho Escolar. Pelo próprio, soube que tinha ficado chocado que nós, os seus discípulos, pudéssemos imaginar dar-lhe ordens. Respondi-lhe que, com os capitães na rua, era evidente que ele não podia continuar a liderar a escola como se nada se tivesse passado. Para minha surpresa, a minha presença entre os rebeldes não impediu a continuação das boas relações que mantínhamos. Aliás, a invasão do gabinete cedo se revelou uma gota no oceano. Seguiu-se uma assembleia-geral de escola, onde, em princípio, se iriam proceder a saneamentos, mas que se limitou à inquirição de um pobre contínuo. Fiquei enojada.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Apesar de andar entusiasmada com a Revolução, e ao contrário do que me aconselhavam alguns amigos, não me inscrevi no MES. Inconscientemente, sabia que não tinha feitio para militâncias. Limitei-me a ir à reunião fundadora do Sindicato dos Professores. Mas até isto acabou por me desinteressar, uma vez que considerei que o que se estava a passar no ISCTE era mais grave. Os alunos elegeram, duas ou três semanas depois, uma comissão diretiva, onde, juntamente com a Miriam Halpern Pereira e o Adérito Sedas Nunes, me incluíram. Fiquei atónita, uma vez que não tinha qualquer passado anti-fascista. Os estudantes tinham feito uma lista com os critérios para o saneamento dos docentes, ter sido ministro, deputado na Assembleia Nacional ou procurador da Câmara Corporativa, mas esqueceram-se de fazer o trabalho de casa. Caso o tivessem feito, teriam verificado que o Adérito fora procurador à Câmara Corporativa. Desconhecendo o facto, acabou eleito. Mas a coisa não correu bem. Não tardou que as minhas posições desagradassem aos alunos. Eu queria criar uma escola de sociologia exigente, meritocrática e livre. Nada estava mais longe dos desígnios estudantis. Estes pretendiam fazer trabalhos de grupo, reorganizar os curricula de alto a baixo e recrutar alguns operários para a escola («Colocando-os depois numa jaula»?, questionei). Na segunda ou terceira reunião, era já tida como uma inimiga. Comecei a ter dúvidas sobre a vantagem de ali estar. Numa das últimas reuniões, os alunos apareceram com uma lista idiota, composta pelos títulos dos principais livros de Álvaro Cunhal e de Marta Harnecker. Mais do que a atitude dos estudantes, enfurecia-me a covardia de alguns catedráticos. Em Junho, decidi abandonar a escola.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como disse, desde 1971 que era bolseira da Fundação Gulbenkian no estrangeiro. Dias após o 25 de Abril, escrevera ao director do meu departamento, o professor A. H. Halsey, pedindo-lhe para me deixar ficar em Portugal, interrompendo o doutoramento. Talvez por ter simpatias de esquerda, concordou. Também solicitei à Fundação Gulbenkian que interrompesse o pagamento da minha bolsa. No Verão de 1974, voltei a escrever ao Serviço de Bolsas de Estudo, explicando-lhe que desejava recomeçar o doutoramento. Expliquei ao Adérito, o qual, embora relutantemente, acabou por aceitar. No Outono de 1975, regressei a Inglaterra.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em 1977, acabei a tese, defendida em 1978. Como já não tinha o dinheiro da bolsa, fui obrigada a dar aulas no ISCTE, o que me criou uma situação engraçada, pois me apercebi que tinha muito mais poder do que antes. Continuava a discordar de tudo, da gestão, da forma como os alunos eram examinados, do recrutamento de assistentes, mas como legalmente o Conselho Científico tinha de ter cinco doutorados e, na área das humanidades (história e sociologia) só havia quatro (comigo, cinco), se eu abandonasse o Conselho Científico, a escola deixaria de funcionar. Isto era, em grande medida, fruto de alguns catedráticos terem trocado o ISCTE, alguns terão mesmo sido saneados, por outras instituições. Foi assim que nasceu a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, fundada por Alfredo de Sousa.</div>
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<br /></div>
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LS: Nessa altura, o Sedas Nunes já tinha saído do ISCTE?</div>
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<br /></div>
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MFM: Sim, o Sedas Nunes tinha saído para a Universidade Nova, que ainda estava em fase de instalação. Aliás, tanto eu como ele, legalmente pertencíamos ao quadro da Universidade Nova, e estávamos emprestados ao ISCTE.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No Verão de 1976, quando vim de férias a Lisboa, encontrara um Adérito singularmente desiludido. Após o 25 de Abril, tinham ocorrido divisões entre ele e os seus amigos, como o Francisco Pereira de Moura e o Mário Murteira. Na altura, nada me dissera, mas depois contou-me que pensara em emigrar, tendo chegado a escrever nesse sentido a Alain Touraine. Mas acabou por ficar, e o GIS, criado com o apoio financeiro da Fundação Gulbenkian, voltou a ser a menina dos seus olhos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Tendo-lhe dito que não tinha um local onde trabalhar, ofereceu-me um cubículo, num dos claustros do ISCEF, onde estava guardada a biblioteca do GIS (a instituição mantinha laços com a faculdade por onde o Adérito se licenciara). Fui então ocupar um corredor húmido, mas que me dava o que, para mim, era importante: silêncio. Guardo aliás desse tempo óptimas recordações. Mas o Adérito considerava que aquele buraco fazia mal à saúde. Passado algum tempo, disse-me para vir para um gabinete na Rua Miguel Lupi, que passei a ocupar de parceria com o João Ferreira de Almeida. Só agora noto que estou aqui há trinta e três anos!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Muito se passou pelo meio no que diz respeito a instalações, mas, como se vê, resisti, com sucesso, à transumância. No início da década de 1980, o Adérito e a maior parte dos colegas, especialmente os que ensinavam no ISCTE, mudaram-se para a Avenida das Forças Armadas e, mais tarde, já depois de o Adérito ter morrido, no início de 2000, para o atual edifício, na Avenida Professor Aníbal Bettencourt. Expliquei então, por escrito, ao Conselho Directivo do ICS, na altura era assim que se chamava, que, se me obrigassem a ir para a cidade universitária, seria forçada a deixar de ler 145 livros por ano, um número obviamente inventado, o que me prejudicaria e indirectamente a instituição. Ainda fui ver, ao novo edifício, o luxuoso gabinete que me estava destinado, mas nada me demoveu. Não queria passar horas no trânsito, sem que ninguém, nem eu, disso beneficiasse. Foi aqui, onde me estão a entrevistar, que acabei por passar o resto da minha vida académica.</div>
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<br /></div>
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Vi sempre com bons olhos a ideia de manter o GIS como uma instituição exclusiva de investigação e pós-graduação, o que era difícil, por não haver um precedente no país. Devo dizer que, se para mim, me era igual pertencer ou não a um quadro, o Adérito não pensava assim. Mais velho, e sobretudo mais realista do que eu, sabia que as aventuras são mais aprazíveis na juventude do que na velhice. Quanto entrei, não havia, como disse, formalidades. Quem decidia tudo era o Adérito, um déspota esclarecido, na melhor acepção da palavra; se não fosse ele nenhum de nós teria tido a carreira que hoje tem.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
LS: Entretanto, o GIS também se institucionalizou.</div>
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<br /></div>
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MFM: Em 1979, o Adérito foi nomeado ministro da Coordenação Cultural e da Ciência. Odiou o posto tanto quanto antes detestara a presidência da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Por boas e más razões, não gostava de luta política nem do quotidiano da alta administração. Aquilo que, de facto, apreciava era ficar de manhã em casa, a ler, e à tarde de vir até à Rua Miguel Lupi. No final da sua estadia no governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, que durou nove meses, decidiu elaborar um decreto institucionalizando o GIS.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando, pouco depois, Sá Carneiro chegou ao poder, determinou a anulação dos decretos publicados nas últimas semanas, pelo que o GIS voltou ao seu ambíguo estatuto. Só em 1982, o Adérito conseguiria aquilo por que, ao longo dos anos, tinha sonhado.</div>
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<br /></div>
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Quando viu a sua decisão ser anulada, ficou imensamente triste. Farto de conselhos de ministros que se arrastavam pela noite dentro, decidira fugir, tendo-se refugiado em Tróia. Acabei por lá ir, a fim de discutir o futuro do GIS. Mas as nossas visões nem sempre coincidiam. Para mim havia um risco que, para ele, não contava: o da burocratização.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Lembro-me de, uma vez, já ele regressara à Rua Miguel Lupi, lhe ter feito uma partida. Os membros do GIS tinham de preencher anualmente um formulário, com os projectos que tencionavam fazer, o andamento dos trabalhos anteriores e as verbas de que carecíamos (naquela altura, irrisórias). Intitulei o meu projecto: "Um estudo de caso: a burocratização do GIS". Depois, coloquei no papel todo o jargão sociológico que conhecia, acrescentando, como bibliografia, as obras de Max Weber, em alemão. O Adérito não achou graça à brincadeira, mas não se zangou comigo (o formulário deve estar algures no arquivo do GIS). Outra divergência dizia respeito à massificação do futuro instituto. Para ele, quanto mais gente melhor, desde que fosse ele a escolher, enquanto para mim, o ideal era um organismo pequeno, onde pudesse existir um contacto íntimo entre os investigadores.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em data que já não sei determinar, decidiu-se constituir um grupo de trabalho informal para analisar a questão. Percebia a sua preocupação, a de que nós, os investigadores, tínhamos de ter garantia de trabalho, mas temia que o preço a pagar fosse demasiado elevado. Contactámos várias pessoas. Lembro-me do Afonso de Barros, do Alberto Romão Dias, do Luís Moniz Pereira, do António Barreto e do Vasco Pulido Valente, o qual, depois da morte de Sá Carneiro, estava disponível para voltar à carreira universitária. Depois de uma maratona, com uma minoria ou com o grupo no seu pleno, acabámos por agregar duas pessoas, o Manuel de Lucena, em quem eu tinha enorme confiança, e o então reitor da UL, Raul Miguel Rosado Fernandes, cujo contributo foi decisivo. Para que se criasse o instituto que desejávamos, este teria de ficar albergado numa universidade. Por várias razões, de entre a qual a mais importante era a resistência das faculdades, que viam com inveja um instituto sem alunos de licenciatura, as universidades, as três que existiam em Lisboa, ofereciam resistência à novidade e foi Rosado Fernandes quem impôs às faculdades a criação do Instituto de Ciências Sociais. Valeu a pena.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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Outra questão, debatida ainda antes da queda do governo Pintassilgo, foi a proposta de lei da Dedicação Exclusiva da Carreira Universitária, igualmente elaborada pelo Adérito. Mais uma vez, houve divergência de pontos de vista, entre mim e ele. A mais relevante dizia respeito a uma alínea, que ele teimava em introduzir e que permitia, a quem optasse pela dedicação exclusiva num instituto de investigação, dar até quatro horas semanais de aulas numa faculdade. Eu era contra, entre outras razões porque muitos dos meus colegas do GIS davam aulas no ISCTE, o que considerava minar a personalidade da primeira instituição. Ainda lhe lembrei o bíblico argumento, "Não se pode servir bem a dois senhores", mas o Adérito era teimoso. Até que, ao fim de muitos debates, descobri o que estava por detrás da sua obsessão: ele queria continuar a ser professor. Eu achava que a medida iria dar mau resultado, como depois se veio a verificar: ninguém cumpria a dedicação exclusiva e continuava-se a fazer investigação e a dar aulas ao mesmo tempo.</div>
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<br /></div>
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LS: E o teu percurso científico no ICS?</div>
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MFM: Antes de entrar para o GIS, formara-me em filosofia. Foi com um pé já cá dentro que acabei o doutoramento em sociologia. Quando regressei de Oxford, tinha uma interrogação na cabeça: o que teria ficado no espírito dos miúdos que haviam sido sujeitos à dieta ideológica do Estado Novo? Que teriam absorvido dos valores "Deus, Pátria e Família" que o regime pretendera inculcar? E nos meios com uma cultura própria, como os operários, como se olhara a escola? Foi a partir destas perguntas que decidi estudar a classe operária. Havia ainda outra razão de peso: a Revolução supostamente feita em nome do proletariado.</div>
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<br /></div>
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Fui viver, durante um período, para a Marinha Grande, o símbolo por excelência de uma comunidade operária. Mas, quando ali cheguei, em vez dos operários de boina, montados em bicicletas, apenas vi rapazes de casacos de coiro a conduzir Toyotas. Falei com vários operários mais velhos que tinham participado no 18 de Janeiro (a sublevação de 1934), mas a maioria dos trabalhadores do vidro que entrevistei nas fábricas não sabia sequer o que isso era.</div>
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<br /></div>
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A minha primeira obra histórica foi sobre a classe operária no século XIX. Depois, estudei os patrões, primeiro os de Oitocentos, o que deu origem a um artigo na Análise Social e, mais tarde, a seguir à adesão do país à CEE, os empresários, um trabalho que acabaria por desembocar no meu livro Os Grandes Patrões da Indústria Portugueses.</div>
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<br /></div>
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Na década de 1990, a Assembleia da República encomendou ao ICS um trabalho interessante, a elaboração de um Dicionário Biográfico Parlamentar [reunido em 5 volumes]. Eu fiquei com a coordenação do período entre 1834 a 1910 (3 volumes). Com cerca de quarenta autores, que não entregavam as biografias a tempo, ia dando em louca. Foi o trabalho mais custoso da minha vida, mas provavelmente será o único que ficará para a posteridade.</div>
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<br /></div>
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LS: Como tens visto a evolução, o crescimento e percurso das ciências sociais e respetivas instituições, faculdades e centros de investigação?</div>
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<br /></div>
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MFM: Bem, mas com riscos. O principal problema deriva do crescimento, demasiado rápido, alimentado pelos fundos europeus. As instituições que crescem a uma velocidade acelerada correm o risco de perder a personalidade. Ao atribuir às faculdade e aos centros verbas per capita, ou seja, em função do número de alunos, a Europa estimulou a mediocridade. Isto permitiu que entrasse muita gente na universidade que não devia lá estar. O dinheiro, em vez de melhorar as instituições, piorou-as. Mas não quero ser demasiado crítica. O que se passa, em Portugal, é idêntico ao que acontece na maior parte dos países europeus e nos EUA. O mundo, também aqui, está globalizado.</div>
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<br /></div>
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LS: E a questão da interdisciplinaridade ao nível das ciências sociais?</div>
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<br /></div>
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MFM: Gosto de um tipo de ciências sociais que possibilite a mistura entre a história, a sociologia, a economia e a antropologia. O homem é uno, e por isso temos de usar a «imaginação sociológica», para citar o título do famoso livro de C. Wright Mills. A especialização mutila a realidade. Acabo de chegar de Florença, portanto não se admirem que pense em gente como Leonardo da Vinci ou Maquiavel, que se uniram para conceberem um plano, que acabaria por não se concretizar, a construção de um canal que ligasse aquela cidade ao mar. Nem um nem outro se interessavam apenas por quadros ou livros, mas por tudo o que os rodeava. As coisas não poderão ser agora como eram no Renascimento, mas devemos pensar as humanidades como um todo, porque, se não o fizermos, corremos o risco de acabarmos a estudar um canteiro seco. Por exemplo, faz-me impressão que muitos sociólogos, como aliás outros académicos, não leiam ficção. Convencidos de que lhes confere status, há jovens que preferem colar um rótulo na testa. É um erro, pois a especialização precoce faz mal à cabecinha.</div>
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<br /></div>
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Pelo seu percurso académico, o Adérito Sedas Nunes conhecia a bibliografia de várias áreas. Era culto, escrevia bem, e tinha uma capacidade espantosa para analisar a sociedade portuguesa. Um dia, critiquei-o por ele ter deixado de escrever, e ele respondeu-me: «Há uma coisa que a Mena tem de perceber: a criação não se faz só através da escrita, pode igualmente concretizar-se a nível institucional». E adiantou, com orgulho: «Nos últimos anos, dediquei-me a criar esta instituição e não estou arrependido». Embora tenha pena que não tivesse redigido o livro que ele desejava intitular Livres e Iguais estou-lhe grata por nos ter legado o ICS.</div>
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LS: E como vês a interdisciplinaridade com as outras ciências, as naturais?</div>
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MFM: As pessoas que estudam humanidades deveriam saber mais sobre as ciências exactas. Contra mim, falo. Até já me esqueci da fórmula do oxigénio! É uma vergonha. De certa forma, houve uma inversão. Depois de séculos, em que as ciências exatas eram o paradigma da ciência, por vezes há uma atitude de superioridade por parte das ciências sociais: nós, os da parte "mole" da barricada, desprezamos as ciências exactas. Excetuando a matemática, achamo-las simplórias. Já dei comigo a pensar se a medicina é uma ciência, uma vez que apenas aplica os conhecimentos adquiridos na biologia.</div>
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<br /></div>
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LS: E não achas que essas ciências também têm um desprezo pelas ciências sociais?</div>
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<br /></div>
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MFM: Sim, mas não tanto quanto há um século.</div>
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<br /></div>
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LS: Na actual conjuntura de crise e de restrições orçamentais, verifica-se na Europa uma tendência de diminuição de apoios à investigação na área das ciências sociais?</div>
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<br /></div>
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MFM: Ao contrário do que por vezes se apregoa, a ciência não é (não pode ser!) um instrumento que sirva apenas para o desenvolvimento tecnológico das sociedades. Uma universidade é um centro de saber, não um departamento de um ministério... Ninguém definiu melhor o que é uma universidade do que M. Oakeshott: para ele, a universidade era uma «conversa» entre pares. Não existe qualquer outra justificação para uma universidade a não ser a de aumentar o saber. As universidades não têm que ter um objetivo derivado. É evidente que, ao descobrir-se o DNA, as sociedades retiraram do facto benefícios. Mas isso não significa que as universidades tenham de ajudar os países na competição tecnológica. Talvez seja essa a missão dos politécnicos. Das universidades, não o é certamente. Atenção, não estou a dizer que o Estado não deva financiar o saber, o que estou a dizer é que o saber é um fim em si próprio e não um meio. Sou favorável a que os cursos de humanidades tenham o patrocínio do Estado, mas este não pode nem deve exigir nada em troca. Claro que se pode aproveitar uma ou outra encomenda, mas não demais. Uma instituição que recebe mais de metade do seu orçamento para investigações aplicadas está condenada. Os centros de investigação têm de pensar sobre o que é que vem ligado ao investimento para determinados estudos. É por isso que estou contra alguns dos chamados Observatórios, por estarem demasiado condicionados pelos desejos dos governos.</div>
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<br /></div>
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LS: E o futuro das novas gerações de cientistas sociais portugueses?</div>
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MFM: É negro. Há três anos, pela primeira vez na minha vida, dei um 20 a uma aluna; hoje, ela ainda está no desemprego. Por mais cultos, por mais viajados, por mais trabalhadores que sejam, os jovens não arranjam lugar nas universidades portuguesas: não têm onde ensinar, nem conseguem fazer a investigação que desejam. Que futuro têm os jovens que mandámos lá para fora, e bem, a fim de se doutorarem? E isto nem é o pior, porque, a outro nível, houve promessas criminosas. Os executivos deram a entender aos pais que se os filhos se licenciassem teriam um futuro glorioso. Pessoas humildes convenceram-se de ser isto verdade e fizeram sacrifícios impensáveis para mandar os filhos para a universidade. No final, verificaram muitos deles que eles só arranjam emprego, quando arranjam, nos call centers?</div>
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<br /></div>
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LS: Mas sem educação também não se vai a lado nenhum; ela não é sempre fundamental?</div>
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MFM: Claro, mas nem sempre pelos motivos invocados. Na altura em que se alargou o numerus clausus teria sido melhor avisar a população de que os estudos são importantes, por si só, mas que não garantem um emprego. A situação é mais grave nas humanidades do que, por exemplo, nas engenharias, porque se é evidente que é preciso reparar as pontes, o mesmo não acontece quando se fala de pôr um jovem a dissertar sobre Cícero.</div>
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LS: Qual é a tua avaliação sobre as linhas de força teóricas e empíricas que emergiram nas ciências sociais portuguesas nos últimos anos?</div>
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<br /></div>
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MFM: Não me interessa a conversa sobre linhas de força teóricas. Para mim, a sociologia assemelha-se ao papel de James Stewart no filme de Hitchcock, A Janela Indiscreta. Devemos colocar-nos a uma janela e observarmos o que se passa à nossa volta. Devemos ajustar a nossa máquina intelectual com o zoom necessário para o que pretendemos e sermos persistentes. Gradualmente, isto conduzir-nos-á às questões que se puseram os pais fundadores da sociologia, Marx, Durkheim e Weber. Um sociólogo tem de ter as ideias arrumadas, os olhos abertos e os ouvidos à escuta.</div>
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<br /></div>
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LS: De certo modo, os pais fundadores anteviam uma ruptura social e económica que seria induzida pelo capitalismo, e mantêm-se actuais?</div>
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MFM: Mantêm-se. Eles assistiram ao nascimento da Revolução Industrial. Nós estamos a assistir ao seu fim na Europa, mas não no mundo. Veja-se o que está a acontecer na China e na Índia. Assistimos ainda ao fim do comunismo, mas isso não nos impede de nos interrogarmos sobre que tipo de capitalismo estamos a forjar. Porque há muitos: basta olhar a Suécia e a China. O Estado Social é um bem que a Europa foi capaz de criar, mas que tem de ser repensado, porque a estrutura social mudou enormemente desde o final da Segunda Grande Guerra. Não é tanto de um apocalipse que tenho medo, mas sim das tendências populistas que podem surgir dos movimentos de rua. Especialmente se violentos, estes podem levar à emergência de ditadores. Se as pessoas não perceberem para que votam, se não perceberem o motivo das crises que atravessam, se não entendem o que representou a reunificação da Alemanha, corremos o risco de começar a pedir um ?salvador? que nos garanta a estabilidade. A falta de conhecimentos históricos leva a atalhos perigosíssimos.</div>
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LS: Sempre fizeste o que quiseste no ICS?</div>
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MFM: A minha liberdade foi sempre total. Nunca senti a menor pressão, nem por parte dos colegas, nem do director.</div>
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LS: Era um ambiente especial?</div>
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MFM: Era uma ilha de excelência. E isto deve-se, como disse, a um homem, Adérito Sedas Nunes. Se calhar, era ele quem tinha razão, quando me dizia que a criação institucional era mais importante do que a escrita. De cada vez que entro neste andar, tenho saudades dele, o que não posso dizer de muitas das pessoas com quem convivi na universidade. Os jovens que hoje estão no ICS não sabem o que custou transformar o frágil GIS numa instituição sólida. Alguma coisa se terá perdido pelo caminho. Mas se hoje há um quadro, um vínculo e orçamentos plurianuais, e se podemos conferir os graus de mestre e de doutor, isso deve-se, em grande medida, ao temperamento do fundador do ICS. Um obsessivo crónico, Adérito Sedas Nunes não parecia interessar-se por mais nada. Os seus anos finais foram difíceis, mas nada pode apagar o facto de me ter deixado, a mim e aos meus colegas, uma instituição de que nos podemos orgulhar. Não é pouco.</div>
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<span style="font-size: x-small;">Notas</span></div>
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<span style="font-size: x-small;"><br /></span></div>
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<span style="font-size: x-small;">* Com a colaboração de Nuno Gonçalo Monteiro, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais.</span></div>
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<span style="font-size: x-small;"><br /></span></div>
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<span style="font-size: x-small;">(1) Romance da autoria de Manuel Maria Rodrigues (1847-1899).</span></div>
<br />
<i>Entrevista de Luísa Schmidt, revista Análise Social, nº 200, Lisboa (<a href="http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0003-25732011000300011&lng=pt&nrm=iso" target="_blank">fonte</a>)</i><br />
<div>
<br /></div>
JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-16945490553842678022014-10-13T01:27:00.001+01:002014-10-13T01:27:24.703+01:00Ruth Levitas (2005)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfupF-lRX7dQ4ZNy7uZgQnnT_WriPLkJLpRwg6blQyzqt-A7wzxUUe3oFmQ7uVpn5GuCy6a4muoXPDE7BgJ3o7T7zLWzZ8v7fT2BrhJR8c0d1QK9hJxZPzQ0r2gYOVF2wUfUrFfzaHKvVb/s1600/6705-3.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfupF-lRX7dQ4ZNy7uZgQnnT_WriPLkJLpRwg6blQyzqt-A7wzxUUe3oFmQ7uVpn5GuCy6a4muoXPDE7BgJ3o7T7zLWzZ8v7fT2BrhJR8c0d1QK9hJxZPzQ0r2gYOVF2wUfUrFfzaHKvVb/s1600/6705-3.jpg" height="320" width="296" /></a></div>
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Ruth Levitas é hoje um nome incontornável no campo dos Estudos da Utopia. Doutorada pela Universidade de Sheffield e Professora de Sociologia na Universidade de Bristol, na Grã-Bretanha, Ruth Levitas tem dedicado a sua investigação a duas grandes áreas: a da teoria, definição e história do utopismo (com particular atenção à obra de William Morris), e a do pensamento político e social contemporâneo, centrando-se sobretudo nas implicações políticas da pobreza, da desigualdade e da exclusão social. É autora de livros que se tornaram já uma referência para estas áreas de estudo, como The Concept of Utopia (1990) ou The Inclusive Society? Social Exclusion and New Labour (1998), e é actualmente Presidente da Utopian Studies Society-Europe, Vice-Presidente da William Morris Society e membro da British Sociological Association e da Association of University Teachers.</div>
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Nesta entrevista, Ruth Levitas fala-nos do seu trabalho, da sua dedicação à busca de um mundo melhor, do seu desejo de lutar por um espaço de reflexão livre e transformador no mundo universitário, e do seu empenho em incluir a utopia nos gestos mais quotidianos – procurando o azul … e todas as suas combinações possíveis.</div>
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<b>Quando despertou o seu interesse pela utopia?</b></div>
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A escultora Barbara Hepworth escreveu uma vez que achava que aquilo que temos a dizer é formado na infância e que, depois, passamos o resto da vida a tentar dizê-lo. Suponho que tenho de culpar os meus pais, que, de maneira diferente, me mostraram persistentemente que o mundo não tem de ser assim, e que é nossa responsabilidade criá-lo de outro modo. Mais particularmente, quando eu tinha dezassete anos, a minha mãe sugeriu que eu lesse News from Nowhere, de William Morris – a mesma edição que ela tinha lido quando era nova, nos anos 30. Penso que este foi um momento decisivo. O texto de Morris começa em Hammersmith, precisamente a zona de Londres onde eu vivia, e onde a minha mãe também vivia quando o leu pela primeira vez. O livro oferecia pois uma visão do meu próprio quotidiano transformado social e espacialmente. News from Nowhere permite-nos experienciar quer os mundos sociais quer os mundos físicos tal como eles foram, são, poderão ser ou poderiam ter sido enquanto copresenças imanentes. Escrevi sobre isto em Morris, Hammersmith and Utopia (2002). Na altura em que li o livro pela primeira vez, Hammersmith, como tantos outros locais, estava a ser destruído pelos planeadores. Refiro-me, em particular, a uma estrada principal que foi construída nas margens do rio, nos anos 50, a que se seguiu a construção de uma passagem elevada nos anos 60. A estrada divide o jardim da casa de Londres de William Morris, Kelmscott House; é aqui que hoje se encontra o quartel-general da Sociedade William Morris, da qual tenho actualmente a honra de ser Vice-Presidente. Mas o poder da escrita de Morris reside nessa capacidade de descrever uma sociedade em que gostaríamos de viver e, ao mesmo tempo, de demonstrar a relação entre os processos sociais, espaciais, ambientais e económicos.</div>
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<br /></div>
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<b>A Sociologia e o Utopismo têm sido duas áreas de investigação privilegiadas no seu trabalho. Em que medida é que a associação entre elas tem sido produtiva?</b></div>
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<br /></div>
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Há imensas semelhanças entre a sociologia e a utopia – não apenas a insistência no holismo ou o olhar sobre as interligações entre processos, em que Morris era tão bom. Também há uma tensão, uma vez que a sociologia sempre apregoou a sua objetividade, a sua preocupação com o que é, em vez de com o que poderia ser. A utopia, por outro lado, é precisamente sobre o que deveria ser. Claro que a teoria social, num sentido mais alargado, e por oposição à sociologia enquanto disciplina institucionalizada, tem sido menos hostil à normatividade. Grande parte do meu trabalho tem realmente seguido duas tendências: a utópica, na qual apenas alguns sociólogos têm mostrado interesse; e a da análise das políticas contemporâneas como a Nova Direita [New Right] nos anos 80 e o Novo Trabalhismo [New Labour] nos anos 90. Para mim, elas sempre estiveram ligadas: a dimensão utópica informa uma leitura crítica distópica do presente e o debate político em prol da mudança. Portanto, é uma tensão criativa, espero eu.</div>
<div style="text-align: justify;">
Mas durante algum tempo, nos anos 70 e 80, era muitas vezes difícil para um sociólogo sustentar a ideia de que a utopia era uma área legítima de trabalho. Como muita gente, eu tenho uma grande dívida para com Lyman Sargent por me ter encorajado a persistir, e duvido que tivesse conseguido acabar de escrever The Concept of Utopia sem esse encorajamento. Nesse livro, tento estabelecer os diferentes modos como o conceito de utopia tem sido usado, e sugerir uma definição analítica mais alargada, que não esteja limitada pela forma, função e conteúdo. O que estou a tentar fazer agora é demonstrar a relação profunda entre sociologia e utopia em termos de método. H. G. Wells dizia, em 1909, que o próprio método da sociologia é a criação e a crítica exaustiva de utopias. Antes disso, escritores pré-disciplinares como Edward Bellamy, William Morris, Charlotte Perkins Gilman (que se apelidava de socióloga) e o próprio Wells não teriam reconhecido a diferença. Espero que numa era cada vez mais pós-disciplinar seja possível reverter a exclusão por parte da sociologia do seu conteúdo utópico necessário. Não prevejo qualquer problema em convencer os utopistas disto, mas se poderei convencer os sociólogos ou não, isso é outra questão.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>A segunda edição do seu livro The Inclusive Society? Social Inclusion and New Labour (1998) foi publicada recentemente (com um novo capítulo avaliando os dados do Trabalhismo até 2004). Acredita que a ideia de inclusão social poderá ter um potencial transformativo (e utópico) ou será apenas mera retórica para legitimar as políticas existentes?</b></div>
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<br /></div>
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A primeira edição de The Inclusive Society é extremamente crítica relativamente ao Trabalhismo embora de facto acabe com a esperança de que a retórica da inclusão possa ser redireccionada para um sentido mais sócio-democrático. Nunca acreditei que isto pudesse acontecer com o partido Trabalhista, cuja política foi recentemente descrita como “Balinice” [Blatcherite]. E parte do argumento da segunda edição é que as políticas para combater a versão de “exclusão social” do governo são elas mesmo repressivas e excludentes nos seus efeitos – especialmente, mas não só, a abordagem ridícula ao “comportamento</div>
<div style="text-align: justify;">
anti-social”. Obviamente na Grã-Bretanha, a inclusão é parte de uma retórica política abrangente, entorpecedora e orwelliana. Quando ouço declarações de Blair ou dos “apparatchiks” que formam o governo, apetece-me gritar. Ao nível europeu, há também uma predisposição para pensar a inclusão em termos de mercado de trabalho. Eu acho que isto é errado, ainda que, se pensarmos na exclusão de outro modo, especialmente na exclusão no âmbito das relações sociais, possamos ver que a pobreza é causal, de tal modo que uma direcção dominante da política deva ser a redução da pobreza e da desigualdade. A desigualdade na Grã-Bretanha piorou com Blair, em vez de melhorar. Não estou certa, no entanto, de que o problema da Grã-Bretanha seja universal. Pondo a questão de outro modo, eu diria que o significado de inclusão social é um produto, assim como um constituinte, da cultura política, havendo portanto espaço para a acção positiva se o governo assim o quiser.</div>
<div style="text-align: justify;">
Estive recentemente numa sessão de trabalho no Canadá, onde o governo está a trabalhar no sentido de criar um programa de investigação sobre a inclusão social. Fiquei impressionada com o grau de empenho e debate. Fora dos confins da política da União Europeia, e fora da hegemonia britânica neoliberal, é perfeitamente possível ter-se uma discussão séria sobre o que a inclusão pode significar em diferentes contextos políticos e sociais. Por outro lado, nós estamos todos tão sujeitos à hegemonia do crescimento económico e do capitalismo global que a inclusão é sempre limitada por ela. A linguagem da inclusão por si só não vai mudar isto. A questão é sempre quem está incluído em quê, e em que termos.</div>
<div style="text-align: justify;">
Mas se houver outras forças transformativas em jogo, a inclusão poderá ser articulada com uma agenda mais igualitária e democrática.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Sugeriu recentemente que a necessidade da utopia está relacionada com uma demanda particular, que condensou nas expressões “procurar o azul” [“looking for the blue”] e “procurar o verde” [“looking for the green”]. Pode falar-nos um pouco mais sobre a natureza dessa demanda?</b></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O termo “procurar o azul” é retirado de uma peça televisiva de Dennis Potter, de 1977, chamada Pennies from Heaven [Cêntimos do Céu]. O protagonista central, Arthur Parker, é um vendedor ambulante que vende pautas de canções populares dos anos 30: Meses e meses tenho trazido estas coisas comigo – estas canções – todas estas lindas canções – eu sempre acreditei nelas. Mas eu não sabia realmente como ou por que é que eu acreditava no que lá estava. Há coisas que são grandes demais ou importantes demais e simples demais para pôr nessa poesia snob, pretensiosa e assim, nos livros e tal – Mas toda a gente as sente… É procurar o azul e o dourado. O padrão do céu azul. O dourado da madrugada, ou da luz nos olhos de alguém – Cêntimos do Céu, é o que é.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>[Months and months I’ve been carrying this stuff around - these songs – all these lovely songs – I’ve always believed in ‘em. But I didn’t really know how it was or why it was that I believe in what’s in here. There’s things that are too big and important and too bleedn simple to put into all that lah-di-dah, toffee-nosed poetry and stuff, books and that – but everybody feels ‘em. … It’s looking for the blue, ennit, and the gold. The patch of blue sky. The gold of the bleedin’ dawn, or the light in someone’s eyes - Pennies from Heaven, that’s what it is.] (Humphrey Carpenter, Dennis Potter: the Authorized Biography)</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sirvo-me deste termo para encapsular o tema de Ernst Bloch da falta e do desejo, da origem do impulso utópico, e da busca existencial de uma maneira melhor de ser, assim como a insistência de Bloch na natureza demótica da orientação utópica. Neste sentido, o utopismo está difundido ao longo da nossa cultura declaradamente anti-utópica – mas ele é muitas vezes fragmentário e está geralmente confinado ao que podemos chamar “esfera cultural” da arte, da música, da literatura e da religião. “Procurar o azul” está relacionado com as perguntas com que Bloch inicia o The Principle of Hope [O Princípio da Esperança]: ‘Quem somos nós? De onde vimos? Para onde vamos? De que estamos à espera? O que espera por nós? Ou, se quisermos, é uma demanda (por vezes secularizada) para compreendermos quem somos nós, por que é que estamos aqui, como nos relacionamos uns com os outros, e o que nos faz genuinamente felizes.</div>
<div style="text-align: justify;">
“Procurar o verde” é um termo que usei para assinalar a passagem desta demanda do campo da expressão cultural para o campo da organização social e da luta política – portanto, não é bem o mesmo que a passagem da “esperança desejante“ [“wishful thinking”] à “acção plena de desejo” [wish-full action”], embora envolva de facto isso. É antes a passagem do existencial para a questão do tipo de estrutura social que poderá reforçar uma demanda mais bem sucedida e talvez mais inclusiva. E, consequentemente, é também a passagem de uma expressão fragmentária para um holismo social. Claro que isto não é apenas sobre literatura utópica. Na verdade, é sobre os modelos implícitos e explícitos da boa sociedade que permeiam e informam a política contemporânea. Disse “procurar o verde” porque a conceção de um modo de vida compatível com a sustentabilidade ambiental é o desafio político crucial com o qual nos confrontamos neste momento. E não vai ser resolvido exortando as pessoas a reciclar garrafas vazias: serão necessárias grandes mudanças na organização da produção e do consumo, ou no que Marx chamou forças e relações de produção.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Em The Concept of Utopia (1990), já havia chamado a atenção para a dificuldade em se separar o estudo da utopia da demanda da utopia. Neste sentido, como descreveria o seu próprio trabalho? Encara-o como pertencendo mais ao domínio do “estudo desejante” [“wishful study”] ou ao da “ação plena de desejo” [“wish-full action”]?</b></div>
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<br /></div>
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Embora esta distinção entre a demanda e o estudo da utopia coloque algumas dificuldades, não estou certa de que a queira ultrapassar. Estudar a utopia sem o empenho da procura de um mundo melhor é capaz de levar, primeiro, a maus livros (o Faber Book of Utopia, do John Carey, é um deles), e, em segundo lugar – e mais importante ainda – à falência espiritual. “Estudo desejante” ou “ação plena de desejo”? Não sei… Suponho que o ímpeto de passar da “procura do azul” para a ”procura do verde” seja precisamente o processo da docta spes ou esperança educada que Bloch identificou com a passagem da utopia abstrata para a concreta.</div>
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Mas os atos de escrita e de ensino são um tipo de “ação plena de desejo”. Como o é também a tentativa de influenciar a direção da política do Governo, mesmo que de pequenas formas. Por outro lado, devemos ser realistas relativamente ao impacto do trabalho académico, quer na política, quer na cultura política. Muito poucos intelectuais realmente conseguiram mudar alguma coisa, e a maioria dos académicos, incluindo eu própria, não é sequer um intelectual com visibilidade pública. De certo modo, penso que o nosso papel mais importante é o de defender as Universidades como um espaço privilegiado de reflexão, para resistirmos ao utilitarismo do conhecimento ou à ideia de que a investigação precisa de comportar benefícios sociais óbvios e imediatos. Na Grã-Bretanha, pelo menos, a cultura atual é tão anti-intelectual – muitas vezes mesmo dentro das universidades. Portanto, a insistência no facto de isto ser importante também se torna um acto político – ainda que bastante pequeno.</div>
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<b>Neste momento é presidente da Utopian Studies Society – Europe, da qual foi também um dos membros fundadores. Como é que surgiu a ideia de criar a USS?</b></div>
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Se bem me lembro, The Utopian Studies Society foi fundada em 1988 num congresso sobre a Utopia organizado pela International Communal Studies Association (penso eu), através do Dennis Hardy, e que teve lugar em Edinburgh e New Lanark (que, na altura, estava menos restaurado do que agora e não providenciava alojamento). The Society for Utopian Studies existia já desde 1975, e organizava um congresso anual na América do Norte. Mas isto foi antes da era (ecologicamente catastrófica) das tarifas aéreas baratas e da comunicação electrónica. Muitos académicos europeus não podiam custear viagens transatlânticas – e parecia absurdo que não tivéssemos uma rede de comunicação que não fosse através da ida à América do Norte. Houve então uma espécie de decisão coletiva, no bar, no sentido de montarmos uma rede. Penso que estava mais embriagada do que os outros, pois concordei com isso. Sei que o Vince Geoghegan estava lá, por isso a culpa foi provavelmente dele.</div>
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<b>Olhando para esse momento inicial, 17 anos atrás, considera que a Utopian Studies Society atingiu os seus objetivos?</b></div>
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Estou muito satisfeita com o facto de a USS ter sobrevivido e se ter tornado, em última análise, numa organização genuinamente europeia, embora eu não tenha muita responsabilidade nisso. Não foi um processo perfeito. Durante alguns anos, no final da década de 80 e inícios da década de 90, a USS foi-se arrastando com uma cota pequena e uma newsletter ocasional enviada por mim pelo correio, enfiada em envelopes por adolescentes subornados, porque eu não tinha apoio a nível de secretariado. Organizámos um ou outro congresso, pequeno, com a duração de um dia. E ela foi relançada no final dos anos 90, quando a Lucy Sargisson organizou um congresso mais apropriado em Nottingham, e que se tornou o primeiro dos congressos anuais que actualmente promovemos. Foi formado um comité formal com a Lucy como Secretária, o Jim Arnold (de New Lanark) como Tesoureiro, e a Lorna Davidson (por vezes também Secretária) a fazer a maioria do trabalho a partir de New Lanark (que também já acolheu o congresso anual duas vezes). Fomos ajudados pela evidente emergência de um interesse pela utopia em volta do milénio – a Barbara Goodwin e o Lyman Sargent organizaram um congresso na Universidade de East Anglia, independentemente da USS, precisamente para assinalar este facto. E muitos centros foram criados pela Europa com um enorme trabalho a desenvolver-se em Itália, Portugal e Espanha, e Irlanda, por pessoas como Vita Fortunati, Rafaella Baccolini, Fátima Vieira e Tom Moylan. O marco desta europeização definitiva foi quando em 2003 o Alex-Alban Gómez Coutouly organizou o congresso anual em Madrid, e em 2004 a Fátima e tu, também, organizaram-no no Porto – e, como sabes, vamos agora para Tarragona em 2006, graças ao Pere Gallardo.</div>
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<b>Como é que vê o futuro dos estudos da utopia? Haverá ainda outras “cores” (para além do verde e do azul) que valham a pena?</b></div>
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Eu tenho algum receio quanto à direcção dos estudos da utopia. Em todo o caso, talvez eu me preocupe mais com o futuro da Utopia do que com o futuro dos Estudos da Utopia. Mas preocupa-me o facto de, apesar de o campo ser relativamente forte em termos de estudos de ficção utópica, não o ser tanto em termos de teoria política e social. Pessoalmente, gostaria de ver ser posta mais ênfase no pensamento político e um maior empenho na atividade política. Caso contrário, há o perigo de os estudos da utopia se tornarem mais uma área de academismo, em vez de ser um questionamento e um compromisso intelectual arriscado, criativo e transformador. Há alguma pressão junto dos mais novos para desenvolverem um trabalho académico sem controvérsia, e as pessoas têm carreiras a construir. Por isso também penso que temos de defender as Universidades como espaços de debate intelectual, e não apenas académico. E, mais uma vez, penso que o estudo da utopia sem dedicação à utopia (ou pelo menos à crítica e à transformação que ela pressupõe) é estéril.</div>
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A questão das outras cores está relacionada com esta. Continuo uma socialista empenhada, por isso o verde tem de ser acompanhado com o vermelho, e por muito que esteja empenhada em procurar o azul, oponho-me a ela enquanto cor política. O que o socialismo pode significar, como pode ser possível, e como se relaciona com o verde, é uma questão complicada. Pode ser até que o termo socialismo seja em si de pouca ajuda. Mas, como William Morris dizia, Os Homens lutam e perdem a batalha, e aquilo por que lutaram acaba por despontar, apesar da derrota deles, e quando surge já não é o que eles pretendiam, e outros homens têm de lutar pelo que eles pretendiam sob um nome diferente. </div>
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<i>[Men fight and lose the battle, and what they fought for comes about in spite of their defeat, and when it comes turns out to be not what they meant, and other men have to fight for what they meant under a different name.] (William Morris, A Dream of John Ball)</i></div>
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<span style="font-size: x-small;">Entrevista de Marinela Freitas, Projecto “Utopias Literárias e Pensamento Utópico: a Cultura Portuguesa e a Tradição Intelectual do Ocidente “ Faculdade de Letras da Universidade do Porto. "Procurando O Azul – Entrevista a Ruth Levitas", E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 4 (2005). (<a href="http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/revista/index.htm" target="_blank">link</a>)</span></div>
JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-74020300088738036332014-09-24T02:17:00.002+01:002014-09-24T02:17:37.157+01:00Lawrence Grossberg (2008)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfaS2mq1GN9tzFwKEF0AAwtb-Yc5AnS0hbyJRIyL0ukH7K61ZHys69_-sM_CQQzXYsvA1RHiLWEPDkQWF3lkn-F0z7qpAJaJ2-JndO94RVbjdNY4R68iK1-s3ebDBqMcvM01Y6IjtbTd-o/s1600/LarryGrossbergPhoto.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhfaS2mq1GN9tzFwKEF0AAwtb-Yc5AnS0hbyJRIyL0ukH7K61ZHys69_-sM_CQQzXYsvA1RHiLWEPDkQWF3lkn-F0z7qpAJaJ2-JndO94RVbjdNY4R68iK1-s3ebDBqMcvM01Y6IjtbTd-o/s1600/LarryGrossbergPhoto.jpg" height="640" width="456" /></a></div>
<b>Figura de relevo incontornável na área dos cultural studies norte-americanos, Lawrence Grossberg traçou um percurso notável ao longo das últimas décadas. Estudou em Inglaterra sob supervisão de Stuart Hall no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham, no início dos anos 70, e concluiu depois um doutoramento em Comunicação, com a orientação de James Carey, na Universidade de Illinois. O trabalho de investigação que desenvolveu nas décadas de 80 e 90 resultou no reconhecimento da música popular e da cultura jovem como legítimos objectos de estudo académico. Hoje, admite que a música já não é a mesma e que os seus interesses se deslocaram maioritariamente para as áreas da economia e da política. Afinal, argumenta, os cultural studies sempre acreditaram na importância das ideias e na sua possibilidade de mudar o mundo.</b><br />
<br />
<b>Ao longo do seu percurso nos cultural studies, procurou de diversas formas enfatizar a ideia de que estes deveriam assumir-se como um projecto que visa contar uma história acerca do mundo que nos rodeia e, a partir daí, abrir a porta a todas as possibilidades de mudança. Nesse sentido, de que forma olha hoje para o mundo que o rodeia?</b><br />
<br />
Quer as pessoas estejam ou não dispostas a acreditar nisso, parece-me que se trata, ainda que num sentido algo peculiar, de um dado optimista o facto de as pessoas estarem hoje muito insatisfeitas. É comum as pessoas pensarem que não têm grande poder para efectuar mudanças reais no mundo; creio<br />
que poderemos mesmo falar de uma maleita generalizada que se manifesta actualmente numa variedade de niilismos, cepticismos e apatia. Muitas das políticas que hoje observamos debruçam-se sobre um único assunto e não se preocupam em perceber as suas muitas implicações noutras áreas, o que também não tem dado bons resultados. Penso que a atmosfera dominante nos Estados Unidos, e um pouco por todo o mundo, se baseia nesse sentimento de que as pessoas não estão contentes com o mundo tal como ele está. E isso demonstra abertura, constitui-se como uma possibilidade, porque se as pessoas não estão satisfeitas, mesmo que não acreditem na sua capacidade de mudar as coisas, ainda assim podem começar a partir daí, dessa insatisfação, e agir no sentido de passarem a perceber que podem mudar algo, que podem construir um mundo melhor, diferente. Temos sempre de partir desse ponto onde as pessoas se encontram; não podemos mais dar-nos ao luxo de fingir que o mundo se encontra à espera da chegada de um grande líder que vai fazer a revolução, nem podemos sequer pensar que essa revolução é inevitável, que vai chegar por si só – não, temos de partir deste ponto real em que nos encontramos agora, percebendo, como a Direita fez, e muito bem, que as pessoas estão insatisfeitas e sentem que o mundo não é aquilo que deveria ser. E isso é uma abertura, uma grande abertura para a política.<br />
<br />
<b>Não acredita, portanto, na ideia da revolução...</b><br />
<br />
Não, mas acredito na mudança, em qualquer tipo de mudança. O mundo está sempre a mudar, e as estratégias que desenvolvemos para lidar com essa mudança dependem sempre da nossa análise daquilo que o mundo é. Perceber aquilo que se passa hoje tem sempre de preceder qualquer estratégia que possamos conceber para mudar aquilo que se passa, e esse é um dos problemas com que nos deparamos agora, porque a Esquerda concebeu toda uma série de estratégias para mudar o mundo, mas parece não perceber aquilo que se passa hoje no mundo, e por isso essas estratégias têm vindo a falhar sistematicamente.<br />
Posso conceber, em teoria, uma análise que leve ao caminho da revolução, mas acredito que revoluções violentas muito dificilmente poderão ser bem-sucedidas ou conquistar os objectivos que desejariam. Descrever a América, da forma como alguns elementos da Esquerda o fazem, como um país fascista, parece-me dar a ideia de que a única resposta possível para alterar essa realidade<br />
seria uma revolução violenta. É certo que existem elementos de fascismo presentes hoje nos Estados Unidos, como em muitas outras partes do mundo, mas não me parece que essa descrição tão linear da América apresente qualquer tipo de estratégia viável para efectuar mudanças. Dificilmente apoiaria<br />
essa ideia de uma revolução violenta, nem consigo imaginar o que ela significaria para os Estados Unidos hoje ou de que forma poderia ser bem-sucedida. Nos anos 60, Ronald Reagan chegou a falar em lançar bombas em Berkeley. Acha que hesitariam hoje em lançar bombas em Nova Iorque se soubessem que aí se estava a tentar fazer uma revolução? Não sei, acho que não.<br />
<br />
<b>Para efectuar essa mudança de que fala, será necessário, por um lado, acreditar que se tem o poder de a concretizar e, por outro, possuir a vontade, a paixão necessária para assumir esse compromisso. Parece-lhe que ambos os factores têm estado presentes desde sempre no percurso dos cultural studies?</b><br />
<br />
É interessante, porque um dos meus principais argumentos, na altura em que me dedicava ao estudo do rock’n’roll, era que este raramente é político num sentido linear, mas aquilo que faz é criar as paixões que podem ser mobilizadas e articuladas com determinadas posições políticas em dados momentos. O rock, no fundo, criava as condições de possibilidade para que as pessoas se envolvessem em actividades políticas, precisamente porque organizava as suas paixões e permitia relacioná-las com determinados valores e determinadas práticas. O problema reside em como fazer essa articulação, como conseguir que as paixões das pessoas se venham a relacionar com lutas e estratégias políticas viáveis. Acredito que os jovens da América de hoje querem mudar o mundo, mas também me parece que não sabem como e acho que a responsabilidade é nossa por não lhes termos dado melhores ideias e melhores ferramentas para o fazerem. Precisamos de uma história melhor...<br />
<br />
<b>Politicamente, o seu discurso posiciona-se sempre do lado da Esquerda, tal como o de grande parte dos cultural studies. Vê algum motivo em particular para esta ligação?</b><br />
<br />
Bem, infelizmente, parece-me que, em tempos recentes, grande parte dos melhores cultural studies que têm sido feitos na América vêm da Direita... É um facto que grande parte do trabalho académico dos cultural studies tem surgido da Esquerda, mas isso não quer dizer que tenha necessariamente que ser assim, até porque tem surgido de várias Esquerdas diferentes, com políticas e projectos diferentes. Não penso que seja uma inevitabilidade que os cultural studies tenham de estar ligados à Esquerda, nem penso que a história que contamos possa garantir as políticas que desejamos. Às vezes, o desejo de contar uma história melhor até pode beneficiar a Direita. Se procurarmos, por exemplo, as fundações de base de alguns dos grandes pensadores da Direita americana e verificarmos as bibliografias que eles citam, eles também leram Gramsci, e Hall, e Foucault. Muitos podem até achar que o conceito da luta hegemónica será aquele que melhor descreve o que estão a tentar fazer. Não<br />
há nada em Gramsci que garanta, à partida, que se tratará de um projecto marxista. No entanto, Gramsci é sem dúvida uma ferramenta muito útil na sua descrição do contexto da Itália fascista, será até provavelmente a melhor história contada sobre aquele período e, com ela, abriu possibilidades quer para a Direita quer para a Esquerda. Por isso, não há garantias, à partida.<br />
<br />
<b>Actualmente, celebra-se na Europa o Ano do Diálogo Intercultural. Dado o seu actual posicionamento na área da cultura e da política, parece-lhe que este diálogo tem sido produtivo?</b><br />
<br />
Confesso, para começar, que tenho alguma dificuldade em perceber sequer o que possa ser esse diálogo intercultural. Sou um grande crente na importância da conversação, mas não acredito muito que a conversação inevitavelmente resolva diferenças. Houve um momento na teoria da comunicação, e provavelmente essa ideia ainda existe em muita da teoria intercultural hoje produzida, em que se acreditava que se as pessoas se compreendessem melhor através da comunicação, todos os seus problemas desapareceriam. Eu, pelo contrário, acredito que se as pessoas se entenderem muito melhor, o mais certo é acabarem por se matar umas às outras muito mais rapidamente. Por isso, tenho alguma dificuldade em perceber o que se propõe alcançar esse diálogo<br />
intercultural. Penso, no entanto, que o maior problema da União Europeia é, de facto, um problema cultural. É possível unificar sistemas económicos, até é possível tentar uma abordagem à unificação de estruturas políticas, como a União está agora a fazer, mas é muito mais difícil perceber como é que irão tentar unificar a cultura na Europa.<br />
<br />
<b>Será isso, de todo, possível?</b><br />
<br />
Bem, seria possível argumentar que algumas partes da Europa têm pelo menos alguns princípios em comum, nomeadamente o Iluminismo, o Cristianismo, algumas visões sobre o liberalismo, etc. Se isso será ou não suficiente para ultrapassar as diferenças culturais que existem, já é outra questão. Um dos fenómenos mais interessantes da globalização é que, apesar de todas as pretensões de que esta estaria a provocar o enfraquecimento dos Estados-Nação, na verdade só o está a fazer em determinados aspectos, porque noutros está antes a fortalecê-los e a fazer crescer um certo sentido de identidade nacional e a aumentar a importância das estruturas de pertença em termos de nacionalidade e etnia. Não sei se os Franceses, os Alemães e os Ingleses alguma vez irão concordar com sistemas de aculturação ou noções do que deve ser a educação, noções de valor cultural, ou encontrar sistemas de tradução de valores culturais... Isso parece-me ser uma tarefa muitíssimo difícil. Mas pode acontecer, se estiver correcto o meu argumento sobre as alterações no papel da cultura e a tendência para a sua relevância diminuir face ao papel da economia, que isso venha a ter muito menos importância do que parece ter hoje.<br />
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<b>Em que sentido lhe parece, então, que se deverão dirigir as actuais preocupações com o diálogo intercultural, o choque de civilizações e as questões da identidade e da diferença?</b><br />
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Acho que essa questão terá menos a ver com o diálogo intercultural e mais com as contradições inerentes do liberalismo, enquanto definição da modernidade. A contradição do liberalismo é uma contradição entre a individualidade, enquanto espaço de liberdade, e a comunidade, enquanto espaço<br />
de identidade. A modernidade europeia sempre foi uma negociação precária entre o individualismo liberal e uma versão de comunitarismo, como lhe chamariam os teóricos políticos. Independentemente de esse comunitarismo ser definido por uma identidade racial, ou étnica, ou nacional, é um facto que as identidades não se têm constituído em termos individuais, mas sim em termos colectivos. No entanto, os direitos pertencem ao indivíduo – esta foi a base do grande desafio dos anos 60. No liberalismo europeu, os direitos são inerentes ao indivíduo enquanto cidadão. No entanto, houve grupos que começaram a exigir os seus próprios direitos enquanto grupo, e o liberalismo não tem forma de lidar com isso. Muitos teóricos políticos, como o Paul Gilroy ou mesmo o Stuart Hall em alguns dos seus textos mais recentes, têm tentado abordar esta problemática. Não sei qual será a solução, e esta poderá mesmo não estar disponível dentro dos termos da modernidade europeia. Esse poderá ser um dos motivos da pressão que nos tem empurrado para este modo de transição em que nos encontramos hoje, o facto de a modernidade europeia não ter uma resposta, um modo de reconciliar esses domínios. É uma contradição estrutural da modernidade europeia que se tem tornado cada vez mais difícil de negociar.<br />
<br />
Neste contexto, e reconhecendo que em Portugal o caminho académico percorrido nessa área é ainda muito curto, será este um bom momento para o desenvolvimento e a prática dos cultural studies?<br />
<br />
Recordando Charles Dickens, poderia dizer que «these are the worst of times, the best of times...». Acredito que este é um óptimo momento para se trabalhar na área dos cultural studies. É um momento assustador, aterrador até, para se viver neste mundo, mas talvez não tão aterrador quanto ter de passar pela Peste Negra. O mundo está em mudança, de muitas formas que não compreendemos,<br />
para as quais não temos um vocabulário conceptual adequado que nos permita descrevê-las, e para as quais não temos uma visão política que nos permita resolvê-las. Parece-me que o mundo nos coloca, nos impõe mesmo, um conjunto de questões importantíssimas, que nós, intelectuais, temos de abordar, se não através dos cultural studies, pelo menos com algum tipo de abordagem interdisciplinar que permita observar as relações e os contextos. Acho que este é um momento óptimo para se estar nesta área, porque o mundo é tão interessante, e existe uma necessidade tão grande deste tipo de pesquisa. Não deixa, no entanto, de ser um momento difícil, sobretudo devido àquilo que se passa hoje nas universidades. Todas as pressões que são actualmente exercidas sobre as universidades estão a empurrá-las numa direcção em que este tipo de trabalho se torna... não diria impossível, porque em muitos sentidos é hoje mais fácil do que era há quarenta anos desenvolver trabalho interdisciplinar, mas, apesar disso, dificulta muito a nossa situação, porque há um mercado de trabalho diminuto, há pressões sobre as universidades para que encontrem fundos externos para suportar as suas pesquisas e não há muitas corporações dispostas a investir nos cultural studies. Não deixo de pensar que se conseguisse uma hora com alguém como o Steve Jobs [CEO da Apple] até era capaz de o convencer a investir neste tipo de pesquisa. Institucionalmente, este é de facto um momento difícil, e parece-me que estamos a atingir os limites. Até onde poderemos pressionar a universidade contemporânea para permitir a pesquisa crítica interdisciplinar que os cultural studies<br />
requerem? As próprias disciplinas parecem estar a recuar, assistimos a um revivalismo das posições críticas em torno deste tipo de projectos interdisciplinares; as administrações parecem recuar e negar o seu apoio, a não ser que se consigam fundos externos; os estudantes começam também a recuar, porque não vêem onde isto os possa levar... Institucionalmente é um momento difícil, mas em termos sociais, ou históricos, é o melhor dos momentos para se fazer cultural studies.<br />
<br />
<b>O seu percurso levou-o a experimentar a realidade dos cultural studies britânicos e americanos. Diria que existem muitas diferenças entre ambos?</b><br />
<br />
Diria mesmo que são muito diferentes e têm muito pouco em comum. Aquilo que me parece mais difícil de perceber para os europeus é o quão grande é o sistema universitário norte-americano. A quantidade de universidades que temos, a quantidade de professores que temos... temos mais universidades só na cidade de Nova Iorque do que aquelas que vocês provavelmente têm em Portugal. É um sistema gigantesco e por isso é muito difícil ter algum sentido de controlo sobre os cultural studies ou sobre qualquer outro discurso.<br />
O que temos são grandes disciplinas, como a literatura, por exemplo. Quando o New York Times escreve sobre cultural studies, escreve basicamente sobre a MLA [Modern Language Association] e fala com as pessoas dessa associação, que afirmam fazer cultural studies. No entanto, a maioria dessas pessoas não sabe rigorosamente nada sobre a tradição de Birmingham, nem nunca ouviram falar de mim... O que eles entendem por cultural studies tem muito pouco a ver com aquilo que eu entendo serem os cultural studies, mas porque são uma organização muito poderosa, num certo sentido eles têm mais controlo sobre o discurso dos cultural studies do que eu. A verdade é que os<br />
cultural studies nos Estados Unidos são extraordinariamente diversificados, e aquilo que as pessoas pensam que são os cultural studies é algo tão vago e disperso que seria muito difícil identificá-lo com precisão. Tenho uma rede de pessoas que estão mais de acordo com a visão que eu tenho dos cultural<br />
studies e isso inclui indivíduos da área da literatura ou da antropologia, por exemplo. Ao mesmo tempo, há muitos antropólogos que abordam os cultural studies mas que nada têm em comum comigo, que não os concebem como interdisciplinares, nem necessariamente políticos... nesse caso, nem sei muito bem o que pensarão que são os cultural studies. Muitas vezes, dizem-me que sou mais conhecido fora da América do que propriamente na América; na Europa posso ser apresentado como um dos protagonistas dos cultural studies norte-americanos, mas no meu país nunca me apresentariam dessa forma, até porque a maioria das pessoas nunca ouviu falar de mim. Em Inglaterra, como se trata de uma dimensão muito menor, quer enquanto nação quer como meio<br />
académico, é diferente. Há um sentido de identidade que persiste, as pessoas conhecem a origem dos cultural studies, sabem que tudo começou em Birmingham, reconhecem a importância do Goldsmiths College e sabem quem são as figuras mais relevantes do meio. Em muitos aspectos, tenho muito mais<br />
a ver com essas pessoas do que com o meio americano.<br />
<br />
<b>Surpreendeu-o o encerramento do CCCS em Birmingham?</b><br />
<br />
Devo confessar que os meus sentimentos em relação à situação foram um pouco contraditórios. Fiquei desiludido, claro, e também escrevi uma carta opondo-me ao encerramento, mas acho que é necessário ser realista e perceber aquilo que se pode ou não manter. Fiquei surpreendido por ter sido encerrado, porque mantinha a reputação de ser um local de ensino de qualidade excepcional, que os alunos adoravam. Tinha imensos alunos, excelentes professores, grandes programas, e é algo estranho para uma universidade encerrar uma das suas unidades de ensino mais bem sucedidas. Mas seria possível sustentar que, na altura em que fechou portas, era ainda um dos principais centros de investigação dos cultural studies no mundo? Não, certamente que não. As instituições têm as suas histórias, e no ponto em que esta estava seria difícil argumentar que se iria fechar um importantíssimo espaço de investigação dos cultural studies em Inglaterra. Fechou-se um bom departamento de pesquisa e um grande departamento de ensino, e no fundo fiquei mais surpreendido pelo encerramento da componente de ensino. De resto, aquilo já não era o CCCS. Mesmo assim, lamento, acho que foi uma má decisão, que ilustra bem as filosofias erradas que têm conduzido a administração do ensino superior no mundo ocidental. Mas, como tudo o resto, é complexo.<br />
A verdade é que Birmingham sempre detestou o CCCS, nunca apreciou o seu verdadeiro valor, fez mesmo questão de o pôr o mais longe possível do centro do campus universitário, num espaço frio e isolado que ninguém queria – a universidade nunca se preocupou com o CCCS nem com os cultural studies, e sempre tratou francamente mal o Stuart Hall. Nesse sentido, acho que fiquei tão surpreendido com o facto de terem permitido ao CCCS manter-se durante todos aqueles anos como fiquei depois quando o encerraram.<br />
<br />
<b>Uma parte considerável da sua carreira foi dedicada à investigação da música rock e da cultura jovem, embora em tempos recentes tenha abandonado essa área. Como perspectiva esse campo actualmente?</b><br />
<br />
Acho que hoje se faz música rock tão boa como sempre se fez. O meu período favorito na história do rock até hoje é aquele que vai de 1976 a 1985, a época do punk e do pós-punk. Mas hoje também se faz muito boa música, diversificada, apaixonante, adoro a música que se faz, e ouço-a a toda a hora. Metade da música que tenho no meu iPod é contemporânea, não ouço oldies a não ser aqueles que foram feitos nesse período do punk e da new wave. Por outro lado, embora adore a música e a ouça a toda a hora, já não consigo compreender a cultura. Ao longo do meu trabalho na área da música, sempre descrevi aquilo que entendia como rock formations, e parece-me que essa já não é uma descrição adequada ao mundo de hoje para a cultura jovem. Muitas das ideias que eu sustentava, nomeadamente em relação ao facto de o rock funcionar em termos afectivos, considero que ainda poderão ser úteis, mas a minha descrição da forma como a música rock opera em relação ao contexto mais alargado já não é válida, por isso, caso quisesse continuar a trabalhar nessa área – e foi por isso que deixei de o fazer – teria de recomeçar tudo do zero. Escrevi um ensaio, intitulado «Reflections of a Disappointed Popular Music Scholar», onde afirmei que não iria mais escrever sobre música rock e iria desistir da área da música popular, porque entendia que poucos avanços haviam sido feitos nessa<br />
área, porque me parecia ética e moralmente irresponsável não tentar perceber a forma como os jovens estavam a ser tratados, mas sobretudo porque me parecia inevitável reconhecer que o contexto havia mudado. Os discursos que se têm usado para escrever sobre a música rock são os mesmos desde os anos 60, mas o contexto mudou, e não estamos a olhar verdadeiramente para as implicações que essa mudança traz. Os jovens têm hoje uma relação muito diferente com a música, a música funciona de forma diferente para eles, e é necessário perceber essa diferença. Eu desisti; continuo a ouvir a música, mas já não escrevo sobre o assunto, a minha carreira seguiu um novo rumo, menos ligado à cultura jovem e mais à política.<br />
<br />
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<i>Entrevista de Sónia Pereira, Mestranda em Estudos de Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, in Comunicação & Cultura, n.º 6, 2008, pp. 205-213</i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-63909850287151370192014-07-26T18:26:00.001+01:002014-07-26T18:26:57.358+01:00Edgar Morin (2000)<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="480" src="//www.youtube.com/embed/ptITr1Zl9UQ" width="640"></iframe>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-43410639675611362742014-07-15T03:10:00.001+01:002014-07-15T03:10:56.246+01:00Ayn Rand (1964)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxmDvVMebrTrk-do3grl2fvJfOsJ0kmTYhRpNWVXc-RcojvOntV6gSYwM4UDXu-_mhbgKOD-1Ip3Jo_sWUejeNfHuTyApp2zXlrXAz2d-6khKhH_i4Pt66CTY2TiR9XywSlK7htBx8U7xC/s1600/aynrand.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxmDvVMebrTrk-do3grl2fvJfOsJ0kmTYhRpNWVXc-RcojvOntV6gSYwM4UDXu-_mhbgKOD-1Ip3Jo_sWUejeNfHuTyApp2zXlrXAz2d-6khKhH_i4Pt66CTY2TiR9XywSlK7htBx8U7xC/s1600/aynrand.jpg" height="400" width="400" /></a></div>
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PLAYBOY: Senhora Rand, os seus romances, ensaios e, em especial, o seu polémico best-seller, A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged), apresentam uma visão do mundo cuidadosamente projetada e consistente. Efetivamente, são expressões de um abrangente sistema filosófico. O que esperava alcançar com essa nova filosofia?</div>
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<br /></div>
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RAND: Eu buscava fornecer aos homens – ou seja, àqueles que se dignam a pensar – uma visão integrada, consistente e racional da vida.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Quais são as premissas básicas do objetivismo? Em que ponto ele começa?</div>
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<br /></div>
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RAND: Ele parte do axioma de que a existência existe, o que significa que uma realidade objetiva existe independentemente de qualquer observador ou das emoções, sentimentos, desejos, expectativas ou medos do observador. O objetivismo defende que a razão é o único método pelo qual o homem pode apreender a realidade e que ela é seu único guia de ação. Razão, aqui, significa a faculdade que identifica e integra o material percebido pelos sentidos do homem.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Em A Revolta de Atlas, o herói John Galt declara: “Eu juro – por minha vida e por meu amor a ela – que eu nunca viverei por outro homem, nem pedirei para que outro homem viva por mim.” Como essa declaração se relaciona aos seus princípios básicos?</div>
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<br /></div>
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RAND: A declaração de Galt é um resumo dramático da ética objetivista. Qualquer sistema ético é baseado e derivado, implícita ou explicitamente, de uma metafísica. A ética derivada da base metafísica do objetivismo defende que, dado que a razão é a ferramenta básica do homem para sua sobrevivência, a racionalidade é sua maior virtude. Fazer uso de sua mente, perceber a realidade e agir de acordo com ela é o imperativo moral humano. O padrão de valor da ética objetivista é a vida do homem – a sobrevivência do homem como homem -, ou seja, aquela que a natureza de um ser racional necessita para sua sobrevivência apropriada. A ética objetivista, essencialmente, propõe que o homem existe em prol de si mesmo, que a busca de sua felicidade é seu propósito moral mais elevado, que ele não deve sacrificar a si mesmo em benefício alheio nem sacrificar os outros em benefício próprio.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Que tipo de moralidade é derivada disso, em termos de comportamento individual?</div>
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<br /></div>
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RAND: Isso é mostrado em detalhes em A Revolta de Atlas.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: A heroína de A Revolta de Atlas era, em suas palavras, “completamente incapaz de experimentar a sensação de culpa fundamental”. É possível existir um sistema moral sem algum tipo de culpa?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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RAND: A palavra mais importante na citação destacada por você é “fundamental”. O termo “culpa fundamental” não indica a capacidade de julgar as próprias ações e arrepender-se de ações erradas que tenham sido cometidas. A expressão indica que o homem é maligno e culpado por natureza.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Quer dizer, o pecado original?</div>
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<br /></div>
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RAND: Exatamente. É o conceito do pecado original que minha heroína, eu ou qualquer outro objetivista é incapaz de aceitar ou jamais experimentar emocionalmente. O conceito de pecado original é uma negação da moralidade. Se o homem é culpado por natureza, não há qualquer escolha. Sem escolha, a questão não pertence à alçada da moralidade. A moralidade trata apenas da esfera de livre arbítrio do homem – apenas aquelas ações que estão abertas às suas escolhas. Considerar o homem naturalmente culpado é uma contradição em termos. Minha heroína seria capaz de experimentar culpa por conta de ações específicas. No entanto, sendo uma mulher de grande estatura moral e de auto-estima, ela se certificaria de que jamais tivesse que sentir culpa por seus atos. Ela agiria de forma plenamente moral e, portanto, não aceitaria culpa imerecidamente.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Em A Revolta de Atlas, um de seus personagens principais é questionado: “Que tipo de ser humano é o mais corrupto?” Sua resposta é surpreendente: ele não diz que é um sádico, um assassino, um maníaco sexual ou um ditador; diz que é “um homem sem um propósito”. A maioria das pessoas aparentemente atravessa suas vidas sem qualquer propósito claramente definido. Você as considera corrompidas?</div>
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<br /></div>
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RAND: Sim, até certo ponto.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Por quê?</div>
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<br /></div>
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RAND: Porque tal aspecto de seus caráteres está na raiz e é a causa de todos os males mencionados em sua pergunta. O sadismo, as ditaduras, ou quaisquer formas de males, são consequências da fuga do homem da realidade. São consequências de seu não-pensar. Um homem sem propósito é um homem movido por sentimentos aleatórios ou desejos desconhecidos e é capaz de qualquer espécie de mal, porque está totalmente afastado do controle de sua própria vida. Para estar em controle de sua vida, é necessário ter um propósito – um propósito produtivo.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Não se pode dizer que Hitler e Stálin, dois tiranos, estavam em pleno controle de suas vidas e que possuiam propósitos bastante claros?</div>
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<br /></div>
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RAND: Certamente não. Perceba que ambos terminaram, literalmente, como psicóticos. Eram homens sem qualquer auto-estima e, portanto, odiavam a existência. A psicologia que se aplica a eles está resumida no personagem de James Taggart em A Revolta de Atlas. O homem que não possui um propósito, mas precisa agir, age para destruir os outros. Isso não é o mesmo que ter um propósito produtivo ou criativo.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Se uma pessoa organiza sua vida em torno de um propósito único e claramente definido, ela não corre o risco de se tornar seus horizontes demasiadamente limitados?</div>
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<br /></div>
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RAND: Muito ao contrário. Um propósito central serve para integrar todas as outras preocupações da vida do homem. Estabelece uma hierarquia, as importâncias relativas de seus valores, poupa-o de conflitos interiores sem sentido, permite que ele desfrute de sua vida de maneira ampla e que ele transfira esse desfrute para todas as áreas abertas a sua mente; por contraste, um homem sem propósito está perdido no caos. Não conhece seus valores. Não sabe como fazer julgamentos. Não é capaz de discernir o que é ou não importante para si e, dessa forma, move-se impotentemente à mercê de estímulos ao acaso ou de impulsos momentâneos. Não é capaz de desfrutar de nada. Passa sua vida buscando valores que jamais encontrará.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: A tentativa de eliminar da vida quaisquer formas de impulsos e de agir de maneira totalmente racional não pode levar a uma existência seca e infeliz?</div>
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<br /></div>
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RAND: Devo dizer honestamente que não sei do que você está falando. Vamos definir nossos termos. A razão é a ferramenta do homem de conhecimento, a faculdade que o torna capaz de perceber os fatos da realidade. Agir racionalmente significa agir de acordo com os fatos da realidade. Emoções não são ferramentas cognitivas. O que você sente não transmite qualquer conhecimento a respeito dos fatos; transmite apenas a sua estimativa dos fatos. As emoções são o resultado de julgamentos de valor; são causadas por suas premissas básicas, que você possui consciente ou subconscientemente, que podem estar certas ou erradas. Um impulso é uma emoção cuja causa você desconhece e não pretende descobrir. Portanto, o que significa agir por impulso? Significa que o homem está agindo como um zumbi, sem qualquer conhecimento daquilo com que está lidando, daquilo que deseja conquistar, do que o motiva. Significa que o homem age em estado de insanidade temporária. É isso que você chama de interessante e feliz? Na minha opinião, só o que pode advir disso é sangue. Agir em contrariedade com os fatos só pode levar à destruição.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Deve-se ignorar totalmente as emoções, rejeitá-las da vida por completo?</div>
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<br /></div>
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RAND: Evidentemente não. Deve-se tão somente mantê-las em seu devido lugar. Uma emoção é uma reposta automática, um efeito automático das premissas valorativas do homem. Um efeito, não uma causa. Não há necessariamente conflito, não há dicotomia entre as emoções e a razão do homem – dado que se observe seu relacionamento apropriado. Um homem racional sabe – ou ao menos pretende descobrir – a fonte de suas emoções, as premissas básicas de que advêm; se são erradas, ele as corrige. Ele jamais age impelido por emoções inexplicadas, cujo significado desconhece. Ao avaliar uma situação, ele sabe por que ele reage como reage e se está certo. Ele não tem conflitos interiores, sua mente e suas emoções estão integradas, sua consciência está em perfeita harmonia. Suas emoções não são suas inimigas, são seus meios de desfrutar da vida. Mas não são seu guia; seu guia é sua mente. Esse relacionamento não pode ser revertido. Se o homem toma suas emoções como causa e sua mente como efeito passivo, se ele é guiado por suas emoções e sua mente serve apenas para racionalizá-las ou justificá-las, então ele está agindo de maneira imoral, condenando a si próprio à miséria, ao fracasso, à derrota, e não alcançará nada além de destruição – sua e dos outros.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: De acordo com a sua filosofia, o trabalho e a conquista são os maiores objetivos da vida. Você considera imorais aqueles que encontram maior realização nos laços de amizade e família?</div>
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<br /></div>
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RAND: Se colocam coisas como amizade e família acima do trabalho produtivo, sim, são imorais. A amizade, a vida familiar e os relacionamentos humanos não são primordiais na vida do homem. Um homem que coloca os outros em primeiro lugar, acima de seu próprio trabalho criativo, é um parasita emocional; em contraste, se coloca seu trabalho em primeiro plano, não há conflito entre seu trabalho e seu desfrute dos relacionamentos humanos.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Você acredita que tanto mulheres quanto homens devam organizar suas vidas em torno do trabalho? Se sim, que tipo de trabalho?</div>
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<br /></div>
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RAND: Claro. Eu creio que mulheres sejam seres humanos. O que é apropriado para um homem é apropriado para uma mulher. Os princípios básicos são os mesmos. Eu não pretendo prescrever que tipo de trabalho um homem deva executar, e também não faria tal coisa em relação às mulheres. Não há trabalho que seja particularmente feminino. Mulheres podem escolher seu trabalho de acordo com seus propósitos e premissas da mesma maneira que os homens.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Em sua opinião, uma mulher que escolha dedicar-se à família e à casa ao invés da carreira é imoral?</div>
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<br /></div>
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RAND: Imoral, não – eu diria que ela é imprática, porque uma casa não pode ser uma ocupação plena, a não ser quando os filhos são muito jovens. No entanto, se ela deseja uma família e quer fazer daquilo sua carreira, ao menos temporariamente, seria apropriado caso ela lide com a questão como uma carreira, ou seja, caso ela estude a matéria e defina regras e princípios segundo os quais ela deseja criar seus filhos, abordando o assunto de maneira intelectual. É uma tarefa muito responsável e importante, mas somente quando tratada como ciência e não como indulgência emocional.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Onde, você diria, que se encaixa o amor romântico na vida de uma pessoa racional cuja única paixão motivadora é o trabalho?</div>
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<br /></div>
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RAND: É sua maior recompensa. O único homem capaz de experimentar um profundo amor romântico é aquele motivado pela paixão por seu trabalho – porque o amor é uma expressão de auto-estima, dos valores mais profundos no caráter de um homem ou mulher. A paixão ocorre entre pessoas que compartilham valores. Se um homem não tem valores claramente definidos e não possui caráter moral, ele não é capaz de apreciar outra pessoa. A propósito disso, eu gostaria de citar uma passagem de A Nascente na qual o herói profere uma frase que é frequentemente mencionada pelos leitores: “Para dizer ‘Eu te amo’, é necessário antes saber como dizer ‘eu’”.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Você defende que a felicidade própria é o fim mais elevado e que o auto-sacrifício é imoral. Isso se aplica ao amor tanto quanto ao trabalho?</div>
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<br /></div>
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RAND: Ao amor mais que a qualquer outra coisa. Quando se ama, isso significa que a pessoa por quem se é apaixonado é de grande importância pessoal e egoísta para você e para sua vida. Não fosse você egoísta, isso significaria que você não tem qualquer prazer ou feliidade da companhia e da existência da pessoa que você ama e que você é motivado somente por pena auto-sacrificante da necessidade daquela pessoa por você. Não é necessário que eu explique para você que ninguém deve se sentir lisonjeado ou aceitar um conceito dessa ordem. O amor não é um auto-sacrifício, mas a mais profunda afirmação de suas necessidades e valores. É por sua felicidade que você precisa da pessoa que ama, e esse é o maior elogio e tributo que você pode dar a ela.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Você condena a noção puritana de que o amor físico é feio ou mau; no entanto, você escreveu que “o desejo e a indulgência indiscriminados são possíveis apenas àqueles que consideram o sexo e a si próprios como maus”. Você diria que a indulgência sexual seletiva e discriminada é moral?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Eu diria que uma vida sexual discriminada e seletiva não é o mesmo que indulgência. O termo “indulgência” implica uma ação executada superficial e casualmente. Eu proponho que o sexo seja um dos mais importantes aspectos da vida do homem e que, portanto, não deve jamais ser tratado de forma superficial ou casual. Um relacionamento sexual é apropriado somente quando considerado um dos maiores valores que se pode encontrar num ser humano. O sexo não pode ser nada além de uma resposta a valores. E é por isso que eu considero a promiscuidade imoral. Não porque o sexo seja maligno, mas porque o sexo é bom e importante demais.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Isso significa, em sua opinião, que o sexo deva envolver somente parceiros casados?</div>
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<br /></div>
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RAND: Não necessariamente. O que o sexo deve envolver é um relacionamento muito sério. Se esse relacionamento deve ou não tornar-se um casamento é uma matéria circunstancial, a depender do contexto das vidas das duas pessoas em questão. Eu considero o casamento uma instituição muito importante, mas é importante quando e se duas pessoas tenham encontrado a pessoa com quem desejam passar o resto de suas vidas – uma questão sobre a qual nenhum homem ou mulher pode ter certeza automaticamente. Quando há a certeza de que a presente escolha é a final, então o casamento é, naturalmente, um estado desejável. Mas isso não significa que qualquer relacionamento baseado em menos que uma plena certeza seja inapropriado. Penso que a escolha entre um namoro ou um casamento depende do conhecimento e da posição das pessoas envolvidas e deve ser deixada para a decisão deles. Qualquer alternativa é moral, dado que as partes levem a sério a relação e que a baseiem em valores.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: Como alguém que defende a causa do auto-interesse esclarecido, como você vê a dedicação da vida de uma pessoa à auto-gratificação hedonista?</div>
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<br /></div>
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RAND: Sou profundamente contrária à filosofia hedonista. O hedonismo é a doutrina que defende que o bem é o que quer que gere prazer e que, portanto, o prazer é o padrão de moralidade. O objetivismo defende que o bem deve ser definido por um padrão racional de valor, que o prazer não é uma causa primária, mas tão somente uma consequência, que somente o prazer advindo de um julgamento de valor racional pode ser considerado moral, e que o prazer, como tal, não é um guia de ação nem um padrão de moralidade. Dizer que o prazer deve ser o padrão de moralidade significa simplesmente que quaisquer valores que você tenha escolhido, conscientemente ou não, racionalmente ou não, são corretos e morais. Isso significa que você deve ser guiado por sentimentos, emoções e impulsos casuais. Minha filosofia é o contrário do hedonismo. Eu defendo que não é possível alcançar a felicidade através de meios aleatórios, arbitrários ou subjetivos. Por valores racionais, não quero dizer quaisquer coisas que o homem declare arbitrária ou cegamente serem racionais. É a moralidade, a ciência da ética, que deve definir para os homens o que é um padrão racional e quais são os valores racionais a ser buscados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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PLAYBOY: Você já afirmou que o homem que passa seu tempo tentando conquistar mulheres é um homem que “despreza a si mesmo”. Pode elaborar?</div>
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<br /></div>
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RAND: Esse tipo de homem reverte a causa e o efeito em relação ao sexo. Sexo é uma expressão de auto-estima, de auto-valor. Mas o homem que não valoriza a si próprio tenta reverter esse processo. Ele tenta derivar sua auto-estima de suas conquistas sexuais, o que não é possível de se fazer. Ele não pode adquirir seus valores das várias mulheres que o consideram valioso. Contudo, é isso que ele tenta fazer.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Você ataca a ideia de que o sexo é “imune à razão”. Porém, não é o sexo um instinto biológico não-racional?</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. Para começar, o homem não possui quaisquer instintos. Fisicamente, o sexo é somente uma capacidade. Como o homem exercerá essa capacidade e quem ele considerará atraente depende de seus padrões de valor. Depende de suas premissas, que podem ser conscientes ou subconscientes, e que determinam suas escolhas. É dessa maneira que sua filosofia dita sua vida sexual.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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PLAYBOY: O indivíduo não é dotado de fortes e não-racionais impulsos biológicos?</div>
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<br /></div>
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RAND: Não. O homem é dotado de certo tipo de mecanismo físico e de certas necessidades, mas não possui qualquer conhecimento de como satisfazê-las. Por exemplo, o homem precisa de alimento. Ele sente fome. Mas a não ser que ele aprenda a identificar essa fome e então aprenda que precisa de comida e como obtê-la, ele morrerá de fome. A necessidade, a fome, não dirá a ele como satisfazê-la. O homem nasce com certas necessidades físicas e psicológicas, mas não é capaz de descobri-las nem satisfazê-las sem o uso de sua mente. O homem tem que descobrir o que é certo ou errado para si como ser racional. Seus impulsos não o informarão o que fazer.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Em A Revolta de Atlas, você escreveu: “Há dois lados a todas as questões. Um é o lado certo, o outro, errado, mas o meio do caminho é sempre maligno.” Não é este um conjunto de valores um tanto preto-e-branco?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Certamente. Eu enfaticamente defendo uma visão de mundo preto-e-branca. Definamos esse termo. O que se quer dizer pela expressão “preto-e-branco”? Quer dizer bom e mau. Antes de identificar algo como “cinza”, como “meio do caminho”, é necessário saber o que é preto e o que é branco, porque o cinza é apenas uma mistura dos dois. E quando você estabeleceu que uma alternativa é boa e que a outra é ruim, não há justificativa para a escolha da mistura. Não há jamais qualquer justificativa para a escolha de parte daquilo que se sabe ser mau.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Então você acredita em absolutos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Sim.</div>
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<br /></div>
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PLAYBOY: O objetivismo, portanto, não pode ser chamado de dogma?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. Um dogma é um conjunto de crenças aceitos por fé; ou seja, sem justificativa ou evidência racional. Um dogma é não mais que fé cega. O objetivismo é o exato oposto. O objetivismo prega que não se deve aceitar qualquer ideia ou convicção a não ser que se possa demonstrar sua veracidade por meio da razão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Se amplamente aceito, não é possível que o objetivismo se torne um dogma?</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. Acredito que o objetivismo seja sua própria proteção contra pessoas que possam tentar usá-lo como dogma. Uma vez que o objetivismo requer o uso da própria mente, aqueles que tentam pegar princípios gerais e aplicá-los indiscriminadamente aos concretos de sua existência veem que isso não pode ser feito. São compelidos a rejeitar o objetivismo ou a aplicá-lo apropriadamente. Ou seja, têm que usar suas mentes, seus pensamentos, para aplicar os princípios objetivistas aos problemas específicos de suas vidas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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PLAYBOY: Você já se disse contrária à fé. Você acredita em Deus?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Certamente não.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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PLAYBOY: Há uma citação sua que diz: “A cruz é o símbolo da tortura, do sacrifício do ideal ao não-ideal. Eu prefiro o símbolo do dólar.” Você de fato acredita que dois mil anos de cristianismo podem ser resumidos à palavra “tortura”?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Primeiramente, eu nunca disse isso. Não é do meu estilo. Nem literário, nem intelectual. Eu não digo preferir o símbolo do dólar – essa é uma tolice barata, e por favor não deixe de publicar isto. Eu não sei da origem dessa citação em particular, mas o significado do símbolo do dólar é esclarecido em A Revolta de Atlas. Como explicado claramente na história, é o símbolo das livres trocas e, portanto, das livres mentes. Uma mente livre e uma economia livre são corolários. Uma não pode existir sem a outra. O símbolo do dólar, enquanto símbolo de um país livre, é o símbolo da mente livre. Mais que isso, uma hipótese histórica bastante provável, embora nunca provada, é que o símbolo do dólar advém das iniciais dos Estados Unidos. É o que tenho a dizer sobre isso. Agora, deixe-me falar sobre a cruz. O que é correto é que eu de fato considero a cruz o símbolo do sacrifício do ideal ao não-ideal. Não é isso que ela significa? Cristo, na filosofia cristã, é o ideal humano. Ele personifica aquilo que os homens devem se esforçar para emular. Contudo, de acordo com a mitologia cristã, ele morreu na cruz não por seus próprios pecados, mas pelos pecados de pessoas não-ideais. Em outras palavras, um homem de virtude perfeita foi sacrificado por homens que eram viciosos e que deviam aceitar aquele sacrifício. Se eu fosse cristã, nada me deixaria mais indignada: a noção de sacrifício do ideal ao não-ideal, de virtude ao vício. E é em nome desse símbolo que se pede os homens se sacrifiquem aos seus inferiores. É precisamente dessa maneira que o simbolismo é usado. Isso é tortura.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Nenhuma religião, em sua estimativa, jamais foi capaz de oferecer algo de valor à vida humana?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Enquanto religião, não – no sentido de crença cega, de crença sem base ou contrária aos fatos da realidade e às conclusões da razão. A fé, como tal, é extremamente deletéria à vida humana: é a negação da razão. Mas deve-se lembrar que a religião é uma forma primitiva de filosofia, que as primeiras tentativas de explicar o universo e dar ao homem uma estrutura coerente de referência e um código moral foram feitas pela religião, antes que o homem se desenvolvesse o suficiente para chegar à filosofia. E, enquanto filosofias, algumas religiões possuem valiosos ensinamentos morais. Podem ter boas influências ou princípios apropriados, porém num contexto muito contraditório e – como dizer? – numa base perigosa e maligna: a fé.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Então você diria que se tivesse que escolher entre o símbolo da cruz e o símbolo do dólar, você escolheria o dólar?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Eu não aceitaria essa escolha. Em outras palavras: se eu tivesse que escolher entre fé e razão, eu nem consideraria possível escolher. Enquanto humano, deve-se escolher a razão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Você considera ricos empresários como os Fords e os Rockefellers imorais porque usam suas riquezas para caridade?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. É privilégio deles, se desejam fazer isso. Minhas opiniões a respeito da caridade são muito simples. Não a considero uma virtude maior e, acima de tudo, não a considero um dever moral. Não ha nada de errado em ajudar outras pessoas, se elas são dignas de ajuda e se você pode ajudá-las. Eu considero a caridade uma questão menor. O que eu combato é a noção de que a caridade é um dever moral e uma virtude primária.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Qual é o lugar da compaixão no seu sistema filosófico?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Eu considero a compaixão apropriada somente àqueles que sejam vítimas inocentes, mas não para com aqueles que são moralmente culpados. Se uma pessoa sente compaixão pelas vítimas de um campo de concentração, não pode senti-la pelos torturadores. Se uma pessoa sente compaixão pelos torturadores, trata-se de um ato de traição moral para com as vítimas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Seria contrário aos princípios objetivistas sacrificar-se por outra pessoa, colocando-se na frente de uma bala que vai atingi-la?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. Depende das circunstâncias. Eu me colocaria no caminho da bala se ela fosse direcionada ao meu marido. Não é um auto-sacrifício morrer protegendo aquilo que você valoriza: se o valor é grande o bastante, você não se importa em existir sem ele. Isso se aplica a qualquer suposto sacrifício em prol daqueles que se ama.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Você estaria disposta a morrer por sua causa e seus seguidores devem estar dispostos a morrer por ela? Para o objetivista verdadeiramente anti-sacrifício, há alguma causa que valha sua própria vida?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: A resposta a isso está bem explicada em meu livro. Em A Revolta de Atlas, eu explico que o homem deve viver e, se necessário, lutar por seus valores – porque o processo de viver consiste na conquista de valores. O homem não sobrevive automaticamente. Ele deve viver como um ser racional e não aceitar menos que isso. Ele não pode sobreviver como um bárbaro. Mesmo o mais simples dos valores, como a comida, deve ser criado pelo homem, deve ser plantado, deve ser produzido. O mesmo é verdadeiro em relação a suas conquistas mais importantes e interessantes. Todos os valores têm que ser ganhos e mantidos pelo homem e, se desafiados, ele deve estar disposto a lutar e morrer, se preciso, por seu direito de viver como um ser racional. Você me pergunta se eu estaria disposta a morrer pelo objetivismo. Sim, estaria. Porém, o que é mais importante, eu estou disposto a viver por ele – o que é muito mais difícil.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Sua ênfase na razão a coloca em conflito filosófico com autores, romancistas e poetas contemporâneos – muitos dos quais se admitem como místicos ou irracionalistas. Por que isso ocorre?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Porque a arte tem uma base filosófica e as tendências filosóficas de hoje em dia são formas de neo-misticismo. A arte é uma projeção das visões fundamentais do artista em relação ao homem e à existência. Já que a maioria dos artistas não desenvolve uma filosofia independentemente, eles absorvem, consciente ou inconscientemente, as influências filosóficas mais conspícuas de seu tempo. A maior parte da literatura atual é um reflexo preciso da filosofia contemporânea – olhe para ela!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Um escritor não deve refletir o seu tempo?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. Um escritor deve ser um ativo líder intelectual de seu tempo, não um seguidor passivo de qualquer fluxo. Um escritor deve moldar os valores de sua cultura, deve projetar e concretizar os valores da vida humana. Essa é a essência da escola romântica de literatura, que quase desapareceu da cena literária atual.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: O que nos coloca em qual posição, literariamente?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: No beco sem saída do naturalismo. O naturalismo defende que o escritor deve ser um fotógrafo passivo ou um repórter que deve transcrever acriticamente o que quer que ele observe a seu redor. O romantismo defende que o escritor não deva simplesmente mostrar as coisas tais quais são a determinado momento mas, para citar Aristóteles, “como podem ser e devem ser”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Você diria que é o último representante dos românticos?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Ou o primeiro de seu retorno, para usar uma fala de um de meus personagem em A Revolta de Atlas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Qual a sua avaliação da literatura contemporânea em geral?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Filosoficamente, imoral. Esteticamente, aborrecida. Está se degenerando, dedicando-se exclusivamente a estudos de depravação. Não há nada mais desinteressante que a depravação.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Há algum romancista que você admire?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Sim, Victor Hugo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Algum romancista moderno?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não há ninguém que eu admire entre os escritores ditos sérios. Prefiro a literatura popular atual, que é a remanescência do romantismo. Dela, meu escritor preferido é Mickey Spillane.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: Por que gosta dele?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Por que ele é, primariamente, um moralista. De forma primitiva, na forma de um romance policial, ele apresenta o conflito do bem e do mal, do preto e do branco. Ele não mostra nenhuma mistura cinzenta repulsiva em que há canalhas indistintos dos dois lados. Apresenta um conflito irreconciliável. Como escritor, ele é brilhante no aspecto da literatura que eu considero mais importante: o enredo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: O que você pensa de Faulkner?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não muito. Bom estilista, mas praticamente ilegível em conteúdo – li muito pouco dele.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY: E quanto a Nabokov?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Li somente um livro e meio dele – o meio foi Lolita, que não consegui terminar. Brilhante em estilo, escreve muito belamente, mas seus assuntos, seu senso de vida e sua visão do homem são tão malévolos que nenhuma quantidade de habilidade artística pode justificá-los.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Enquanto romancista, você considera a filosofia o propósito principal de sua escrita?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não. Meu propósito principal é a projeção de um homem ideal, de “como ele pode e deve ser”. A filosofia é o meio necessário para atingir essa finalidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Em um de seus romances anteriores, Anthem, seu protagnista declara: “É o meu arbítrio que faz a escolha, e a escolha do meu arbítrio é o único édito que eu respeito”. Isso não é anarquismo? O desejo ou a vontade pessoal é a única lei que se deve respeitar?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não simplesmente a vontade própria. Essa é, mais ou menos, uma expressão poética usada no contexto da história em Anthem. Trata-se do julgamento racional próprio. Veja bem, eu uso a expressão “livre arbítrio” de maneira completamente diversa de como ela é normalmente utilizada. O livre arbítrio é a capacidade humana de pensar ou não pensar. O ato de pensar é o ato primário de escolha. Um homem racional jamais será guiado por desejos ou impulsos, somente por valores baseados em seus julgamentos racionais. Essa é a única autoridade que ele é capaz de reconhecer. Isso não significa anarquia, porque, se um homem deseja viver numa sociedade livre e civilizada, ele, racionalmente, teria que escolher a observância de leis – na medida em que essas leis seja objetivas, racionais e, portanto, válidas. Eu já escrevi um artigo a esse respeito para The Objectivist Newsletter, sobre a necessidade e a função apropriada do governo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Qual, em sua visão, é a função apropriada do governo?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Basicamente, só há uma função apropriada: a proteção dos direitos individuais. Uma vez que direitos podem ser violados tão somente pela força física e por certas derivações da força física, a função apropriada do governo é a proteção dos homens daqueles que iniciam o uso da força física – ou seja, de criminosos. A força, numa sociedade livre, pode somente ser utilizada em retaliação e somente contra aqueles que iniciam seu uso. Tal é a tarefa apropriada do governo: a de servir como policial que protege os homens do uso da força.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Se a força só pode ser usada em retaliação contra o uso da força, o governo tem direito, por exemplo, de coletar impostos ou de obrigar o alistamento militar?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Em princípio, eu acredito que a taxação deva ser voluntária, como tudo o mais. Porém, a implementação dessa ideia é uma questão bastante complexa. Eu posso apenas sugerir certos métodos, mas não insistiria que eles fossem respostas definitivas. Uma loteria estatal, por exemplo, usada em muitos países da Europa, é um bom método de taxação voluntária. Existem outros. Os impostos devem ser contribuições voluntárias aos serviços apropriados do governo, aqueles necessários às pessoas e que portanto todos estariam e deveriam estar dispostos a pagar – da mesma forma que pagam por diversas formas de seguros. Mas, claro, esse é um problema para o futuro distante, para um tempo em que o homem estará prestes a implementar um sistema social plenamente livre. Seria a última, não a primeira reforma na qual se pensar. Quanto à questão do alistamento obrigatório, é injusto e inconstitucional. É uma violação dos direitos fundamentais do homem, do direito humano à própria vida. Nenhum homem tem o direito de enviar outro homem para lutar e morrer por sua causa – pela causa daquele que envia. Um país não tem direito de forçar os homens à servidão. Exércitos devem ser estritamente voluntários; e, como hão de dizer as autoridades militares, exércitos voluntários são os melhores.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: E quanto a outras necessidades públicas? Você considera, digamos, que os correios sejam uma instituição governamental apropriada?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Deixe-me ser bem clara aqui. Minha posição é totalmente consistente. Não apenas os correios, mas também as ruas, estradas e, acima de tudo, escolas devem ser propriedade privada e mantidas por entes privados. Eu defendo a separação do estado e da economia. O governo deve somente se concentrar com as questões que envolvem o uso da força. Ou seja: polícia, exército e os tribunais para resolver disputas legais. Nada mais. Todo o resto deve ser privado, e nesse caso seria muito melhor administrado.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você criaria algum novo departamento ou alguma nova agência governamental?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não, e eu não sou capaz de discutir questões dessa maneira. Eu não sou um planejador estatal e não gasto o meu tempo concatenando utopias. Falo de princípios cujas aplicações práticas são claras. Se eu já disse que sou oposta à iniciação de força, o que mais se precisa discutir?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: E quanto à força nas relações exteriores? Você disse que qualquer nação livre tinha o direito de invadir a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial…</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Certamente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: … E que qualquer nação livre de hoje em dia tem o direito moral – embora não o dever – de invadir a Rússia soviética, Cuba ou outros países “senzalas”. Correto?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Correto. Uma ditadura – um país que viola os direitos de seus próprios cidadãos – é um regime criminoso e não tem quaisquer direitos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você defenderia uma invasão americana à Cuba ou à União Soviética?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: No presente momento, não. Eu não considero que seja necessário. Eu defenderia aquilo que a União Soviética mais teme: o boicote econômico. Eu defenderia um bloqueio a Cuba e um boicote econômico à Rússia Soviética. Dessa forma, ambos os regimes entrariam em colapso sem a perda de uma única vida americana.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você defenderia o fim das relações diplomáticas com a Rússia?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Sim. Não apoio a pretensão grotesca de uma organização supostamente dedicada à paz mundial e aos direitos humanos que inclua em suas fileiras a Rússia Soviética, o maior agressor e o regime mais sanguinário da história. A noção de proteger direitos com a inclusão da Rússia soviética é um insulto ao conceito de direitos e à inteligência de qualquer homem a quem se peça o endosso ou a sanção de uma organização desse tipo. Eu não acredito que um indivíduo deva cooperar com criminosos e, pelas mesmas razões, não acredito que países livres devam cooperar com ditaduras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Quais são suas visões a respeito do tratado de banimento aos testes nucleares que foi recentemente assinado?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Concordo com o discurso de Barry Goldwater a esse respeito no Senado. As melhores autoridades militares e, sobretudo, a maior autoridade científica, o dr. Teller, criador da bomba de hidrogênio, afirmam que esse tratado não é apenas irrelevante, como também perigoso à segurança dos Estados Unidos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Se o senador Goldwater for nomeado candidato republicano em Julho, você votaria nele?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: No momento, eu diria que sim. Quando falo “no momento”, eu digo no momento em que esta entrevista está sendo registrada. Eu discordo dele em muitos pontos, mas concordo, em sua maior parte, com a política externa dele. De todos os candidatos potenciais de hoje, considero Barry Goldwater o melhor. Eu votaria nele se ele nos oferecer uma plataforma plausível ou, no mínimo, semi-consistente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: E quanto a Richard Nixon?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Me oponho a ele. Me oponho a quem faz concessões e não tem ideias próprias, e nesses quesitos o sr. Nixon provavelmente é o campeão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: E quanto ao presidente Johnson?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não tenho opinião em particular sobre ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você é declaradamente anti-comunista, anti-socialista e anti-liberal. No entanto, você rejeita a noção de que seja conservadora. De fato, você reserva alguns de seus comentários mais negativos aos conservadores. Qual é a sua posição política?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Correção. Eu nunca descrevo minha posição em negativos. Eu advogo o capitalismo laissez-faire, os direitos individuais (não existem outros) e a liberdade individual. É sobre essa base que eu me oponho a quaisquer doutrinas que proponham o sacrifício do indivíduo ao coletivo, como o comunismo, o socialismo, o estado de bem-estar, o fascismo, o nazismo e o moderno liberalismo. Eu sou contrária aos conservadores da mesma maneira. Os conservadores defendem uma economia mista e um estado de bem-estar. Se diferenciam dos liberais em grau, não em princípio.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você já afirmou que os Estados Unidos estão em bancarrota intelectual. Você inclui nessa condenação publicações de direita como a National Review? Essa revista não é uma voz poderosa contra todas as coisas que você considera “estatismo”?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Eu considero a National Review a pior e a mais perigosa revista nos EUA. O tipo de defesa que ela oferece ao capitalismo não resulta em nada a não ser no descrédito e na destruição do capitalismo. Quer que eu diga por quê?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Sim, por favor.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Porque ela liga o capitalismo à religião. A posição ideológica da National Review se resume, com efeito, ao seguinte: para aceitar a liberdade e o capitalismo, deve-se acreditar em Deus ou em alguma forma de religião ou misticismo sobrenatural. O que significa que não há bases racionais por que defender o capitalismo. O que se trata de uma admissão de que a razão está ao lado dos inimigos do capitalismo, de que uma sociedade escravista ou uma ditadura são sistemas racionais, e que somente com base numa fé mística podemos acreditar na liberdade. Nada mais depreciativo ao capitalismo que isso pode jamais ser dito, e o exato oposto é a verdade. O capitalismo é o único sistema que pode ser defendido e validado pela razão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você atacou o governador Nelson Rockefeller por “colocar todos os oponentes do estado de bem-estar num mesmo grupo, ao lado de lunáticos”. Estava claro nas observações dele que ele criticava a John Birch Society. Você se ofende ao ser colocada no mesmo grupo que os integrantes da John Birch? Você os considera “lunáticos” ou uma força do bem?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Eu me ofendo ao ser colocada no mesmo grupo que qualquer um. Eu me ofendo com o método moderno de nunca definir ideias e agrupar pessoas completamente diferentes num coletivo por meio de calúnias e termos depreciativos. Eu me ofendo pelas táticas de calúnia do governador Rockefeller: sua recusa em identificar especificamente a quem e a que se refere. Quanto a mim, eu repito, eu não desejo ser agrupada com ninguém e certamente não com a John Birch Society. Se os considero lunáticos? Não, não necessariamente. O que há de errado com eles é que eles não parecem ter qualquer filosofia política específica e claramente definida. Portanto, alguns deles podem ser lunáticos, outros podem ser cidadãos de boa fé. Eu considero a Birch Society fútil, porque não são pró-capitalismo, são contra o comunismo. Percebo que eles acreditam que o estado desastroso do mundo atual é causado por uma conspiração comunista. Essa é uma visão infantil e superficial. Nenhum país pode ser destruído por uma mera conspiração – países só são destruídos por ideias. Os Birchers parecem ser não-intelectuais ou anti-intelectuais. Não dão importância a ideias. Não percebem que a grande batalha do mundo atual é um conflito filosófico e ideológico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Existem grupos políticos nos EUA atualmente que você aprova?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Grupos políticos em si, não. Existe algum grupo político hoje em dia que seja totalmente coerente? Esses grupos atualmente são são guiados por – e defendem – contradições gritantes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você tem alguma aspiração política? Já considerou concorrer a algum cargo eletivo?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Certamente não. Creio que você não me odeie tanto para desejar que eu faça tal coisa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Mas você tem interesse em política, ou ao menos em teoria política, não tem?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Deixe-me responder dessa maneira: quando eu cheguei aqui, saindo da Rússia soviética, eu me interessava em política por somente uma razão – para chegarmos num dia em que eu não teria que ter interesse em política. Eu desejava uma sociedade na qual eu estaria livre para perseguir minhas preocupações e objetivos, sabendo que o governo não interferiria para destruí-los, sabendo que minha vida, meu trabalho e meu futuro não estariam à merc~e do estado ou dos impulsos de um ditador. Essa é minha atitude ainda hoje. Porém, eu sei hoje que essa sociedade é um ideal que ainda não foi atingido, que eu não posso esperar que outros o atinjam por mim e que eu, como todos os outros cidadãos responsáveis, devo fazer tudo que esteja a meu alcance para atingi-lo. Em outras palavras, eu somente me interesso em política para assegurar e proteger a liberdade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Em toda a sua obra, você argumenta que a maneira pela qual o mundo contemporâneo está organizado, mesmo em países capitalistas, afoga o indivíduo e impede a livre iniciativa. Em A Revolta de Atlas, John Galt lidera uma greve de homens da mente – que resulta no colapso da sociedade coletivista ao redor deles. Você acha que a hora chegou de os artistas, intelectuais e empresários criativos retirarem seus talentos da sociedade daquela forma?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Não, ainda não. No entanto, antes que eu explique esse ponto, eu devo corrigir um trecho de sua pergunta. O que temos hoje em dia não é uma sociedade capitalista, mas uma economia mista – isto é, uma mistura de liberdade e controle, que, a julgar pela tendência dominante, deve se transformar em ditadura. Em A Revolta de Atlas, os acontecimentos ocorrem num momento em que a sociedade alcançou o estágio de ditadura. Quando – e se – isso acontecer será o momento da greve, mas até lá, não.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Qual o seu conceito de ditadura? Como você a definiria?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Uma ditadura é um país que não reconhece os direitos individuais, cujo governo possui poder total e ilimitado sobre os homens.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Qual é a linha divisória, pela sua definição, entre uma economia mista e uma ditadura?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Uma ditadura tem quatro características: partido único, execuções sem julgamento por crimes políticos, expropriação e nacionalização da propriedade privada e censura. Sobretudo, esta última. Enquanto os homens puderem falar e escrever livremente, enquanto não houver censura, há ainda uma chance de reformar a sociedade e colocá-la num caminho melhor. Quando a censura é imposta, esse é o sinal de que os homens devem entrar em greve intelectual – isto é, não devem cooperar com o soistema social de forma alguma.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Se não for por meio de uma greve dessa natureza, o que você aha que deve ser feito para trazer as mudanças sociais que você acredita serem desejáveis.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: São as ideias que determinam as tend~encias sociais, que criam ou destroem sistemas sociais. Portanto, as ideias corretas, a filosofia certa, deve ser defendida e divulgada. Os desastres do mundo moderno, inclusive a destruição do capitalismo, foram causadas pela filosofia altruísta-coletivista. É o altruísmo que deve ser rejeitado pelo homem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: E como você define “altruísmo”?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: É o sistema moral que defende que o homem não tem direito de existir em prol de si mesmo, que servir aos outros é a justificação única de sua existência, e que o auto-sacrifício é o maior dever, valor e virtude moral. Essa é a base moral do coletivismo e de todas as ditaduras. Para buscar a liberdade e o capitalismo, o homem precisa de um código de ética não-místico e não-altruísta – uma moralidade que defenda que o homem não é um animal de sacrifício, que ele tem direito de existir por si próprio, sem sacrificar ele mesmo aos outros nem os outros a si. Em outras palavras, o que é desesperadamente necessário hoje em dia é a ética objetivista.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Essencialmente, o que você diz, portanto, é que essas mudanças devem ser atingidas por meios educacionais ou propagandísticos?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Sim, claro.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: O que você pensa da alegação de seus opositores de que os princípios políticos e morais do objetivismo a colocam fora das principais correntes do pensamento americano?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Eu não reconheço como válido um conceito como uma “corrente principal de pensamento”. Isso pode ser apropriado para uma ditadura, para uma sociedade coletivista na qual o pensamento é controlado e na qual há uma pensamento principal coletivo – constituído de slogans, não de ideias. Não existe coisa do tipo nos Estados Unidos. Nunca existir. Contudo, eu já ouvi essa expressão ser usada com o propósito de barrar da comunicação pública qualquer indivíduo inovador, qualquer não-conformista, quem quer que tenha algo de original a oferecer. Eu sou uma inovadora. Esse é um termo de distinção, de honra, e não algo para se esconder ou pelo que se desculpar. Quem quer que tenha ideias novas e valiosas a oferecer se coloca fora do status quo intelectual. Mas o status quo não é uma corrente, nem muito menos uma “corrente principal”. É um lamaçal estagnado. São os inovadores que carregam a humanidade à frente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você acredita que a filosofia objetivista vai eventualmente converter o mundo?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Ninguém é capaz de responder uma pergunta assim. Os homens possuem livre arbítrio. Não há garantias de que escolherão ser racionais em algum momento ou em alguma geração. Não é necessário que uma filosofia “converta o mundo”. Se você fizer a mesma pergunta de forma um pouco diferente, digamos, se você perguntar se eu acho que o objetivismo será a filosofia do futuro, eu direi que sim, só que com este porém: se os homens se voltarem à razão, se não forem destruídos por ditaduras ou jogados numa nova Idade das Trevas, se os homens permanecerem livres por tempo o bastante para poderem pensar, então o objetivismo será a filosofia que aceitarão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Por quê?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Em todo período histórico no qual os homens foram livres, foi vencedora a filosofia mais racional. É por essa perspectiva que eu digo que, sim, o objetivismo vencerá. Entretanto, não há garantias, não há nenhuma necessidade pré-determinada.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PLAYBOY:: Você é muito crítica do mundo como você o vê atualmente e seus livros oferecem propostas radicais para mudar não só a forma da sociedade, mas a própria maneira pela qual a maioria dos homens trabalham, pensam e amam. Você é otimista quanto ao futuro do homem?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RAND: Sim, sou otimista. O coletivismo, como força intelectual e ideal moral, está morto. Mas a liberdade e o individualismo, e sua expressão política, o capitalismo, ainda não foram descobertos. Eu penso que os homens terão tempo para descobri-los. É significativo que a agonizante filosofia de hoje em dia não tenha produzido nada além de um culto à depravação, à impotência e ao desespero. Olhe para a arte e a literatura modernas, que veem o homem como criatura impotente e estúpida, fadada ao fracasso, à frustração e à destruição. Essa deve ser a confissão psicológica dos coletivistas, mas não é uma imagem apropriada ao ser humano. Se fosse, nós nunca teríamos saído das cavernas. Mas saímos. Olhe à sua volta e olhe a história. Você verá as conquistas da mente humana. Você verá o potencial ilimitado do homem para a grandeza, e a faculdade que a torna possível. Você verá que o homem não é um monstro impotente por natureza, mas que ele se torna um quando descarta essa faculdade: sua mente. Se você me perguntar “O que é grandeza?”, eu responderei: é a capacidade de viver de acordo com os três valores fundamentais de John Galt: razão, propósito, auto-estima.</div>
<br />
<br />
<i>Entrevista de Alvin Toffler para a edição de março de 1964 da revista Playboy. Tradução de Erick Vasconcelos (<a href="http://libertyzine.blogspot.com.br/2012/03/entrevista-de-ayn-rand-playboy-parte-1.html" target="_blank">fonte</a>).</i>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-58218327289982877142014-07-05T18:01:00.003+01:002014-07-05T18:03:42.818+01:00Raymond Aron (1970)<p style=" margin: 12px auto 6px auto; font-family: Helvetica,Arial,Sans-serif; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; font-size: 14px; line-height: normal; font-size-adjust: none; font-stretch: normal; -x-system-font: none; display: block;"> <a title="View Entrevista Raymond Aron on Scribd" href="http://pt.scribd.com/doc/232702537/Entrevista-Raymond-Aron" style="text-decoration: underline;" >Entrevista Raymond Aron</a> by <a title="View jpc's profile on Scribd" href="http://www.scribd.com/jpc" style="text-decoration: underline;" >jpc</a></p><iframe class="scribd_iframe_embed" src="//www.scribd.com/embeds/232702537/content?start_page=1&view_mode=scroll&access_key=key-yxzu1zpVZij63pz6ceYv&show_recommendations=false" data-auto-height="false" data-aspect-ratio="0.7702818104184458" scrolling="no" id="doc_47713" width="600" height="800" frameborder="0"></iframe>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-72234167750587930662014-04-05T03:10:00.002+01:002014-04-05T03:10:41.487+01:00Jacques Le Goff (1992)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEDsYZVj0F55ZGEpCTOU7QkXSk9H1r5q0MhOmgo_1HXkRS-DpxXZOHNbB2c8a2i3e3q67oFygVv5TV2tOeSiI9kTbpuCQ_msAkI35GeO4kNeeW-SmjKVIQ0pCRbsChFvEaRnNQfui5mOAT/s1600/085620907-290cab80-9e7d-4848-9040-4d3abe791c4c.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEDsYZVj0F55ZGEpCTOU7QkXSk9H1r5q0MhOmgo_1HXkRS-DpxXZOHNbB2c8a2i3e3q67oFygVv5TV2tOeSiI9kTbpuCQ_msAkI35GeO4kNeeW-SmjKVIQ0pCRbsChFvEaRnNQfui5mOAT/s1600/085620907-290cab80-9e7d-4848-9040-4d3abe791c4c.jpg" height="292" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
- Ao receber a medalha de ouro do CNRS, o senhor definiu o historiador, em seu discurso, como um “especialista das mudanças das sociedades” e disse que a função da história é “introduzir alguma racionalidade na história vivida e na memória”. Mudanças, muitas vezes, significam crises. Como é possível introduzir alguma racionalidade no seio da tempestade?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- É possível, pela mediação daquilo que hoje tem o nome rebarbativo de problemática. Como sabe, pertenço à tradição das Annales, cujos fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, definiram um tipo específico de história, a história-problema. Isso é fundamental para nós. Julgamos que o historiador tem o dever de colocar questões como eixo do seu trabalho. Em seguida, ele vê como respondê-las, apoiando-se naquilo que, é claro, continua sendo o seu material específico, que são os documentos. Logo, o próprio facto de partir de uma questão problemática já introduz alguma racionalidade. Depois, se o historiador pretende realizar uma obra científica - ainda que a história seja uma ciência muito peculiar, acredito que seja uma ciência - também deve levar em conta o movimento da história, a sua diversidade, a sua irracionalidade, a sua flexibilidade. Pessoalmente, tenho grande interesse na história do imaginário e, no imaginário, há muita irracionalidade. Portanto, introduzir a racionalidade na história não significa excluir o irracional, o impreciso, o flutuante, muito pelo contrário. Significa que a gente tenta explicar as mudanças históricas a partir da resposta a uma questão que, por sua vez, é racional. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Não acha que a história, como as demais ciências sociais, tem como um dos seus problemas fundamentais o facto de sempre propor interpretações ex. post facto?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- De pleno acordo, isso é para mim essencial, eu diria até que é uma das bases científicas das ciências sociais e, particularmente, da história. Penso - e olhe que eu não estou sozinho nisso - que o historiador se sente pouco à vontade quando a gente chega ao imediatamente contemporâneo. Um dos motivos pelos quais é muito difícil estudar a história contemporânea é que não sabemos o que vai acontecer mais tarde. É preciso dizer isso claramente. Muitas vezes, os historiadores não querem assumir isso, colocam-se como se fossem os descobridores da evolução histórica. Nada disso! Eles devem partir daquilo que aconteceu para tentar compreender como e por que aconteceu.</div>
<div style="text-align: justify;">
Para mim, o facto de partir do ponto de chegada é o que garante a seriedade do trabalho do historiador. Além disso, há outras condições, outras qualidades, é claro, mas partir do ponto de chegada parece-me essencial. É por isso que concordo com Marc Bloch, que denunciava “a idolatria das origens”. Muitas vezes, os historiadores das origens fazem o caminho inverso. Partem daquilo que começou, e descem o rio. Ora, penso que se a gente se satisfaz em descer o rio, duas coisas podem acontecer: em vez de entender por que o rio corre, a gente acaba sendo levada por ele; ou então, corre o risco de perder o contacto com o rio e ir para longe dele. O método, o trabalho do historiador, a meu ver, consistem necessariamente em uma constante ida-e-volta entre passado e presente. Sendo que o presente é obviamente o futuro. O futuro do passado. Vou citar uma frase conhecida, que foi repetida por vários cientistas e, particularmente, pelo filósofo italiano Benedetto Croce: “Toda a história é contemporânea.” O passado continua a ser interpretado, é sempre uma leitura contemporânea que se faz e, na compreensão do passado, temos de integrar essa leitura renovada, sempre recomeçada.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Não se poderia aproximar essa observação da perspectiva antropológica, quando, ao descrever sociedades outras, estamos retratando também a nossa própria sociedade?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Concordo inteiramente, mas, sabe, há um número bastante grande de historiadores que discordam. Para mim, é o ponto crítico que me permite distinguir os historiadores que pretendem renovar a história daqueles que se satisfazem com a história tradicional. Acredito que, tanto na antropologia como na história, há esse movimento de ida-e-volta. É claro que as sociedades de que trata o historiador não são as mesmas sociedades que o antropólogo estuda, e mesmo quando eles acabam pesquisando as mesmas sociedades - o que acontece cada vez mais - eles têm pontos de vista um tanto diferentes. O que os aproxima é sobretudo o facto de ambos considerarem as sociedades de modo global, sem fragmentá-las conforme os velhos escaninhos da história tradicional.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- A “nova história” parece ter obtido grande sucesso junto ao público culto. Mas, entre os historiadores, será que não está ocorrendo uma reação contrária?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Está ocorrendo sim. Em primeiro lugar, há um certo número de historiadores, com os seus discípulos - nisso concordo com a teoria de Bourdieu, da reprodução, eles vivem se reproduzindo! - que permanecem hostis à “nova história” (entre aspas, por favor). E houve também certa reação, que põe em evidência a presença de duas correntes paralelas. Os “novos historiadores” (não gosto muito desta terminologia, que me parece inutilmente provocante, mas não sei como substituí-la) estão a voltar para um certo número de orientações que haviam deixado de lado como, por exemplo, a história política. Mas acredito que estão a</div>
<div style="text-align: justify;">
renovar esse tipo de história, já que lhe estão a aplicar a experiência, o método, já elaborados noutras áreas. Não me vou deter nisso, mas não é tanto a história da política, como a história do político, do poder, que por exemplo atribui importância, a meu ver justificada, à dimensão simbólica do poder etc.</div>
<div style="text-align: justify;">
Há portanto um retomo, que de facto é uma renovação, que poderíamos até chamar de renascimento. Mas há também uma história política verdadeiramente reacionária, que volta para os velhos tipos, que se interessa essencialmente pelos acontecimentos, pelas instituições, e pelos grandes homens. Continua grassando. Veja por exemplo a biografia. Hoje em dia, há uma biografia renovada que se processa, que está a conseguir superar a oposição entre grandes homens e sociedade. Mas há também biografias que são pura e simplesmente reacionárias, anedóticas, narrativas, de um psicologismo que não leva a nada! Na França, está a ocorrer um fenómeno bem significativo. Há uma editora, à qual estou ligado - faço questão de dizer, é a Fayard que publica grande número de biografias. Pois bem, publica tanto biografias renovadas, ao novo estilo, como biografias ultra-tradicionais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Falando em biografia, poderia dizer algo de suas origens familiares e culturais? O seu sobrenome é bretão?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Sou bretão por parte de pai e provençal por parte de mãe. Nasci em Toulon e passei toda a infância e a adolescência na Provença, em Toulon e depois Marseille. Depois da guerra fui para Paris de onde não mais saí, a não ser para passar um ano em Oxford, para trabalhar em um College, e outro ano na Escola Francesa de Roma, da qual fui membro. Meu pai era professor de inglês no liceu e minha mãe, professora de piano.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Por que a história?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Minha mãe era católica muito praticante, meu pai era anticlerical muito feroz, e o casamento deles foi excelente, daí tive de refletir sobre isso, o que me levou à história...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Como assim?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Tive de refletir sobre o facto de que não se pode fazer história a priori, porque se alguém tivesse colocado essa questão sem verificação, teria concluído ser impossível existir um casamento bem ajustado entre esses dois tipos de pessoas, e no entanto, esse casamento deu muito certo. Vi que o mundo da sensibilidade, das mentalidades, dos comportamentos, era um mundo muito peculiar. Se o problema fosse colocado do ponto de vista das ideias apenas, a resposta teria sido: casamento impossível. Mas homens e mulheres são minimamente dirigidos por ideias. Eles são conduzidos por sensibilidades, por mentalidades, e é por isso que acho excelente ter inventado uma “história das mentalidades”, que nos permite compreender melhor o que acontece, e o que aconteceu nas sociedades.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Por que a Idade Média?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Sabe que não sei ao certo? Só sei que, muito cedo, eu devia ter uns 10 anos, já queria estudar história. Lembro que logo foi a Idade Média que me interessou mais. Vejo duas influências muito importantes. A primeira foi de um professor do 3º ano do segundo ciclo («3º ano ginasial», na versão brasileira), eu estava com 13 anos, e ele levou-me a gostar ainda mais da história. Naquele tempo, no 3º ano, a gente estudava a Idade Média. A outra influência foi o fascínio pelos romances de Walter Scott. Neles, não encontrava apenas o exotismo que obviamente seduzia o adolescente, mas também devo dizer que já percebia em Walter Scott uma verdadeira atitude de historiador. Via-o como historiador, porque ele procurava dar uma explicação do funcionamento das</div>
<div style="text-align: justify;">
sociedades das quais falava.</div>
<div style="text-align: justify;">
Por exemplo, o mais célebre, entre nós, dos romances de Walter Scott, Ivanhoe, dá uma explicação da história que se situa na perspectiva da oposição entre normandos e anglosaxões. Há no romance uma problemática da história. Há um certo número de outros factos que recebem tratamento literário, é claro, mas com uma carpintaria que é digna de um historiador. Por exemplo, o papel dos judeus, a importância e a significação dos torneios etc. etc. Essa obra não só me levou a amar a Idade Média do ponto de vista da “cor local”, mas reforçou-me na opinião que há um certo número de fenómenos essenciais que em grande parte explicam como viveram os homens, como funcionaram as sociedades.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O senhor costuma afirmar que a Idade Média começa no século II e acaba no século XIX. Por que o século XIX?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- A periodização dos historiadores é essencialmente fundamentada na história das sociedades ocidentais. Por ocidentais, entendo também as sociedades geradas pelo Ocidente, como é o caso, é claro, das sociedades americanas. A dominação dos conquistadores foi tal que, ainda que alguns elementos indígenas tenham sobrevivido, a marca essencial dessas sociedades é uma marca ocidental. Digo que as sociedades ocidentais sofreram choques determinantes no decorrer do século XIX. Sem estabelecer uma ordem hierárquica entre eles, posso enumerar alguns desses fenómenos: em primeiro lugar, o choque tecnológico, as descobertas, é claro, a revolução industrial; e também o choque social e político oriundo em grande parte da Revolução Francesa que, acredito, mareou o fim de um mundo e o começo de outro. Embora certos grandes pensadores, tais como Tocqueville, vejam também as continuidades do Antigo Regime na Revolução, a modificação parece-me fundamental. A mesma coisa acontece no campo religioso e no campo cultural.</div>
<div style="text-align: justify;">
Voltando ao campo económico, digamos, há um fenómeno ao qual atribuo grande importância, que é a fome (famine). As grandes fomes são típicas da Idade Média e da época moderna, e vão até o fim do século XVIII. Elas expressam um estado arcaico da economia rural, mas implicam também um tremendo abalo mental. No século XIX, há fome ainda em certos países da Europa, na Rússia por exemplo, mas no conjunto esse fenómeno não existe mais.</div>
<div style="text-align: justify;">
No campo cultural, vejamos o caso de instituições que aparentemente mantêm a continuidade, como a instituição universitária. Ora, se a continuidade permanece em certos países - na Inglaterra, por exemplo, Oxford e Cambridge não mudam - na França ocorre a ruptura da Revolução e do Império, com grandes modificações na instituição universitária. Mas, sobretudo, no início do século XIX, aparece um novo modelo, o da Universidade de Berlim, e esse modelo vai impor-se em todo o mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
No campo religioso, a mudança vai ocorrer de maneira mais lenta, com ritmo diferente conforme as regiões, mas mesmo assim o século XIX marca o início da descristianização. Pode-se dizer que ela já havia começado um pouco no Renascimento, e com o iluminismo etc., mas, em nível profundo, as sociedades permaneceram cristãs. No século XIX, o cristianismo ainda mantém um peso considerável, mas as sociedades deixam de ser realmente sociedades cristãs. Tomemos um exemplo: o milagre. Na Idade Média, o milagre é algo fundamental. Há alguns abalos nessa crença relativamente cedo, no século XVI, mas o milagre continua sendo considerado como fenómeno real, verdadeiro, pela grande maioria das pessoas. Depois do século XIX, haverá quem ainda acredite em milagres. Haverá até mesmo certo renascimento dessa crença por meio dos milagres da Virgem, já que o grande movimento mariano do século XIX se acompanha de milagres: Lourdes, Loreto etc. Mas o conjunto da população não acredita mais em milagres. Veja a última sagração de tipo medieval: é a do rei Carlos X em 1825, na França. Os outros países nem mais faziam sagrações naquela época. Até mesmo a Inglaterra anglicana, ainda próxima do catolicismo, já não tinha mais esse tipo de ritual no início do século XIX.</div>
<div style="text-align: justify;">
Não nego que tenha havido, entre o século II e o século XIX, mudanças importantes o bastante para que se considerem subperíodos. Há a Antiguidade tardia, depois, a Idade Média propriamente dita, Renascimento, Tempos Modernos, que na verdade é um período com características novas. Mas creio que, fundamentalmente, as estruturas profundas permanecem até o início do século XIX.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O senhor é considerado como o pai fundador da antropologia histórica. Em recente estudo, Jean Andreau e François Hartog a definem como sendo essencialmente francesa, e escrevem textualmente que “seu primeiro campo, e o mais importante, foi a história medieval em torno de Jacques Le GoIf”. Concorda?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Não é verdade! Digo isso sem falsa modéstia, a antropologia histórica propriamente dita apareceu primeiro num grupo francês, mas era um grupo de helenistas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Vernant?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Vernant, e antes dele, Gernet. Devo muito a ambos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Nesse campo, por que não citar também Meyerson?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Devo dizer que conheço pouco a obra dele. Eu conheci-o pessoalmente, ele foi o mestre de Jean-Pierre Vernant, viveu muitos anos e, quase até o fim da sua vida, ministrou o seu seminário. Vernant sempre me falava dele. Mas vou confessar algo que deve ser um preconceito meu: dispenso os filósofos! Vou explicar a minha posição. Creio sinceramente que a filosofia é uma manifestação do espírito humano, é uma disciplina que deve ter um lugar importante na formação dos jovens, na universidade, mas enquanto a história me parece ser um dos objetos sobre os quais é não só legítimo mas ainda necessário que os filósofos</div>
<div style="text-align: justify;">
reflitam, penso que o historiador não tem que se entregar à filosofia da história.</div>
<div style="text-align: justify;">
Recuso toda filosofia da história. Veja bem: não quero fazer pesquisa sem saber o que estou a fazer. Não ter consciência dos pressupostos implícitos nos métodos que utilizamos seria demasiado perigoso. Por isso considero que a metodologia e a epistemologia são importantíssimas. Mas a filosofia, não.</div>
<div style="text-align: justify;">
Uma das poucas exceções que eu faria, seria em relação a Michel Foucault. Frequentei-o bastante, conversamos muitas vezes, mas acredito que ele foi um caso raro: tornou-se historiador, permanecendo filósofo! Creio que se Michel Foucault pôde ser tão importante para um historiador como eu - e não estou sozinho nisso é porque ele se tinha tornado um historiador.</div>
<div style="text-align: justify;">
Em compensação, não sou chegado aos filósofos. Não nego que haja nisso uma grande parte de preconceito. Acabo agora de descobrir - aliás, pergunto-me se já o tinha lido antes, e registrado inconscientemente - pois bem, eu que tenho tanto interesse pelo imaginário, há quinze dias deparei-me com um texto de Bachelard, o filósofo, totalmente empolgante, a esse respeito! Isso significa, provavelmente, que a minha reserva em relação aos filósofos é um tanto exagerada. Mas quando falo neles, penso sobretudo nos metafísicos, que se apresentaram como a quinta-essência dos filósofos. Ora, devo dizer, nem Platão, nem Descartes - que admiro muito -, nem Hegel - que não suporto -, nem Nietzsche - ainda que muitos filósofos agora o considerem como o pai da filosofia, e que eu ache os seus textos muito belos -, nem Heidegger - deixando de lado qualquer implicação ideológica -, nenhum deles me parece interessar ao historiador. De facto, provocaram-me verdadeira repulsa. Além de Michel Foucault, no entanto, há um filósofo vivo, contemporâneo, que escreve coisas extremamente interessantes sobre o tempo. É Paul Ricoeur.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Em sua formação universitária, quais foram os mestres que o impressionaram?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Devo confessar que não são muitos. Os professores da Sorbonne me decepcionaram muito. Apesar disso, lá tive um mestre pelo qual - tenho muita gratidão e muito respeito, Charles Montperrin. Ele deu-me sobretudo rigor metodológico, mas não foi ele que influenciou a minha concepção da história.</div>
<div style="text-align: justify;">
Devo honestamente dizer que não fui discípulo de Braudel. Eu conheci-o muito de perto em certa época, de 1960 a 1972, frequentei-o assiduamente, fiquei impressionadíssimo com o que ele dizia, mas assisti muito pouco às suas aulas. A sua tese sobre o Mediterrâneo despertou minha admiração mas, por assim dizer, acho que eu já estava formado naquela época.</div>
<div style="text-align: justify;">
Resta alguém que, em definitivo, foi o meu único mestre no sentido pleno da palavra. Por vários motivos, é um historiador pouco conhecido, Maurice Lombard. Era especialista do Islão, isso pode parecer esquisito, irias era o principal medievalista da VI Seção da École Nationale des Hautes Études e, embora trabalhando em campos distintos, tivemos contatos estreitos. A sua visão da história, no que diz respeito às relações entre as sociedades no tempo e no espaço, teve grande importância para mim, assim como os seus métodos de análise da cultura, tanto cultura material como cultura no sentido de civilização. Lembro por exemplo de um curso deslumbrante que ele deu sobre os palácios do mundo muçulmano. Lá ele marcou mesmo, foi um mestre.</div>
<div style="text-align: justify;">
Infelizmente, Lombard era rigoroso demais, exigente e detalhista demais, só publicou uns poucos artigos. Houve um manuscrito dele que foi publicado, é um livro belíssimo, "L’Islam dans sa première grandeur". Mais tarde publicaram também notas de aulas, acho que foi uma pena, porque ele não teve a oportunidade de fazer a revisão. Por isso tudo, ele permanece pouco conhecido, até no seu campo específico ficou um pouco à margem. Mas para mim é, de longe, o grande mestre.</div>
<div style="text-align: justify;">
Fui aluno de Lombard e, mais tarde, ele teve a bondade de me tomar como seu assistente. Nesse meio tempo fui, durante cinco anos, professor-assistente na Universidade de Lille, e lá pude acompanhar um excelente historiador, Michel Mollat. Ele ensinou-me que o verdadeiro historiador é um historiador completo. Michel Mollat tratava igualmente de história económica, de história das técnicas, história religiosa... Foi um grande historiador das navegações, fez a sua tese sobre o comércio de Rouen, aliás fora aluno de Marc Bloch. O seu outro grande campo de pesquisa eram os pobres, o ideal de pobreza, e isso para mim foi muito animador, muito estimulante, de ver que a história podia ser, de maneira tão boa, história económica e também religiosa. Estou convicto de que, para compreender determinada sociedade em determinada época, é preciso o esforço de conhecê-la em todos os seus aspectos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O que nos leva à interdisciplinaridade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- É isso mesmo. É essa a linha das Annales, com a noção de história total ou história global.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Mudando um pouco de perspectiva, consta que o senhor trabalhou junto com algumas empresas, e particularmente a RATP (Administração dos Transportes Parisienses). Em que consistia. a sua atuação?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Ainda estou a trabalhar com a RATP. Fui solicitado, de modo surpreendente, pelo diretor geral adjunto, que sabia mais ou menos o que eu estava a fazer. Eu tinha acabado de publicar um volume sobre a história da cidade medieval, e parece que foi isso que o incitou a procurar-me. A RATP estava a iniciar uma semana de reflexão sobre a cidade. Eles estavam interessados nos utentes dos transportes parisienses, e achavam que para entender Paris, a perspectiva histórica era muito importante. O que acho notável é que não foram convidar apenas historiadores contemporâneos nem, o que seria evidente, sociólogos ou psicólogos, mas chamaram um historiador do passado. Julgaram que, em Paris, a presença do passado era tamanha, que devia ser levada em conta para esclarecer a relação do fenómeno urbano com a pessoa do citadino. Realizámos três colóquios, e durante quatro anos participámos de seminários mensais compostos metade de técnicos dos transportes e metade de pesquisadores, historiadores, geógrafos etc. Era apaixonante. Deu para entender que a história, pela sua própria reflexão e seu papel na cidade, só pode enriquecer-se ao trabalhar junto com o mundo das empresas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- E a Europa?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Penso que o contato, o diálogo com os outros é fundamental. É um dos motivos de minha satisfação hoje, quando me dirijo aos pesquisadores brasileiros, que representam outro mundo, longe daqui, importante e apaixonante. A Europa é também o outro, o estrangeiro próximo. Além disso, no meu trabalho de historiador da Idade Média, nunca pensei limitar-me a um só país. Para mim, a realidade histórica era a cristandade, isto é, a Europa cristã, latina e romana. A constituição da Europa deve levar em conta aquilo que também separava os povos, as nações, os estados, aquilo que os levava ao confronto. Não acho que seja possível construir um conjunto, como dizer? artificial. Vou tomar como exemplo o esperanto: é um fracasso linguístico. Muita gente simpática ainda é a favor do esperanto, mas o facto é que o esperanto não resultou. É uma pena, mas não deu. Não faremos a Europa nesses moldes. Não faremos um país-esperanto. Estou muito apegado à herança europeia, mas não concebo esta herança como situada em oposição aos outros grandes conjuntos que existem no mundo: conjunto muçulmano - aliás, há muitas coisas muçulmanas na Europa -, conjunto asiático, ou conjunto americano.</div>
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Nesse último caso, insisto, o conjunto americano é, em grande parte, oriundo da Europa. Penso até que a constituição da Europa vai propiciar melhores diálogos com os demais conjuntos internacionais. É verdade que vários projetos, antes animadores, não estão indo muito bem das pernas. As ideologias estão em crise. O socialismo acabou completamente desmoralizado pela sua forma soviética. Verificamos que ainda há terríveis injustiças, muita violência, e por conseguinte estamos nos desiludindo. O capitalismo tampouco nos traz satisfações. Para a maioria das pessoas, é mais fácil viver em regime capitalista do que comunista, mas vemos, com todo esse desemprego, que não é o regime ideal.</div>
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Além da crise das ideologias, há também ameaças concretas. Falando como cidadão e não apenas como historiador, em meio a todas as injustiças, todas as desgraças que há no mundo, da fome à tortura, há, na própria Europa, duas fontes de grande preocupação. A primeira, que é nova, embora o historiador já pudesse prevê-la, é o despertar das nacionalidades sob forma de um nacionalismo exacerbado. Acredito na legitimidade das nações e de certos nacionalismos. Para certo número de povos, a independência que não tiveram no século XIX nem no século XX é obviamente um progresso. Mas que isso se faça - não podemos deixar de pensar na Jugoslávia na violência e no ódio, é terrível, arrasador. A segunda preocupação, ainda que eu permaneça otimista, é a efervescência racista, e aqui na França, particularmente. Para mim, é um retrocesso no movimento da história, é o contrário daquilo que permite que os franceses se sintam relativamente satisfeitos com eles próprios, apesar dos episódios negativos que têm em sua história, como todos os povos. É uma grande tristeza, tanto para o historiador como para o cidadão, ver que coisas insatisfatórias de nossa história são recuperadas, proclamadas, reivindicadas. Aquela gente, para mim, é a anti-França.</div>
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Estou muito preocupado com a junção de tantos movimentos turvos do passado num só. Aqui, estamos confrontados com um problema gravíssimo, que diz respeito às relações entre democracia e ditadura. Receio, num futuro próximo, as ameaças dos totalitarismos e dos racismos. Ainda que o estudo do movimento da história possa confortar-me, tranquilizar-me quanto à sua evolução.</div>
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- Apesar de todos esses problemas, acha o balanço positivo, em relação à constituição da Europa?</div>
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- Todas essas dificuldades, o historiador já as conhece. Estamos em período de mutações e toda a mutação se faz na dor. Estou convicto de que um novo mundo está a nascer, um mundo apaixonante. Para mim, a Europa é um grande projeto, onde podemos investir os desejos, os esforços, as paixões, por meio das quais cada homem se deve investir na história. Não podemos assistir passivamente ao espetáculo de nossa própria vida. Temos de nos inserir modestamente no conjunto onde sentimos que há vontade de criação. É isso, a Europa.</div>
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A Europa só pode se constituir levando em conta a sua história, assumindo tanto os conflitos, as oposições, como também aquilo que os estados têm em comum. E têm muita coisa em comum: a herança da Antiguidade greco-latina, a Idade Média, o Renascimento, o classicismo, o iluminismo, o romantismo... Tudo isso foi praticamente vivido de modo europeu, e nisso incluo a Europa do Leste. Penso que a Europa é uma bela aventura.</div>
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<i>Entrevista transcrita, traduzida e editada por Monique Augras. Editada para português europeu pelo editor do blogue. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 262-270 (<a href="http://www.scribd.com/doc/81058510/Entrevista-Com-Jaques-Le-Gooff" target="_blank">fonte</a>)</i></div>
JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-2748032251194329178.post-7931887385352412262014-03-29T02:12:00.000+00:002016-04-26T16:36:36.754+01:00Simone de Beauvoir (1975)<iframe width="640" height="480" src="https://www.youtube.com/embed/VmEAB3ekkvU" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>JPChttp://www.blogger.com/profile/14421784020873998332noreply@blogger.com