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François Furet (1987)
Aspácia Camargo - Gostaria que nos falasse sobre suas origens, sua família e seus estudos. O que o senhor estudou, e como começou a se interessar por história?
- Nasci em Paris, sou filho da burguesia francesa. Meu pai era banqueiro. Embora burguesa, minha família era de esquerda, socializante, foi favorável à Frente Popular em 1936. Um tio meu chegou a ser ministro de Léon Blum. De modo que tive uma educação totalmente liberal, e mesmo quase anárquica. Quanto aos estudos, fiz letras, direito e depois história na Sorbonne. Foram estudos um tanto longos, porque fui tuberculoso durante muitos anos - na época era uma doença séria - e tive interrupções com temporadas no sanatório. Obtive a licenciatura em história em 1954, aliás, quando Braudel era o presidente da banca examinadora. Por que eu me interessei por história? Penso que foi sob a influência do marxismo. Foi na medida em que me tomei marxista, entre 20 e 25 anos de idade, que comecei a me interessar pela história como a ciência-mãe, a disciplina central a partir da qual se poderia compreender todas as outras.
A. C. - O senhor fala muito nos historiadores de sua geração. Alguns deles - entre os mais conhecidos - o acompanharam desde o início de sua formação?
François Furet* - Sim, formamos uma geração que possui um curriculum comparável e que aliás, no conjunto, foi bem-sucedida nas instituições universitárias. E o que temos em comum é que fizemos 20 anos nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Vivemos o fim da guerra corno adolescentes, e muitos de nós estivemos na Resistência. Eu por exemplo, estive no Maquis um pouco antes da libertação da França, entre junho e setembro de 1944, quando tinha 17 anos.
A. C. - Como o senhor entrou para o Maquis?
- Eu estava no Lycée Janson e fazia parte de uma resistência dos estudantes secundaristas. Fazíamos coisas como distribuição de panfletos, atividades de campanha política, e era uma resistência de esquerda, mas não especificamente comunista. Em junho de 4, já depois do desembarque dos americanos, quando as coisas começaram a se precipitar, fui para o Berry, na região central da França, onde minha família tinha uma propriedade. De lá fui para o Maquis, junto com um regimento de forças francesas do interior, que foi então constituído. Foi uma experiência muito importante para mim, embora, para falar a verdade, eu não tenha lutado realmente muito. Minha única experiência de combate foi a tomada de uma passagem de nível. Mas para um adolescente superprotegido, com uma vida sem grandes problemas, foi efetivamente um acontecimento.
Ao voltar, retomei meus estudos e, como muitos jovens franceses que eram bons alunos na escola secundária, preparei-me então para a École Normale Supérietire, para a qual prestei exames em 46. Fui reprovado no exame oral e nunca mais tentei de novo, de modo que uma das originalidades que apresento é não ser um normalien.
A.C. - Realmente existe essa coincidência, de que quase todos os grandes nomes da intelectualidade francesa são normaliens.
- É, mas ao contrário das pessoas que encontrei depois, na época da licenciatura, como Le Goff, Bergeron, Le Roy Ladurie, Agulon, que passaram pela École Normale, jamais estive lá. Aliás, isso não me prejudicou em nada, e creio mesmo que de uma certa maneira me beneficiou. Tenho minhas dúvidas de que os anos passados na École Normale sejam favoráveis à abertura dos jovens espíritos para o mundo. Na verdade, tenho observado que para muitos jovens que foram promissores nos bancos escolares, a passagem pelas grandes écoles significou muitas vezes o fenecimento de sua inventividade e de sua ambição.
Mas, parando de falar só sobre mim, o que há de característico na minha geração é que efetivamente muitos de nós fomos comunistas. A geração quase como um todo era formada por pessoas de esquerda ou de extrema esquerda. Lembro que quando eu era jovem ser socialista era praticamente impensável, de tal forma isso parecia anódino. Quando se era de esquerda, era-se comunista. Lembro que quando eu me preparei para o concurso da licenciatura, o grupo de candidatos - do qual faziam parte alguns que trilharam seu caminho na história, como Le Roy Ladurie, Agulon, Besançon, Richet, Ozouf - era todo de comunistas. Nessa época éramos todos marxistas e filiados ao Partido Comunista, Os que não estavam no Partido em geral estavam muito próximos, eram simpatizantes. A diáspora do Partido ocorreu em torno dos anos 50, 56, 57, ou seja, com o krutchevismo.
A. C. - Ou seja, coincidiu com o X Congresso do PCUs.
- Exato. E para nós, para a nossa geração, coincidiu também com o momento em que começávamos nossa vida profissional. Fomos comunistas quando éramos estudantes, e, por força das circunstâncias, deixamos o Partido e deixamos de ser comunistas no momento em que obtínhamos nossos primeiros postos como professores. De modo geral todos deixamos o Partido no mesmo momento, uns um pouco antes, outros um pouco depois, mas sempre nos anos em torno do X Congresso.
A. C. - Para explicar a entrada maciça dos intelectuais, dos jovens estudantes no Partido, podemos supor que a Resistência tenha exercido grande influência. Mas como o senhor explica essa saída?
- Realmente, não há mistério na nossa entrada. Éramos todos filhos do antifascismo, e no período da libertação, bem como no após-guerra, a forma privilegiada do antifascismo nos pareceu ser o comunismo. Havia o mito da Rússia, do Exército Vermelho, um mito que aliás nos cegou, porque efetivamente ficamos cegos diante de todas as evidências. Aceitamos ingenuamente uma série de mentiras sobre o mundo soviético. Os mais prudentes de nós - foi o meu caso - felizmente não escreveram nesse período. Se eu o tivesse feito, teria escrito um monte de bobagens. Não sei realmente se não escrevi porque era jovem ou porque tinha uma espécie de bloqueio inconsciente.
Agora, por que nós saímos? Porque a sucessão de Stalin fez com que viesse à tona a enormidade das mentiras das quais nós tínhamos vivido, e, de um momento para outro, o mundo do Partido Comunista Francês, que era um mundo particularmente stalinista, nos pareceu refratário à mudança. Como quase todos os que deixam o Partido, começamos a abandoná-lo ainda dentro dele. Ou seja, dizíamos: "O princípio continua válido, apenas houve um desvio em seu interior. Portanto, permaneçamos no mundo comunista para fazê-lo mudar." É o modelo absolutamente clássico do revisionismo interno. Mas ao cabo de algum tempo, você percebe a total ineficácia dessa ação interna, sobretudo num partido tão militarmente centralizado como o Partido Comunista Francês. E depois, uma terceira etapa vem colocar em causa também o próprio princípio, a própria idéia comunista enquanto tal. Eu, pessoalmente, vivi todas essas etapas. O revisionismo interno, em seguida a saída do Partido e finalmente o questionamento da idéia comunista, da idéia de um Estado capaz de modificar a sociedade no sentido de uma maior igualdade e de uma maior transparência. Eu diria que fiz isto entre 50 e 58, e que desde então não mudei muito de opinião em política.
Estou à direita da esquerda e à esquerda da direita, bastante cético quanto aos limites da ação política, ou, ao contrário, bastante convencido quanto ao valor básico da democracia como a melhor forma política para a vida dos cidadãos. Dentro destes limites, nunca fiz política muito ativamente. Para me situar, entretanto, eu diria que fui conselheiro técnico de Edgar Faure em 1968, quando ele fez a reforma universitária francesa que foi muito atacada pela direita. E nos anos 70, fui muito reticente diante da equação Mitterrand -união da esquerda, porque a considerava hipotecada pela união com os comunistas. Mas votei em Mitterrand em 81. Sempre achei, porém, que sua experiência desde o início esteve comprometida por um peso extremamente negativo, que é a aliança comunista, cujas conseqüências são uma série de equívocos sobre a sociedade moderna. Sempre achei, em função disso, que, se os socialistas tomassem o poder, estariam condenados a cometer erros tais que seriam obrigados ou a renunciar ao poder, ou a renunciar às suas idéias.
A. C. - O que o senhor acha que aconteceu?
- Eles renunciaram às suas idéias! O que faz com que não tenham governado tão mal. Mas hoje em dia eles estão diante da necessidade de uma renovação de idéias, que é o cerne do problema da esquerda francesa.
A. C. - Não seria da esquerda internacional?
- É um problema internacional, mas que os espanhóis, por exemplo, estão resolvendo melhor do que os franceses, na minha opinião, Em poucos anos Felipe Gonzales conseguiu fazer do socialismo espanhol uma força governamental dotada de credibilidade - mesmo que nos últimos seis meses isso possa soar menos verdadeiro do que há um ano atrás. Quero dizer com isso que ele libertou o socialismo espanhol das hipotecas do marxismoleninismo que ainda pesam muito sobre o socialismo francês,
Parece-me que a grandeza de Mitterrand teria sido fazer o socialismo francês dar um passo absolutamente decisivo, que consiste precisamente em libertá-lo dessa cultura fictícia do radicalismo revolucionário na qual a esquerda francesa se destaca há duzentos anos. Ele até fez isso, mas sem declará-lo - a pedagogia de Mítterrand, como sempre, é uma pedagogia prática, Ele fez isso sem dizer que estava fazendo, sem confessá-lo, e tanto isso é verdade que o Partido Socialista hoje está incerto quanto ao rumo a seguir. Não sabe se as concessões que foi obrigado a fazer à sua doutrina entre 1983 e 1986 são definitivas ou provisórias, se um dia poderá voltar às velhas idéias de ruptura com o capitalismo. O que se verá nos próximos dez anos é justamente isto: se o Partido Socialista Francês vai aceitar ser uma força clássica da alternância democrática do poder na França, ou seja, um partido de governo um pouco como a social-democracia espanhola, alemã, e até certo ponto inglesa, ou se prevalecerá o peso da velha cultura revolucionária francesa.
Como sou otimista, parece-me que o, Partido Socialista Francês, de cinco ou seis anos para cá, está no bom caminho. É isto aliás o que me faz não lamentar meu voto em 81. Considero bom ter votado em Mitterrand em 81, porque considero bom que a esquerda tenha chegado ao poder e possa ter a experiência de governo. Como hoje a França é um país que exporta muito, que está dentro do mercado europeu e mundial, não é mais possível fazer uma política louca do ponto de vista econômico durante muito tempo, pois logo começam a piscar os sinais de alarme. Se você faz uma desvalorização, já não é muito bom. Duas, ainda vá lá. Mas não é possível fazer seis. Ou bem você é obrigado a corrigir o rumo, e adota uma política econômica e social mais razoável, ou bem é obrigado a pular fora. E a França fez a primeira opção. Sob este ponto de vista, sou também inteiramente favorável à Europa, porque a comunidade européia introduz nas culturas políticas de nossas velhas democracias um elemento de racionalização de gestão que não existe na esquerda.
A C. - Além de ser favorável à comunidade européia, o senhor é otimista em relação à sua consolidação?
- Acho, como todo mundo, que ela avança lentamente. Mas este problema é extraordinariamente grave e não deve ser subestimado. É extraordinariamente grave porque a contribuição histórica da Europa à civilização e à história universal foi exatamente a nação. O que a Europa inventou, em comparação com a Antigüidade, os impérios, as cidades-estados, foi precisamente a nação. Apesar de tudo, você pode ver essa maravilha cultural, tão grande ao lado de tantas coisas. Se você retirar a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália modernas, da história universal, você percebe que fica faltando muito à humanidade. Pois bem, agora se resolveu dizer às nações européias: "Foi muito bom ter-se feito as nações, mas neste momento é preciso dissolvê-las." E isto para fazer uma coisa que não é clara, que é a renúncia àquilo que foi feito de melhor. É isto que é muito difícil, e é preciso evitar encará-lo com a ingenuidade americana, que não tem nenhuma experiência do que seja uma nação européia e acredita que um modelo federativo de tipo americano possa se instalar com facilidade na Europa. As realidades não são absolutamente comparáveis.
Menciono isso tudo para dizer que lentidão não me atemoriza muito. Nos últimos 30 anos, apesar de tudo, a idéia de um poder político comum progrediu. O grande problema daqui para frente vai ser a relação com os americanos, pois a relação bilateral dos países europeus com os Estados Unidos muitas vezes é muito mais importante do que a relação desses países entre si.
A. C. - Certamente. É o caso da Alemanha, por exemplo?
- Sim. E da França também. Veja as relações intelectuais. Nós temos dez vezes mais relações intelectuais com as universidades americanas do que com as universidades alemãs ou inglesas. Isto coloca um problema sério, que é o do restabelecimento do equilíbrio do lado da Europa. Considero isto fundamental. Mas enfim, a coisa está avançando. Se você observa a maneira como a França se abriu para o exterior nos últimos 20 anos, é uma coisa espetacular. Quando eu era estudante, as universidades eram rigorosamente francesas. Havia poucos professores estrangeiros, ninguém falava inglês etc. A mudança foi gigantesca. Se você tomar as grandes instituições de pesquisa na França, verá que elas são internacionais.
A. C. - É verdade. Estou aqui como professor visitante da École des Hautes Études certamente por causa disso.
- A École des Hautes Études, que dirigi por muito tempo, é uma instituição totalmente cosmopolita. Ela tem duzentos professores franceses e, a cada ano, recebe cem professores visitantes estrangeiros, convidados.
A. C.. - Voltando ao Partido Comunista, que balanço o senhor faz de sua passagem por ele? Quais foram os pontos positivos, tanto sob o prisma pessoal, como profissional e intelectual?
- E difícil dizer. É difícil avaliar em termos positivos ou negativos as coisas que aconteceram na nossa vida. Elas aconteceram, e pronto. Fazemos do que aconteceu o melhor que podemos. Mas, para qualquer pessoa que saiba refletir, um acontecimento da vida nunca é totalmente perdido, mesmo quando é considerado o resultado de uma ilusão ou de um equívoco. Vou começar pelos pontos negativos: o primeiro é que perdemos muito tempo. Durante dez anos, em vez de ler os grandes livros da literatura universal, todos os que estávamos no Partido lemos muitos livros que não eram importantes. Não estou me referindo a Marx, que foi provavelmente o único autor muito importante que lemos na época. Mas enquanto estávamos no Partido, não lemos Benjamin Constant, não lemos Hobbes, não lemos Locke, não lemos Tocqueville etc. etc. É verdade que eu já conhecia Toequeville desde o tempo do colégio, mas só fui estudá-lo, e aos outros, seriamente, depois, Portanto, houve uma perda de tempo.
O que nós ganhamos, afora pequenos talentos de organização, que aprendemos no Partido Comunista e podem ser úteis na existência quando nos ocupamos de tarefas administrativas, foi uma experiência política totalitária, que, na minha opinião, distingue aqueles que passaram por ela dos demais. Existem coisas que são espontaneamente compreendidas por aqueles que passaram pelo Partido, e que o resto da geração tem mais dificuldade de perceber. Eu fico até espantado de ver que pode existir um universo comum entre as pessoas que passaram pelo Partido Comunista e compreenderam por que o deixavam, e os outros. Digo "que compreenderam por que o deixavam" porque há muitas pessoas que passaram pelo Partido Comunista e saíram por razões acessórias, sem nunca terem compreendido a realidade do fenômeno, que deixaram o Partido Comunista mas permaneceram espiritualmente comunistas. É muito comum isso na França. Estou falando das pessoas como eu, que deixaram o Partido Comunista rompendo com o tipo de raciocínio, de cultura e de premissa intelectual subjacente à adesão inicial. É uma mentira dizer que todas essas pessoas passaram para a extrema-direita. Algumas foram para a extrema-direita, mas a massa das pessoas como eu é de centro-esquerda, centro-direita. Ou seja, tornaram-se democratas liberais. Este é o caso mais freqüente.
A.C. - Em sua opinião, portanto, quando as pessoas que passam pelo Partido saem por razões conscientes, elas se tornam mais liberais?
- Sim. Elas atribuem então mais importância àquilo que no marxismo se chama de "liberdades formais". O peso das liberdades formais só pode ser bem apreciado num sistema que as nega, como sempre.
A. C. - No seu caso, isso explicaria seu interesse atual pela Revolução Francesa?
- Sim, embora meu interesse pela Revolução Francesa date de antes, do tempo em que eu era marxista. Ainda quando era estudante fiz uma dissertação sobre a imprensa em 1789. Portanto, mantive meu interesse ao longo da minha evolução. No começo, a Revolução Francesa me interessava por ser uma das genealogias mais prováveis do bolchevismo. Depois, ela me interessou pelas mesmas razões, só que eu me coloquei num ponto de vista crítico. Em outras palavras, é evidente que eu me interessei pela Revolução Francesa por razões ligadas ao meu engajamento político. Aliás, digo isso francamente, eu me interesso pela história pelo que ela comporta de inteligibilidade para o presente.
Penso que existem dois grandes tipos de historiadores. Existem pessoas que gostam da história pela história: ficam felizes quando estão diante de arquivos, de maços de manuscritos, através dos quais tentam ressuscitar uma época, e pronto. Este tipo de curiosidade não é suficiente para me fazer trabalhar, para me fazer escrever uma história. Sinto necessidade de procurar na história o segredo do presente. Este me parece ser o segundo tipo de curiosidade histórica, e não o privilégio, apenas reconheço que é o meu. Mas sempre me espantou o fato de que esta curiosidade pela história como chave do presente esteja distribuída de maneira tão desigual entre os historiadores que conheço. Há pessoas que se interessam pela história simplesmente porque se interessam pela história.
A. C. - Isto me faz pensar na chamada história tradicional. Durante seu período de formação, qual era o peso da história tradicional?
- Você fala da história événementielle? O peso era muito grande nas instituições, na Sorbonne, por exemplo, mas espiritualmente ela já estava liquidada. Lembro nitidamente que nós, jovens marxistas, nunca púnhamos os pés na Sorbonne - você sabe que as universidades francesas são muito flexíveis nesse ponto, você pode fazer os exames sem assistir às a aulas. Freqüentávamos a 6. Seção da École Pratique de Hautes Études, ouvíamos Braudel, Vilar, Labrousse, e só excepcionalmente íamos à Sorbonne para assistir a um ou dois cursos obrigatórios para a licenciatura. Para nós a questão nem se colocava. O que contava eram os Annales, e pelo que eles ofereciam de compatível com o marxismo.
A. C. - Este é justamente o outro lado da minha pergunta. Naquele momento a École des Annales já estava constituída desde algum tempo, e Braudel inclusive fazia parte da segunda geração do grupo.
- Sim. Braudel fundou a 6.a Seção da École Pratique contra a Sorbonne. E no começo dos anos 50 ele já havia ganho a partida, pois era o presidente da 6.a Seção, professor do Collège de France e presidente da banca (júri) responsável pelo concurso para a licenciatura. Tinha uma situação absolutamente importante, era um homem poderoso, mas curiosamente se pensava como minoria, porque não estava na Sorbonne. O que prova a que ponto as mentalidades sobrevivem às situações. Até morrer Braudel sempre me disse que era perseguido. Quando ele entrou para a Academia Francesa, o Le Monde estampou na primeira página: "Um perseguido ou um marginal, não lembro bem, entra para a Academia." Para você ver como os mitos são prodigiosos na França.
A C. - Como foi seu concurso para a licenciatura? Vocês, comunistas, estavam isolados dos outros?
- Não, absolutamente. A prova é que todos passamos mais ou menos brilhantemente no concurso, que era difícil, e pouco depois Braudel nos levou para a École Pratique des Hautes Études. Não estávamos isolados, mas, como sempre, a mentalidade comunista é aristocrática... Você a conhece! Digo mentalidade aristocrática no sentido de que se trata de um pequeno grupo que sabe mais que os outros, que possui uma doutrina esotérica que supostamente compreende e conhece aquilo que os outros não compreendem e não conhecem. Mas não se pode dizer que na França dos anos 50 os comunistas estivessem à margem da sociedade.
Lembro que neste concurso dei uma aula de um marxismo absolutamente ortodoxo sobre a Polônia do século XVIII, e que Braudel a considerou espantosa. Eu explicava tudo pelo comércio do trigo na segunda servidão, pela necessidade de exportar e de aumentar a taxa da mais-valia.
A. C. - Ainda assim o senhor não teve problemas com a banca?
- Não, porque você sabe que existem algumas pontes entre o braudelismo e o marxismo, como bem mostrou o Braudel dos últimos tempos. Quando você explica o essencial da história através das grandes pulsações econômicas, de alguma maneira você tem uma linguagem comum com os marxistas. Mas os marxistas, sobretudo os comunistas franceses, eram tão sectários naquela época que atacavam Braudel, escreviam contra ele. 0 que era um absurdo, porque os "níveis" de Braudel são perfeitamente articuláveis com uma teoria marxista da história, embora, naturalmente, sejam muito menos dogmáticos do que o marxismo. Porque no marxismo, afinal, de alguma forma há uma teoria da causalidade.
A. C. - Mas o que eu queria saber é se no seu tempo de faculdade havia discussões entre os estudantes em torno dos modelos da história social, praticada pelo grupo dos Annales, e da história événementielle. Discutia-se isso?
- Para nós, se você quer saber, o que os Annales diziam não era suficiente, era apenas evidente. E era evidente porque eles reabilitavam a parte econômica. Pela mesma razão nós tínhamos uma grande admiração por Rostovtzeff - ainda que ele fosse um historiador antisoviético -, porque ele fazia uma interpretação econômica e social da queda do Império Romano. Achávamos isso formidável, uma interpretação econômica e social... Pelas mesmas razões por que Braudel é compatível com uma interpretação marxista, Rostovtzeff também o é.
A. C. - Como o senhor vê, no interior dos Annales, o papel do marxismo e o papel da sociologia, de Durkheim?
- O papel do marxismo nos Annales foi inexistente no começo. Não há vestígios de marxismo em Marc Bloch e em Febvre, nem mesmo vestígios de que eles tenham lido Marx seriamente. O que foi importante no começo dos Annales foi a geografia, o determinismo geográfico, os inícios da sociologia, com Durkheim, Halbwachs, Mauss, e da economia estatística, com Simiand. Isto é que foi importante. Você percebe que são fontes essencialmente francesas, porque vivíamos ainda num mundo muito protecionista do ponto de vista cultural.
Foi realmente Marc Bloch quem mais se abriu para o exterior, quem mais teve curiosidade sobre os ingleses e os alemães, embora com uma visão não muito metodológica. Mas nem Marc Bloch nem Febvre são epistemólogos. Na verdade, são práticos da história, que pretendem abrir o campo da história. Mais tarde, Braudel, em sua tese sobre o Mediterrâneo, no fundo também não está muito preocupado com urna epistemologia sistemática. Ele tem sua teoria dos níveis, do tempo longo, mas não se interessa fundamentalmente pelo problema da epistemologia histórica. Penso que o encontro dos Annales com o marxismo é mais tardio, ocorre com a geração precisamente dos anos 60, quando o marxismo se torna uma doutrina dominante na França, com as ciências sociais. Eu digo mesmo que assistimos nestes últimos anos a uma marxização do braudelismo.
A. C. - Como o senhor vê a influência da École des Annales sobre outras culturas que não a francesa. já que se tratava de um movimento exclusivamente francês em sua origem?
- Penso que é uma influência importante, mas difícil de ser delimitada, pois está muito misturada à de outras correntes, como o marxismo, o estruturalismo, as ciências sociais. Ou seja, está misturada à idéia que predominou na França nos anos 60, de que o que importa não é aquilo que é manifesto, aquilo que se vê, mas o que está por detrás do manifesto, por detrás do que se vê. Quer você chame isso de inconsciente na psicanálise, de estrutura do parentesco, ou de modo de produção, você tem sempre um mesmo esquema mental que faz com que aquilo que é mais manifesto seja ao mesmo tempo o mais superficial, aquilo que explica em profundidade seja sempre uma outra coisa. E este é um esquema, digamos, braudeliano, que no fundo é não apenas compatível, mas perfeitamente moldável a todas essas epistemologias da suspeita, das quais as ciências sociais se alimentaram durante muito tempo.
É por isso que seria complicado separar a influência que pode ser atribuída propriamente aos Annales daquela que pode ser atribuída ao marxismo, por exemplo. E o marxismo como corpo de doutrina universal não é pouca coisa. Em muitos países -suspeito que seja o caso do Brasil, dos outros países da América Latina, como também da América do Norte, ou da Inglaterra - o braudelismo passou pelo marxismo. Outro exemplo: o que se chamou nos Estados Unidos de social history, o que fez Tilly nos anos 60. Eles descobriram aquilo antes de conhecer Braudel. O braudelismo se sobrepôs a uma coisa com a qual era facilmente compatível.
Em outras palavras, creio que a universalização dos Annales foi veiculada também por outros fatores além da própria força da corrente dos Annales. Aliás, se você quer minha opinião sincera, penso que os Annales nunca propuseram uma epistemologia histórica, que não existiu um único metodolólogo na École des Annales, e que, por conseguinte, o que fez sua reputação foi algo bastante vago, ou seja, sua proposta de deslocar o tema da história, do político, para o econômico e o social, do curto prazo para o longo prazo. É preciso acrescentar ainda que o acaso fez com que aparecesse um número relativamente grande de bons historiadores na França, depois da Segunda Guerra Mundial, que divulgaram a École des Annales, tudo isso somado à exístência de uma instituição verdadeira e forte como a École des Hautes Êtudes. Você sabe que existe também uma realidade sociológica da École des Annales. Eu sempre digo brincando que a École des Annales não tem outra definição, senão a de que ela é as pessoas que eu encontro de manhã no elevador. O que existe de comum entre Le Roy Ladurie, Le Goff, eu, Richet etc.? Como podem nos identificar sob uma mesma etiqueta, dizendo: eles são da mesma escola?
A. C. - É verdade, não há nada de comum. Um trabalha com demografia, outro com representações... De toda forma, foram os historiadores que criaram a 6a Seção da École Pratique des Hautes Études. O senhor diria que a história sempre teve um papel importante dentro da escola?
- Ela teve esse papel até mim, já que eu também fui presidente da escola durante muito tempo. E quando eu saí, em 1985, ninguém da nossa geração quis ficar no meu lugar. É um trabalho bastante absorvente, que obriga a perder tempo, e não se encontrou nenhum historiador que quisesse fazê-lo. Foi então um antropólogo, Marc Augé, que aceitou assumir a função, que até mesmo desejava fazê-lo. E ele era um homem perfeitamente aceitável pelos historiadores, porque não estava longe de nós. Agora, isto corresponderia a uma tendência profunda de recuo da história e de avanço da antropologia? Não creio. Penso que o que caracteriza o cenário francês hoje é, ao contrário, o fato de que mais que nunca a história é a ciência central. Mesmo sendo uma ciência frouxa, vaga, a história continua a ser a disciplina mais forte no sentido editorial, de mercado.
A.C. - Os sociólogos se ressentem disso?
- Eu diria que as duas disciplinas que me parecem estar numa crise muito grave são a sociologia e a antropología. Não estou absolutamente certo de que a antropologia resista à descolonização, nem ao conceito de relativismo cultural. Quanto à sociología, não vejo nenhum sucessor de Touraine, Bourdieu, Boudon etc. Aliás, fico tentado a acrescentar "melhor para nós", porque não sou um grande admirador da sociologia.
A.C. - Voltando a essa questão que o senhor mencionou, da predominância, no pensamento francês dos anos 60, de um preconceito contra tudo o que é manifesto. Este preconceito atingiu o político, que é sem dúvida o que existe de mais visível, e por isso mesmo foi considerado o menos importante. Parece-me que seu papel, ao estudar a Revolução Francesa, foi justamente o de reintroduzir na história as questões da política.
- Sim, mas esta partida ainda não foi ganha. A massa da École des Annales, os historiadores, mesmo da geração seguinte à minha, estão ainda ligados à história social, à história das mentalidades. Ou seja, o que lhes interessa é menos a história das idéias do que a história da recepção social das idéias. E eu advogo que a história política seja ao mesmo tempo a história das idéias, não apenas de sua recepção social. E aliás, dentro dessa perspectiva, eu advogo uma aliança da história com a filosofia. Minha idéia central, o que eu faço no Institut Aron, é juntar os historiadores e os filósofos. É tentar reabilitar não apenas a história do político, mas também a história das idéias, que foi praticamente arruinada pela École des Annales.
A.C. - A mentalidade superou a idéia.
- Exatamente. E para a história das idéias, o político é o lugar da liberdade humana, o lugar do aleatório, da invenção. Somos obrigados a renunciar à idéia de que o que importa, o que determina o futuro, é o oculto e ao contrário, a estudar na história a invenção, a liberdade, o explícito, o manifesto. É isto que me parece ser apaixonante. Parece-me que estamos saindo dessa falsa história, da ciência do implícito. Eu gostaria de voltar à idéia de que a história é a ciência, é o saber sobre o que os homens manifestam. Um pouco a mesma coisa, se você quiser, que acontece na política, quando se observa o fim da concepção marxista da democracia. A concepção marxista nos quis fazer crer que o que importava era o que havia por detrás da democracia, o que a democracia escondia, sem nos dizer. E finalmente se percebeu que o que importa na democracia é o que ela diz, é unicamente a sua "palavra". É, aliás, o facto de que todos os homens são iguais, e de que é simplesmente esta explicitação que modifica as relações entre eles.
É isto o que eu queria fazer os historiadores compreenderem: que o lugar do político é provavelmente o mais favorável para se perceber a história total de uma coletividade. Se você quiser compreender, por exemplo, o que caracteriza a história inglesa em contraste com a história francesa, você não deve se ater às infra-estruturas, que são bastante comparáveis. Se você comparar a Revolução Industrial na Inglaterra e na França, terá os mesmos elementos, ainda que eles não obedeçam aos mesmos ritmos. Ao passo que se você comparar as idéias das culturas políticas dos dois mundos, você se verá diante de dois universos.
A.C. - Tão diferentes quanto Rousseau e Locke.
- Exato. E independentemente, eu diria, da recepção social dos dois autores. E o que me apaixona na Revolução Francesa é isto, é a invenção francesa da democracia, essa espécie de coisa extraordinária que fez com que, no final do séc. XVIII, os franceses inventassem uma forma radical, mas perigosa e frágil, de democracia, que tem relações complicadas com a liberdade.
A. C. - Gostaria que o senhor explicasse um pouco mais a idéia desta invenção, porque o senhor insiste em que o tom da Revolução Francesa era mais rousseauniano, no sentido da democracia direta, em contraste com o modelo inglês, que privilegia a representação. Embora a democracia direta não tenha funcionado, como o senhor vê a enorme influência da Revolução Francesa, essa espécie de internacionalismo que faz com que mesmo no Brasil se conheça não a Revolução Inglesa, mas a Revolução Francesa? Por que o êxito dessa combinação mágica entre liberdade, fraternidade e igualdade?
- Para mim, a Revolução Francesa contém três idéias principais, se me for permitido esquematizar um pouco. A primeira idéia, que curiosamente é também totalmente antiinglesa, é a da tabula rasa, da ruptura com o passado. É a idéia de que um povo, num determinado momento da sua história, pode se instalar para reinstituir radicalmente sua sociedade. É a idéia do Ancien Régime na França, e é o próprio conteúdo da idéia revolucionária. A idéia de que a partir de um momento x da história um mundo pode ser reinstituído sobre uma história que é pensada toda ela como corrupção. Esta é uma idéia louca, uma idéia apaixonante, que surgiu no fim do séc. XVIII. Até hoje, aliás, tenho dificuldade em compreender seus elementos formadores. Enfim, esta é uma das grandes inovações da Revolução Francesa.
A segunda idéia forte da Revolução Francesa é a ruptura com a ordem religiosa, que é decisiva. A França inventa a democracia contra a igreja por razões nas quais não insistirei, e que são profundas. Portanto, instaura-se uma cultura democrática moderna contra a Igreja, com uma diferença em relação ao mundo anglo-saxão, onde a democracia se instala dentro de uma revolução religiosa preexistente. E foi o caso francês que se generalizou, que se universalizou, até mesmo na América Latina.
E o terceiro elemento da Revolução Francesa que é fascinante é o problema de pensar a representação política: de que maneira um corpo social, uma sociedade civil se representa no nível do Estado, se representa no sentido próprio. Ou seja, de que maneira ela se instala sob uma outra forma que não ela mesma, e no entanto fiel a ela mesma no nível do Estado. A idéia de representação recebeu um golpe de Rousseau, já que ele disse: "É impossível. Para que a sociedade se encontre no nível do Estado, é preciso que cada cidadão etc. etc." Bom, e a Revolução Francesa pode ser lida toda ela como uma crise geral da representação moderna, uma vez que ela termina com Bonaparte, que é um curto-circuito da representação, que é uma forma monárquica da democracia.
Aí está. Uma vez que você perceba as três idéias fundadoras da democracia à francesa, você compreende muitas coisas, me parece, do mundo moderno, dos últimos duzentos anos.
A - C. - Ouvindo-o agora, eu me pergunto se a idéia do sufrágio universal - que não é a democracia direta nem tampouco a representação à inglesa - decorre da Revolução Francesa. A pressão das massas para entrar num sistema democrático decorre daí?
- Mas o sufrágio universal não basta para fazer as massas entrarem na democracia, já que, como dizia Rousseau, ele significa simplesmente que as massas alienam seu poder a cada quatro, seis ou sete anos a representantes que utilizam esse poder para fins que, eu diria, não são universais. Quando se delega o poder, perde-se o poder. Isto é evidente. Existe um dilema democrático, que nos permite desconfiar que Rousseau tenha demonstrado perversamente em O contrato social que a democracia é uma aporia lógica num grande Estado. Mas isto posto, acontece que, de fato, a representação funciona.
A.C. - Mas também não funciona da maneira inglesa, que pressupõe a existência de pequenas comunidades políticas. Mesmo para os americanos, no começo, a idéia era de uma democracia para muito poucas pessoas, pessoas qualificadas.
- Os anglo-saxões têm menos problemas do que nós, porque eles não convivem com a idéia de que os interesses não são representáveis, já que em Locke a propriedade é um direito natural. E a sociedade em estado natural não é muito diferente da sociedade política. Ao passo que em Rousseau, a passagem da sociedade natural para a sociedade política é terrivelmente difícil, já que é preciso que o indivíduo se "desnature" para tornar-se um cidadão segundo o modelo do homem racional.
A. C. - O conceito social de natureza é inverso.
- Exato. Portanto, temos um pensamento da democracia na Revolução Francesa que é um pensamento verdadeiramente forte do ponto de vista filosófico, extremamente difícil de ser posto em prática e que, a meu ver, produziu um século XIX francês tão célebre em patologias políticas, já que os franceses experimentaram sucessivamente várias monarquias, várias repúblicas, e chegaram a fazer um segundo Bonaparte. E é isto o que me interessa no caso francês, no que eu chamo de "teatro francês". Se quisermos compreender a França contemporânea, só há um meio de fazê-lo, que é passar pela política.
A. C. - O senhor pensa que a república, e especialmente a república francesa, é tudo o que pudemos extrair da Revolução?
- Sim, moderando a herança. Porque se você observa como Ferry e Gambetta fabricaram o consenso em 1877-80, você percebe que, ao lado da herança dos direitos do homem de 89, eles conseguiram conjurar a lembrança de 93, primeiro porque fuzilaram os membros da Comuna e liquidaram a supervalorização da esquerda. e também porque pediram socorro ao comtismo. Para um brasileiro é fácil compreender do que se trata. O comtismo contém uma idéia muito forte, que é a idéia da ciência. A ciência consolidando os direitos do homem, mas às custas de uma contradição filosófica, porque, como você sabe, Comte era hostil a 89 e à soberania do povo. Por conseguinte, na herança ferryista e gambettista há uma combinação entre a idéia dos direitos do homem, de liberdade etc., e a idéia de um progresso científico inevitável à humanidade.
A. C. - O senhor considera que a idéia de Comte, enfim, a própria idéia de uma tecnocracia, tem relação com a experiência histórica da Revolução, da perda da aristocracia como classe dominante?
- Bem, a tecnocracia é portadora da idéia científica, da idéia da racionalidade administrativa, mas no caso francês ela só se torna vitoriosa quando é conciliável com a democracia. Você não pode instalar na França uma ditadura de "científicos". A grandeza dos homens da Terceira República -que eu considero grandes homens, como Ferry e Gambetta - foi eles terem combinado a idéia da razão tecnicista que vem de Condorcet, Saint-Simon, Comte, com a idéia da vontade geral, dos direitos do homem, e terem fundado a democracia sobre a vontade dos cidadãos. São idéias filosoficamente contraditórias que eles conseguiram combinar, para criar o consenso francês.
A. C. - Para criar um campo neutro, que foge à idéia de classes dominantes.
- Completamente. E é este consenso que o marxismo destrói no século XX, com a idéia de que sob o mito republicano escondia-se a classe dominante. E hoje, quando o marxismo está morrendo na França, o que se redescobre é precisamente o valor dessas idéias dominantes de um grupo coletivo. Você não fica espantada com o fim do marxismo na França?
A. C. - Fico muito espantada, porque quando morei na França, entre 1967 e 1974, era só o que havia. Freqüentar os seminários de Raymond Aron era muito malvisto. Ninguém se interessava por Pareto e por Weber. A moda era realmente Althusser e Poulantzas. E agora, não estou vendo mais nomes deste peso.
- Acabou. Não sei o que está acontecendo em outros lugares, mas na França o que se vê é o fim da cultura jacobina. É o fim da cultura marxista. É a descoberta do aleatório na história. Eu vejo os jovens que estão à minha volta no Institut Aron, que têm 30, 35 anos, e eles estão todos apaixonados pela história política e pela filosofia.
A. C. - De certa forma, estamos falando aqui da "recepção social" das idéias, que tanto interessou ao grupo dos Annales. Como o senhor mesmo disse há pouco, os livros de história encontram hoje grande aceitação. O senhor considera que este "sucesso" da história possa provir do fato de ela lidar com o ímprevisível, com conjunções de elementos que se combinam um tanto aleatoriamente? O senhor acha que a história é isto?
- Sim. Em parte. Enfim, nem tudo é imprevisível. É verdade que as tendências econômicas são mais previsíveis. Mas naquilo que a história contém de invenção, ela é totalmente imprevisível.
A. C. - E é isto o que lhe interessa preferencialmente.
- Sim. Enfim, o que me interessa é aquilo que fabrica as grandes individualidades históricas, ou seja, as nações, os povos, a história. O que fabrica isso tudo está muito mais no nível do político do que do econômico. A história econômica da Europa é comum a todas as nações européias. Como eu já disse, ela não explica quase nada sobre as diferenças entre a Inglaterra e a França. O elemento que parece ser mais importante para a inteligibilidade do comportamento de um grupo coletivo é o político. É a estrutura do imaginário coletivo. Outro dia, por exemplo, convidamos Skinner para fazer uma palestra, e ele não pronunciou a palavra igualdade para falar da liberdade à inglesa. Para um francês, isto é absolutamente inaudito. Para um francês, o problema da igualdade é absolutamente consubstancial ao estudo da liberdade, desde as origens. Portanto, são duas culturas políticas completamente diferentes que resolvem de maneira diferente um problema comum. E é por isso que eu digo que você não pode compreender nada sem a filosofia. O drama é que os grandes problemas foram muito trabalhados no século XIX. E, com as ciências sociais, acreditou-se na idéia falsa de que esses problemas podiam ser objeto de uma ciência por assim dizer nova, ignorada no século XIX. O que eu condeno nos anos 60 e nas ciências sociais é elas terem feito crer que não havia necessidade de ler os grandes clássicos para compreender o mundo em que vivemos, que era preciso apenas fazer uma abordagem científica daquilo que estava ali ao lado, escondido. Isto, na verdade, é uma brincadeira.
A. C. - Quais foram os autores e as leituras mais importantes para a sua formação?
- Os dois autores mais importantes para mim, de longe, são Marx e Tocqueville. E, acessoriamente, o século XVIII: Montesquieu, Rousseau, Locke. Mas Marx e Tocqueville são fundamentais. Hoje em dia, sou muito tocquevilliano. Penso que foi ele quem viu com mais profundidade as sociedades em que vivemos. O capítulo que achei mais bonito em A democracia na América é aquele em que ele diz que a relação entre senhores e servidores existe em todas as sociedades, tanto aristocráticas corno democráticas. Portanto, o fato de a democracia se caracterizar pela igualdade de condições não impede que existam nela senhores e servidores.
Mas qual é a diferença entre esta relação nas aristocracias e nas democracias? É que nas aristocracias a relação é estrutural. Existem senhores de geração em geração, sempre da mesma família, assim como servidores sempre das mesmas famílias. O fenômeno é interiorizado como algo quase natural: as dinastias dos senhores e as dinastias dos servidores, numa espécie de familiaridade não-conflituosa. Na democracia, existem senhores e servidores, mas os cidadãos são considerados iguais. A conseqüência é que a relação não é mais suportável, já que ela é contratual, é provisória, já que, quando termina de servir seu senhor, o servidor se torna rapidamente seu igual e deseja ser senhor um dia. Portanto, a relação é não apenas conflituosa, ela é atravessada pelo ódio. É isto a democracia.
A. C. - Voltando mais uma vez à Revolução Francesa, o senhor compararia o totalitarismo que ela instaura com o sistema soviético no stalinismo?
- Não, eu não comparo. Eu nunca disse que a Revolução Francesa é totalitária. Jamais. Presto muita atenção a este ponto. Porque um sistema totalitário, para mim, é um sistema onde há um partido que controla a sociedade. Isto não acontece durante a Revolução Francesa. Não há partido. O que há, sob Robespierre e os jacobinos, é um clube. E não apenas não há partido, mas também não há a idéia da ciência da história. O governo não está investido de um conhecimento superior do processo histórico que faz com que ele tenha uma espécie de transcendência natural em relação ao corpo social. A sociedade francesa sob o terror é uma sociedade que se amotina, que não é atomizada nem dobrada pelo poder político, como aconteceu, por exemplo, com o campesinato russo, que foi destruído pelo poder soviético. Não acho absolutamente que se possa falar em totalitarismo no caso francês. O que existe virtualmente no caso jacobino, e sob forma patológica no caso russo, é a idéia do voluntarismo político, ou seja, a idéia de que o poder político pode tudo. E de que basta mudar os homens, regenerá-los, para fazer uma sociedade harmoniosa e transparente.
Para os jacobinos, isto durou apenas, poucos meses. A idéia do voluntarismo político, que vai se tornar no século XX uma idéia louca, não é, no caso francês, uma idéia que tenha dominado a sociedade.
A. C. - O senhor tem alguma simpatia pelas idéias de Hannah Arendt? Porque ela analisa - e talvez num nível muito filosófico, ou seja, no nível do ethos - a idéia de ruptura, do ano 1 da história. E as revoluções Americana e Francesa talvez tenham sido os melhores exemplos desse fenômeno.
- Sim, há alguma verdade no que ela diz, ou seja, que a Revolução Americana teve êxito na medida em que conseguiu fundar um sistema político mais durável, consensual etc., e que a Revolução Francesa fracassou na medida em que teve a ambição de mudar a sociedade, o que era uma ambição, eu diria, inviável. Isto posto, o nível em que ela se coloca é tal que não compartilho de sua espécie de pessimismo radical em relação à democracia moderna.
A. C. - Como o senhor vê o campo da história hoje? Parece-me que estamos diante de um campo cada vez mais especializado, onde as visões de conjunto, como fez Tocqueville, são impossíveis, pelo próprio fato de que há fontes demais, temas demais etc. O senhor é favorável à especialização ou, ao contrário, acha que se deve procurar o conjunto?
- Creio que é preciso que a história permaneça um saber erudito e relativamente lento de ser adquirido, porque é um trabalho difícil, em que é necessário saber muita coisa, ter muitas leituras, consultar muitas fontes para escrever. Isto posto, eu lamentaria muito que a história renunciasse às idéias. A tensão da história está sempre entre a erudição e as hipóteses de conjunto. Portanto, considero que o historiador deve sempre conservar as duas, ou seja, ser sério no manejo das fontes, de seus conhecimentos, e ao mesmo tempo não ter medo das hipóteses.
O traço dominante da história hoje, no mundo em que vivo, ou seja, na Europa e nos Estados Unidos, é de longe a história social. Este tipo de história corre o risco de ser cada vez menos significativo, na medida em que se orienta cada vez mais para o insignificante. Na medida em que se procura compreender os mínimos feitos da vida quotidiana dos homens, corre-se o perigo de erigir em objeto histórico praticamente tudo. E se tudo é significativo, nada é significativo. É a mesma idéia sob duas formas diferentes. Não tenho nada contra que se faça a história da vida quotidiana, mas me parece que os cardápios dos albergues sicilianos no séc. XV são menos importantes do que o problema da decadência do Império Romano. E é um pouco esse desequilíbrio que eu combato. Sou favorável a que se restaurem as grandes questões, ou seja, a decadência do Império Romano, a querela das investiduras e a história da luta entre o papado e os poderes temporais europeus, a questão da democracia, a Reforma etc. etc. Sou favorável a que se volte às grandes questões que já foram muito trabalhadas, mas em grande parte ainda permanecem abertas. E advogo que os historiadores parem de querer por todos os meios dar provas de originalidade, operando sobre novos microtemas, e ataquem os grandes temas que o século XIX nos legou e nos quais ainda estamos.
A. C. - Um estudo da história a partir da cultura não impede uma certa visão global.
- Além do mais, é preciso prestar atenção também ao grau de conhecibilidade possível dentro da história. A história sexual, por exemplo, voltou à moda hoje em dia. Não tenho nada a opor, Mas se há uma coisa que me parece rigorosamente inconhecível, é isto. Não creio um minuto sequer que se possa reconstituir a história das pulsões, dos objetos sexuais, nos períodos antigos. Portanto, é preciso também termos ambições pertinentes em relação às fontes de que efetivamente dispomos.
A. C. - O senhor é muito historiador nesse sentido.
- Muito, muito clássico.
A. C. - As fontes delimitam as questões.
- Delimitam, e eu penso que na seleção das questões, teríamos todo interesse em rever os velhos livros clássicos. Por exemplo, uma das coisas que me espantam nos historiadores contemporâneos é muitas vezes sua extraordinária erudição sobre as fontes e sua ignorância dos grandes textos filosóficos. Acho isso muito mau. Hoje se pode transformar em historiador uma pessoa que conhece muito bem as fontes de arquivos de um certo período, mas não leu os grandes textos de filosofia ou de história do século XIX ou XX sobre o assunto. Isto é um pouco produto do positivismo, ou seja, da idéia de que basta descobrir os factos da história para em seguida começar a escrever.
A.C. - Nesse sentido, portanto, o senhor concorda que a história tradicional está morta. Seria preciso fazer também uma história social da política.
- A história tradicional tinha sobretudo esse defeito: era uma história événementielle que extraía sua significação de uma coleção de fatos que supostamente deveriam falar por eles mesmos. Quando na verdade a história factual não dispensa o trabalho intelectual, as hipóteses, a compreensão.
A.C. - já que estamos falando em história total, como o senhor vê (Arnold J.)Toynbee?
- Não o li a fundo. Mas sua história dos desafios e das respostas permite efetivamente refazer a história universal através de uma problemática. Tenho alguma admiração por aqueles que se preocuparam com a história universal, até mesmo Spengler, que como se sabe, foi um produto perigoso, e Toynbee. Admiro também o tipo de ambição cósmica que essas pessoas representam. Mas ao mesmo tempo, fico um pouco desconfiado, porque quando a gente vê o tempo necessário para trabalhar uma questão...
A. C. - Como o senhor vê o campo da história nos Estados Unidos?
- Os Estados Unidos são um país tão vasto que você pode encontrar nele quase tudo. Todas as tendências francesas, tanto as antigas como as novas. Se há althusseranos, há também lacanianos, foucaultianos, braudelianos. Mas o tipo de história que os historiadores americanos fazem é muito influenciado pelo modelo inglês. Em geral é bom no plano da erudição, das fontes, do material, e talvez tenha sido influenciado um pouco demais, nestas últimas décadas, pela obsessão da história social. Mas, em certos setores, é uma história de primeira ordem. Por exemplo, na história econômica, eles talvez sejam superiores a nós - a economia sempre foi particularmente brilhante nos Estados Unidos e nos países anglo-saxões. A contribuição americana à história européia também é enorme. Há algumas décadas vêm aparecendo centenas de livros sobre a história da França escritos por americanos, e alguns são realmente muito bons. Paxton escreveu os melhores livros de história sobre a França durante a Segunda Guerra Mundial; Bob Darnton escreveu sobre a França do século XVIII livros excelentes. Os historiadores da Restauração francesa são anglo-saxões, em grande parte americanos. Ou seja, existe uma forte contribuição americana à história européia, à história francesa. E além disso, existe uma excelente relação cultural franco-americana, entre universidades francesas e universidades americanas
A. C. - O senhor vai todos os anos aos Estados Unidos?
- Sim, sou professor titular em Chicago, e isso me traz muitos benefícios. A começar pelas condições de trabalho, porque lá há livros. Há uma biblioteca absolutamente fantástica. Há filósofos, há historiadores. Para o que eu faço, é muito bom. E há bons alunos. O que é ruim é o clima.
A. C. - O senhor acha que há algo e novo na história que está sendo feita hoje em dia? Porque se fala agora em "história nova", ou "nova história"?
- Isso é uma bobagem! As pessoas se batizam periodicamente de "nova história" para dizer que não gostam daquilo que uma parte de seus contemporâneos faz. Não acredito que isso seja verdade. A única novidade introduzida pelos americanos foi a counterfact history, a história estatística com hipóteses contrafactuais, que é uma parte interessante da história econômica. Mas, tirando isto, o que quer dizer "história nova"? Se quer dizer que se está fazendo a história dos povos, a história das pessoas, a história social, em lugar da história dos reis, isto é tão velho como o mundo. Voltaire já condenava esta pretensão há dois séculos. Por conseguinte, eu não acredito que se possa fazer uma história radicalmente nova. O que se pode fazer é renovar os velhos temas ou tratar temas que nunca foram tratados com métodos já testados. Desconfio da palavra "nova", que é empregada um tanto excessivamente. Isto significaria o nascimento de um setor inteiro da história completamente novo.
A. C. - Mas qual seria a novidade hoje em relação aos Annales? Porque nos Annales já temos as mentalidades, o povo etc.
- Por exemplo, a escrita da história em linguagem matemática é uma novidade, mas é uma novidade metodológica. Infelizmente só é aplicável a setores muito limitados da história, porque o que é formalizável, na história humana, em linguagem matemática, é uma parte mínima. Portanto, é ótimo que se utilize a linguagem matemática para esta parte, mas quanto ao resto, resistirá sempre à matemática.
A. C. - O senhor falou em retomar os velhos temas. Afinal, o senhor escolheu o maior tema da história francesa, que é a Revolução. O senhor não sofreu pressões, constrangimentos, pelo fato de ser este um campo muito ideológico?
- Foi difícil, realmente, porque tive que limpar o terreno. Tive uma grande polêmica com os historiadores comunistas quando era jovem. Porque naquela época, quando eu era um jovem professor, o campo era caracterizado por uma enorme intolerância contra tudo o que não fosse a interpretação clássica - ou seja, leninista - da Revolução. Mas fora isto – e isto foi resolvido nos anos 60 -, não tive problemas. Digamos que, dentro do grupo de historiadores em que eu me encontrava - dentro da École des Hautes Études - eu estava um pouco sozinho, havia poucas pessoas trabalhando na mesma área que eu. Hoje em dia não é mais assim.
A. C. - Hoje não é mais apenas a Revolução Francesa que está em pauta, é toda a França, a política francesa.
- Sim, é a democracia moderna na França que me interessa. Aliás, meu próximo livro tratará disso. Vou pegar todo o século XIX, vou pegar a Revolução Francesa de 1780 a 1880.
A. C. - Finalmente, a última pergunta que lhe faço é a seguinte: para o senhor, o que é a história? Porque há uma coisa que, para uma socióloga como eu, que trabalha com a história, é surpreendente: os historiadores podem brigar por muitas razões, mas eles estão de acordo ao menos em definir procedimentos próprios e um campo de problemas. A dimensão temporal é um eixo decisivo. Para o senhor, o que é a história?
- A história é indefinível, porque se nós dizemos: "A história é o conhecimento do passado", não estamos dizendo muita coisa, já que o passado é tudo, é desde aquilo que acabou de se passar entre nós há um minuto até o começo do mundo. Por conseguinte, o conhecimento do passado é uma definição de tal maneira vaga que ela não diz muita coisa. Se se tenta cercar mais de perto, cai-se no desacordo entre historiadores, pois não se pode atribuir à história um método particular. Não se pode dizer, por exemplo: "A história é o conhecimento do passado com o auxilio de fontes escritas", já que há quem obtenha esse conhecimento por meio de fotografias aéreas, escavações arqueológicas. Você tampouco pode dizer que é um conhecimento obtido com o auxílio da estatística, desde que nem tudo está sujeito à estatística. Em resumo, a história é o conhecimento do passado com o auxilio de tudo o que se puder conseguir. Não acredito que algum dia se possa dar uma definição da história mais satisfatória do que esta. E isto me agrada, porque permite que cada um exerça sua imaginação e seu talento próprio. Eu diria que este é um exercício que me agrada muito, porque contém 50% de saber e 50% de imaginação. É preciso reinventar o que aconteceu. E portanto, isto corresponde mais ou menos ao tipo de curiosidade que eu tenho. Não gosto da curiosidade só pelo detalhe, à la Richard Cobb, pelo passado enquanto tal, que ressuscita com o auxílio de documentos uma vida que foi completamente esquecida, anônima. E também não tenho o espírito suficientemente abstrato para me interessar pela especulação filosófica pura. Estou entre os dois extremos, e minha concepção da história é que ela deve tornar inteligíveis as grandes articulações da mudança no passado, no mundo de onde vimos e que nos fabricou. É por isso que me coloco a meio-caminho entre a abstração filosófica e o empirismo dos antiquários.
* «Um dos expoentes da historiografia francesa atual, autor entre outras obras de Penser la Révolution Française (1978), François Furet pertence a uma geração de historiadores que se formou nos anos 50 sob a égide da École des Annales. Esta corrente, ou este grupo, que trouxe uma contribuição fundamental à historiografia deste século constituiu-se em torno da revista Annales Économies, Sociétés, (hoje acrescenta-se Civilisations ao título), lançada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. No pós-guerrã, uma segunda geração de historiadores, tendo à frente Fernand Braudel, veio consagrar em definitivo a importância dos Annales, que conquistaram um espaço institucional com a fundação, em 1948, da 6a Seção da École Pratique des Hautes Études, hoje transformada em École des Hautes Études en Sciences Sociales.(...)»
«O Historiador e a História: um relato de François Furet», entrevista de Aspásia Camargo publicada in revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988. p. 143-161. (fonte)
- Nasci em Paris, sou filho da burguesia francesa. Meu pai era banqueiro. Embora burguesa, minha família era de esquerda, socializante, foi favorável à Frente Popular em 1936. Um tio meu chegou a ser ministro de Léon Blum. De modo que tive uma educação totalmente liberal, e mesmo quase anárquica. Quanto aos estudos, fiz letras, direito e depois história na Sorbonne. Foram estudos um tanto longos, porque fui tuberculoso durante muitos anos - na época era uma doença séria - e tive interrupções com temporadas no sanatório. Obtive a licenciatura em história em 1954, aliás, quando Braudel era o presidente da banca examinadora. Por que eu me interessei por história? Penso que foi sob a influência do marxismo. Foi na medida em que me tomei marxista, entre 20 e 25 anos de idade, que comecei a me interessar pela história como a ciência-mãe, a disciplina central a partir da qual se poderia compreender todas as outras.
A. C. - O senhor fala muito nos historiadores de sua geração. Alguns deles - entre os mais conhecidos - o acompanharam desde o início de sua formação?
François Furet* - Sim, formamos uma geração que possui um curriculum comparável e que aliás, no conjunto, foi bem-sucedida nas instituições universitárias. E o que temos em comum é que fizemos 20 anos nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Vivemos o fim da guerra corno adolescentes, e muitos de nós estivemos na Resistência. Eu por exemplo, estive no Maquis um pouco antes da libertação da França, entre junho e setembro de 1944, quando tinha 17 anos.
A. C. - Como o senhor entrou para o Maquis?
- Eu estava no Lycée Janson e fazia parte de uma resistência dos estudantes secundaristas. Fazíamos coisas como distribuição de panfletos, atividades de campanha política, e era uma resistência de esquerda, mas não especificamente comunista. Em junho de 4, já depois do desembarque dos americanos, quando as coisas começaram a se precipitar, fui para o Berry, na região central da França, onde minha família tinha uma propriedade. De lá fui para o Maquis, junto com um regimento de forças francesas do interior, que foi então constituído. Foi uma experiência muito importante para mim, embora, para falar a verdade, eu não tenha lutado realmente muito. Minha única experiência de combate foi a tomada de uma passagem de nível. Mas para um adolescente superprotegido, com uma vida sem grandes problemas, foi efetivamente um acontecimento.
Ao voltar, retomei meus estudos e, como muitos jovens franceses que eram bons alunos na escola secundária, preparei-me então para a École Normale Supérietire, para a qual prestei exames em 46. Fui reprovado no exame oral e nunca mais tentei de novo, de modo que uma das originalidades que apresento é não ser um normalien.
A.C. - Realmente existe essa coincidência, de que quase todos os grandes nomes da intelectualidade francesa são normaliens.
- É, mas ao contrário das pessoas que encontrei depois, na época da licenciatura, como Le Goff, Bergeron, Le Roy Ladurie, Agulon, que passaram pela École Normale, jamais estive lá. Aliás, isso não me prejudicou em nada, e creio mesmo que de uma certa maneira me beneficiou. Tenho minhas dúvidas de que os anos passados na École Normale sejam favoráveis à abertura dos jovens espíritos para o mundo. Na verdade, tenho observado que para muitos jovens que foram promissores nos bancos escolares, a passagem pelas grandes écoles significou muitas vezes o fenecimento de sua inventividade e de sua ambição.
Mas, parando de falar só sobre mim, o que há de característico na minha geração é que efetivamente muitos de nós fomos comunistas. A geração quase como um todo era formada por pessoas de esquerda ou de extrema esquerda. Lembro que quando eu era jovem ser socialista era praticamente impensável, de tal forma isso parecia anódino. Quando se era de esquerda, era-se comunista. Lembro que quando eu me preparei para o concurso da licenciatura, o grupo de candidatos - do qual faziam parte alguns que trilharam seu caminho na história, como Le Roy Ladurie, Agulon, Besançon, Richet, Ozouf - era todo de comunistas. Nessa época éramos todos marxistas e filiados ao Partido Comunista, Os que não estavam no Partido em geral estavam muito próximos, eram simpatizantes. A diáspora do Partido ocorreu em torno dos anos 50, 56, 57, ou seja, com o krutchevismo.
A. C. - Ou seja, coincidiu com o X Congresso do PCUs.
- Exato. E para nós, para a nossa geração, coincidiu também com o momento em que começávamos nossa vida profissional. Fomos comunistas quando éramos estudantes, e, por força das circunstâncias, deixamos o Partido e deixamos de ser comunistas no momento em que obtínhamos nossos primeiros postos como professores. De modo geral todos deixamos o Partido no mesmo momento, uns um pouco antes, outros um pouco depois, mas sempre nos anos em torno do X Congresso.
A. C. - Para explicar a entrada maciça dos intelectuais, dos jovens estudantes no Partido, podemos supor que a Resistência tenha exercido grande influência. Mas como o senhor explica essa saída?
- Realmente, não há mistério na nossa entrada. Éramos todos filhos do antifascismo, e no período da libertação, bem como no após-guerra, a forma privilegiada do antifascismo nos pareceu ser o comunismo. Havia o mito da Rússia, do Exército Vermelho, um mito que aliás nos cegou, porque efetivamente ficamos cegos diante de todas as evidências. Aceitamos ingenuamente uma série de mentiras sobre o mundo soviético. Os mais prudentes de nós - foi o meu caso - felizmente não escreveram nesse período. Se eu o tivesse feito, teria escrito um monte de bobagens. Não sei realmente se não escrevi porque era jovem ou porque tinha uma espécie de bloqueio inconsciente.
Agora, por que nós saímos? Porque a sucessão de Stalin fez com que viesse à tona a enormidade das mentiras das quais nós tínhamos vivido, e, de um momento para outro, o mundo do Partido Comunista Francês, que era um mundo particularmente stalinista, nos pareceu refratário à mudança. Como quase todos os que deixam o Partido, começamos a abandoná-lo ainda dentro dele. Ou seja, dizíamos: "O princípio continua válido, apenas houve um desvio em seu interior. Portanto, permaneçamos no mundo comunista para fazê-lo mudar." É o modelo absolutamente clássico do revisionismo interno. Mas ao cabo de algum tempo, você percebe a total ineficácia dessa ação interna, sobretudo num partido tão militarmente centralizado como o Partido Comunista Francês. E depois, uma terceira etapa vem colocar em causa também o próprio princípio, a própria idéia comunista enquanto tal. Eu, pessoalmente, vivi todas essas etapas. O revisionismo interno, em seguida a saída do Partido e finalmente o questionamento da idéia comunista, da idéia de um Estado capaz de modificar a sociedade no sentido de uma maior igualdade e de uma maior transparência. Eu diria que fiz isto entre 50 e 58, e que desde então não mudei muito de opinião em política.
Estou à direita da esquerda e à esquerda da direita, bastante cético quanto aos limites da ação política, ou, ao contrário, bastante convencido quanto ao valor básico da democracia como a melhor forma política para a vida dos cidadãos. Dentro destes limites, nunca fiz política muito ativamente. Para me situar, entretanto, eu diria que fui conselheiro técnico de Edgar Faure em 1968, quando ele fez a reforma universitária francesa que foi muito atacada pela direita. E nos anos 70, fui muito reticente diante da equação Mitterrand -união da esquerda, porque a considerava hipotecada pela união com os comunistas. Mas votei em Mitterrand em 81. Sempre achei, porém, que sua experiência desde o início esteve comprometida por um peso extremamente negativo, que é a aliança comunista, cujas conseqüências são uma série de equívocos sobre a sociedade moderna. Sempre achei, em função disso, que, se os socialistas tomassem o poder, estariam condenados a cometer erros tais que seriam obrigados ou a renunciar ao poder, ou a renunciar às suas idéias.
A. C. - O que o senhor acha que aconteceu?
- Eles renunciaram às suas idéias! O que faz com que não tenham governado tão mal. Mas hoje em dia eles estão diante da necessidade de uma renovação de idéias, que é o cerne do problema da esquerda francesa.
A. C. - Não seria da esquerda internacional?
- É um problema internacional, mas que os espanhóis, por exemplo, estão resolvendo melhor do que os franceses, na minha opinião, Em poucos anos Felipe Gonzales conseguiu fazer do socialismo espanhol uma força governamental dotada de credibilidade - mesmo que nos últimos seis meses isso possa soar menos verdadeiro do que há um ano atrás. Quero dizer com isso que ele libertou o socialismo espanhol das hipotecas do marxismoleninismo que ainda pesam muito sobre o socialismo francês,
Parece-me que a grandeza de Mitterrand teria sido fazer o socialismo francês dar um passo absolutamente decisivo, que consiste precisamente em libertá-lo dessa cultura fictícia do radicalismo revolucionário na qual a esquerda francesa se destaca há duzentos anos. Ele até fez isso, mas sem declará-lo - a pedagogia de Mítterrand, como sempre, é uma pedagogia prática, Ele fez isso sem dizer que estava fazendo, sem confessá-lo, e tanto isso é verdade que o Partido Socialista hoje está incerto quanto ao rumo a seguir. Não sabe se as concessões que foi obrigado a fazer à sua doutrina entre 1983 e 1986 são definitivas ou provisórias, se um dia poderá voltar às velhas idéias de ruptura com o capitalismo. O que se verá nos próximos dez anos é justamente isto: se o Partido Socialista Francês vai aceitar ser uma força clássica da alternância democrática do poder na França, ou seja, um partido de governo um pouco como a social-democracia espanhola, alemã, e até certo ponto inglesa, ou se prevalecerá o peso da velha cultura revolucionária francesa.
Como sou otimista, parece-me que o, Partido Socialista Francês, de cinco ou seis anos para cá, está no bom caminho. É isto aliás o que me faz não lamentar meu voto em 81. Considero bom ter votado em Mitterrand em 81, porque considero bom que a esquerda tenha chegado ao poder e possa ter a experiência de governo. Como hoje a França é um país que exporta muito, que está dentro do mercado europeu e mundial, não é mais possível fazer uma política louca do ponto de vista econômico durante muito tempo, pois logo começam a piscar os sinais de alarme. Se você faz uma desvalorização, já não é muito bom. Duas, ainda vá lá. Mas não é possível fazer seis. Ou bem você é obrigado a corrigir o rumo, e adota uma política econômica e social mais razoável, ou bem é obrigado a pular fora. E a França fez a primeira opção. Sob este ponto de vista, sou também inteiramente favorável à Europa, porque a comunidade européia introduz nas culturas políticas de nossas velhas democracias um elemento de racionalização de gestão que não existe na esquerda.
A C. - Além de ser favorável à comunidade européia, o senhor é otimista em relação à sua consolidação?
- Acho, como todo mundo, que ela avança lentamente. Mas este problema é extraordinariamente grave e não deve ser subestimado. É extraordinariamente grave porque a contribuição histórica da Europa à civilização e à história universal foi exatamente a nação. O que a Europa inventou, em comparação com a Antigüidade, os impérios, as cidades-estados, foi precisamente a nação. Apesar de tudo, você pode ver essa maravilha cultural, tão grande ao lado de tantas coisas. Se você retirar a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália modernas, da história universal, você percebe que fica faltando muito à humanidade. Pois bem, agora se resolveu dizer às nações européias: "Foi muito bom ter-se feito as nações, mas neste momento é preciso dissolvê-las." E isto para fazer uma coisa que não é clara, que é a renúncia àquilo que foi feito de melhor. É isto que é muito difícil, e é preciso evitar encará-lo com a ingenuidade americana, que não tem nenhuma experiência do que seja uma nação européia e acredita que um modelo federativo de tipo americano possa se instalar com facilidade na Europa. As realidades não são absolutamente comparáveis.
Menciono isso tudo para dizer que lentidão não me atemoriza muito. Nos últimos 30 anos, apesar de tudo, a idéia de um poder político comum progrediu. O grande problema daqui para frente vai ser a relação com os americanos, pois a relação bilateral dos países europeus com os Estados Unidos muitas vezes é muito mais importante do que a relação desses países entre si.
A. C. - Certamente. É o caso da Alemanha, por exemplo?
- Sim. E da França também. Veja as relações intelectuais. Nós temos dez vezes mais relações intelectuais com as universidades americanas do que com as universidades alemãs ou inglesas. Isto coloca um problema sério, que é o do restabelecimento do equilíbrio do lado da Europa. Considero isto fundamental. Mas enfim, a coisa está avançando. Se você observa a maneira como a França se abriu para o exterior nos últimos 20 anos, é uma coisa espetacular. Quando eu era estudante, as universidades eram rigorosamente francesas. Havia poucos professores estrangeiros, ninguém falava inglês etc. A mudança foi gigantesca. Se você tomar as grandes instituições de pesquisa na França, verá que elas são internacionais.
A. C. - É verdade. Estou aqui como professor visitante da École des Hautes Études certamente por causa disso.
- A École des Hautes Études, que dirigi por muito tempo, é uma instituição totalmente cosmopolita. Ela tem duzentos professores franceses e, a cada ano, recebe cem professores visitantes estrangeiros, convidados.
A. C.. - Voltando ao Partido Comunista, que balanço o senhor faz de sua passagem por ele? Quais foram os pontos positivos, tanto sob o prisma pessoal, como profissional e intelectual?
- E difícil dizer. É difícil avaliar em termos positivos ou negativos as coisas que aconteceram na nossa vida. Elas aconteceram, e pronto. Fazemos do que aconteceu o melhor que podemos. Mas, para qualquer pessoa que saiba refletir, um acontecimento da vida nunca é totalmente perdido, mesmo quando é considerado o resultado de uma ilusão ou de um equívoco. Vou começar pelos pontos negativos: o primeiro é que perdemos muito tempo. Durante dez anos, em vez de ler os grandes livros da literatura universal, todos os que estávamos no Partido lemos muitos livros que não eram importantes. Não estou me referindo a Marx, que foi provavelmente o único autor muito importante que lemos na época. Mas enquanto estávamos no Partido, não lemos Benjamin Constant, não lemos Hobbes, não lemos Locke, não lemos Tocqueville etc. etc. É verdade que eu já conhecia Toequeville desde o tempo do colégio, mas só fui estudá-lo, e aos outros, seriamente, depois, Portanto, houve uma perda de tempo.
O que nós ganhamos, afora pequenos talentos de organização, que aprendemos no Partido Comunista e podem ser úteis na existência quando nos ocupamos de tarefas administrativas, foi uma experiência política totalitária, que, na minha opinião, distingue aqueles que passaram por ela dos demais. Existem coisas que são espontaneamente compreendidas por aqueles que passaram pelo Partido, e que o resto da geração tem mais dificuldade de perceber. Eu fico até espantado de ver que pode existir um universo comum entre as pessoas que passaram pelo Partido Comunista e compreenderam por que o deixavam, e os outros. Digo "que compreenderam por que o deixavam" porque há muitas pessoas que passaram pelo Partido Comunista e saíram por razões acessórias, sem nunca terem compreendido a realidade do fenômeno, que deixaram o Partido Comunista mas permaneceram espiritualmente comunistas. É muito comum isso na França. Estou falando das pessoas como eu, que deixaram o Partido Comunista rompendo com o tipo de raciocínio, de cultura e de premissa intelectual subjacente à adesão inicial. É uma mentira dizer que todas essas pessoas passaram para a extrema-direita. Algumas foram para a extrema-direita, mas a massa das pessoas como eu é de centro-esquerda, centro-direita. Ou seja, tornaram-se democratas liberais. Este é o caso mais freqüente.
A.C. - Em sua opinião, portanto, quando as pessoas que passam pelo Partido saem por razões conscientes, elas se tornam mais liberais?
- Sim. Elas atribuem então mais importância àquilo que no marxismo se chama de "liberdades formais". O peso das liberdades formais só pode ser bem apreciado num sistema que as nega, como sempre.
A. C. - No seu caso, isso explicaria seu interesse atual pela Revolução Francesa?
- Sim, embora meu interesse pela Revolução Francesa date de antes, do tempo em que eu era marxista. Ainda quando era estudante fiz uma dissertação sobre a imprensa em 1789. Portanto, mantive meu interesse ao longo da minha evolução. No começo, a Revolução Francesa me interessava por ser uma das genealogias mais prováveis do bolchevismo. Depois, ela me interessou pelas mesmas razões, só que eu me coloquei num ponto de vista crítico. Em outras palavras, é evidente que eu me interessei pela Revolução Francesa por razões ligadas ao meu engajamento político. Aliás, digo isso francamente, eu me interesso pela história pelo que ela comporta de inteligibilidade para o presente.
Penso que existem dois grandes tipos de historiadores. Existem pessoas que gostam da história pela história: ficam felizes quando estão diante de arquivos, de maços de manuscritos, através dos quais tentam ressuscitar uma época, e pronto. Este tipo de curiosidade não é suficiente para me fazer trabalhar, para me fazer escrever uma história. Sinto necessidade de procurar na história o segredo do presente. Este me parece ser o segundo tipo de curiosidade histórica, e não o privilégio, apenas reconheço que é o meu. Mas sempre me espantou o fato de que esta curiosidade pela história como chave do presente esteja distribuída de maneira tão desigual entre os historiadores que conheço. Há pessoas que se interessam pela história simplesmente porque se interessam pela história.
A. C. - Isto me faz pensar na chamada história tradicional. Durante seu período de formação, qual era o peso da história tradicional?
- Você fala da história événementielle? O peso era muito grande nas instituições, na Sorbonne, por exemplo, mas espiritualmente ela já estava liquidada. Lembro nitidamente que nós, jovens marxistas, nunca púnhamos os pés na Sorbonne - você sabe que as universidades francesas são muito flexíveis nesse ponto, você pode fazer os exames sem assistir às a aulas. Freqüentávamos a 6. Seção da École Pratique de Hautes Études, ouvíamos Braudel, Vilar, Labrousse, e só excepcionalmente íamos à Sorbonne para assistir a um ou dois cursos obrigatórios para a licenciatura. Para nós a questão nem se colocava. O que contava eram os Annales, e pelo que eles ofereciam de compatível com o marxismo.
A. C. - Este é justamente o outro lado da minha pergunta. Naquele momento a École des Annales já estava constituída desde algum tempo, e Braudel inclusive fazia parte da segunda geração do grupo.
- Sim. Braudel fundou a 6.a Seção da École Pratique contra a Sorbonne. E no começo dos anos 50 ele já havia ganho a partida, pois era o presidente da 6.a Seção, professor do Collège de France e presidente da banca (júri) responsável pelo concurso para a licenciatura. Tinha uma situação absolutamente importante, era um homem poderoso, mas curiosamente se pensava como minoria, porque não estava na Sorbonne. O que prova a que ponto as mentalidades sobrevivem às situações. Até morrer Braudel sempre me disse que era perseguido. Quando ele entrou para a Academia Francesa, o Le Monde estampou na primeira página: "Um perseguido ou um marginal, não lembro bem, entra para a Academia." Para você ver como os mitos são prodigiosos na França.
A C. - Como foi seu concurso para a licenciatura? Vocês, comunistas, estavam isolados dos outros?
- Não, absolutamente. A prova é que todos passamos mais ou menos brilhantemente no concurso, que era difícil, e pouco depois Braudel nos levou para a École Pratique des Hautes Études. Não estávamos isolados, mas, como sempre, a mentalidade comunista é aristocrática... Você a conhece! Digo mentalidade aristocrática no sentido de que se trata de um pequeno grupo que sabe mais que os outros, que possui uma doutrina esotérica que supostamente compreende e conhece aquilo que os outros não compreendem e não conhecem. Mas não se pode dizer que na França dos anos 50 os comunistas estivessem à margem da sociedade.
Lembro que neste concurso dei uma aula de um marxismo absolutamente ortodoxo sobre a Polônia do século XVIII, e que Braudel a considerou espantosa. Eu explicava tudo pelo comércio do trigo na segunda servidão, pela necessidade de exportar e de aumentar a taxa da mais-valia.
A. C. - Ainda assim o senhor não teve problemas com a banca?
- Não, porque você sabe que existem algumas pontes entre o braudelismo e o marxismo, como bem mostrou o Braudel dos últimos tempos. Quando você explica o essencial da história através das grandes pulsações econômicas, de alguma maneira você tem uma linguagem comum com os marxistas. Mas os marxistas, sobretudo os comunistas franceses, eram tão sectários naquela época que atacavam Braudel, escreviam contra ele. 0 que era um absurdo, porque os "níveis" de Braudel são perfeitamente articuláveis com uma teoria marxista da história, embora, naturalmente, sejam muito menos dogmáticos do que o marxismo. Porque no marxismo, afinal, de alguma forma há uma teoria da causalidade.
A. C. - Mas o que eu queria saber é se no seu tempo de faculdade havia discussões entre os estudantes em torno dos modelos da história social, praticada pelo grupo dos Annales, e da história événementielle. Discutia-se isso?
- Para nós, se você quer saber, o que os Annales diziam não era suficiente, era apenas evidente. E era evidente porque eles reabilitavam a parte econômica. Pela mesma razão nós tínhamos uma grande admiração por Rostovtzeff - ainda que ele fosse um historiador antisoviético -, porque ele fazia uma interpretação econômica e social da queda do Império Romano. Achávamos isso formidável, uma interpretação econômica e social... Pelas mesmas razões por que Braudel é compatível com uma interpretação marxista, Rostovtzeff também o é.
A. C. - Como o senhor vê, no interior dos Annales, o papel do marxismo e o papel da sociologia, de Durkheim?
- O papel do marxismo nos Annales foi inexistente no começo. Não há vestígios de marxismo em Marc Bloch e em Febvre, nem mesmo vestígios de que eles tenham lido Marx seriamente. O que foi importante no começo dos Annales foi a geografia, o determinismo geográfico, os inícios da sociologia, com Durkheim, Halbwachs, Mauss, e da economia estatística, com Simiand. Isto é que foi importante. Você percebe que são fontes essencialmente francesas, porque vivíamos ainda num mundo muito protecionista do ponto de vista cultural.
Foi realmente Marc Bloch quem mais se abriu para o exterior, quem mais teve curiosidade sobre os ingleses e os alemães, embora com uma visão não muito metodológica. Mas nem Marc Bloch nem Febvre são epistemólogos. Na verdade, são práticos da história, que pretendem abrir o campo da história. Mais tarde, Braudel, em sua tese sobre o Mediterrâneo, no fundo também não está muito preocupado com urna epistemologia sistemática. Ele tem sua teoria dos níveis, do tempo longo, mas não se interessa fundamentalmente pelo problema da epistemologia histórica. Penso que o encontro dos Annales com o marxismo é mais tardio, ocorre com a geração precisamente dos anos 60, quando o marxismo se torna uma doutrina dominante na França, com as ciências sociais. Eu digo mesmo que assistimos nestes últimos anos a uma marxização do braudelismo.
A. C. - Como o senhor vê a influência da École des Annales sobre outras culturas que não a francesa. já que se tratava de um movimento exclusivamente francês em sua origem?
- Penso que é uma influência importante, mas difícil de ser delimitada, pois está muito misturada à de outras correntes, como o marxismo, o estruturalismo, as ciências sociais. Ou seja, está misturada à idéia que predominou na França nos anos 60, de que o que importa não é aquilo que é manifesto, aquilo que se vê, mas o que está por detrás do manifesto, por detrás do que se vê. Quer você chame isso de inconsciente na psicanálise, de estrutura do parentesco, ou de modo de produção, você tem sempre um mesmo esquema mental que faz com que aquilo que é mais manifesto seja ao mesmo tempo o mais superficial, aquilo que explica em profundidade seja sempre uma outra coisa. E este é um esquema, digamos, braudeliano, que no fundo é não apenas compatível, mas perfeitamente moldável a todas essas epistemologias da suspeita, das quais as ciências sociais se alimentaram durante muito tempo.
É por isso que seria complicado separar a influência que pode ser atribuída propriamente aos Annales daquela que pode ser atribuída ao marxismo, por exemplo. E o marxismo como corpo de doutrina universal não é pouca coisa. Em muitos países -suspeito que seja o caso do Brasil, dos outros países da América Latina, como também da América do Norte, ou da Inglaterra - o braudelismo passou pelo marxismo. Outro exemplo: o que se chamou nos Estados Unidos de social history, o que fez Tilly nos anos 60. Eles descobriram aquilo antes de conhecer Braudel. O braudelismo se sobrepôs a uma coisa com a qual era facilmente compatível.
Em outras palavras, creio que a universalização dos Annales foi veiculada também por outros fatores além da própria força da corrente dos Annales. Aliás, se você quer minha opinião sincera, penso que os Annales nunca propuseram uma epistemologia histórica, que não existiu um único metodolólogo na École des Annales, e que, por conseguinte, o que fez sua reputação foi algo bastante vago, ou seja, sua proposta de deslocar o tema da história, do político, para o econômico e o social, do curto prazo para o longo prazo. É preciso acrescentar ainda que o acaso fez com que aparecesse um número relativamente grande de bons historiadores na França, depois da Segunda Guerra Mundial, que divulgaram a École des Annales, tudo isso somado à exístência de uma instituição verdadeira e forte como a École des Hautes Êtudes. Você sabe que existe também uma realidade sociológica da École des Annales. Eu sempre digo brincando que a École des Annales não tem outra definição, senão a de que ela é as pessoas que eu encontro de manhã no elevador. O que existe de comum entre Le Roy Ladurie, Le Goff, eu, Richet etc.? Como podem nos identificar sob uma mesma etiqueta, dizendo: eles são da mesma escola?
A. C. - É verdade, não há nada de comum. Um trabalha com demografia, outro com representações... De toda forma, foram os historiadores que criaram a 6a Seção da École Pratique des Hautes Études. O senhor diria que a história sempre teve um papel importante dentro da escola?
- Ela teve esse papel até mim, já que eu também fui presidente da escola durante muito tempo. E quando eu saí, em 1985, ninguém da nossa geração quis ficar no meu lugar. É um trabalho bastante absorvente, que obriga a perder tempo, e não se encontrou nenhum historiador que quisesse fazê-lo. Foi então um antropólogo, Marc Augé, que aceitou assumir a função, que até mesmo desejava fazê-lo. E ele era um homem perfeitamente aceitável pelos historiadores, porque não estava longe de nós. Agora, isto corresponderia a uma tendência profunda de recuo da história e de avanço da antropologia? Não creio. Penso que o que caracteriza o cenário francês hoje é, ao contrário, o fato de que mais que nunca a história é a ciência central. Mesmo sendo uma ciência frouxa, vaga, a história continua a ser a disciplina mais forte no sentido editorial, de mercado.
A.C. - Os sociólogos se ressentem disso?
- Eu diria que as duas disciplinas que me parecem estar numa crise muito grave são a sociologia e a antropología. Não estou absolutamente certo de que a antropologia resista à descolonização, nem ao conceito de relativismo cultural. Quanto à sociología, não vejo nenhum sucessor de Touraine, Bourdieu, Boudon etc. Aliás, fico tentado a acrescentar "melhor para nós", porque não sou um grande admirador da sociologia.
A.C. - Voltando a essa questão que o senhor mencionou, da predominância, no pensamento francês dos anos 60, de um preconceito contra tudo o que é manifesto. Este preconceito atingiu o político, que é sem dúvida o que existe de mais visível, e por isso mesmo foi considerado o menos importante. Parece-me que seu papel, ao estudar a Revolução Francesa, foi justamente o de reintroduzir na história as questões da política.
- Sim, mas esta partida ainda não foi ganha. A massa da École des Annales, os historiadores, mesmo da geração seguinte à minha, estão ainda ligados à história social, à história das mentalidades. Ou seja, o que lhes interessa é menos a história das idéias do que a história da recepção social das idéias. E eu advogo que a história política seja ao mesmo tempo a história das idéias, não apenas de sua recepção social. E aliás, dentro dessa perspectiva, eu advogo uma aliança da história com a filosofia. Minha idéia central, o que eu faço no Institut Aron, é juntar os historiadores e os filósofos. É tentar reabilitar não apenas a história do político, mas também a história das idéias, que foi praticamente arruinada pela École des Annales.
A.C. - A mentalidade superou a idéia.
- Exatamente. E para a história das idéias, o político é o lugar da liberdade humana, o lugar do aleatório, da invenção. Somos obrigados a renunciar à idéia de que o que importa, o que determina o futuro, é o oculto e ao contrário, a estudar na história a invenção, a liberdade, o explícito, o manifesto. É isto que me parece ser apaixonante. Parece-me que estamos saindo dessa falsa história, da ciência do implícito. Eu gostaria de voltar à idéia de que a história é a ciência, é o saber sobre o que os homens manifestam. Um pouco a mesma coisa, se você quiser, que acontece na política, quando se observa o fim da concepção marxista da democracia. A concepção marxista nos quis fazer crer que o que importava era o que havia por detrás da democracia, o que a democracia escondia, sem nos dizer. E finalmente se percebeu que o que importa na democracia é o que ela diz, é unicamente a sua "palavra". É, aliás, o facto de que todos os homens são iguais, e de que é simplesmente esta explicitação que modifica as relações entre eles.
É isto o que eu queria fazer os historiadores compreenderem: que o lugar do político é provavelmente o mais favorável para se perceber a história total de uma coletividade. Se você quiser compreender, por exemplo, o que caracteriza a história inglesa em contraste com a história francesa, você não deve se ater às infra-estruturas, que são bastante comparáveis. Se você comparar a Revolução Industrial na Inglaterra e na França, terá os mesmos elementos, ainda que eles não obedeçam aos mesmos ritmos. Ao passo que se você comparar as idéias das culturas políticas dos dois mundos, você se verá diante de dois universos.
A.C. - Tão diferentes quanto Rousseau e Locke.
- Exato. E independentemente, eu diria, da recepção social dos dois autores. E o que me apaixona na Revolução Francesa é isto, é a invenção francesa da democracia, essa espécie de coisa extraordinária que fez com que, no final do séc. XVIII, os franceses inventassem uma forma radical, mas perigosa e frágil, de democracia, que tem relações complicadas com a liberdade.
A. C. - Gostaria que o senhor explicasse um pouco mais a idéia desta invenção, porque o senhor insiste em que o tom da Revolução Francesa era mais rousseauniano, no sentido da democracia direta, em contraste com o modelo inglês, que privilegia a representação. Embora a democracia direta não tenha funcionado, como o senhor vê a enorme influência da Revolução Francesa, essa espécie de internacionalismo que faz com que mesmo no Brasil se conheça não a Revolução Inglesa, mas a Revolução Francesa? Por que o êxito dessa combinação mágica entre liberdade, fraternidade e igualdade?
- Para mim, a Revolução Francesa contém três idéias principais, se me for permitido esquematizar um pouco. A primeira idéia, que curiosamente é também totalmente antiinglesa, é a da tabula rasa, da ruptura com o passado. É a idéia de que um povo, num determinado momento da sua história, pode se instalar para reinstituir radicalmente sua sociedade. É a idéia do Ancien Régime na França, e é o próprio conteúdo da idéia revolucionária. A idéia de que a partir de um momento x da história um mundo pode ser reinstituído sobre uma história que é pensada toda ela como corrupção. Esta é uma idéia louca, uma idéia apaixonante, que surgiu no fim do séc. XVIII. Até hoje, aliás, tenho dificuldade em compreender seus elementos formadores. Enfim, esta é uma das grandes inovações da Revolução Francesa.
A segunda idéia forte da Revolução Francesa é a ruptura com a ordem religiosa, que é decisiva. A França inventa a democracia contra a igreja por razões nas quais não insistirei, e que são profundas. Portanto, instaura-se uma cultura democrática moderna contra a Igreja, com uma diferença em relação ao mundo anglo-saxão, onde a democracia se instala dentro de uma revolução religiosa preexistente. E foi o caso francês que se generalizou, que se universalizou, até mesmo na América Latina.
E o terceiro elemento da Revolução Francesa que é fascinante é o problema de pensar a representação política: de que maneira um corpo social, uma sociedade civil se representa no nível do Estado, se representa no sentido próprio. Ou seja, de que maneira ela se instala sob uma outra forma que não ela mesma, e no entanto fiel a ela mesma no nível do Estado. A idéia de representação recebeu um golpe de Rousseau, já que ele disse: "É impossível. Para que a sociedade se encontre no nível do Estado, é preciso que cada cidadão etc. etc." Bom, e a Revolução Francesa pode ser lida toda ela como uma crise geral da representação moderna, uma vez que ela termina com Bonaparte, que é um curto-circuito da representação, que é uma forma monárquica da democracia.
Aí está. Uma vez que você perceba as três idéias fundadoras da democracia à francesa, você compreende muitas coisas, me parece, do mundo moderno, dos últimos duzentos anos.
A - C. - Ouvindo-o agora, eu me pergunto se a idéia do sufrágio universal - que não é a democracia direta nem tampouco a representação à inglesa - decorre da Revolução Francesa. A pressão das massas para entrar num sistema democrático decorre daí?
- Mas o sufrágio universal não basta para fazer as massas entrarem na democracia, já que, como dizia Rousseau, ele significa simplesmente que as massas alienam seu poder a cada quatro, seis ou sete anos a representantes que utilizam esse poder para fins que, eu diria, não são universais. Quando se delega o poder, perde-se o poder. Isto é evidente. Existe um dilema democrático, que nos permite desconfiar que Rousseau tenha demonstrado perversamente em O contrato social que a democracia é uma aporia lógica num grande Estado. Mas isto posto, acontece que, de fato, a representação funciona.
A.C. - Mas também não funciona da maneira inglesa, que pressupõe a existência de pequenas comunidades políticas. Mesmo para os americanos, no começo, a idéia era de uma democracia para muito poucas pessoas, pessoas qualificadas.
- Os anglo-saxões têm menos problemas do que nós, porque eles não convivem com a idéia de que os interesses não são representáveis, já que em Locke a propriedade é um direito natural. E a sociedade em estado natural não é muito diferente da sociedade política. Ao passo que em Rousseau, a passagem da sociedade natural para a sociedade política é terrivelmente difícil, já que é preciso que o indivíduo se "desnature" para tornar-se um cidadão segundo o modelo do homem racional.
A. C. - O conceito social de natureza é inverso.
- Exato. Portanto, temos um pensamento da democracia na Revolução Francesa que é um pensamento verdadeiramente forte do ponto de vista filosófico, extremamente difícil de ser posto em prática e que, a meu ver, produziu um século XIX francês tão célebre em patologias políticas, já que os franceses experimentaram sucessivamente várias monarquias, várias repúblicas, e chegaram a fazer um segundo Bonaparte. E é isto o que me interessa no caso francês, no que eu chamo de "teatro francês". Se quisermos compreender a França contemporânea, só há um meio de fazê-lo, que é passar pela política.
A. C. - O senhor pensa que a república, e especialmente a república francesa, é tudo o que pudemos extrair da Revolução?
- Sim, moderando a herança. Porque se você observa como Ferry e Gambetta fabricaram o consenso em 1877-80, você percebe que, ao lado da herança dos direitos do homem de 89, eles conseguiram conjurar a lembrança de 93, primeiro porque fuzilaram os membros da Comuna e liquidaram a supervalorização da esquerda. e também porque pediram socorro ao comtismo. Para um brasileiro é fácil compreender do que se trata. O comtismo contém uma idéia muito forte, que é a idéia da ciência. A ciência consolidando os direitos do homem, mas às custas de uma contradição filosófica, porque, como você sabe, Comte era hostil a 89 e à soberania do povo. Por conseguinte, na herança ferryista e gambettista há uma combinação entre a idéia dos direitos do homem, de liberdade etc., e a idéia de um progresso científico inevitável à humanidade.
A. C. - O senhor considera que a idéia de Comte, enfim, a própria idéia de uma tecnocracia, tem relação com a experiência histórica da Revolução, da perda da aristocracia como classe dominante?
- Bem, a tecnocracia é portadora da idéia científica, da idéia da racionalidade administrativa, mas no caso francês ela só se torna vitoriosa quando é conciliável com a democracia. Você não pode instalar na França uma ditadura de "científicos". A grandeza dos homens da Terceira República -que eu considero grandes homens, como Ferry e Gambetta - foi eles terem combinado a idéia da razão tecnicista que vem de Condorcet, Saint-Simon, Comte, com a idéia da vontade geral, dos direitos do homem, e terem fundado a democracia sobre a vontade dos cidadãos. São idéias filosoficamente contraditórias que eles conseguiram combinar, para criar o consenso francês.
A. C. - Para criar um campo neutro, que foge à idéia de classes dominantes.
- Completamente. E é este consenso que o marxismo destrói no século XX, com a idéia de que sob o mito republicano escondia-se a classe dominante. E hoje, quando o marxismo está morrendo na França, o que se redescobre é precisamente o valor dessas idéias dominantes de um grupo coletivo. Você não fica espantada com o fim do marxismo na França?
A. C. - Fico muito espantada, porque quando morei na França, entre 1967 e 1974, era só o que havia. Freqüentar os seminários de Raymond Aron era muito malvisto. Ninguém se interessava por Pareto e por Weber. A moda era realmente Althusser e Poulantzas. E agora, não estou vendo mais nomes deste peso.
- Acabou. Não sei o que está acontecendo em outros lugares, mas na França o que se vê é o fim da cultura jacobina. É o fim da cultura marxista. É a descoberta do aleatório na história. Eu vejo os jovens que estão à minha volta no Institut Aron, que têm 30, 35 anos, e eles estão todos apaixonados pela história política e pela filosofia.
A. C. - De certa forma, estamos falando aqui da "recepção social" das idéias, que tanto interessou ao grupo dos Annales. Como o senhor mesmo disse há pouco, os livros de história encontram hoje grande aceitação. O senhor considera que este "sucesso" da história possa provir do fato de ela lidar com o ímprevisível, com conjunções de elementos que se combinam um tanto aleatoriamente? O senhor acha que a história é isto?
- Sim. Em parte. Enfim, nem tudo é imprevisível. É verdade que as tendências econômicas são mais previsíveis. Mas naquilo que a história contém de invenção, ela é totalmente imprevisível.
A. C. - E é isto o que lhe interessa preferencialmente.
- Sim. Enfim, o que me interessa é aquilo que fabrica as grandes individualidades históricas, ou seja, as nações, os povos, a história. O que fabrica isso tudo está muito mais no nível do político do que do econômico. A história econômica da Europa é comum a todas as nações européias. Como eu já disse, ela não explica quase nada sobre as diferenças entre a Inglaterra e a França. O elemento que parece ser mais importante para a inteligibilidade do comportamento de um grupo coletivo é o político. É a estrutura do imaginário coletivo. Outro dia, por exemplo, convidamos Skinner para fazer uma palestra, e ele não pronunciou a palavra igualdade para falar da liberdade à inglesa. Para um francês, isto é absolutamente inaudito. Para um francês, o problema da igualdade é absolutamente consubstancial ao estudo da liberdade, desde as origens. Portanto, são duas culturas políticas completamente diferentes que resolvem de maneira diferente um problema comum. E é por isso que eu digo que você não pode compreender nada sem a filosofia. O drama é que os grandes problemas foram muito trabalhados no século XIX. E, com as ciências sociais, acreditou-se na idéia falsa de que esses problemas podiam ser objeto de uma ciência por assim dizer nova, ignorada no século XIX. O que eu condeno nos anos 60 e nas ciências sociais é elas terem feito crer que não havia necessidade de ler os grandes clássicos para compreender o mundo em que vivemos, que era preciso apenas fazer uma abordagem científica daquilo que estava ali ao lado, escondido. Isto, na verdade, é uma brincadeira.
A. C. - Quais foram os autores e as leituras mais importantes para a sua formação?
- Os dois autores mais importantes para mim, de longe, são Marx e Tocqueville. E, acessoriamente, o século XVIII: Montesquieu, Rousseau, Locke. Mas Marx e Tocqueville são fundamentais. Hoje em dia, sou muito tocquevilliano. Penso que foi ele quem viu com mais profundidade as sociedades em que vivemos. O capítulo que achei mais bonito em A democracia na América é aquele em que ele diz que a relação entre senhores e servidores existe em todas as sociedades, tanto aristocráticas corno democráticas. Portanto, o fato de a democracia se caracterizar pela igualdade de condições não impede que existam nela senhores e servidores.
Mas qual é a diferença entre esta relação nas aristocracias e nas democracias? É que nas aristocracias a relação é estrutural. Existem senhores de geração em geração, sempre da mesma família, assim como servidores sempre das mesmas famílias. O fenômeno é interiorizado como algo quase natural: as dinastias dos senhores e as dinastias dos servidores, numa espécie de familiaridade não-conflituosa. Na democracia, existem senhores e servidores, mas os cidadãos são considerados iguais. A conseqüência é que a relação não é mais suportável, já que ela é contratual, é provisória, já que, quando termina de servir seu senhor, o servidor se torna rapidamente seu igual e deseja ser senhor um dia. Portanto, a relação é não apenas conflituosa, ela é atravessada pelo ódio. É isto a democracia.
A. C. - Voltando mais uma vez à Revolução Francesa, o senhor compararia o totalitarismo que ela instaura com o sistema soviético no stalinismo?
- Não, eu não comparo. Eu nunca disse que a Revolução Francesa é totalitária. Jamais. Presto muita atenção a este ponto. Porque um sistema totalitário, para mim, é um sistema onde há um partido que controla a sociedade. Isto não acontece durante a Revolução Francesa. Não há partido. O que há, sob Robespierre e os jacobinos, é um clube. E não apenas não há partido, mas também não há a idéia da ciência da história. O governo não está investido de um conhecimento superior do processo histórico que faz com que ele tenha uma espécie de transcendência natural em relação ao corpo social. A sociedade francesa sob o terror é uma sociedade que se amotina, que não é atomizada nem dobrada pelo poder político, como aconteceu, por exemplo, com o campesinato russo, que foi destruído pelo poder soviético. Não acho absolutamente que se possa falar em totalitarismo no caso francês. O que existe virtualmente no caso jacobino, e sob forma patológica no caso russo, é a idéia do voluntarismo político, ou seja, a idéia de que o poder político pode tudo. E de que basta mudar os homens, regenerá-los, para fazer uma sociedade harmoniosa e transparente.
Para os jacobinos, isto durou apenas, poucos meses. A idéia do voluntarismo político, que vai se tornar no século XX uma idéia louca, não é, no caso francês, uma idéia que tenha dominado a sociedade.
A. C. - O senhor tem alguma simpatia pelas idéias de Hannah Arendt? Porque ela analisa - e talvez num nível muito filosófico, ou seja, no nível do ethos - a idéia de ruptura, do ano 1 da história. E as revoluções Americana e Francesa talvez tenham sido os melhores exemplos desse fenômeno.
- Sim, há alguma verdade no que ela diz, ou seja, que a Revolução Americana teve êxito na medida em que conseguiu fundar um sistema político mais durável, consensual etc., e que a Revolução Francesa fracassou na medida em que teve a ambição de mudar a sociedade, o que era uma ambição, eu diria, inviável. Isto posto, o nível em que ela se coloca é tal que não compartilho de sua espécie de pessimismo radical em relação à democracia moderna.
A. C. - Como o senhor vê o campo da história hoje? Parece-me que estamos diante de um campo cada vez mais especializado, onde as visões de conjunto, como fez Tocqueville, são impossíveis, pelo próprio fato de que há fontes demais, temas demais etc. O senhor é favorável à especialização ou, ao contrário, acha que se deve procurar o conjunto?
- Creio que é preciso que a história permaneça um saber erudito e relativamente lento de ser adquirido, porque é um trabalho difícil, em que é necessário saber muita coisa, ter muitas leituras, consultar muitas fontes para escrever. Isto posto, eu lamentaria muito que a história renunciasse às idéias. A tensão da história está sempre entre a erudição e as hipóteses de conjunto. Portanto, considero que o historiador deve sempre conservar as duas, ou seja, ser sério no manejo das fontes, de seus conhecimentos, e ao mesmo tempo não ter medo das hipóteses.
O traço dominante da história hoje, no mundo em que vivo, ou seja, na Europa e nos Estados Unidos, é de longe a história social. Este tipo de história corre o risco de ser cada vez menos significativo, na medida em que se orienta cada vez mais para o insignificante. Na medida em que se procura compreender os mínimos feitos da vida quotidiana dos homens, corre-se o perigo de erigir em objeto histórico praticamente tudo. E se tudo é significativo, nada é significativo. É a mesma idéia sob duas formas diferentes. Não tenho nada contra que se faça a história da vida quotidiana, mas me parece que os cardápios dos albergues sicilianos no séc. XV são menos importantes do que o problema da decadência do Império Romano. E é um pouco esse desequilíbrio que eu combato. Sou favorável a que se restaurem as grandes questões, ou seja, a decadência do Império Romano, a querela das investiduras e a história da luta entre o papado e os poderes temporais europeus, a questão da democracia, a Reforma etc. etc. Sou favorável a que se volte às grandes questões que já foram muito trabalhadas, mas em grande parte ainda permanecem abertas. E advogo que os historiadores parem de querer por todos os meios dar provas de originalidade, operando sobre novos microtemas, e ataquem os grandes temas que o século XIX nos legou e nos quais ainda estamos.
A. C. - Um estudo da história a partir da cultura não impede uma certa visão global.
- Além do mais, é preciso prestar atenção também ao grau de conhecibilidade possível dentro da história. A história sexual, por exemplo, voltou à moda hoje em dia. Não tenho nada a opor, Mas se há uma coisa que me parece rigorosamente inconhecível, é isto. Não creio um minuto sequer que se possa reconstituir a história das pulsões, dos objetos sexuais, nos períodos antigos. Portanto, é preciso também termos ambições pertinentes em relação às fontes de que efetivamente dispomos.
A. C. - O senhor é muito historiador nesse sentido.
- Muito, muito clássico.
A. C. - As fontes delimitam as questões.
- Delimitam, e eu penso que na seleção das questões, teríamos todo interesse em rever os velhos livros clássicos. Por exemplo, uma das coisas que me espantam nos historiadores contemporâneos é muitas vezes sua extraordinária erudição sobre as fontes e sua ignorância dos grandes textos filosóficos. Acho isso muito mau. Hoje se pode transformar em historiador uma pessoa que conhece muito bem as fontes de arquivos de um certo período, mas não leu os grandes textos de filosofia ou de história do século XIX ou XX sobre o assunto. Isto é um pouco produto do positivismo, ou seja, da idéia de que basta descobrir os factos da história para em seguida começar a escrever.
A.C. - Nesse sentido, portanto, o senhor concorda que a história tradicional está morta. Seria preciso fazer também uma história social da política.
- A história tradicional tinha sobretudo esse defeito: era uma história événementielle que extraía sua significação de uma coleção de fatos que supostamente deveriam falar por eles mesmos. Quando na verdade a história factual não dispensa o trabalho intelectual, as hipóteses, a compreensão.
A.C. - já que estamos falando em história total, como o senhor vê (Arnold J.)Toynbee?
- Não o li a fundo. Mas sua história dos desafios e das respostas permite efetivamente refazer a história universal através de uma problemática. Tenho alguma admiração por aqueles que se preocuparam com a história universal, até mesmo Spengler, que como se sabe, foi um produto perigoso, e Toynbee. Admiro também o tipo de ambição cósmica que essas pessoas representam. Mas ao mesmo tempo, fico um pouco desconfiado, porque quando a gente vê o tempo necessário para trabalhar uma questão...
A. C. - Como o senhor vê o campo da história nos Estados Unidos?
- Os Estados Unidos são um país tão vasto que você pode encontrar nele quase tudo. Todas as tendências francesas, tanto as antigas como as novas. Se há althusseranos, há também lacanianos, foucaultianos, braudelianos. Mas o tipo de história que os historiadores americanos fazem é muito influenciado pelo modelo inglês. Em geral é bom no plano da erudição, das fontes, do material, e talvez tenha sido influenciado um pouco demais, nestas últimas décadas, pela obsessão da história social. Mas, em certos setores, é uma história de primeira ordem. Por exemplo, na história econômica, eles talvez sejam superiores a nós - a economia sempre foi particularmente brilhante nos Estados Unidos e nos países anglo-saxões. A contribuição americana à história européia também é enorme. Há algumas décadas vêm aparecendo centenas de livros sobre a história da França escritos por americanos, e alguns são realmente muito bons. Paxton escreveu os melhores livros de história sobre a França durante a Segunda Guerra Mundial; Bob Darnton escreveu sobre a França do século XVIII livros excelentes. Os historiadores da Restauração francesa são anglo-saxões, em grande parte americanos. Ou seja, existe uma forte contribuição americana à história européia, à história francesa. E além disso, existe uma excelente relação cultural franco-americana, entre universidades francesas e universidades americanas
A. C. - O senhor vai todos os anos aos Estados Unidos?
- Sim, sou professor titular em Chicago, e isso me traz muitos benefícios. A começar pelas condições de trabalho, porque lá há livros. Há uma biblioteca absolutamente fantástica. Há filósofos, há historiadores. Para o que eu faço, é muito bom. E há bons alunos. O que é ruim é o clima.
A. C. - O senhor acha que há algo e novo na história que está sendo feita hoje em dia? Porque se fala agora em "história nova", ou "nova história"?
- Isso é uma bobagem! As pessoas se batizam periodicamente de "nova história" para dizer que não gostam daquilo que uma parte de seus contemporâneos faz. Não acredito que isso seja verdade. A única novidade introduzida pelos americanos foi a counterfact history, a história estatística com hipóteses contrafactuais, que é uma parte interessante da história econômica. Mas, tirando isto, o que quer dizer "história nova"? Se quer dizer que se está fazendo a história dos povos, a história das pessoas, a história social, em lugar da história dos reis, isto é tão velho como o mundo. Voltaire já condenava esta pretensão há dois séculos. Por conseguinte, eu não acredito que se possa fazer uma história radicalmente nova. O que se pode fazer é renovar os velhos temas ou tratar temas que nunca foram tratados com métodos já testados. Desconfio da palavra "nova", que é empregada um tanto excessivamente. Isto significaria o nascimento de um setor inteiro da história completamente novo.
A. C. - Mas qual seria a novidade hoje em relação aos Annales? Porque nos Annales já temos as mentalidades, o povo etc.
- Por exemplo, a escrita da história em linguagem matemática é uma novidade, mas é uma novidade metodológica. Infelizmente só é aplicável a setores muito limitados da história, porque o que é formalizável, na história humana, em linguagem matemática, é uma parte mínima. Portanto, é ótimo que se utilize a linguagem matemática para esta parte, mas quanto ao resto, resistirá sempre à matemática.
A. C. - O senhor falou em retomar os velhos temas. Afinal, o senhor escolheu o maior tema da história francesa, que é a Revolução. O senhor não sofreu pressões, constrangimentos, pelo fato de ser este um campo muito ideológico?
- Foi difícil, realmente, porque tive que limpar o terreno. Tive uma grande polêmica com os historiadores comunistas quando era jovem. Porque naquela época, quando eu era um jovem professor, o campo era caracterizado por uma enorme intolerância contra tudo o que não fosse a interpretação clássica - ou seja, leninista - da Revolução. Mas fora isto – e isto foi resolvido nos anos 60 -, não tive problemas. Digamos que, dentro do grupo de historiadores em que eu me encontrava - dentro da École des Hautes Études - eu estava um pouco sozinho, havia poucas pessoas trabalhando na mesma área que eu. Hoje em dia não é mais assim.
A. C. - Hoje não é mais apenas a Revolução Francesa que está em pauta, é toda a França, a política francesa.
- Sim, é a democracia moderna na França que me interessa. Aliás, meu próximo livro tratará disso. Vou pegar todo o século XIX, vou pegar a Revolução Francesa de 1780 a 1880.
A. C. - Finalmente, a última pergunta que lhe faço é a seguinte: para o senhor, o que é a história? Porque há uma coisa que, para uma socióloga como eu, que trabalha com a história, é surpreendente: os historiadores podem brigar por muitas razões, mas eles estão de acordo ao menos em definir procedimentos próprios e um campo de problemas. A dimensão temporal é um eixo decisivo. Para o senhor, o que é a história?
- A história é indefinível, porque se nós dizemos: "A história é o conhecimento do passado", não estamos dizendo muita coisa, já que o passado é tudo, é desde aquilo que acabou de se passar entre nós há um minuto até o começo do mundo. Por conseguinte, o conhecimento do passado é uma definição de tal maneira vaga que ela não diz muita coisa. Se se tenta cercar mais de perto, cai-se no desacordo entre historiadores, pois não se pode atribuir à história um método particular. Não se pode dizer, por exemplo: "A história é o conhecimento do passado com o auxilio de fontes escritas", já que há quem obtenha esse conhecimento por meio de fotografias aéreas, escavações arqueológicas. Você tampouco pode dizer que é um conhecimento obtido com o auxílio da estatística, desde que nem tudo está sujeito à estatística. Em resumo, a história é o conhecimento do passado com o auxilio de tudo o que se puder conseguir. Não acredito que algum dia se possa dar uma definição da história mais satisfatória do que esta. E isto me agrada, porque permite que cada um exerça sua imaginação e seu talento próprio. Eu diria que este é um exercício que me agrada muito, porque contém 50% de saber e 50% de imaginação. É preciso reinventar o que aconteceu. E portanto, isto corresponde mais ou menos ao tipo de curiosidade que eu tenho. Não gosto da curiosidade só pelo detalhe, à la Richard Cobb, pelo passado enquanto tal, que ressuscita com o auxílio de documentos uma vida que foi completamente esquecida, anônima. E também não tenho o espírito suficientemente abstrato para me interessar pela especulação filosófica pura. Estou entre os dois extremos, e minha concepção da história é que ela deve tornar inteligíveis as grandes articulações da mudança no passado, no mundo de onde vimos e que nos fabricou. É por isso que me coloco a meio-caminho entre a abstração filosófica e o empirismo dos antiquários.
* «Um dos expoentes da historiografia francesa atual, autor entre outras obras de Penser la Révolution Française (1978), François Furet pertence a uma geração de historiadores que se formou nos anos 50 sob a égide da École des Annales. Esta corrente, ou este grupo, que trouxe uma contribuição fundamental à historiografia deste século constituiu-se em torno da revista Annales Économies, Sociétés, (hoje acrescenta-se Civilisations ao título), lançada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. No pós-guerrã, uma segunda geração de historiadores, tendo à frente Fernand Braudel, veio consagrar em definitivo a importância dos Annales, que conquistaram um espaço institucional com a fundação, em 1948, da 6a Seção da École Pratique des Hautes Études, hoje transformada em École des Hautes Études en Sciences Sociales.(...)»
«O Historiador e a História: um relato de François Furet», entrevista de Aspásia Camargo publicada in revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988. p. 143-161. (fonte)
Manuel Hermínio Monteiro (2001)
A conversa seguinte aconteceu numa destas tardes de sol. Do sol radioso que encharca de esperança os primeiros dias da Primavera. Manuel Hermínio Monteiro, o mítico editor da Assírio & Alvim, refastelou-se no sofá para desfiar o novelo da sua vida cheia. Como ele diz, logo no começo, a ponta pode ser a que nos aprouver que há-de sempre dar no mesmo.
Decidi começar por um lugar que cruzava as palavras e as memórias, umas e outras em catadupa. Um lugar que é talvez o mais belo recanto do Douro. E por isso de Portugal. E por isso do mundo. Conheço esse sítio há muito porque me fiz, também, em terras transmontanas. O que, como perceberão, tem a sua importância. A marca da terra, espessa, fez-me assim, fê-lo assim.
Esta é a vida de um transmontano, um transmontano de boa cepa. Calha de haver uma flor maligna que lhe traga a carne. Até ver. Como ele dizia, quando pela primeira vez o vi depois de saber, «Estou bem», embrutecendo o tronco, referindo-se à força, à robusteza.
A seguir, que é para isso que servem as introduções, têm a vida deste homem. E dentro dela a vida toda.
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Começamos por onde?
- Sei lá. Como a vida anda às voltas, pode ser por qualquer lado.
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A vida anda às voltas?
- Muitas. A minha é uma vida muito cheia.
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Podemos começar por S. Leonardo de Galafura, o recanto do Douro escolhido por Torga, que, presumo, conheça.
- Conheço. Dizem-me agora que na encosta contrária ainda há outro miradouro mais bonito, S. Salvador.
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O seu lado do Douro é o do Pinhão.
- A minha terra é mais para o interior, perto de Murça. Alijó. Do meu lado vejo Favaios, Sanfins, Vilar de Maçada.
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Nasceu na aldeia, em Parada do Pinhão. Viveu lá até que idade?
- Fiz lá a Primária. Vivi no século passado, posso dizê-lo. Vi chegar a electricidade, a rádio, a televisão.
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Era um outro tempo para o país, e sobretudo para o interior.
- A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta os da quarta, alguns já com 17/18 anos.
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Passavam directamente do campo para a escola?
- Andavam ali a arrastar. Uma vez um contou que a professora lhe tinha dito: «Se fizeres os deveres, vais amanhã dormir comigo». Ele chegou ao pé da mãe e disse: «Ó mãe, dá-me umas cuecas novas que amanhã vou dormir com a professora!» Ainda levou nas orelhas.
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A professora era quem? Uma moça da aldeia?
- Comecei com uma professora que levei até ao fim. Marcou-me muito e ainda hoje a recordo com muita saudade. Vive agora em Cascais, chama-se Lúcia. A minha professora deve ter sido das primeiras do Magistério; as outras tinham a quarta classe. Logo a seguir inaugurámos uma escola nova. Excelente, a escola, com entrada em arco, azulejos à volta, e tal.
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A professora Lúcia acompanhou a sua escolaridade primária. Onde eu queria chegar era à sua primeira relação com as palavras.
- Deve-se muito a ela. Uma relação de encantamento. O que é extraordinário é que andamos sempre à procura. Do Graal, às tantas. Antes de irmos para a escola estamos num estado absolutamente delirante. Eu já sabia os reflexivos, os pronomes, as preposições…
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Como é que já sabia?
- Era uma música. Ouvia os mais velhos e decorava.
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Ouvia-os do recreio?
- A escola era mesmo no meio da aldeia, ouvia cá de fora e depois perguntava aos mais velhos. Quando vamos para a escola, imaginamos que vamos aprender coisas. Uma ansiedade. Como depois temos quando vamos para o Liceu; julgamos que ali é que vai ser a sério. Depois, a Universidade é que vai ser a sério. Para chegar à conclusão que andamos permanentemente à procura de qualquer coisa que não existe. Tal e qual como a felicidade.
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A felicidade não existe?
- Com a idade vamos percebendo que a felicidade é uma aquisição muito delicada, muito trabalhosa. Esgaravatar uma mina, mexer muita terra, muita pedra, e depois, de vez em quando, lá aparece um bocadinho de minério. A felicidade também é assim. São momentos fulgurantes, extraordinários, mas não existe em estado puro. Nada existe nesta vida em estado puro.
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O que é que se pode retirar dessa lida diária?
- Mas é isso, é o trabalho diário, é a busca. E talvez sim, talvez se consiga. A consciência disso leva-nos a valorizar cada vez mais esses momentos, esses pedaços de cintilância. Isto vem a propósito?
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Da aldeia, dos parcos recursos.
- Como é que com pouquíssimos livros… raramente víamos um livro, uma imagem.
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Não tinham livros em casa?
- Não. E não tínhamos ainda televisão, éramos muito virgens em termos de imagens. A cultura era muito interessante; desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festa feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, «Fulano de tal ainda não chegou à terra?». Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho rangia, a luz da lareira era móvel, parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinante, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas – uma vez que ainda não havia esta dispersão que há hoje.
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Qual era o seu ponto de observação e participação nesta vivência comunitária?
- Tinha uma experiência muito colectivizada porque a minha avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o meu avô tinha um grande alambique onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê.
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O que representava a sua família na aldeia?
- Eram camponeses. O meu pai e a minha mãe casaram cedíssimo, a minha mãe com 16, o meu pai com 18, dois miúdos filhos de volframistas.
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Naquele tempo eram comum casarem tão cedo e terem filhos logo depois.
- Nasci um ano depois. Tive sempre os meus pais muito novos e uma família muito numerosa: muitas tias, muitas primas, em idade casadoira. Lembro-me bem dos vestidos delas, muito vaporosos, de se pentearem. A minha tia tinha raparigas que iam para lá aprender costura. Um gineceu fortíssimo, sempre a ser esmagado por abraços apertados.
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E gostava ou não?
- Às vezes apertavam-me demais, já fugia. Mas na verdade sentia-me um reizinho. São coisas que nunca mais se esquecem: a pressa para irem à missa, os dias de sol, a luz da Primavera.
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Num dia claro de Primavera, como é este, é isso que rememora?
- Lembro-me muito da minha infância. É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nessa altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos, isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco – o meu avô fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à feira.
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Respira, assim, um tempo que já não existe. Como é que sai da aldeia?
- Apareceu a hipótese de ir para um colégio de Salesianos, com as duas vertentes, para padre ou não. Ficava em Arouca, num antigo convento, sinistro. Fui logo a seguir à quarta classe, com dez anos. Nunca tinha saído lá de cima, nunca tinha visto o mar.
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O seu mundo era a aldeia, e os campos à volta.
- E as romarias, e as feiras: a Sra. da Pena, a Sra. da Saudade, a Sra. Da Piedade. Adorava, adorava aquilo. Conhecia outras aldeias. Mas, naquele tempo, íamos a outra aldeia sempre com o risco de levar uma pedrada. Para irmos a Justes – as terras ali mais perto eram Justes e Vilar de Maçada, que é a terra do [José] Sócrates – fazíamos uma aventura extraordinária, com um cuidado extremo.
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Onde lhe parece que radica essa incrível rivalidade?
- Talvez sejam reminiscências de castreja, não percebo de outra maneira. Agora está melhor, há mais circulação, carros vão e vêm.
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Há a televisão.
- E as comunidades dissolveram-se, com a emigração, por exemplo. Hoje, na minha aldeia, há uma geração jovem muito civilizada, educada, que estuda e circula. Organizam-se para o teatro, para o futebol, têm um grupo coral, até já gravaram um cd. Na altura, eram ódios terríveis. Isto é uma conversa de Antropologia que dava para irmos por aí fora.
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A aldeia era visitada por almocreves, ou havia uma venda onde coincidia o café, a mercearia, a farmácia, etc?
- Existia uma economia natural, de trocas directas. Nas feiras trocavam-se sacholas por feijão.
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Os seus pais trocavam o quê?
- O que tinham: milho. O meu pai tinha algum dinheiro, mas muito pouco, porque tinha explorações de resina. Está bem que o meu avô vendia aguardente e teve muito dinheiro no tempo do volfrâmio, tinha certa produção de vinhos, e o vinho sempre se vendia. Mas imperavam as trocas directas.
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A relação era muito mais desprendida com os objectos. Quer trocas eram as suas?
- Nós só jogávamos ao botão.
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A sua primeira namorada era da aldeia?
- Sim.
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Eu recordo os quilómetros que os namorados faziam para encontrar ao domingo a namorada, que vivia noutra aldeia, para, no fim, ficarem uma hora a falar na berma da estrada.
- Uma vez inventaram-me um namoro, que nem era verdade!, em Sanfins, os sacanas, já andava no colégio Almeida Garrett. Levaram-me à fonte e tive de pagar um garrafão de vinho ao pessoal! Mergulharam-me a cabeça para ser adoptado.
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Uma praxe. E nisto já estamos no Porto.
- Depois da Primária, estive dois anos nos Salesianos, em Arouca, e depois perto de três perto de Coimbra, onde completei o quinto ano.
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Quando foi para os Salesianos, era para ser padre?
- Digamos que tinha uma certa tendência. Por uma razão simples: numa aldeia, neste contexto de que lhe falo, o que produzia um fascínio, fascínio, fascínio, era a religiosidade.
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O que era tão fascinante?
- Para já, havia um delírio religioso, mesmo que não fosse ortodoxo. A presença da bruxaria, do sobrenatural, do Além. Antigamente vivia-se nesse mundo. E pessoas que não mentiam (homens de uma verticalidade, de uma palavra dada…) viam coisas.
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Também via coisas?
- Uma vez estendia a mão para tocar numa senhora que julgava que estava ao meu lado. Imagine o que eram aquelas eiras quando no Verão ficávamos a olhar para o céu, a imaginar o que era o mundo, a chegar lá apenas por intuição. Então, o mundo da igreja, os bastiadores dos altares…
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Chegou a ser acólito?
- Ajudar à missa? Montes de vezes.
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Não estou a vê-lo feito papinho de anjo…
- Nos Salesianos, onde cheguei todo sujo do carvão do comboio, nunca consegui ser dos bens comportados.
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Demorou quantas horas a chegar?
- A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para chegar ao Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à esoera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas de beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.
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Viu o «Rio do Ouro» do Paulo Rocha? É disso que está a falar?
- O ambiente era ainda mais denso. Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal. Dava! Vender, vendiam bilhas de água, regueifas, todo um conjunto de coisas ao longo da linha. E um calor infernal.
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Como por lá se diz, «Nove meses de Inverno e três meses de Inferno». Para não perdermos o fio à meada, aterra no colégio sozinho. O normal era que os miúdos fizessem a quarta classe e ficassem por ali. Como é que se decidiu que continuaria os seus estudos?
- Conheciam um padre salesiano ali perto, o padre Álvaro, que perguntou ao meu pai, «Porque é que ele não vai?, tal tal tal..» Já estava decidido que ia estudar, tinha um jeitinho, portava-me bem nas aulas. Eu queria ir, e gostava, embora sofresse como um cão. Com saudades, chorava que era uma coisa doida.
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Cortou com o universo encantatório da infância.
- Diziam-me «Mas vai-te embora»; mas por outro lado cria-se uma relação com os amigos e há o orgulho, não se quer ir para trás. É um desafio. O meu avô dizia «Como é que o rapaz está lá naquela coisa dos padres?, sem lareira e sem vinho!» (sorriso).
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Davam-lhe sopas de vinho?
- Não, mas às escondidas o meu avô dava-me às vezes um bocadinho de aguardente, tinha a mania que já era um homenzinho.
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O que é que mais gostava no contacto com as palavras, de ler, de escrever?
- Ah, o que eu mais gostava era de contemplar. E ouvir os velhos.
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Pela sua professora, tinha uma paixão?
- Tem-se sempre. Ainda me lembro das saias dela!
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A sua memória é prodigiosa.
- Dessa coisas da infância, lembro-me bem, mais do que das coisas de agora. As saias, os gestos, o ir buscar as cartas do namorado ao correio.
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Os seus pais ajudavam-no nos trabalhos de casa?
- Sabiam ler e escrever, mas não me ajudavam. O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos. Chegava a casa, saltava para cima dele com ramos de cerejas. A minha mãe é muito mais enérgica, ágil, nervosa, como as mulheres lá de cima.
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Há um momento, já em Lisboa, em que pensa voltar para casa, para os seus pais, depois de passar pela prisão de Caxias.
- Olhe que há muitas coisas para trás. Ainda nem passámos pelo Porto.
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Então vamos ao Porto.
- O Porto foi uma descoberta, o primeiro contacto com a cidade. Tinha muita malta cujos pais estavam em Hong Kong e que tinham motorista fardado, grandes carrões à porta.
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Impressionava-o de que maneira?
- Pela bizarria. Fascínio?, nenhum. Ao mesmo tempo era injusto: metia-me no Cabanelas e via aquela gente toda, pobre, a subir a Serra do Marão. Pobres mas muito alegres, diga-se de passagem. Não sei o que aconteceu ao povo português. Acho que foram os primeiros rádios, sabe? Até para trabalharem nas vinhas levam rádio, em vez de cantarem. Agora já nem usam rádio. No princípio a música era fundamental. Sempre fui sensível às injustiças. O Porto, o Porto ajudou-me a abrir. Era o período da Guerra Colonial, quase não havia homens nem rapazes. Os bailes eram só com raparigas.
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Como é que entra nessa roda dos bailes?
- Bailes que havia em qualquer associação, e também bailes privados. Arranjavam-se namoradas muito facilmente – estava tudo lá fora. Na minha aldeia, havia o sol de Inverno, os cães, um e outro sentados, não se via mais ninguém. A partir dos 18 anos, iam para a Guerra. Mas devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisas. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam.
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Era profundamente crente?
- Sim, sim. Já não muito de missas. Isso ajudou a libertar-me do que era o bem e o Mal. É um percurso que tem de se fazer sozinho. Os amigos estavam noutra. Provavelmente não tinham as mesmas inquietações que eu tinha. Reflectia muito sobre mim próprio, escrevia já bastante, e tentava perceber o que se estava a passar. E havia outra coisa: para aquela malta do Porto, não ir às putas era o mesmo que ser maricas. Fazia-lhes uma confusão do caraças. E era uma coisa que também não percebia: como é que com tanta rapariga lindíssima… Tinha essa estranha relação homem-mulher facilitada, apesar de ter passado por um colégio interno, pelo facto de ter tido uma infância de gineceu. A malta nova ia toda para a Rua do Bonjardim, para as Candeias.
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Frequentavam bordéis ou putas de rua?
- Casas, o Porto estava cheio disso. Bastava descer a Rua dos Caldeireiros a passear… O meu avô, no tempo do volfrâmio, às vezes até trazia os trabalhadores para os Caldeireiros.
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Escrevia para as raparigas?
- Ah sim, escrevia. Aconteciam-me coisas extraordinárias: entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camioneta e apaixonava-me.
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Pela beleza, por aquilo que a pessoa emanava?
- Não sei. Uma vez estava a contar ao José Agostinho Baptista e ele dizia-me «Tens uma imaginação maluca». As coisas estavam num estado de pureza… Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.
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Essa «imaginação» deixou de o acompanhar no amadurecimento dos anos?
- Com o passar do tempo as pessoas deixam de ter disponibilidade para viver em estado de paixão. A minha mola foi sempre o afecto. Nunca pensei ser rico, ter poder…; outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo. O resto? Brrr…
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Fala de uma relação de afecto que me parece tremendamente panteísta.
- Tinha sempre a casa com flores, mesmo quando estava a estudar e tinha pouquíssimo dinheiro: 18 escudos iam para as sécias, comprava meia-dúzia todas as semanas. Já trabalhava na Assírio, metia-me sozinho, com o saco a tira-colo e um caderninho para escrever, primeiro no barco, depois na camioneta: Costa da Caparica, quilómetros por ali fora, ficava a olhar para o mar. Fazia isto com uma regularidade extrema. A partir de determinada altura, o tempo não chegava para nada, nada!
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Responsabiliza sobretudo o tempo? Estava a pensar que naturalmente há uma inocência que se perde. As pessoas deixam de ser puras.
- Chega a uma altura em que nem damos conta de como tudo se passa. Ficamos absorvidos, e depois queremos mais, cada vez mais, e já não conseguimos parar, a não ser que aconteça qualquer coisa de muito…
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Esteve ainda um ano em Direito.
- Quando vim para Lisboa foi para fazer Direito, mas praticamente não fiz nada. Direito estava ocupado, era o tempo do Martinez.
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Porque é que vai para Direito? Ainda por cima já escrevia, já sabia que lhe interessavam as palavras.
- O que queria era ser poeta. Os poetas que lia mais, o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas, eram todos licenciados em Direito. Julgava que o Direito… Uma ingenuidade!, como aliás tinha muitas. O mundo era assim, não precisava que fosse mais complexo. Fica-me mal dizer o eu, mas há uma água límpida que ainda mantenho.
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É o seu lado aldeão.
- Não tenho ninguém a quem desejo mal, acredita? Posso não simpatizar, mas não consigo atirar uma pedra a ninguém. Nem aos de Justes! (riso)
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Os seus pais acompanhavam o seu projecto?
- Cresci sozinho, praticamente sobrevivi sozinho. No Porto, tinha muito pouco dinheiro, os meus pais também tinham muito pouco dinheiro. Tive a minha fase freak, como todos. Quer ver como é que eu era?
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Quero.
- [Mostra uma fotografia com a mulher, Manuela, em Marrocos]. Isto é nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Tínhamos a sensação de que o mundo ia mudar e que estava ali, ao alcance da nossa mão. Estamos a dispersar-nos muito, não?
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Vamos recentrar em Lisboa, no primeiro ano de Direito.
- Não, Direito é de ignorar, é só matrícula e mais nada.
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Lisboa, depois do Porto, é um novo mundo. Ainda se identificava como um rapaz da aldeia? Pelo facto de ter estudado, a sua vida passou a ser completamente diferente da vida dos rapazes da terra.
- Na aldeia só estive dez anos, nesta altura já tinha outro tanto fora. Mas mantive uma relação muito forte com aquilo. Em Lisboa, numa primeira fase, toda a malta de Trás-os-Montes se encontrava. Desde cirurgiões a tipos do PC, a tipos da PIDE. Desde malta de Montalegre a malta de Vila Real. Juntava-se o pessoal todo ao pé do [café] Gelo.
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Discutindo a situação do país?
- Não. Era talvez puro instinto, pura defesa. Dos que não conheciam isto, dos que conheciam bem. E depois rapidamente se passou a uma fase, por que passei também, de repulsa por tudo o que era rural. Aquilo parecia-me uma piroseira do caraças, as músicas e tudo. Estive muito tempo sem lá ir.
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Porque se fascinou com uma Lisboa sofisticada?
- Julgo que foi um processo mais cultural, que começa nos livros e no que se aprende. Há coisas que irritam!, que, aliás, ainda hoje me irritam: um atavismo, um não querer saber, uma preguiça natural.
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Foi tudo hiperbolizado.
- Parecia-me atávico, justamente. E ridículo: os rapazes chegavam de bicicleta aos bailes, com óculos espelhados comprados na feira! Vinham juntos, mas depois, à frente das raparigas, atravessavam o baile para se cumprimentar. Hoje tudo isso me encanta, mas na altura achava hipócrita.
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Tinha algum amigo da escola primária?
- Sim. Que estudassem só uma rapariga e um rapaz; ela é hoje professora, e foi o único caso de chegar ao fim do curso como eu.
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Estava a tentar perceber se ter tido acesso a outros universos o demarcou das pessoas que conhecia.
- Não muito. Nunca julguei as pessoas pelo que sabiam. Nunca fiz qualquer discriminação pela pessoa ter o curso ou não ter, ser assim ou assado, ser pobre ou rico. Quer dizer, é uma coisa tão natural que o simples facto de falar nisso mete-me impressão. E nunca tive mitos, nem Marilyn Monroe, nem Jim Morrison; a única coisinha que talvez tenha tido foi pelo Che Guevara. As pessoas fascinam-me sempre muito mais. Na hora da sesta, enquanto os outros iam dormir, passava o tempo a ouvir os velhotes. Horas e horas e horas. E depois continuou, com o agostinho da Silva, que ia ouvir de vez em quando.
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Quando é que encontra o Agostinho da Silva?
- Anos 70, pouco depois de vir para cá. Um amigo disse-me «Tens de conhecer o Agostinho». Só não ia mais vezes visitá-lo por causa do cheiro dos gatos (com o cio, o cheiro é insuportável).
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A sua gata, Gueixa, cheira?
- Não, os machos é que é uma coisa terrível. Ele vivia no terceiro andar e sentia-se no fundo das escadas.
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Então, é um rapaz universitário que vai parar a Caxias. Conte lá a história, antes de aprofundarmos a relação com as letras e com a Assírio.
- No Porto já participava numas coisas pró-social. Com o Bispo do Porto e uma certa igreja mais prá-frentex, com um grupo de jovens. Havia uma espécie de reflexão, um centro na Rua do Rosário, com a Irmã Humberta; cantava umas baladas do Fanhais e do Zeca Afonso.
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Estavam ligadas para si essas duas componentes, a religiosa e a política?
- Por acaso nunca tive grande sentido político. Na faculdade deixei-me motivar pela luta anti-Guerra Colonial, mandei umas bocas e pronto. Mais nada. Fui parar a Caxias basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura. Deram-me enxertos de porrada inacreditável. Com a minha ingenuidade perguntava: «Por que é que me está a bater?»
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A sensação mais forte é o medo?
- É a de que se está nas mãos da mais completa arbitrariedade; podem-nos dar um tiro, podem fazer o que quiserem. Mas agora, estar a contar isto tudo…
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Custa-lhe?
- Não. Mas foi a primeira machadada na minha vida. Até essa altura tinha sido como um pássaro, à solta. Cortaram-me o cabelo todo, que era enorme, implicaram com as coisinhas que trazia no saco: um caderninho, umas almofadinhas bordadas que as minhas amigas me davam. Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada nada. Um dia parecia uma eternidade. Sabe o que me fez cair na situação? Perceber que já não mandava em mim: «Tens a mania que andas aí como um pássaro?».
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Quanto tempo esteve?
- Para aí uma semana. Lá dentro apercebi-me que havia luta; nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como «Coragem, estamos contigo», «Resiste»; na enfermaria havia coisas escritas com sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.
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Quando sai quer voltar à terra. Formulou seriamente o desejo de voltar para a aldeia? Ainda se reconhecia nessa vida?
- Estava farto. Essa coisa da Aura Mediócritas, como dizia o Sá de Miranda, é uma coisa que existe muito dentro de nós. Às vezes vejo colegas meus lá em cima, a tranquilidade com que estão com os seus filhos. A felicidade é aquela coisa projectada nos outros, felizmente estamos já avisados, sabemos que não existe. Mas nos poetas acontece muito, o Pessoa então, «Ai se eu pudesse casar com a filha da minha mulher a dias». Sempre o outro como representação, encenação da felicidade. Essa busca de uma vida calma, contemplativa, às vezes assalta-me. Na altura era insólito, por ser muito novo e ter o mundo à minha disposição.
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Aos 22/23 anos vai para a Assírio como vendedor.
- É preciso dizer que a Assírio estava de pantanas. A Assírio foi fundada em 72, depois esteve uns anos sem publicar, mais tarde o Homero, produtor do Página Um, tinha lá um escritório e deu uma mão, mais duas pessoas que lá trabalhavam. Aquilo estava num regime de sobrevivência. Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez. A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.
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Já tinha acabado o curso?
- Já me tinha matriculado em Sociologia em Évora!, para ver as voltas da minha vida. Fui para a Assírio para a parte de vendas, mas ali todos faziam tudo. Sabe como é que se sobrevivia? Quantas vezes fazendo bancas, para sacar algum dinheiro. Estava mesmo na penúria, penúria. Fui-me mantendo por lá, acabei o curso de História.
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Vivia desse pequeno trabalho?
- Já tinha um outro numa agência que contratava artistas: os Genesis, os Procul Harum.
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Conheceu essa malta?
- Alguma, e outra que vinha para o Casino do Estoril, de românticos a stripers. Foi o meu primeiro trabalho, quem mo arranjou foi a Maria Leonor, da rádio.
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Na Assírio assume, em 78, a coordenação editorial. Imagino que tenha correspondido a um desejo de estabilidade que grassou por todo o país, passada a agitação política.
- E a tropa. Fui para a tropa depois de completar o curso. Tinha sido já refractário, devia ter ido para os Fuzileiros antes do 25 de Abril. Não fui e andei a monte.
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Em 78 assentou arraiais na Assírio. Deixou de ser o rapaz à descoberta do mundo?
- Continuei à descoberta. Ainda fui fazer vindimas a França. Andei sempre muito à solta, parecia que o mundo todo me sorria. Nestas viagens, sozinho, amadurecia muito, fermentava.
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Na base da mochila às costas?
- Era assim mesmo, sem saber onde ia ficar. Nunca fiquei na rua.
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O que é que queria da vida? Ou tratava-se de a ir descobrindo?
- Descobrindo. Mas sempre à espera, com a sensação de que a seguir é que era. A seguir, a seguir.
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Tinha desistido do sonho de ser poeta?
- Fartei-me de escrever. Tenho ali cadernos que nunca mais acabam. Depois começa-se a publicar tanta poesia tão boa… Não sei se é muito importante.
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Realmente?
- Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidadezinha que tenho é colectiva, por amigos. Às vezes apetece-me escrever, é uma necessidade interior, um imperativo. Na verdade, posso não escrever poesia, mas vivência poética acho que a tenho. Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos. Metê-los no papel? Brrr…
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O seu olhar é eminentemente poético, marcado pela vivência rural.
- E a visão desde a infância. Ver tudo, com muita atenção. Podia escrever um livro de memórias, relatando a vivência com uma gente de que pouco se sabe, das histórias que lhes ouvi.
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Portugal não tem tradição de livros de memórias. As biografias, noutros países, vendem-se como pão quente.
- Em Portugal as biografias não pegam, não sei dizer porquê. Eu gostava de fazer, sobretudo pela vivência forte que aí tive, humanamente. É quase uma dívida que queria saldar. Podia juntar a minha experiência no Alentejo. E a minha experiência enquanto editor; podia fazer um livro extraordinário sobre os poetas que conheci, não só os poetas que publiquei, mas todos os outros: o Manuel da Fonseca que ia tanta vez à Assírio, o Rui Cinati que ia diariamente à Assírio…
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As relações que a editora mantém com alguns poetas é mítica. É verdade que vão levar o almoço diariamente a casa do Cesariny?
- É. Mas não é preciso contar isso.
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O que me interessa é perceber a relação familiar que se estabelece entre si e alguns destes autores.
- Sim, são a minha família, não há nenhuma dúvida. Mas há outros, que nem sequer são da Assírio, com os quais tenho uma relação igualmente profunda. Caso do Eugénio de Andrade: falamos dia sim, dia não.
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Pensou muito neste projecto no último ano, desde que sabe da sua doença? Mesmo que trabalhe a partir de casa e vá à Assírio ocasionalmente, imagino que esteja mais recolhido em si e nas suas memórias.
- É verdade. Mas tanto penso em fazer isso, como logo a seguir penso em não fazer. Sou muito assim. Na minha vida as coisas quando têm de acontecer, acontecem. Não falo de um deixar-se reger, de um determinismo exterior à minha vontade; mas fui ganhando alguma sabedoria, percebendo que as coisas impõem-se.
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Prefere que as coisas lhe aconteçam?
- Sim. A minha vida é feita de acasos, de circunstâncias. Nunca forcei muito as coisas, nem as relações amorosas. Suponhamos que as coisas andam num caos e que tendem para uma harmonia. Se não as precipitarmos, elas tendem para uma pacificação. Tudo, tudo o que está no universo é assim. Se calhar é a lógica da vida toda.
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Poucas foram, então, as opções de vida tomadas de forma categórica.
- Sim. No trabalho, claro, é diferente.
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A propósito dessa vida que lhe acontece, como ficou, a páginas tantas, a relação com o divino?
- É uma relação harmoniosa, sempre foi. Tenho fé, tenho. Há a perplexidade que algumas coisas inevitavelmente nos suscitam; por outro lado, há ainda tanta coisa por conhecer que é uma arrogância julgar que já estamos no fim do processo. Só posso falar da experiência própria. Não posso falar a alguém do encantamento que me dá ver um melro ali à frente no ramo, ou de uma pequena flor que me enche completamente de vida. Então neste momento actual enche a sério. Como não podia, quando era mais novo, ler um poema às pessoas que me respondiam «Lá vem este com o poema, agora com esta merda».
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Harmoniosamente foi fazendo a síntese entre a sabedoria das pessoas e da terra.
- É a mais importante.
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E o saber livresco e o que deriva do contacto com outras pessoas. Foi este o seu labor.
- Aprendi muito vendo, vendo a natureza. Isto é uma escola permanente, é uma escola permanente. O grande problema é que está a morrer a nossa sensibilidade, a nossa disponibilidade. A relação com os outros está terrível. Esta coisa do novo-riquismo, esta ansiedade desenfreada que não leva absolutamente a nada. Um punhetaço, como dizem os espanhóis. Há uma coisa infernal que retira às pessoas a sua tranquilidade, a sua liberdade. E estamos a matar aquilo que, em putos, no tempo da festividade, do amor e tal, tínhamos como capital incrível, e que era o afecto.
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Na altura já sabia disso?
- «O nosso grande capital é o amor». Era a nossa grande riqueza, o que queríamos. Depois logo nos safávamos, íamos a França, enfim. Agora precisam de não sei quantos contos para ir para a estância de neve, mais não sei quê que só vai com determinadas condições. Estamos a perder a liberdade. Mais: a perdê-la sem ter consciência disso.
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Esse conforto material em que vive agora, esta sua casa tão simpática, a casa da aldeia…
- Mas eu posso viver em qualquer sítio. Se não fosse a Manuela a arranjar a casa, algum dia tinha isto? Não, não me mexe muito. Seria uma estupidez dizer que não gosto de ter um bom carro, em vez de ter um carro a abanar por todos os lados. Agora, que não signifique hipotecar a liberdade da pessoa. Se não puder ter, não há problema, até não há problema absolutamente nenhum.
Estas coisas ficaram mais flagrantes para si porque as pessoas ficam sacudidas quando estão doentes?
- Não, absolutamente nada. Tinha consciência delas, mas andava tão alienado que me apetecia chegar aí, ligar a televisão e ver a bonecada porque me dava o sono. Neste momento sinto-me melhor fisicamente, por incrível que pareça. A minha cabeça parece que estourava, com milhões de preocupações, permanentemente tau-tau-tau. Não tinha paz. E sinto-me tranquilo.
Sente? Não o invade uma angústia quanto ao futuro?
- Se morrer quero ir para a minha terra.
Foi nisso que imediatamente pensou?
- Foi. Logo. E disse-o à Manuela. Às vezes, depois das quimios, vou-me um bocadinho mais abaixo, fico mais mole e psicologicamente fico mais afectado. Agora, como hoje me sinto… Fico aqui sentado a ver os melros, de que gosto muito, os pequenos rebentos das folhas.
Porquê os melros?
- É um pássaro muito bonito, canta extraordinariamente bem. Quando tinha seis anos, havia uma japoneira ao pé da casa dos meus avós e cantava lá um melro ao amanhecer; contam que dizia: «Ó Vó, olha o que o melro está a dizer!, o que é que está a dizer?, queres comer, queres comida?». Era eu que estava com fome.
Teve um encontro, com um livro ou poema, que tivesse sido determinante na sua relação com a literatura?
- Quando comecei a sentir a poesia a sério, assim poesia de estremeção, foi nos Simbolistas, Gomes Leal e Camilo Pessanha. Sobretudo Pessanha, a gente dizia: «O que é isto?»
Que verso ou poema traduziria a essência de si e que escolheria para seu epitáfio?
- Ah, não sei. Tenho muitas dúvidas sobre mim, não pense que não. Muitas convulsões, muitas dúvidas. Sou um toiro. Agora estou partido. Quem é que me domava? Nem eu. Energia. Alegria. Era capaz de levar uma multidão. Era uma coisa genésica e telúrica. Ao mesmo tempo, tenho uma dose de feminilidade forte, que não enjeito. A mulher herdou uma sabedoria de muitos séculos, de velha aranha que sabe esperar, perceber o silêncio. Os homens são tipos de uma ingenuidade total, de uma generosidade inexcedível, só qualidades; e depois há qualquer coisa de bruto, de guerreiro, de incapacidade de crescimento.
Que conversas tem com o seu pai e com a sua mãe?
- Ao meu pai gosto muito de o abraçar, estamos sempre agarrados um ao outro, «Então a poda já está feita?», «Está quase», e tal. Com a minha mãe falo das coisas da casa, das minhas irmãs, deito água na fervura. E é assim.
As partes mais íntimas de si ficam para quem?
- São coisas que a gente digere em nós, não é? Nunca matei ninguém, não tenho nada que me atormente. (pausa) Precisávamos de ter várias vidas, não é?, para acertar com uma. Esta é muito pequena. Mesmo que a tenha vivido intensamente. Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa. Claro que gostava de mais, de fazer isto e aquilo; mas por outro lado, mesmo 100 anos não é nada, 200 também não. Estou habituado a ver a biografia de escritores… Isso passa tudo. É uma lucidez que convém ter afinada. Sempre a tive, não é de agora. Pelo contrário, agora tenho mais ganas de viver. Mas sempre percebi o quão relativo isto era: 90 anos, 100 anos, 200 anos. Não se dá conta; julga-se que quando se for mais velho se vai saber mais e também não se sabe nada.
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Que idade tem?
- 48.
Entrevista de Anabela Mota Ribeiro para o DNA (suplemento do Diário de Notícias) de 12-05-2001. O falecido editor da Assírio&Alvim faria hoje, 10 de setembro de 2012, 60 anos de idade. (fonte)
Decidi começar por um lugar que cruzava as palavras e as memórias, umas e outras em catadupa. Um lugar que é talvez o mais belo recanto do Douro. E por isso de Portugal. E por isso do mundo. Conheço esse sítio há muito porque me fiz, também, em terras transmontanas. O que, como perceberão, tem a sua importância. A marca da terra, espessa, fez-me assim, fê-lo assim.
Esta é a vida de um transmontano, um transmontano de boa cepa. Calha de haver uma flor maligna que lhe traga a carne. Até ver. Como ele dizia, quando pela primeira vez o vi depois de saber, «Estou bem», embrutecendo o tronco, referindo-se à força, à robusteza.
A seguir, que é para isso que servem as introduções, têm a vida deste homem. E dentro dela a vida toda.
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Começamos por onde?
- Sei lá. Como a vida anda às voltas, pode ser por qualquer lado.
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A vida anda às voltas?
- Muitas. A minha é uma vida muito cheia.
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Podemos começar por S. Leonardo de Galafura, o recanto do Douro escolhido por Torga, que, presumo, conheça.
- Conheço. Dizem-me agora que na encosta contrária ainda há outro miradouro mais bonito, S. Salvador.
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O seu lado do Douro é o do Pinhão.
- A minha terra é mais para o interior, perto de Murça. Alijó. Do meu lado vejo Favaios, Sanfins, Vilar de Maçada.
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Nasceu na aldeia, em Parada do Pinhão. Viveu lá até que idade?
- Fiz lá a Primária. Vivi no século passado, posso dizê-lo. Vi chegar a electricidade, a rádio, a televisão.
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Era um outro tempo para o país, e sobretudo para o interior.
- A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta os da quarta, alguns já com 17/18 anos.
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Passavam directamente do campo para a escola?
- Andavam ali a arrastar. Uma vez um contou que a professora lhe tinha dito: «Se fizeres os deveres, vais amanhã dormir comigo». Ele chegou ao pé da mãe e disse: «Ó mãe, dá-me umas cuecas novas que amanhã vou dormir com a professora!» Ainda levou nas orelhas.
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A professora era quem? Uma moça da aldeia?
- Comecei com uma professora que levei até ao fim. Marcou-me muito e ainda hoje a recordo com muita saudade. Vive agora em Cascais, chama-se Lúcia. A minha professora deve ter sido das primeiras do Magistério; as outras tinham a quarta classe. Logo a seguir inaugurámos uma escola nova. Excelente, a escola, com entrada em arco, azulejos à volta, e tal.
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A professora Lúcia acompanhou a sua escolaridade primária. Onde eu queria chegar era à sua primeira relação com as palavras.
- Deve-se muito a ela. Uma relação de encantamento. O que é extraordinário é que andamos sempre à procura. Do Graal, às tantas. Antes de irmos para a escola estamos num estado absolutamente delirante. Eu já sabia os reflexivos, os pronomes, as preposições…
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Como é que já sabia?
- Era uma música. Ouvia os mais velhos e decorava.
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Ouvia-os do recreio?
- A escola era mesmo no meio da aldeia, ouvia cá de fora e depois perguntava aos mais velhos. Quando vamos para a escola, imaginamos que vamos aprender coisas. Uma ansiedade. Como depois temos quando vamos para o Liceu; julgamos que ali é que vai ser a sério. Depois, a Universidade é que vai ser a sério. Para chegar à conclusão que andamos permanentemente à procura de qualquer coisa que não existe. Tal e qual como a felicidade.
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A felicidade não existe?
- Com a idade vamos percebendo que a felicidade é uma aquisição muito delicada, muito trabalhosa. Esgaravatar uma mina, mexer muita terra, muita pedra, e depois, de vez em quando, lá aparece um bocadinho de minério. A felicidade também é assim. São momentos fulgurantes, extraordinários, mas não existe em estado puro. Nada existe nesta vida em estado puro.
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O que é que se pode retirar dessa lida diária?
- Mas é isso, é o trabalho diário, é a busca. E talvez sim, talvez se consiga. A consciência disso leva-nos a valorizar cada vez mais esses momentos, esses pedaços de cintilância. Isto vem a propósito?
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Da aldeia, dos parcos recursos.
- Como é que com pouquíssimos livros… raramente víamos um livro, uma imagem.
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Não tinham livros em casa?
- Não. E não tínhamos ainda televisão, éramos muito virgens em termos de imagens. A cultura era muito interessante; desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festa feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, «Fulano de tal ainda não chegou à terra?». Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho rangia, a luz da lareira era móvel, parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinante, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas – uma vez que ainda não havia esta dispersão que há hoje.
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Qual era o seu ponto de observação e participação nesta vivência comunitária?
- Tinha uma experiência muito colectivizada porque a minha avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o meu avô tinha um grande alambique onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê.
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O que representava a sua família na aldeia?
- Eram camponeses. O meu pai e a minha mãe casaram cedíssimo, a minha mãe com 16, o meu pai com 18, dois miúdos filhos de volframistas.
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Naquele tempo eram comum casarem tão cedo e terem filhos logo depois.
- Nasci um ano depois. Tive sempre os meus pais muito novos e uma família muito numerosa: muitas tias, muitas primas, em idade casadoira. Lembro-me bem dos vestidos delas, muito vaporosos, de se pentearem. A minha tia tinha raparigas que iam para lá aprender costura. Um gineceu fortíssimo, sempre a ser esmagado por abraços apertados.
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E gostava ou não?
- Às vezes apertavam-me demais, já fugia. Mas na verdade sentia-me um reizinho. São coisas que nunca mais se esquecem: a pressa para irem à missa, os dias de sol, a luz da Primavera.
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Num dia claro de Primavera, como é este, é isso que rememora?
- Lembro-me muito da minha infância. É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nessa altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos, isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco – o meu avô fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à feira.
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Respira, assim, um tempo que já não existe. Como é que sai da aldeia?
- Apareceu a hipótese de ir para um colégio de Salesianos, com as duas vertentes, para padre ou não. Ficava em Arouca, num antigo convento, sinistro. Fui logo a seguir à quarta classe, com dez anos. Nunca tinha saído lá de cima, nunca tinha visto o mar.
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O seu mundo era a aldeia, e os campos à volta.
- E as romarias, e as feiras: a Sra. da Pena, a Sra. da Saudade, a Sra. Da Piedade. Adorava, adorava aquilo. Conhecia outras aldeias. Mas, naquele tempo, íamos a outra aldeia sempre com o risco de levar uma pedrada. Para irmos a Justes – as terras ali mais perto eram Justes e Vilar de Maçada, que é a terra do [José] Sócrates – fazíamos uma aventura extraordinária, com um cuidado extremo.
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Onde lhe parece que radica essa incrível rivalidade?
- Talvez sejam reminiscências de castreja, não percebo de outra maneira. Agora está melhor, há mais circulação, carros vão e vêm.
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Há a televisão.
- E as comunidades dissolveram-se, com a emigração, por exemplo. Hoje, na minha aldeia, há uma geração jovem muito civilizada, educada, que estuda e circula. Organizam-se para o teatro, para o futebol, têm um grupo coral, até já gravaram um cd. Na altura, eram ódios terríveis. Isto é uma conversa de Antropologia que dava para irmos por aí fora.
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A aldeia era visitada por almocreves, ou havia uma venda onde coincidia o café, a mercearia, a farmácia, etc?
- Existia uma economia natural, de trocas directas. Nas feiras trocavam-se sacholas por feijão.
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Os seus pais trocavam o quê?
- O que tinham: milho. O meu pai tinha algum dinheiro, mas muito pouco, porque tinha explorações de resina. Está bem que o meu avô vendia aguardente e teve muito dinheiro no tempo do volfrâmio, tinha certa produção de vinhos, e o vinho sempre se vendia. Mas imperavam as trocas directas.
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A relação era muito mais desprendida com os objectos. Quer trocas eram as suas?
- Nós só jogávamos ao botão.
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A sua primeira namorada era da aldeia?
- Sim.
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Eu recordo os quilómetros que os namorados faziam para encontrar ao domingo a namorada, que vivia noutra aldeia, para, no fim, ficarem uma hora a falar na berma da estrada.
- Uma vez inventaram-me um namoro, que nem era verdade!, em Sanfins, os sacanas, já andava no colégio Almeida Garrett. Levaram-me à fonte e tive de pagar um garrafão de vinho ao pessoal! Mergulharam-me a cabeça para ser adoptado.
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Uma praxe. E nisto já estamos no Porto.
- Depois da Primária, estive dois anos nos Salesianos, em Arouca, e depois perto de três perto de Coimbra, onde completei o quinto ano.
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Quando foi para os Salesianos, era para ser padre?
- Digamos que tinha uma certa tendência. Por uma razão simples: numa aldeia, neste contexto de que lhe falo, o que produzia um fascínio, fascínio, fascínio, era a religiosidade.
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O que era tão fascinante?
- Para já, havia um delírio religioso, mesmo que não fosse ortodoxo. A presença da bruxaria, do sobrenatural, do Além. Antigamente vivia-se nesse mundo. E pessoas que não mentiam (homens de uma verticalidade, de uma palavra dada…) viam coisas.
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Também via coisas?
- Uma vez estendia a mão para tocar numa senhora que julgava que estava ao meu lado. Imagine o que eram aquelas eiras quando no Verão ficávamos a olhar para o céu, a imaginar o que era o mundo, a chegar lá apenas por intuição. Então, o mundo da igreja, os bastiadores dos altares…
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Chegou a ser acólito?
- Ajudar à missa? Montes de vezes.
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Não estou a vê-lo feito papinho de anjo…
- Nos Salesianos, onde cheguei todo sujo do carvão do comboio, nunca consegui ser dos bens comportados.
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Demorou quantas horas a chegar?
- A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para chegar ao Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à esoera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas de beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.
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Viu o «Rio do Ouro» do Paulo Rocha? É disso que está a falar?
- O ambiente era ainda mais denso. Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal. Dava! Vender, vendiam bilhas de água, regueifas, todo um conjunto de coisas ao longo da linha. E um calor infernal.
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Como por lá se diz, «Nove meses de Inverno e três meses de Inferno». Para não perdermos o fio à meada, aterra no colégio sozinho. O normal era que os miúdos fizessem a quarta classe e ficassem por ali. Como é que se decidiu que continuaria os seus estudos?
- Conheciam um padre salesiano ali perto, o padre Álvaro, que perguntou ao meu pai, «Porque é que ele não vai?, tal tal tal..» Já estava decidido que ia estudar, tinha um jeitinho, portava-me bem nas aulas. Eu queria ir, e gostava, embora sofresse como um cão. Com saudades, chorava que era uma coisa doida.
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Cortou com o universo encantatório da infância.
- Diziam-me «Mas vai-te embora»; mas por outro lado cria-se uma relação com os amigos e há o orgulho, não se quer ir para trás. É um desafio. O meu avô dizia «Como é que o rapaz está lá naquela coisa dos padres?, sem lareira e sem vinho!» (sorriso).
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Davam-lhe sopas de vinho?
- Não, mas às escondidas o meu avô dava-me às vezes um bocadinho de aguardente, tinha a mania que já era um homenzinho.
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O que é que mais gostava no contacto com as palavras, de ler, de escrever?
- Ah, o que eu mais gostava era de contemplar. E ouvir os velhos.
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Pela sua professora, tinha uma paixão?
- Tem-se sempre. Ainda me lembro das saias dela!
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A sua memória é prodigiosa.
- Dessa coisas da infância, lembro-me bem, mais do que das coisas de agora. As saias, os gestos, o ir buscar as cartas do namorado ao correio.
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Os seus pais ajudavam-no nos trabalhos de casa?
- Sabiam ler e escrever, mas não me ajudavam. O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos. Chegava a casa, saltava para cima dele com ramos de cerejas. A minha mãe é muito mais enérgica, ágil, nervosa, como as mulheres lá de cima.
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Há um momento, já em Lisboa, em que pensa voltar para casa, para os seus pais, depois de passar pela prisão de Caxias.
- Olhe que há muitas coisas para trás. Ainda nem passámos pelo Porto.
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Então vamos ao Porto.
- O Porto foi uma descoberta, o primeiro contacto com a cidade. Tinha muita malta cujos pais estavam em Hong Kong e que tinham motorista fardado, grandes carrões à porta.
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Impressionava-o de que maneira?
- Pela bizarria. Fascínio?, nenhum. Ao mesmo tempo era injusto: metia-me no Cabanelas e via aquela gente toda, pobre, a subir a Serra do Marão. Pobres mas muito alegres, diga-se de passagem. Não sei o que aconteceu ao povo português. Acho que foram os primeiros rádios, sabe? Até para trabalharem nas vinhas levam rádio, em vez de cantarem. Agora já nem usam rádio. No princípio a música era fundamental. Sempre fui sensível às injustiças. O Porto, o Porto ajudou-me a abrir. Era o período da Guerra Colonial, quase não havia homens nem rapazes. Os bailes eram só com raparigas.
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Como é que entra nessa roda dos bailes?
- Bailes que havia em qualquer associação, e também bailes privados. Arranjavam-se namoradas muito facilmente – estava tudo lá fora. Na minha aldeia, havia o sol de Inverno, os cães, um e outro sentados, não se via mais ninguém. A partir dos 18 anos, iam para a Guerra. Mas devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisas. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam.
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Era profundamente crente?
- Sim, sim. Já não muito de missas. Isso ajudou a libertar-me do que era o bem e o Mal. É um percurso que tem de se fazer sozinho. Os amigos estavam noutra. Provavelmente não tinham as mesmas inquietações que eu tinha. Reflectia muito sobre mim próprio, escrevia já bastante, e tentava perceber o que se estava a passar. E havia outra coisa: para aquela malta do Porto, não ir às putas era o mesmo que ser maricas. Fazia-lhes uma confusão do caraças. E era uma coisa que também não percebia: como é que com tanta rapariga lindíssima… Tinha essa estranha relação homem-mulher facilitada, apesar de ter passado por um colégio interno, pelo facto de ter tido uma infância de gineceu. A malta nova ia toda para a Rua do Bonjardim, para as Candeias.
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Frequentavam bordéis ou putas de rua?
- Casas, o Porto estava cheio disso. Bastava descer a Rua dos Caldeireiros a passear… O meu avô, no tempo do volfrâmio, às vezes até trazia os trabalhadores para os Caldeireiros.
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Escrevia para as raparigas?
- Ah sim, escrevia. Aconteciam-me coisas extraordinárias: entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camioneta e apaixonava-me.
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Pela beleza, por aquilo que a pessoa emanava?
- Não sei. Uma vez estava a contar ao José Agostinho Baptista e ele dizia-me «Tens uma imaginação maluca». As coisas estavam num estado de pureza… Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.
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Essa «imaginação» deixou de o acompanhar no amadurecimento dos anos?
- Com o passar do tempo as pessoas deixam de ter disponibilidade para viver em estado de paixão. A minha mola foi sempre o afecto. Nunca pensei ser rico, ter poder…; outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo. O resto? Brrr…
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Fala de uma relação de afecto que me parece tremendamente panteísta.
- Tinha sempre a casa com flores, mesmo quando estava a estudar e tinha pouquíssimo dinheiro: 18 escudos iam para as sécias, comprava meia-dúzia todas as semanas. Já trabalhava na Assírio, metia-me sozinho, com o saco a tira-colo e um caderninho para escrever, primeiro no barco, depois na camioneta: Costa da Caparica, quilómetros por ali fora, ficava a olhar para o mar. Fazia isto com uma regularidade extrema. A partir de determinada altura, o tempo não chegava para nada, nada!
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Responsabiliza sobretudo o tempo? Estava a pensar que naturalmente há uma inocência que se perde. As pessoas deixam de ser puras.
- Chega a uma altura em que nem damos conta de como tudo se passa. Ficamos absorvidos, e depois queremos mais, cada vez mais, e já não conseguimos parar, a não ser que aconteça qualquer coisa de muito…
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Esteve ainda um ano em Direito.
- Quando vim para Lisboa foi para fazer Direito, mas praticamente não fiz nada. Direito estava ocupado, era o tempo do Martinez.
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Porque é que vai para Direito? Ainda por cima já escrevia, já sabia que lhe interessavam as palavras.
- O que queria era ser poeta. Os poetas que lia mais, o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas, eram todos licenciados em Direito. Julgava que o Direito… Uma ingenuidade!, como aliás tinha muitas. O mundo era assim, não precisava que fosse mais complexo. Fica-me mal dizer o eu, mas há uma água límpida que ainda mantenho.
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É o seu lado aldeão.
- Não tenho ninguém a quem desejo mal, acredita? Posso não simpatizar, mas não consigo atirar uma pedra a ninguém. Nem aos de Justes! (riso)
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Os seus pais acompanhavam o seu projecto?
- Cresci sozinho, praticamente sobrevivi sozinho. No Porto, tinha muito pouco dinheiro, os meus pais também tinham muito pouco dinheiro. Tive a minha fase freak, como todos. Quer ver como é que eu era?
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Quero.
- [Mostra uma fotografia com a mulher, Manuela, em Marrocos]. Isto é nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Tínhamos a sensação de que o mundo ia mudar e que estava ali, ao alcance da nossa mão. Estamos a dispersar-nos muito, não?
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Vamos recentrar em Lisboa, no primeiro ano de Direito.
- Não, Direito é de ignorar, é só matrícula e mais nada.
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Lisboa, depois do Porto, é um novo mundo. Ainda se identificava como um rapaz da aldeia? Pelo facto de ter estudado, a sua vida passou a ser completamente diferente da vida dos rapazes da terra.
- Na aldeia só estive dez anos, nesta altura já tinha outro tanto fora. Mas mantive uma relação muito forte com aquilo. Em Lisboa, numa primeira fase, toda a malta de Trás-os-Montes se encontrava. Desde cirurgiões a tipos do PC, a tipos da PIDE. Desde malta de Montalegre a malta de Vila Real. Juntava-se o pessoal todo ao pé do [café] Gelo.
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Discutindo a situação do país?
- Não. Era talvez puro instinto, pura defesa. Dos que não conheciam isto, dos que conheciam bem. E depois rapidamente se passou a uma fase, por que passei também, de repulsa por tudo o que era rural. Aquilo parecia-me uma piroseira do caraças, as músicas e tudo. Estive muito tempo sem lá ir.
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Porque se fascinou com uma Lisboa sofisticada?
- Julgo que foi um processo mais cultural, que começa nos livros e no que se aprende. Há coisas que irritam!, que, aliás, ainda hoje me irritam: um atavismo, um não querer saber, uma preguiça natural.
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Foi tudo hiperbolizado.
- Parecia-me atávico, justamente. E ridículo: os rapazes chegavam de bicicleta aos bailes, com óculos espelhados comprados na feira! Vinham juntos, mas depois, à frente das raparigas, atravessavam o baile para se cumprimentar. Hoje tudo isso me encanta, mas na altura achava hipócrita.
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Tinha algum amigo da escola primária?
- Sim. Que estudassem só uma rapariga e um rapaz; ela é hoje professora, e foi o único caso de chegar ao fim do curso como eu.
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Estava a tentar perceber se ter tido acesso a outros universos o demarcou das pessoas que conhecia.
- Não muito. Nunca julguei as pessoas pelo que sabiam. Nunca fiz qualquer discriminação pela pessoa ter o curso ou não ter, ser assim ou assado, ser pobre ou rico. Quer dizer, é uma coisa tão natural que o simples facto de falar nisso mete-me impressão. E nunca tive mitos, nem Marilyn Monroe, nem Jim Morrison; a única coisinha que talvez tenha tido foi pelo Che Guevara. As pessoas fascinam-me sempre muito mais. Na hora da sesta, enquanto os outros iam dormir, passava o tempo a ouvir os velhotes. Horas e horas e horas. E depois continuou, com o agostinho da Silva, que ia ouvir de vez em quando.
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Quando é que encontra o Agostinho da Silva?
- Anos 70, pouco depois de vir para cá. Um amigo disse-me «Tens de conhecer o Agostinho». Só não ia mais vezes visitá-lo por causa do cheiro dos gatos (com o cio, o cheiro é insuportável).
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A sua gata, Gueixa, cheira?
- Não, os machos é que é uma coisa terrível. Ele vivia no terceiro andar e sentia-se no fundo das escadas.
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Então, é um rapaz universitário que vai parar a Caxias. Conte lá a história, antes de aprofundarmos a relação com as letras e com a Assírio.
- No Porto já participava numas coisas pró-social. Com o Bispo do Porto e uma certa igreja mais prá-frentex, com um grupo de jovens. Havia uma espécie de reflexão, um centro na Rua do Rosário, com a Irmã Humberta; cantava umas baladas do Fanhais e do Zeca Afonso.
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Estavam ligadas para si essas duas componentes, a religiosa e a política?
- Por acaso nunca tive grande sentido político. Na faculdade deixei-me motivar pela luta anti-Guerra Colonial, mandei umas bocas e pronto. Mais nada. Fui parar a Caxias basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura. Deram-me enxertos de porrada inacreditável. Com a minha ingenuidade perguntava: «Por que é que me está a bater?»
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A sensação mais forte é o medo?
- É a de que se está nas mãos da mais completa arbitrariedade; podem-nos dar um tiro, podem fazer o que quiserem. Mas agora, estar a contar isto tudo…
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Custa-lhe?
- Não. Mas foi a primeira machadada na minha vida. Até essa altura tinha sido como um pássaro, à solta. Cortaram-me o cabelo todo, que era enorme, implicaram com as coisinhas que trazia no saco: um caderninho, umas almofadinhas bordadas que as minhas amigas me davam. Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada nada. Um dia parecia uma eternidade. Sabe o que me fez cair na situação? Perceber que já não mandava em mim: «Tens a mania que andas aí como um pássaro?».
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Quanto tempo esteve?
- Para aí uma semana. Lá dentro apercebi-me que havia luta; nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como «Coragem, estamos contigo», «Resiste»; na enfermaria havia coisas escritas com sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.
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Quando sai quer voltar à terra. Formulou seriamente o desejo de voltar para a aldeia? Ainda se reconhecia nessa vida?
- Estava farto. Essa coisa da Aura Mediócritas, como dizia o Sá de Miranda, é uma coisa que existe muito dentro de nós. Às vezes vejo colegas meus lá em cima, a tranquilidade com que estão com os seus filhos. A felicidade é aquela coisa projectada nos outros, felizmente estamos já avisados, sabemos que não existe. Mas nos poetas acontece muito, o Pessoa então, «Ai se eu pudesse casar com a filha da minha mulher a dias». Sempre o outro como representação, encenação da felicidade. Essa busca de uma vida calma, contemplativa, às vezes assalta-me. Na altura era insólito, por ser muito novo e ter o mundo à minha disposição.
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Aos 22/23 anos vai para a Assírio como vendedor.
- É preciso dizer que a Assírio estava de pantanas. A Assírio foi fundada em 72, depois esteve uns anos sem publicar, mais tarde o Homero, produtor do Página Um, tinha lá um escritório e deu uma mão, mais duas pessoas que lá trabalhavam. Aquilo estava num regime de sobrevivência. Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez. A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.
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Já tinha acabado o curso?
- Já me tinha matriculado em Sociologia em Évora!, para ver as voltas da minha vida. Fui para a Assírio para a parte de vendas, mas ali todos faziam tudo. Sabe como é que se sobrevivia? Quantas vezes fazendo bancas, para sacar algum dinheiro. Estava mesmo na penúria, penúria. Fui-me mantendo por lá, acabei o curso de História.
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Vivia desse pequeno trabalho?
- Já tinha um outro numa agência que contratava artistas: os Genesis, os Procul Harum.
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Conheceu essa malta?
- Alguma, e outra que vinha para o Casino do Estoril, de românticos a stripers. Foi o meu primeiro trabalho, quem mo arranjou foi a Maria Leonor, da rádio.
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Na Assírio assume, em 78, a coordenação editorial. Imagino que tenha correspondido a um desejo de estabilidade que grassou por todo o país, passada a agitação política.
- E a tropa. Fui para a tropa depois de completar o curso. Tinha sido já refractário, devia ter ido para os Fuzileiros antes do 25 de Abril. Não fui e andei a monte.
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Em 78 assentou arraiais na Assírio. Deixou de ser o rapaz à descoberta do mundo?
- Continuei à descoberta. Ainda fui fazer vindimas a França. Andei sempre muito à solta, parecia que o mundo todo me sorria. Nestas viagens, sozinho, amadurecia muito, fermentava.
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Na base da mochila às costas?
- Era assim mesmo, sem saber onde ia ficar. Nunca fiquei na rua.
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O que é que queria da vida? Ou tratava-se de a ir descobrindo?
- Descobrindo. Mas sempre à espera, com a sensação de que a seguir é que era. A seguir, a seguir.
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Tinha desistido do sonho de ser poeta?
- Fartei-me de escrever. Tenho ali cadernos que nunca mais acabam. Depois começa-se a publicar tanta poesia tão boa… Não sei se é muito importante.
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Realmente?
- Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidadezinha que tenho é colectiva, por amigos. Às vezes apetece-me escrever, é uma necessidade interior, um imperativo. Na verdade, posso não escrever poesia, mas vivência poética acho que a tenho. Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos. Metê-los no papel? Brrr…
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O seu olhar é eminentemente poético, marcado pela vivência rural.
- E a visão desde a infância. Ver tudo, com muita atenção. Podia escrever um livro de memórias, relatando a vivência com uma gente de que pouco se sabe, das histórias que lhes ouvi.
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Portugal não tem tradição de livros de memórias. As biografias, noutros países, vendem-se como pão quente.
- Em Portugal as biografias não pegam, não sei dizer porquê. Eu gostava de fazer, sobretudo pela vivência forte que aí tive, humanamente. É quase uma dívida que queria saldar. Podia juntar a minha experiência no Alentejo. E a minha experiência enquanto editor; podia fazer um livro extraordinário sobre os poetas que conheci, não só os poetas que publiquei, mas todos os outros: o Manuel da Fonseca que ia tanta vez à Assírio, o Rui Cinati que ia diariamente à Assírio…
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As relações que a editora mantém com alguns poetas é mítica. É verdade que vão levar o almoço diariamente a casa do Cesariny?
- É. Mas não é preciso contar isso.
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O que me interessa é perceber a relação familiar que se estabelece entre si e alguns destes autores.
- Sim, são a minha família, não há nenhuma dúvida. Mas há outros, que nem sequer são da Assírio, com os quais tenho uma relação igualmente profunda. Caso do Eugénio de Andrade: falamos dia sim, dia não.
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Pensou muito neste projecto no último ano, desde que sabe da sua doença? Mesmo que trabalhe a partir de casa e vá à Assírio ocasionalmente, imagino que esteja mais recolhido em si e nas suas memórias.
- É verdade. Mas tanto penso em fazer isso, como logo a seguir penso em não fazer. Sou muito assim. Na minha vida as coisas quando têm de acontecer, acontecem. Não falo de um deixar-se reger, de um determinismo exterior à minha vontade; mas fui ganhando alguma sabedoria, percebendo que as coisas impõem-se.
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Prefere que as coisas lhe aconteçam?
- Sim. A minha vida é feita de acasos, de circunstâncias. Nunca forcei muito as coisas, nem as relações amorosas. Suponhamos que as coisas andam num caos e que tendem para uma harmonia. Se não as precipitarmos, elas tendem para uma pacificação. Tudo, tudo o que está no universo é assim. Se calhar é a lógica da vida toda.
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Poucas foram, então, as opções de vida tomadas de forma categórica.
- Sim. No trabalho, claro, é diferente.
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A propósito dessa vida que lhe acontece, como ficou, a páginas tantas, a relação com o divino?
- É uma relação harmoniosa, sempre foi. Tenho fé, tenho. Há a perplexidade que algumas coisas inevitavelmente nos suscitam; por outro lado, há ainda tanta coisa por conhecer que é uma arrogância julgar que já estamos no fim do processo. Só posso falar da experiência própria. Não posso falar a alguém do encantamento que me dá ver um melro ali à frente no ramo, ou de uma pequena flor que me enche completamente de vida. Então neste momento actual enche a sério. Como não podia, quando era mais novo, ler um poema às pessoas que me respondiam «Lá vem este com o poema, agora com esta merda».
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Harmoniosamente foi fazendo a síntese entre a sabedoria das pessoas e da terra.
- É a mais importante.
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E o saber livresco e o que deriva do contacto com outras pessoas. Foi este o seu labor.
- Aprendi muito vendo, vendo a natureza. Isto é uma escola permanente, é uma escola permanente. O grande problema é que está a morrer a nossa sensibilidade, a nossa disponibilidade. A relação com os outros está terrível. Esta coisa do novo-riquismo, esta ansiedade desenfreada que não leva absolutamente a nada. Um punhetaço, como dizem os espanhóis. Há uma coisa infernal que retira às pessoas a sua tranquilidade, a sua liberdade. E estamos a matar aquilo que, em putos, no tempo da festividade, do amor e tal, tínhamos como capital incrível, e que era o afecto.
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Na altura já sabia disso?
- «O nosso grande capital é o amor». Era a nossa grande riqueza, o que queríamos. Depois logo nos safávamos, íamos a França, enfim. Agora precisam de não sei quantos contos para ir para a estância de neve, mais não sei quê que só vai com determinadas condições. Estamos a perder a liberdade. Mais: a perdê-la sem ter consciência disso.
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Esse conforto material em que vive agora, esta sua casa tão simpática, a casa da aldeia…
- Mas eu posso viver em qualquer sítio. Se não fosse a Manuela a arranjar a casa, algum dia tinha isto? Não, não me mexe muito. Seria uma estupidez dizer que não gosto de ter um bom carro, em vez de ter um carro a abanar por todos os lados. Agora, que não signifique hipotecar a liberdade da pessoa. Se não puder ter, não há problema, até não há problema absolutamente nenhum.
Estas coisas ficaram mais flagrantes para si porque as pessoas ficam sacudidas quando estão doentes?
- Não, absolutamente nada. Tinha consciência delas, mas andava tão alienado que me apetecia chegar aí, ligar a televisão e ver a bonecada porque me dava o sono. Neste momento sinto-me melhor fisicamente, por incrível que pareça. A minha cabeça parece que estourava, com milhões de preocupações, permanentemente tau-tau-tau. Não tinha paz. E sinto-me tranquilo.
Sente? Não o invade uma angústia quanto ao futuro?
- Se morrer quero ir para a minha terra.
Foi nisso que imediatamente pensou?
- Foi. Logo. E disse-o à Manuela. Às vezes, depois das quimios, vou-me um bocadinho mais abaixo, fico mais mole e psicologicamente fico mais afectado. Agora, como hoje me sinto… Fico aqui sentado a ver os melros, de que gosto muito, os pequenos rebentos das folhas.
Porquê os melros?
- É um pássaro muito bonito, canta extraordinariamente bem. Quando tinha seis anos, havia uma japoneira ao pé da casa dos meus avós e cantava lá um melro ao amanhecer; contam que dizia: «Ó Vó, olha o que o melro está a dizer!, o que é que está a dizer?, queres comer, queres comida?». Era eu que estava com fome.
Teve um encontro, com um livro ou poema, que tivesse sido determinante na sua relação com a literatura?
- Quando comecei a sentir a poesia a sério, assim poesia de estremeção, foi nos Simbolistas, Gomes Leal e Camilo Pessanha. Sobretudo Pessanha, a gente dizia: «O que é isto?»
Que verso ou poema traduziria a essência de si e que escolheria para seu epitáfio?
- Ah, não sei. Tenho muitas dúvidas sobre mim, não pense que não. Muitas convulsões, muitas dúvidas. Sou um toiro. Agora estou partido. Quem é que me domava? Nem eu. Energia. Alegria. Era capaz de levar uma multidão. Era uma coisa genésica e telúrica. Ao mesmo tempo, tenho uma dose de feminilidade forte, que não enjeito. A mulher herdou uma sabedoria de muitos séculos, de velha aranha que sabe esperar, perceber o silêncio. Os homens são tipos de uma ingenuidade total, de uma generosidade inexcedível, só qualidades; e depois há qualquer coisa de bruto, de guerreiro, de incapacidade de crescimento.
Que conversas tem com o seu pai e com a sua mãe?
- Ao meu pai gosto muito de o abraçar, estamos sempre agarrados um ao outro, «Então a poda já está feita?», «Está quase», e tal. Com a minha mãe falo das coisas da casa, das minhas irmãs, deito água na fervura. E é assim.
As partes mais íntimas de si ficam para quem?
- São coisas que a gente digere em nós, não é? Nunca matei ninguém, não tenho nada que me atormente. (pausa) Precisávamos de ter várias vidas, não é?, para acertar com uma. Esta é muito pequena. Mesmo que a tenha vivido intensamente. Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa. Claro que gostava de mais, de fazer isto e aquilo; mas por outro lado, mesmo 100 anos não é nada, 200 também não. Estou habituado a ver a biografia de escritores… Isso passa tudo. É uma lucidez que convém ter afinada. Sempre a tive, não é de agora. Pelo contrário, agora tenho mais ganas de viver. Mas sempre percebi o quão relativo isto era: 90 anos, 100 anos, 200 anos. Não se dá conta; julga-se que quando se for mais velho se vai saber mais e também não se sabe nada.
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Que idade tem?
- 48.
Entrevista de Anabela Mota Ribeiro para o DNA (suplemento do Diário de Notícias) de 12-05-2001. O falecido editor da Assírio&Alvim faria hoje, 10 de setembro de 2012, 60 anos de idade. (fonte)
Kurt Vonnegut (2006)
ps - realizada no meio virtual Second Life para uma estação de rádio, esta foi a última entrevista do escritor.
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