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Maria Filomena Mónica (2011)
Luísa Schmidt (LS): Como se consolidou do ponto de vista institucional o campo das ciências sociais em Portugal?
Maria Filomena Mónica (MFM): Antes da institucionalização, seja o que for que isto queira dizer, houve um homem, Adérito Sedas Nunes. O Gabinete de Investigações Sociais, o GIS, existiu porque existia o Adérito. Tal aliás como o ISCTE. O Adérito, como a certa altura desejou que o tratássemos, era um economista desiludido. Licenciara-se pelo ISCEF (agora ISEG), onde, durante anos, deu aulas, com base numa "sebenta" escrita por ele, sobre a história das ideias políticas e sociais. Nesta altura, ainda o não conhecia, porque, embora economia tivesse sido a minha primeira opção, acabei por a trocar por filosofia, curso em que me inscrevi em 1961. Em 1969, licenciei-me e, em 1970, entrei, como bolseira-estagiária para o Gabinete de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian, chefiado pelo Rui Grácio. Eu queria saber que tipo de cultura tinham os jovens de diversas classes sociais. Elaborei um formulário, aplicado em todo o país, aos alunos do ciclo preparatório, miúdos de 11 ou 12 anos, com base numa amostra de 8 000 crianças. Para meu espanto, descobri que a obra mais lida em Portugal pelos jovens escolarizados era A Rosa do Adro (1), de que nunca tinha ouvido falar. Comecei a tentar interpretar os dados, mas sobre alguns pontos tinha dúvidas. Um amigo, o José Carlos Ferreira de Almeida, que era sociólogo, criticou a composição da amostra, o que me levou à paralisia. Quando expus ao Rui Grácio as minhas hesitações, este aconselhou-me a falar com o professor Sedas Nunes, uma vez que ele não se sentia competente para me ajudar. Pedi uma audiência a Sedas Nunes, mas recusou. Rui Grácio sugeriu-me então que fosse estudar para o estrangeiro, com uma bolsa da Fundação. Escolhi sociologia, uma disciplina que, à época, era proibida em Portugal. Tendo sido admitida na Universidade de Oxford, em 1971, parti para Inglaterra, onde, em 1962, já tinha vivido. Inscrevi-me numa espécie de mestrado, o B. Phil, que exigia uma série de exames finais, de que o mais difícil era o de estatística. Farta de números e dos seminários que pouco me interessavam, a sociologia inglesa era muito influenciada pela americana, pedi ao departamento para subir um grau, passando, desde logo, ao doutoramento, o que me foi concedido. Comecei então a investigar o salazarismo, a fim de compreender o que tinha diante dos olhos, ou seja, o regime de Marcello Caetano. Eu não tinha uma liberdade total de escolha do tema: segundo as regras da Fundação, a tese tinha de ser sobre Portugal e, no meu caso, de se centrar em sociologia da educação. Foi assim que, após descobrir que nunca entenderia o que o ministro Veiga Simão andava a fazer sem recuar no tempo, acabei a estudar as políticas educativas de Salazar. O departamento de sociologia de Oxford ainda torceu o nariz, considerava que aquilo era demasiado histórico, mas era suficientemente flexível para me deixar fazer o que pretendia. No Natal de 1973, depois de um ano de leitura da bibliografia estrangeira, vim para Portugal a fim de fazer a investigação que desejava na Biblioteca Nacional.
LS: Estávamos então nas vésperas da Revolução de Abril?
MFM: Estávamos, mas ninguém o sabia. Lembro-me de ter ido a um jogo de futebol, um de apenas dois a que assisti, com o João Cravinho e de ter visto o estádio em pé, aplaudindo Marcello Caetano. Convenci-me de que o regime estava para dar e durar. Sabia que, se queria fazer a tese, teria de passar um ano na Biblioteca Nacional, mas temia que a estadia em Portugal me "estragasse" a cabeça. Sem a ajuda do Adérito, sem as suas conversas, sem o seu estímulo, sem a sua disponibilidade, é provável que tudo tivesse sido mais difícil. Subitamente, a minha vida alterou-se. Apesar de mal me conhecer, convidou-me para sua assistente no curso de sociologia que estava a preparar no ISCTE. Disse-lhe que não tendo a tese terminada, não me sentia preparada. Da equipa faziam parte vários amigos meus, como o Afonso de Barros e o Armando Trigo de Abreu. Mais importante, no ISCTE estava também a ensinar o Vasco Pulido Valente, o qual, tanto quanto me lembro, era assistente do Alfredo de Sousa. Eu continuava a resistir. A certa altura, disse ao Adérito que não me sentia preparada para leccionar uma cadeira chamada "Demografia e recursos humanos" (não se podia chamar "sociologia" por ser proibido). Depois, sob pressão do Vasco, que era o meu maior amigo, acabei por aceder ao convite do Adérito. A equipa começou a preparar as aulas em Fevereiro de 1974. Um mês antes da Revolução, dei comigo a falar do Exército Industrial de Reserva a 20 alunos. A coisa parecia, e era, surrealista. A certa altura, o Adérito informou-me ter eu na aula um PIDE, mas não me impediu de mandar os alunos ler Marx, o que fiz, em doses industriais.
A 25 de Abril, chegou o golpe de Estado. Nos dias que se seguiram, viveu-se, no ISCTE, um clima de incrível turbulência. A maior parte dos docentes era do MES e, entre eles, havia quem tivesse relações com os militares, por isso estávamos sempre a par de tudo o que se preparava. Criado para servir de contraponto ao insurrecto ISCEF, o ISCTE foi a primeira faculdade do país a entrar em auto-gestão.
No final de Abril, os assistentes invadiram o gabinete de Sedas Nunes, declarando que não o deixariam convocar o Conselho Escolar. Pelo próprio, soube que tinha ficado chocado que nós, os seus discípulos, pudéssemos imaginar dar-lhe ordens. Respondi-lhe que, com os capitães na rua, era evidente que ele não podia continuar a liderar a escola como se nada se tivesse passado. Para minha surpresa, a minha presença entre os rebeldes não impediu a continuação das boas relações que mantínhamos. Aliás, a invasão do gabinete cedo se revelou uma gota no oceano. Seguiu-se uma assembleia-geral de escola, onde, em princípio, se iriam proceder a saneamentos, mas que se limitou à inquirição de um pobre contínuo. Fiquei enojada.
Apesar de andar entusiasmada com a Revolução, e ao contrário do que me aconselhavam alguns amigos, não me inscrevi no MES. Inconscientemente, sabia que não tinha feitio para militâncias. Limitei-me a ir à reunião fundadora do Sindicato dos Professores. Mas até isto acabou por me desinteressar, uma vez que considerei que o que se estava a passar no ISCTE era mais grave. Os alunos elegeram, duas ou três semanas depois, uma comissão diretiva, onde, juntamente com a Miriam Halpern Pereira e o Adérito Sedas Nunes, me incluíram. Fiquei atónita, uma vez que não tinha qualquer passado anti-fascista. Os estudantes tinham feito uma lista com os critérios para o saneamento dos docentes, ter sido ministro, deputado na Assembleia Nacional ou procurador da Câmara Corporativa, mas esqueceram-se de fazer o trabalho de casa. Caso o tivessem feito, teriam verificado que o Adérito fora procurador à Câmara Corporativa. Desconhecendo o facto, acabou eleito. Mas a coisa não correu bem. Não tardou que as minhas posições desagradassem aos alunos. Eu queria criar uma escola de sociologia exigente, meritocrática e livre. Nada estava mais longe dos desígnios estudantis. Estes pretendiam fazer trabalhos de grupo, reorganizar os curricula de alto a baixo e recrutar alguns operários para a escola («Colocando-os depois numa jaula»?, questionei). Na segunda ou terceira reunião, era já tida como uma inimiga. Comecei a ter dúvidas sobre a vantagem de ali estar. Numa das últimas reuniões, os alunos apareceram com uma lista idiota, composta pelos títulos dos principais livros de Álvaro Cunhal e de Marta Harnecker. Mais do que a atitude dos estudantes, enfurecia-me a covardia de alguns catedráticos. Em Junho, decidi abandonar a escola.
Como disse, desde 1971 que era bolseira da Fundação Gulbenkian no estrangeiro. Dias após o 25 de Abril, escrevera ao director do meu departamento, o professor A. H. Halsey, pedindo-lhe para me deixar ficar em Portugal, interrompendo o doutoramento. Talvez por ter simpatias de esquerda, concordou. Também solicitei à Fundação Gulbenkian que interrompesse o pagamento da minha bolsa. No Verão de 1974, voltei a escrever ao Serviço de Bolsas de Estudo, explicando-lhe que desejava recomeçar o doutoramento. Expliquei ao Adérito, o qual, embora relutantemente, acabou por aceitar. No Outono de 1975, regressei a Inglaterra.
Em 1977, acabei a tese, defendida em 1978. Como já não tinha o dinheiro da bolsa, fui obrigada a dar aulas no ISCTE, o que me criou uma situação engraçada, pois me apercebi que tinha muito mais poder do que antes. Continuava a discordar de tudo, da gestão, da forma como os alunos eram examinados, do recrutamento de assistentes, mas como legalmente o Conselho Científico tinha de ter cinco doutorados e, na área das humanidades (história e sociologia) só havia quatro (comigo, cinco), se eu abandonasse o Conselho Científico, a escola deixaria de funcionar. Isto era, em grande medida, fruto de alguns catedráticos terem trocado o ISCTE, alguns terão mesmo sido saneados, por outras instituições. Foi assim que nasceu a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, fundada por Alfredo de Sousa.
LS: Nessa altura, o Sedas Nunes já tinha saído do ISCTE?
MFM: Sim, o Sedas Nunes tinha saído para a Universidade Nova, que ainda estava em fase de instalação. Aliás, tanto eu como ele, legalmente pertencíamos ao quadro da Universidade Nova, e estávamos emprestados ao ISCTE.
No Verão de 1976, quando vim de férias a Lisboa, encontrara um Adérito singularmente desiludido. Após o 25 de Abril, tinham ocorrido divisões entre ele e os seus amigos, como o Francisco Pereira de Moura e o Mário Murteira. Na altura, nada me dissera, mas depois contou-me que pensara em emigrar, tendo chegado a escrever nesse sentido a Alain Touraine. Mas acabou por ficar, e o GIS, criado com o apoio financeiro da Fundação Gulbenkian, voltou a ser a menina dos seus olhos.
Tendo-lhe dito que não tinha um local onde trabalhar, ofereceu-me um cubículo, num dos claustros do ISCEF, onde estava guardada a biblioteca do GIS (a instituição mantinha laços com a faculdade por onde o Adérito se licenciara). Fui então ocupar um corredor húmido, mas que me dava o que, para mim, era importante: silêncio. Guardo aliás desse tempo óptimas recordações. Mas o Adérito considerava que aquele buraco fazia mal à saúde. Passado algum tempo, disse-me para vir para um gabinete na Rua Miguel Lupi, que passei a ocupar de parceria com o João Ferreira de Almeida. Só agora noto que estou aqui há trinta e três anos!
Muito se passou pelo meio no que diz respeito a instalações, mas, como se vê, resisti, com sucesso, à transumância. No início da década de 1980, o Adérito e a maior parte dos colegas, especialmente os que ensinavam no ISCTE, mudaram-se para a Avenida das Forças Armadas e, mais tarde, já depois de o Adérito ter morrido, no início de 2000, para o atual edifício, na Avenida Professor Aníbal Bettencourt. Expliquei então, por escrito, ao Conselho Directivo do ICS, na altura era assim que se chamava, que, se me obrigassem a ir para a cidade universitária, seria forçada a deixar de ler 145 livros por ano, um número obviamente inventado, o que me prejudicaria e indirectamente a instituição. Ainda fui ver, ao novo edifício, o luxuoso gabinete que me estava destinado, mas nada me demoveu. Não queria passar horas no trânsito, sem que ninguém, nem eu, disso beneficiasse. Foi aqui, onde me estão a entrevistar, que acabei por passar o resto da minha vida académica.
Vi sempre com bons olhos a ideia de manter o GIS como uma instituição exclusiva de investigação e pós-graduação, o que era difícil, por não haver um precedente no país. Devo dizer que, se para mim, me era igual pertencer ou não a um quadro, o Adérito não pensava assim. Mais velho, e sobretudo mais realista do que eu, sabia que as aventuras são mais aprazíveis na juventude do que na velhice. Quanto entrei, não havia, como disse, formalidades. Quem decidia tudo era o Adérito, um déspota esclarecido, na melhor acepção da palavra; se não fosse ele nenhum de nós teria tido a carreira que hoje tem.
LS: Entretanto, o GIS também se institucionalizou.
MFM: Em 1979, o Adérito foi nomeado ministro da Coordenação Cultural e da Ciência. Odiou o posto tanto quanto antes detestara a presidência da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Por boas e más razões, não gostava de luta política nem do quotidiano da alta administração. Aquilo que, de facto, apreciava era ficar de manhã em casa, a ler, e à tarde de vir até à Rua Miguel Lupi. No final da sua estadia no governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, que durou nove meses, decidiu elaborar um decreto institucionalizando o GIS.
Quando, pouco depois, Sá Carneiro chegou ao poder, determinou a anulação dos decretos publicados nas últimas semanas, pelo que o GIS voltou ao seu ambíguo estatuto. Só em 1982, o Adérito conseguiria aquilo por que, ao longo dos anos, tinha sonhado.
Quando viu a sua decisão ser anulada, ficou imensamente triste. Farto de conselhos de ministros que se arrastavam pela noite dentro, decidira fugir, tendo-se refugiado em Tróia. Acabei por lá ir, a fim de discutir o futuro do GIS. Mas as nossas visões nem sempre coincidiam. Para mim havia um risco que, para ele, não contava: o da burocratização.
Lembro-me de, uma vez, já ele regressara à Rua Miguel Lupi, lhe ter feito uma partida. Os membros do GIS tinham de preencher anualmente um formulário, com os projectos que tencionavam fazer, o andamento dos trabalhos anteriores e as verbas de que carecíamos (naquela altura, irrisórias). Intitulei o meu projecto: "Um estudo de caso: a burocratização do GIS". Depois, coloquei no papel todo o jargão sociológico que conhecia, acrescentando, como bibliografia, as obras de Max Weber, em alemão. O Adérito não achou graça à brincadeira, mas não se zangou comigo (o formulário deve estar algures no arquivo do GIS). Outra divergência dizia respeito à massificação do futuro instituto. Para ele, quanto mais gente melhor, desde que fosse ele a escolher, enquanto para mim, o ideal era um organismo pequeno, onde pudesse existir um contacto íntimo entre os investigadores.
Em data que já não sei determinar, decidiu-se constituir um grupo de trabalho informal para analisar a questão. Percebia a sua preocupação, a de que nós, os investigadores, tínhamos de ter garantia de trabalho, mas temia que o preço a pagar fosse demasiado elevado. Contactámos várias pessoas. Lembro-me do Afonso de Barros, do Alberto Romão Dias, do Luís Moniz Pereira, do António Barreto e do Vasco Pulido Valente, o qual, depois da morte de Sá Carneiro, estava disponível para voltar à carreira universitária. Depois de uma maratona, com uma minoria ou com o grupo no seu pleno, acabámos por agregar duas pessoas, o Manuel de Lucena, em quem eu tinha enorme confiança, e o então reitor da UL, Raul Miguel Rosado Fernandes, cujo contributo foi decisivo. Para que se criasse o instituto que desejávamos, este teria de ficar albergado numa universidade. Por várias razões, de entre a qual a mais importante era a resistência das faculdades, que viam com inveja um instituto sem alunos de licenciatura, as universidades, as três que existiam em Lisboa, ofereciam resistência à novidade e foi Rosado Fernandes quem impôs às faculdades a criação do Instituto de Ciências Sociais. Valeu a pena.
Outra questão, debatida ainda antes da queda do governo Pintassilgo, foi a proposta de lei da Dedicação Exclusiva da Carreira Universitária, igualmente elaborada pelo Adérito. Mais uma vez, houve divergência de pontos de vista, entre mim e ele. A mais relevante dizia respeito a uma alínea, que ele teimava em introduzir e que permitia, a quem optasse pela dedicação exclusiva num instituto de investigação, dar até quatro horas semanais de aulas numa faculdade. Eu era contra, entre outras razões porque muitos dos meus colegas do GIS davam aulas no ISCTE, o que considerava minar a personalidade da primeira instituição. Ainda lhe lembrei o bíblico argumento, "Não se pode servir bem a dois senhores", mas o Adérito era teimoso. Até que, ao fim de muitos debates, descobri o que estava por detrás da sua obsessão: ele queria continuar a ser professor. Eu achava que a medida iria dar mau resultado, como depois se veio a verificar: ninguém cumpria a dedicação exclusiva e continuava-se a fazer investigação e a dar aulas ao mesmo tempo.
LS: E o teu percurso científico no ICS?
MFM: Antes de entrar para o GIS, formara-me em filosofia. Foi com um pé já cá dentro que acabei o doutoramento em sociologia. Quando regressei de Oxford, tinha uma interrogação na cabeça: o que teria ficado no espírito dos miúdos que haviam sido sujeitos à dieta ideológica do Estado Novo? Que teriam absorvido dos valores "Deus, Pátria e Família" que o regime pretendera inculcar? E nos meios com uma cultura própria, como os operários, como se olhara a escola? Foi a partir destas perguntas que decidi estudar a classe operária. Havia ainda outra razão de peso: a Revolução supostamente feita em nome do proletariado.
Fui viver, durante um período, para a Marinha Grande, o símbolo por excelência de uma comunidade operária. Mas, quando ali cheguei, em vez dos operários de boina, montados em bicicletas, apenas vi rapazes de casacos de coiro a conduzir Toyotas. Falei com vários operários mais velhos que tinham participado no 18 de Janeiro (a sublevação de 1934), mas a maioria dos trabalhadores do vidro que entrevistei nas fábricas não sabia sequer o que isso era.
A minha primeira obra histórica foi sobre a classe operária no século XIX. Depois, estudei os patrões, primeiro os de Oitocentos, o que deu origem a um artigo na Análise Social e, mais tarde, a seguir à adesão do país à CEE, os empresários, um trabalho que acabaria por desembocar no meu livro Os Grandes Patrões da Indústria Portugueses.
Na década de 1990, a Assembleia da República encomendou ao ICS um trabalho interessante, a elaboração de um Dicionário Biográfico Parlamentar [reunido em 5 volumes]. Eu fiquei com a coordenação do período entre 1834 a 1910 (3 volumes). Com cerca de quarenta autores, que não entregavam as biografias a tempo, ia dando em louca. Foi o trabalho mais custoso da minha vida, mas provavelmente será o único que ficará para a posteridade.
LS: Como tens visto a evolução, o crescimento e percurso das ciências sociais e respetivas instituições, faculdades e centros de investigação?
MFM: Bem, mas com riscos. O principal problema deriva do crescimento, demasiado rápido, alimentado pelos fundos europeus. As instituições que crescem a uma velocidade acelerada correm o risco de perder a personalidade. Ao atribuir às faculdade e aos centros verbas per capita, ou seja, em função do número de alunos, a Europa estimulou a mediocridade. Isto permitiu que entrasse muita gente na universidade que não devia lá estar. O dinheiro, em vez de melhorar as instituições, piorou-as. Mas não quero ser demasiado crítica. O que se passa, em Portugal, é idêntico ao que acontece na maior parte dos países europeus e nos EUA. O mundo, também aqui, está globalizado.
LS: E a questão da interdisciplinaridade ao nível das ciências sociais?
MFM: Gosto de um tipo de ciências sociais que possibilite a mistura entre a história, a sociologia, a economia e a antropologia. O homem é uno, e por isso temos de usar a «imaginação sociológica», para citar o título do famoso livro de C. Wright Mills. A especialização mutila a realidade. Acabo de chegar de Florença, portanto não se admirem que pense em gente como Leonardo da Vinci ou Maquiavel, que se uniram para conceberem um plano, que acabaria por não se concretizar, a construção de um canal que ligasse aquela cidade ao mar. Nem um nem outro se interessavam apenas por quadros ou livros, mas por tudo o que os rodeava. As coisas não poderão ser agora como eram no Renascimento, mas devemos pensar as humanidades como um todo, porque, se não o fizermos, corremos o risco de acabarmos a estudar um canteiro seco. Por exemplo, faz-me impressão que muitos sociólogos, como aliás outros académicos, não leiam ficção. Convencidos de que lhes confere status, há jovens que preferem colar um rótulo na testa. É um erro, pois a especialização precoce faz mal à cabecinha.
Pelo seu percurso académico, o Adérito Sedas Nunes conhecia a bibliografia de várias áreas. Era culto, escrevia bem, e tinha uma capacidade espantosa para analisar a sociedade portuguesa. Um dia, critiquei-o por ele ter deixado de escrever, e ele respondeu-me: «Há uma coisa que a Mena tem de perceber: a criação não se faz só através da escrita, pode igualmente concretizar-se a nível institucional». E adiantou, com orgulho: «Nos últimos anos, dediquei-me a criar esta instituição e não estou arrependido». Embora tenha pena que não tivesse redigido o livro que ele desejava intitular Livres e Iguais estou-lhe grata por nos ter legado o ICS.
LS: E como vês a interdisciplinaridade com as outras ciências, as naturais?
MFM: As pessoas que estudam humanidades deveriam saber mais sobre as ciências exactas. Contra mim, falo. Até já me esqueci da fórmula do oxigénio! É uma vergonha. De certa forma, houve uma inversão. Depois de séculos, em que as ciências exatas eram o paradigma da ciência, por vezes há uma atitude de superioridade por parte das ciências sociais: nós, os da parte "mole" da barricada, desprezamos as ciências exactas. Excetuando a matemática, achamo-las simplórias. Já dei comigo a pensar se a medicina é uma ciência, uma vez que apenas aplica os conhecimentos adquiridos na biologia.
LS: E não achas que essas ciências também têm um desprezo pelas ciências sociais?
MFM: Sim, mas não tanto quanto há um século.
LS: Na actual conjuntura de crise e de restrições orçamentais, verifica-se na Europa uma tendência de diminuição de apoios à investigação na área das ciências sociais?
MFM: Ao contrário do que por vezes se apregoa, a ciência não é (não pode ser!) um instrumento que sirva apenas para o desenvolvimento tecnológico das sociedades. Uma universidade é um centro de saber, não um departamento de um ministério... Ninguém definiu melhor o que é uma universidade do que M. Oakeshott: para ele, a universidade era uma «conversa» entre pares. Não existe qualquer outra justificação para uma universidade a não ser a de aumentar o saber. As universidades não têm que ter um objetivo derivado. É evidente que, ao descobrir-se o DNA, as sociedades retiraram do facto benefícios. Mas isso não significa que as universidades tenham de ajudar os países na competição tecnológica. Talvez seja essa a missão dos politécnicos. Das universidades, não o é certamente. Atenção, não estou a dizer que o Estado não deva financiar o saber, o que estou a dizer é que o saber é um fim em si próprio e não um meio. Sou favorável a que os cursos de humanidades tenham o patrocínio do Estado, mas este não pode nem deve exigir nada em troca. Claro que se pode aproveitar uma ou outra encomenda, mas não demais. Uma instituição que recebe mais de metade do seu orçamento para investigações aplicadas está condenada. Os centros de investigação têm de pensar sobre o que é que vem ligado ao investimento para determinados estudos. É por isso que estou contra alguns dos chamados Observatórios, por estarem demasiado condicionados pelos desejos dos governos.
LS: E o futuro das novas gerações de cientistas sociais portugueses?
MFM: É negro. Há três anos, pela primeira vez na minha vida, dei um 20 a uma aluna; hoje, ela ainda está no desemprego. Por mais cultos, por mais viajados, por mais trabalhadores que sejam, os jovens não arranjam lugar nas universidades portuguesas: não têm onde ensinar, nem conseguem fazer a investigação que desejam. Que futuro têm os jovens que mandámos lá para fora, e bem, a fim de se doutorarem? E isto nem é o pior, porque, a outro nível, houve promessas criminosas. Os executivos deram a entender aos pais que se os filhos se licenciassem teriam um futuro glorioso. Pessoas humildes convenceram-se de ser isto verdade e fizeram sacrifícios impensáveis para mandar os filhos para a universidade. No final, verificaram muitos deles que eles só arranjam emprego, quando arranjam, nos call centers?
LS: Mas sem educação também não se vai a lado nenhum; ela não é sempre fundamental?
MFM: Claro, mas nem sempre pelos motivos invocados. Na altura em que se alargou o numerus clausus teria sido melhor avisar a população de que os estudos são importantes, por si só, mas que não garantem um emprego. A situação é mais grave nas humanidades do que, por exemplo, nas engenharias, porque se é evidente que é preciso reparar as pontes, o mesmo não acontece quando se fala de pôr um jovem a dissertar sobre Cícero.
LS: Qual é a tua avaliação sobre as linhas de força teóricas e empíricas que emergiram nas ciências sociais portuguesas nos últimos anos?
MFM: Não me interessa a conversa sobre linhas de força teóricas. Para mim, a sociologia assemelha-se ao papel de James Stewart no filme de Hitchcock, A Janela Indiscreta. Devemos colocar-nos a uma janela e observarmos o que se passa à nossa volta. Devemos ajustar a nossa máquina intelectual com o zoom necessário para o que pretendemos e sermos persistentes. Gradualmente, isto conduzir-nos-á às questões que se puseram os pais fundadores da sociologia, Marx, Durkheim e Weber. Um sociólogo tem de ter as ideias arrumadas, os olhos abertos e os ouvidos à escuta.
LS: De certo modo, os pais fundadores anteviam uma ruptura social e económica que seria induzida pelo capitalismo, e mantêm-se actuais?
MFM: Mantêm-se. Eles assistiram ao nascimento da Revolução Industrial. Nós estamos a assistir ao seu fim na Europa, mas não no mundo. Veja-se o que está a acontecer na China e na Índia. Assistimos ainda ao fim do comunismo, mas isso não nos impede de nos interrogarmos sobre que tipo de capitalismo estamos a forjar. Porque há muitos: basta olhar a Suécia e a China. O Estado Social é um bem que a Europa foi capaz de criar, mas que tem de ser repensado, porque a estrutura social mudou enormemente desde o final da Segunda Grande Guerra. Não é tanto de um apocalipse que tenho medo, mas sim das tendências populistas que podem surgir dos movimentos de rua. Especialmente se violentos, estes podem levar à emergência de ditadores. Se as pessoas não perceberem para que votam, se não perceberem o motivo das crises que atravessam, se não entendem o que representou a reunificação da Alemanha, corremos o risco de começar a pedir um ?salvador? que nos garanta a estabilidade. A falta de conhecimentos históricos leva a atalhos perigosíssimos.
LS: Sempre fizeste o que quiseste no ICS?
MFM: A minha liberdade foi sempre total. Nunca senti a menor pressão, nem por parte dos colegas, nem do director.
LS: Era um ambiente especial?
MFM: Era uma ilha de excelência. E isto deve-se, como disse, a um homem, Adérito Sedas Nunes. Se calhar, era ele quem tinha razão, quando me dizia que a criação institucional era mais importante do que a escrita. De cada vez que entro neste andar, tenho saudades dele, o que não posso dizer de muitas das pessoas com quem convivi na universidade. Os jovens que hoje estão no ICS não sabem o que custou transformar o frágil GIS numa instituição sólida. Alguma coisa se terá perdido pelo caminho. Mas se hoje há um quadro, um vínculo e orçamentos plurianuais, e se podemos conferir os graus de mestre e de doutor, isso deve-se, em grande medida, ao temperamento do fundador do ICS. Um obsessivo crónico, Adérito Sedas Nunes não parecia interessar-se por mais nada. Os seus anos finais foram difíceis, mas nada pode apagar o facto de me ter deixado, a mim e aos meus colegas, uma instituição de que nos podemos orgulhar. Não é pouco.
Notas
* Com a colaboração de Nuno Gonçalo Monteiro, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais.
(1) Romance da autoria de Manuel Maria Rodrigues (1847-1899).
Entrevista de Luísa Schmidt, revista Análise Social, nº 200, Lisboa (fonte)
Ruth Levitas (2005)
Ruth Levitas é hoje um nome incontornável no campo dos Estudos da Utopia. Doutorada pela Universidade de Sheffield e Professora de Sociologia na Universidade de Bristol, na Grã-Bretanha, Ruth Levitas tem dedicado a sua investigação a duas grandes áreas: a da teoria, definição e história do utopismo (com particular atenção à obra de William Morris), e a do pensamento político e social contemporâneo, centrando-se sobretudo nas implicações políticas da pobreza, da desigualdade e da exclusão social. É autora de livros que se tornaram já uma referência para estas áreas de estudo, como The Concept of Utopia (1990) ou The Inclusive Society? Social Exclusion and New Labour (1998), e é actualmente Presidente da Utopian Studies Society-Europe, Vice-Presidente da William Morris Society e membro da British Sociological Association e da Association of University Teachers.
Nesta entrevista, Ruth Levitas fala-nos do seu trabalho, da sua dedicação à busca de um mundo melhor, do seu desejo de lutar por um espaço de reflexão livre e transformador no mundo universitário, e do seu empenho em incluir a utopia nos gestos mais quotidianos – procurando o azul … e todas as suas combinações possíveis.
Quando despertou o seu interesse pela utopia?
A escultora Barbara Hepworth escreveu uma vez que achava que aquilo que temos a dizer é formado na infância e que, depois, passamos o resto da vida a tentar dizê-lo. Suponho que tenho de culpar os meus pais, que, de maneira diferente, me mostraram persistentemente que o mundo não tem de ser assim, e que é nossa responsabilidade criá-lo de outro modo. Mais particularmente, quando eu tinha dezassete anos, a minha mãe sugeriu que eu lesse News from Nowhere, de William Morris – a mesma edição que ela tinha lido quando era nova, nos anos 30. Penso que este foi um momento decisivo. O texto de Morris começa em Hammersmith, precisamente a zona de Londres onde eu vivia, e onde a minha mãe também vivia quando o leu pela primeira vez. O livro oferecia pois uma visão do meu próprio quotidiano transformado social e espacialmente. News from Nowhere permite-nos experienciar quer os mundos sociais quer os mundos físicos tal como eles foram, são, poderão ser ou poderiam ter sido enquanto copresenças imanentes. Escrevi sobre isto em Morris, Hammersmith and Utopia (2002). Na altura em que li o livro pela primeira vez, Hammersmith, como tantos outros locais, estava a ser destruído pelos planeadores. Refiro-me, em particular, a uma estrada principal que foi construída nas margens do rio, nos anos 50, a que se seguiu a construção de uma passagem elevada nos anos 60. A estrada divide o jardim da casa de Londres de William Morris, Kelmscott House; é aqui que hoje se encontra o quartel-general da Sociedade William Morris, da qual tenho actualmente a honra de ser Vice-Presidente. Mas o poder da escrita de Morris reside nessa capacidade de descrever uma sociedade em que gostaríamos de viver e, ao mesmo tempo, de demonstrar a relação entre os processos sociais, espaciais, ambientais e económicos.
A Sociologia e o Utopismo têm sido duas áreas de investigação privilegiadas no seu trabalho. Em que medida é que a associação entre elas tem sido produtiva?
Há imensas semelhanças entre a sociologia e a utopia – não apenas a insistência no holismo ou o olhar sobre as interligações entre processos, em que Morris era tão bom. Também há uma tensão, uma vez que a sociologia sempre apregoou a sua objetividade, a sua preocupação com o que é, em vez de com o que poderia ser. A utopia, por outro lado, é precisamente sobre o que deveria ser. Claro que a teoria social, num sentido mais alargado, e por oposição à sociologia enquanto disciplina institucionalizada, tem sido menos hostil à normatividade. Grande parte do meu trabalho tem realmente seguido duas tendências: a utópica, na qual apenas alguns sociólogos têm mostrado interesse; e a da análise das políticas contemporâneas como a Nova Direita [New Right] nos anos 80 e o Novo Trabalhismo [New Labour] nos anos 90. Para mim, elas sempre estiveram ligadas: a dimensão utópica informa uma leitura crítica distópica do presente e o debate político em prol da mudança. Portanto, é uma tensão criativa, espero eu.
Mas durante algum tempo, nos anos 70 e 80, era muitas vezes difícil para um sociólogo sustentar a ideia de que a utopia era uma área legítima de trabalho. Como muita gente, eu tenho uma grande dívida para com Lyman Sargent por me ter encorajado a persistir, e duvido que tivesse conseguido acabar de escrever The Concept of Utopia sem esse encorajamento. Nesse livro, tento estabelecer os diferentes modos como o conceito de utopia tem sido usado, e sugerir uma definição analítica mais alargada, que não esteja limitada pela forma, função e conteúdo. O que estou a tentar fazer agora é demonstrar a relação profunda entre sociologia e utopia em termos de método. H. G. Wells dizia, em 1909, que o próprio método da sociologia é a criação e a crítica exaustiva de utopias. Antes disso, escritores pré-disciplinares como Edward Bellamy, William Morris, Charlotte Perkins Gilman (que se apelidava de socióloga) e o próprio Wells não teriam reconhecido a diferença. Espero que numa era cada vez mais pós-disciplinar seja possível reverter a exclusão por parte da sociologia do seu conteúdo utópico necessário. Não prevejo qualquer problema em convencer os utopistas disto, mas se poderei convencer os sociólogos ou não, isso é outra questão.
A segunda edição do seu livro The Inclusive Society? Social Inclusion and New Labour (1998) foi publicada recentemente (com um novo capítulo avaliando os dados do Trabalhismo até 2004). Acredita que a ideia de inclusão social poderá ter um potencial transformativo (e utópico) ou será apenas mera retórica para legitimar as políticas existentes?
A primeira edição de The Inclusive Society é extremamente crítica relativamente ao Trabalhismo embora de facto acabe com a esperança de que a retórica da inclusão possa ser redireccionada para um sentido mais sócio-democrático. Nunca acreditei que isto pudesse acontecer com o partido Trabalhista, cuja política foi recentemente descrita como “Balinice” [Blatcherite]. E parte do argumento da segunda edição é que as políticas para combater a versão de “exclusão social” do governo são elas mesmo repressivas e excludentes nos seus efeitos – especialmente, mas não só, a abordagem ridícula ao “comportamento
anti-social”. Obviamente na Grã-Bretanha, a inclusão é parte de uma retórica política abrangente, entorpecedora e orwelliana. Quando ouço declarações de Blair ou dos “apparatchiks” que formam o governo, apetece-me gritar. Ao nível europeu, há também uma predisposição para pensar a inclusão em termos de mercado de trabalho. Eu acho que isto é errado, ainda que, se pensarmos na exclusão de outro modo, especialmente na exclusão no âmbito das relações sociais, possamos ver que a pobreza é causal, de tal modo que uma direcção dominante da política deva ser a redução da pobreza e da desigualdade. A desigualdade na Grã-Bretanha piorou com Blair, em vez de melhorar. Não estou certa, no entanto, de que o problema da Grã-Bretanha seja universal. Pondo a questão de outro modo, eu diria que o significado de inclusão social é um produto, assim como um constituinte, da cultura política, havendo portanto espaço para a acção positiva se o governo assim o quiser.
Estive recentemente numa sessão de trabalho no Canadá, onde o governo está a trabalhar no sentido de criar um programa de investigação sobre a inclusão social. Fiquei impressionada com o grau de empenho e debate. Fora dos confins da política da União Europeia, e fora da hegemonia britânica neoliberal, é perfeitamente possível ter-se uma discussão séria sobre o que a inclusão pode significar em diferentes contextos políticos e sociais. Por outro lado, nós estamos todos tão sujeitos à hegemonia do crescimento económico e do capitalismo global que a inclusão é sempre limitada por ela. A linguagem da inclusão por si só não vai mudar isto. A questão é sempre quem está incluído em quê, e em que termos.
Mas se houver outras forças transformativas em jogo, a inclusão poderá ser articulada com uma agenda mais igualitária e democrática.
Sugeriu recentemente que a necessidade da utopia está relacionada com uma demanda particular, que condensou nas expressões “procurar o azul” [“looking for the blue”] e “procurar o verde” [“looking for the green”]. Pode falar-nos um pouco mais sobre a natureza dessa demanda?
O termo “procurar o azul” é retirado de uma peça televisiva de Dennis Potter, de 1977, chamada Pennies from Heaven [Cêntimos do Céu]. O protagonista central, Arthur Parker, é um vendedor ambulante que vende pautas de canções populares dos anos 30: Meses e meses tenho trazido estas coisas comigo – estas canções – todas estas lindas canções – eu sempre acreditei nelas. Mas eu não sabia realmente como ou por que é que eu acreditava no que lá estava. Há coisas que são grandes demais ou importantes demais e simples demais para pôr nessa poesia snob, pretensiosa e assim, nos livros e tal – Mas toda a gente as sente… É procurar o azul e o dourado. O padrão do céu azul. O dourado da madrugada, ou da luz nos olhos de alguém – Cêntimos do Céu, é o que é.
[Months and months I’ve been carrying this stuff around - these songs – all these lovely songs – I’ve always believed in ‘em. But I didn’t really know how it was or why it was that I believe in what’s in here. There’s things that are too big and important and too bleedn simple to put into all that lah-di-dah, toffee-nosed poetry and stuff, books and that – but everybody feels ‘em. … It’s looking for the blue, ennit, and the gold. The patch of blue sky. The gold of the bleedin’ dawn, or the light in someone’s eyes - Pennies from Heaven, that’s what it is.] (Humphrey Carpenter, Dennis Potter: the Authorized Biography)
Sirvo-me deste termo para encapsular o tema de Ernst Bloch da falta e do desejo, da origem do impulso utópico, e da busca existencial de uma maneira melhor de ser, assim como a insistência de Bloch na natureza demótica da orientação utópica. Neste sentido, o utopismo está difundido ao longo da nossa cultura declaradamente anti-utópica – mas ele é muitas vezes fragmentário e está geralmente confinado ao que podemos chamar “esfera cultural” da arte, da música, da literatura e da religião. “Procurar o azul” está relacionado com as perguntas com que Bloch inicia o The Principle of Hope [O Princípio da Esperança]: ‘Quem somos nós? De onde vimos? Para onde vamos? De que estamos à espera? O que espera por nós? Ou, se quisermos, é uma demanda (por vezes secularizada) para compreendermos quem somos nós, por que é que estamos aqui, como nos relacionamos uns com os outros, e o que nos faz genuinamente felizes.
“Procurar o verde” é um termo que usei para assinalar a passagem desta demanda do campo da expressão cultural para o campo da organização social e da luta política – portanto, não é bem o mesmo que a passagem da “esperança desejante“ [“wishful thinking”] à “acção plena de desejo” [wish-full action”], embora envolva de facto isso. É antes a passagem do existencial para a questão do tipo de estrutura social que poderá reforçar uma demanda mais bem sucedida e talvez mais inclusiva. E, consequentemente, é também a passagem de uma expressão fragmentária para um holismo social. Claro que isto não é apenas sobre literatura utópica. Na verdade, é sobre os modelos implícitos e explícitos da boa sociedade que permeiam e informam a política contemporânea. Disse “procurar o verde” porque a conceção de um modo de vida compatível com a sustentabilidade ambiental é o desafio político crucial com o qual nos confrontamos neste momento. E não vai ser resolvido exortando as pessoas a reciclar garrafas vazias: serão necessárias grandes mudanças na organização da produção e do consumo, ou no que Marx chamou forças e relações de produção.
Em The Concept of Utopia (1990), já havia chamado a atenção para a dificuldade em se separar o estudo da utopia da demanda da utopia. Neste sentido, como descreveria o seu próprio trabalho? Encara-o como pertencendo mais ao domínio do “estudo desejante” [“wishful study”] ou ao da “ação plena de desejo” [“wish-full action”]?
Embora esta distinção entre a demanda e o estudo da utopia coloque algumas dificuldades, não estou certa de que a queira ultrapassar. Estudar a utopia sem o empenho da procura de um mundo melhor é capaz de levar, primeiro, a maus livros (o Faber Book of Utopia, do John Carey, é um deles), e, em segundo lugar – e mais importante ainda – à falência espiritual. “Estudo desejante” ou “ação plena de desejo”? Não sei… Suponho que o ímpeto de passar da “procura do azul” para a ”procura do verde” seja precisamente o processo da docta spes ou esperança educada que Bloch identificou com a passagem da utopia abstrata para a concreta.
Mas os atos de escrita e de ensino são um tipo de “ação plena de desejo”. Como o é também a tentativa de influenciar a direção da política do Governo, mesmo que de pequenas formas. Por outro lado, devemos ser realistas relativamente ao impacto do trabalho académico, quer na política, quer na cultura política. Muito poucos intelectuais realmente conseguiram mudar alguma coisa, e a maioria dos académicos, incluindo eu própria, não é sequer um intelectual com visibilidade pública. De certo modo, penso que o nosso papel mais importante é o de defender as Universidades como um espaço privilegiado de reflexão, para resistirmos ao utilitarismo do conhecimento ou à ideia de que a investigação precisa de comportar benefícios sociais óbvios e imediatos. Na Grã-Bretanha, pelo menos, a cultura atual é tão anti-intelectual – muitas vezes mesmo dentro das universidades. Portanto, a insistência no facto de isto ser importante também se torna um acto político – ainda que bastante pequeno.
Neste momento é presidente da Utopian Studies Society – Europe, da qual foi também um dos membros fundadores. Como é que surgiu a ideia de criar a USS?
Se bem me lembro, The Utopian Studies Society foi fundada em 1988 num congresso sobre a Utopia organizado pela International Communal Studies Association (penso eu), através do Dennis Hardy, e que teve lugar em Edinburgh e New Lanark (que, na altura, estava menos restaurado do que agora e não providenciava alojamento). The Society for Utopian Studies existia já desde 1975, e organizava um congresso anual na América do Norte. Mas isto foi antes da era (ecologicamente catastrófica) das tarifas aéreas baratas e da comunicação electrónica. Muitos académicos europeus não podiam custear viagens transatlânticas – e parecia absurdo que não tivéssemos uma rede de comunicação que não fosse através da ida à América do Norte. Houve então uma espécie de decisão coletiva, no bar, no sentido de montarmos uma rede. Penso que estava mais embriagada do que os outros, pois concordei com isso. Sei que o Vince Geoghegan estava lá, por isso a culpa foi provavelmente dele.
Olhando para esse momento inicial, 17 anos atrás, considera que a Utopian Studies Society atingiu os seus objetivos?
Estou muito satisfeita com o facto de a USS ter sobrevivido e se ter tornado, em última análise, numa organização genuinamente europeia, embora eu não tenha muita responsabilidade nisso. Não foi um processo perfeito. Durante alguns anos, no final da década de 80 e inícios da década de 90, a USS foi-se arrastando com uma cota pequena e uma newsletter ocasional enviada por mim pelo correio, enfiada em envelopes por adolescentes subornados, porque eu não tinha apoio a nível de secretariado. Organizámos um ou outro congresso, pequeno, com a duração de um dia. E ela foi relançada no final dos anos 90, quando a Lucy Sargisson organizou um congresso mais apropriado em Nottingham, e que se tornou o primeiro dos congressos anuais que actualmente promovemos. Foi formado um comité formal com a Lucy como Secretária, o Jim Arnold (de New Lanark) como Tesoureiro, e a Lorna Davidson (por vezes também Secretária) a fazer a maioria do trabalho a partir de New Lanark (que também já acolheu o congresso anual duas vezes). Fomos ajudados pela evidente emergência de um interesse pela utopia em volta do milénio – a Barbara Goodwin e o Lyman Sargent organizaram um congresso na Universidade de East Anglia, independentemente da USS, precisamente para assinalar este facto. E muitos centros foram criados pela Europa com um enorme trabalho a desenvolver-se em Itália, Portugal e Espanha, e Irlanda, por pessoas como Vita Fortunati, Rafaella Baccolini, Fátima Vieira e Tom Moylan. O marco desta europeização definitiva foi quando em 2003 o Alex-Alban Gómez Coutouly organizou o congresso anual em Madrid, e em 2004 a Fátima e tu, também, organizaram-no no Porto – e, como sabes, vamos agora para Tarragona em 2006, graças ao Pere Gallardo.
Como é que vê o futuro dos estudos da utopia? Haverá ainda outras “cores” (para além do verde e do azul) que valham a pena?
Eu tenho algum receio quanto à direcção dos estudos da utopia. Em todo o caso, talvez eu me preocupe mais com o futuro da Utopia do que com o futuro dos Estudos da Utopia. Mas preocupa-me o facto de, apesar de o campo ser relativamente forte em termos de estudos de ficção utópica, não o ser tanto em termos de teoria política e social. Pessoalmente, gostaria de ver ser posta mais ênfase no pensamento político e um maior empenho na atividade política. Caso contrário, há o perigo de os estudos da utopia se tornarem mais uma área de academismo, em vez de ser um questionamento e um compromisso intelectual arriscado, criativo e transformador. Há alguma pressão junto dos mais novos para desenvolverem um trabalho académico sem controvérsia, e as pessoas têm carreiras a construir. Por isso também penso que temos de defender as Universidades como espaços de debate intelectual, e não apenas académico. E, mais uma vez, penso que o estudo da utopia sem dedicação à utopia (ou pelo menos à crítica e à transformação que ela pressupõe) é estéril.
A questão das outras cores está relacionada com esta. Continuo uma socialista empenhada, por isso o verde tem de ser acompanhado com o vermelho, e por muito que esteja empenhada em procurar o azul, oponho-me a ela enquanto cor política. O que o socialismo pode significar, como pode ser possível, e como se relaciona com o verde, é uma questão complicada. Pode ser até que o termo socialismo seja em si de pouca ajuda. Mas, como William Morris dizia, Os Homens lutam e perdem a batalha, e aquilo por que lutaram acaba por despontar, apesar da derrota deles, e quando surge já não é o que eles pretendiam, e outros homens têm de lutar pelo que eles pretendiam sob um nome diferente.
[Men fight and lose the battle, and what they fought for comes about in spite of their defeat, and when it comes turns out to be not what they meant, and other men have to fight for what they meant under a different name.] (William Morris, A Dream of John Ball)
Entrevista de Marinela Freitas, Projecto “Utopias Literárias e Pensamento Utópico: a Cultura Portuguesa e a Tradição Intelectual do Ocidente “ Faculdade de Letras da Universidade do Porto. "Procurando O Azul – Entrevista a Ruth Levitas", E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 4 (2005). (link)
Lawrence Grossberg (2008)
Figura de relevo incontornável na área dos cultural studies norte-americanos, Lawrence Grossberg traçou um percurso notável ao longo das últimas décadas. Estudou em Inglaterra sob supervisão de Stuart Hall no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham, no início dos anos 70, e concluiu depois um doutoramento em Comunicação, com a orientação de James Carey, na Universidade de Illinois. O trabalho de investigação que desenvolveu nas décadas de 80 e 90 resultou no reconhecimento da música popular e da cultura jovem como legítimos objectos de estudo académico. Hoje, admite que a música já não é a mesma e que os seus interesses se deslocaram maioritariamente para as áreas da economia e da política. Afinal, argumenta, os cultural studies sempre acreditaram na importância das ideias e na sua possibilidade de mudar o mundo.
Ao longo do seu percurso nos cultural studies, procurou de diversas formas enfatizar a ideia de que estes deveriam assumir-se como um projecto que visa contar uma história acerca do mundo que nos rodeia e, a partir daí, abrir a porta a todas as possibilidades de mudança. Nesse sentido, de que forma olha hoje para o mundo que o rodeia?
Quer as pessoas estejam ou não dispostas a acreditar nisso, parece-me que se trata, ainda que num sentido algo peculiar, de um dado optimista o facto de as pessoas estarem hoje muito insatisfeitas. É comum as pessoas pensarem que não têm grande poder para efectuar mudanças reais no mundo; creio
que poderemos mesmo falar de uma maleita generalizada que se manifesta actualmente numa variedade de niilismos, cepticismos e apatia. Muitas das políticas que hoje observamos debruçam-se sobre um único assunto e não se preocupam em perceber as suas muitas implicações noutras áreas, o que também não tem dado bons resultados. Penso que a atmosfera dominante nos Estados Unidos, e um pouco por todo o mundo, se baseia nesse sentimento de que as pessoas não estão contentes com o mundo tal como ele está. E isso demonstra abertura, constitui-se como uma possibilidade, porque se as pessoas não estão satisfeitas, mesmo que não acreditem na sua capacidade de mudar as coisas, ainda assim podem começar a partir daí, dessa insatisfação, e agir no sentido de passarem a perceber que podem mudar algo, que podem construir um mundo melhor, diferente. Temos sempre de partir desse ponto onde as pessoas se encontram; não podemos mais dar-nos ao luxo de fingir que o mundo se encontra à espera da chegada de um grande líder que vai fazer a revolução, nem podemos sequer pensar que essa revolução é inevitável, que vai chegar por si só – não, temos de partir deste ponto real em que nos encontramos agora, percebendo, como a Direita fez, e muito bem, que as pessoas estão insatisfeitas e sentem que o mundo não é aquilo que deveria ser. E isso é uma abertura, uma grande abertura para a política.
Não acredita, portanto, na ideia da revolução...
Não, mas acredito na mudança, em qualquer tipo de mudança. O mundo está sempre a mudar, e as estratégias que desenvolvemos para lidar com essa mudança dependem sempre da nossa análise daquilo que o mundo é. Perceber aquilo que se passa hoje tem sempre de preceder qualquer estratégia que possamos conceber para mudar aquilo que se passa, e esse é um dos problemas com que nos deparamos agora, porque a Esquerda concebeu toda uma série de estratégias para mudar o mundo, mas parece não perceber aquilo que se passa hoje no mundo, e por isso essas estratégias têm vindo a falhar sistematicamente.
Posso conceber, em teoria, uma análise que leve ao caminho da revolução, mas acredito que revoluções violentas muito dificilmente poderão ser bem-sucedidas ou conquistar os objectivos que desejariam. Descrever a América, da forma como alguns elementos da Esquerda o fazem, como um país fascista, parece-me dar a ideia de que a única resposta possível para alterar essa realidade
seria uma revolução violenta. É certo que existem elementos de fascismo presentes hoje nos Estados Unidos, como em muitas outras partes do mundo, mas não me parece que essa descrição tão linear da América apresente qualquer tipo de estratégia viável para efectuar mudanças. Dificilmente apoiaria
essa ideia de uma revolução violenta, nem consigo imaginar o que ela significaria para os Estados Unidos hoje ou de que forma poderia ser bem-sucedida. Nos anos 60, Ronald Reagan chegou a falar em lançar bombas em Berkeley. Acha que hesitariam hoje em lançar bombas em Nova Iorque se soubessem que aí se estava a tentar fazer uma revolução? Não sei, acho que não.
Para efectuar essa mudança de que fala, será necessário, por um lado, acreditar que se tem o poder de a concretizar e, por outro, possuir a vontade, a paixão necessária para assumir esse compromisso. Parece-lhe que ambos os factores têm estado presentes desde sempre no percurso dos cultural studies?
É interessante, porque um dos meus principais argumentos, na altura em que me dedicava ao estudo do rock’n’roll, era que este raramente é político num sentido linear, mas aquilo que faz é criar as paixões que podem ser mobilizadas e articuladas com determinadas posições políticas em dados momentos. O rock, no fundo, criava as condições de possibilidade para que as pessoas se envolvessem em actividades políticas, precisamente porque organizava as suas paixões e permitia relacioná-las com determinados valores e determinadas práticas. O problema reside em como fazer essa articulação, como conseguir que as paixões das pessoas se venham a relacionar com lutas e estratégias políticas viáveis. Acredito que os jovens da América de hoje querem mudar o mundo, mas também me parece que não sabem como e acho que a responsabilidade é nossa por não lhes termos dado melhores ideias e melhores ferramentas para o fazerem. Precisamos de uma história melhor...
Politicamente, o seu discurso posiciona-se sempre do lado da Esquerda, tal como o de grande parte dos cultural studies. Vê algum motivo em particular para esta ligação?
Bem, infelizmente, parece-me que, em tempos recentes, grande parte dos melhores cultural studies que têm sido feitos na América vêm da Direita... É um facto que grande parte do trabalho académico dos cultural studies tem surgido da Esquerda, mas isso não quer dizer que tenha necessariamente que ser assim, até porque tem surgido de várias Esquerdas diferentes, com políticas e projectos diferentes. Não penso que seja uma inevitabilidade que os cultural studies tenham de estar ligados à Esquerda, nem penso que a história que contamos possa garantir as políticas que desejamos. Às vezes, o desejo de contar uma história melhor até pode beneficiar a Direita. Se procurarmos, por exemplo, as fundações de base de alguns dos grandes pensadores da Direita americana e verificarmos as bibliografias que eles citam, eles também leram Gramsci, e Hall, e Foucault. Muitos podem até achar que o conceito da luta hegemónica será aquele que melhor descreve o que estão a tentar fazer. Não
há nada em Gramsci que garanta, à partida, que se tratará de um projecto marxista. No entanto, Gramsci é sem dúvida uma ferramenta muito útil na sua descrição do contexto da Itália fascista, será até provavelmente a melhor história contada sobre aquele período e, com ela, abriu possibilidades quer para a Direita quer para a Esquerda. Por isso, não há garantias, à partida.
Actualmente, celebra-se na Europa o Ano do Diálogo Intercultural. Dado o seu actual posicionamento na área da cultura e da política, parece-lhe que este diálogo tem sido produtivo?
Confesso, para começar, que tenho alguma dificuldade em perceber sequer o que possa ser esse diálogo intercultural. Sou um grande crente na importância da conversação, mas não acredito muito que a conversação inevitavelmente resolva diferenças. Houve um momento na teoria da comunicação, e provavelmente essa ideia ainda existe em muita da teoria intercultural hoje produzida, em que se acreditava que se as pessoas se compreendessem melhor através da comunicação, todos os seus problemas desapareceriam. Eu, pelo contrário, acredito que se as pessoas se entenderem muito melhor, o mais certo é acabarem por se matar umas às outras muito mais rapidamente. Por isso, tenho alguma dificuldade em perceber o que se propõe alcançar esse diálogo
intercultural. Penso, no entanto, que o maior problema da União Europeia é, de facto, um problema cultural. É possível unificar sistemas económicos, até é possível tentar uma abordagem à unificação de estruturas políticas, como a União está agora a fazer, mas é muito mais difícil perceber como é que irão tentar unificar a cultura na Europa.
Será isso, de todo, possível?
Bem, seria possível argumentar que algumas partes da Europa têm pelo menos alguns princípios em comum, nomeadamente o Iluminismo, o Cristianismo, algumas visões sobre o liberalismo, etc. Se isso será ou não suficiente para ultrapassar as diferenças culturais que existem, já é outra questão. Um dos fenómenos mais interessantes da globalização é que, apesar de todas as pretensões de que esta estaria a provocar o enfraquecimento dos Estados-Nação, na verdade só o está a fazer em determinados aspectos, porque noutros está antes a fortalecê-los e a fazer crescer um certo sentido de identidade nacional e a aumentar a importância das estruturas de pertença em termos de nacionalidade e etnia. Não sei se os Franceses, os Alemães e os Ingleses alguma vez irão concordar com sistemas de aculturação ou noções do que deve ser a educação, noções de valor cultural, ou encontrar sistemas de tradução de valores culturais... Isso parece-me ser uma tarefa muitíssimo difícil. Mas pode acontecer, se estiver correcto o meu argumento sobre as alterações no papel da cultura e a tendência para a sua relevância diminuir face ao papel da economia, que isso venha a ter muito menos importância do que parece ter hoje.
Em que sentido lhe parece, então, que se deverão dirigir as actuais preocupações com o diálogo intercultural, o choque de civilizações e as questões da identidade e da diferença?
Acho que essa questão terá menos a ver com o diálogo intercultural e mais com as contradições inerentes do liberalismo, enquanto definição da modernidade. A contradição do liberalismo é uma contradição entre a individualidade, enquanto espaço de liberdade, e a comunidade, enquanto espaço
de identidade. A modernidade europeia sempre foi uma negociação precária entre o individualismo liberal e uma versão de comunitarismo, como lhe chamariam os teóricos políticos. Independentemente de esse comunitarismo ser definido por uma identidade racial, ou étnica, ou nacional, é um facto que as identidades não se têm constituído em termos individuais, mas sim em termos colectivos. No entanto, os direitos pertencem ao indivíduo – esta foi a base do grande desafio dos anos 60. No liberalismo europeu, os direitos são inerentes ao indivíduo enquanto cidadão. No entanto, houve grupos que começaram a exigir os seus próprios direitos enquanto grupo, e o liberalismo não tem forma de lidar com isso. Muitos teóricos políticos, como o Paul Gilroy ou mesmo o Stuart Hall em alguns dos seus textos mais recentes, têm tentado abordar esta problemática. Não sei qual será a solução, e esta poderá mesmo não estar disponível dentro dos termos da modernidade europeia. Esse poderá ser um dos motivos da pressão que nos tem empurrado para este modo de transição em que nos encontramos hoje, o facto de a modernidade europeia não ter uma resposta, um modo de reconciliar esses domínios. É uma contradição estrutural da modernidade europeia que se tem tornado cada vez mais difícil de negociar.
Neste contexto, e reconhecendo que em Portugal o caminho académico percorrido nessa área é ainda muito curto, será este um bom momento para o desenvolvimento e a prática dos cultural studies?
Recordando Charles Dickens, poderia dizer que «these are the worst of times, the best of times...». Acredito que este é um óptimo momento para se trabalhar na área dos cultural studies. É um momento assustador, aterrador até, para se viver neste mundo, mas talvez não tão aterrador quanto ter de passar pela Peste Negra. O mundo está em mudança, de muitas formas que não compreendemos,
para as quais não temos um vocabulário conceptual adequado que nos permita descrevê-las, e para as quais não temos uma visão política que nos permita resolvê-las. Parece-me que o mundo nos coloca, nos impõe mesmo, um conjunto de questões importantíssimas, que nós, intelectuais, temos de abordar, se não através dos cultural studies, pelo menos com algum tipo de abordagem interdisciplinar que permita observar as relações e os contextos. Acho que este é um momento óptimo para se estar nesta área, porque o mundo é tão interessante, e existe uma necessidade tão grande deste tipo de pesquisa. Não deixa, no entanto, de ser um momento difícil, sobretudo devido àquilo que se passa hoje nas universidades. Todas as pressões que são actualmente exercidas sobre as universidades estão a empurrá-las numa direcção em que este tipo de trabalho se torna... não diria impossível, porque em muitos sentidos é hoje mais fácil do que era há quarenta anos desenvolver trabalho interdisciplinar, mas, apesar disso, dificulta muito a nossa situação, porque há um mercado de trabalho diminuto, há pressões sobre as universidades para que encontrem fundos externos para suportar as suas pesquisas e não há muitas corporações dispostas a investir nos cultural studies. Não deixo de pensar que se conseguisse uma hora com alguém como o Steve Jobs [CEO da Apple] até era capaz de o convencer a investir neste tipo de pesquisa. Institucionalmente, este é de facto um momento difícil, e parece-me que estamos a atingir os limites. Até onde poderemos pressionar a universidade contemporânea para permitir a pesquisa crítica interdisciplinar que os cultural studies
requerem? As próprias disciplinas parecem estar a recuar, assistimos a um revivalismo das posições críticas em torno deste tipo de projectos interdisciplinares; as administrações parecem recuar e negar o seu apoio, a não ser que se consigam fundos externos; os estudantes começam também a recuar, porque não vêem onde isto os possa levar... Institucionalmente é um momento difícil, mas em termos sociais, ou históricos, é o melhor dos momentos para se fazer cultural studies.
O seu percurso levou-o a experimentar a realidade dos cultural studies britânicos e americanos. Diria que existem muitas diferenças entre ambos?
Diria mesmo que são muito diferentes e têm muito pouco em comum. Aquilo que me parece mais difícil de perceber para os europeus é o quão grande é o sistema universitário norte-americano. A quantidade de universidades que temos, a quantidade de professores que temos... temos mais universidades só na cidade de Nova Iorque do que aquelas que vocês provavelmente têm em Portugal. É um sistema gigantesco e por isso é muito difícil ter algum sentido de controlo sobre os cultural studies ou sobre qualquer outro discurso.
O que temos são grandes disciplinas, como a literatura, por exemplo. Quando o New York Times escreve sobre cultural studies, escreve basicamente sobre a MLA [Modern Language Association] e fala com as pessoas dessa associação, que afirmam fazer cultural studies. No entanto, a maioria dessas pessoas não sabe rigorosamente nada sobre a tradição de Birmingham, nem nunca ouviram falar de mim... O que eles entendem por cultural studies tem muito pouco a ver com aquilo que eu entendo serem os cultural studies, mas porque são uma organização muito poderosa, num certo sentido eles têm mais controlo sobre o discurso dos cultural studies do que eu. A verdade é que os
cultural studies nos Estados Unidos são extraordinariamente diversificados, e aquilo que as pessoas pensam que são os cultural studies é algo tão vago e disperso que seria muito difícil identificá-lo com precisão. Tenho uma rede de pessoas que estão mais de acordo com a visão que eu tenho dos cultural
studies e isso inclui indivíduos da área da literatura ou da antropologia, por exemplo. Ao mesmo tempo, há muitos antropólogos que abordam os cultural studies mas que nada têm em comum comigo, que não os concebem como interdisciplinares, nem necessariamente políticos... nesse caso, nem sei muito bem o que pensarão que são os cultural studies. Muitas vezes, dizem-me que sou mais conhecido fora da América do que propriamente na América; na Europa posso ser apresentado como um dos protagonistas dos cultural studies norte-americanos, mas no meu país nunca me apresentariam dessa forma, até porque a maioria das pessoas nunca ouviu falar de mim. Em Inglaterra, como se trata de uma dimensão muito menor, quer enquanto nação quer como meio
académico, é diferente. Há um sentido de identidade que persiste, as pessoas conhecem a origem dos cultural studies, sabem que tudo começou em Birmingham, reconhecem a importância do Goldsmiths College e sabem quem são as figuras mais relevantes do meio. Em muitos aspectos, tenho muito mais
a ver com essas pessoas do que com o meio americano.
Surpreendeu-o o encerramento do CCCS em Birmingham?
Devo confessar que os meus sentimentos em relação à situação foram um pouco contraditórios. Fiquei desiludido, claro, e também escrevi uma carta opondo-me ao encerramento, mas acho que é necessário ser realista e perceber aquilo que se pode ou não manter. Fiquei surpreendido por ter sido encerrado, porque mantinha a reputação de ser um local de ensino de qualidade excepcional, que os alunos adoravam. Tinha imensos alunos, excelentes professores, grandes programas, e é algo estranho para uma universidade encerrar uma das suas unidades de ensino mais bem sucedidas. Mas seria possível sustentar que, na altura em que fechou portas, era ainda um dos principais centros de investigação dos cultural studies no mundo? Não, certamente que não. As instituições têm as suas histórias, e no ponto em que esta estava seria difícil argumentar que se iria fechar um importantíssimo espaço de investigação dos cultural studies em Inglaterra. Fechou-se um bom departamento de pesquisa e um grande departamento de ensino, e no fundo fiquei mais surpreendido pelo encerramento da componente de ensino. De resto, aquilo já não era o CCCS. Mesmo assim, lamento, acho que foi uma má decisão, que ilustra bem as filosofias erradas que têm conduzido a administração do ensino superior no mundo ocidental. Mas, como tudo o resto, é complexo.
A verdade é que Birmingham sempre detestou o CCCS, nunca apreciou o seu verdadeiro valor, fez mesmo questão de o pôr o mais longe possível do centro do campus universitário, num espaço frio e isolado que ninguém queria – a universidade nunca se preocupou com o CCCS nem com os cultural studies, e sempre tratou francamente mal o Stuart Hall. Nesse sentido, acho que fiquei tão surpreendido com o facto de terem permitido ao CCCS manter-se durante todos aqueles anos como fiquei depois quando o encerraram.
Uma parte considerável da sua carreira foi dedicada à investigação da música rock e da cultura jovem, embora em tempos recentes tenha abandonado essa área. Como perspectiva esse campo actualmente?
Acho que hoje se faz música rock tão boa como sempre se fez. O meu período favorito na história do rock até hoje é aquele que vai de 1976 a 1985, a época do punk e do pós-punk. Mas hoje também se faz muito boa música, diversificada, apaixonante, adoro a música que se faz, e ouço-a a toda a hora. Metade da música que tenho no meu iPod é contemporânea, não ouço oldies a não ser aqueles que foram feitos nesse período do punk e da new wave. Por outro lado, embora adore a música e a ouça a toda a hora, já não consigo compreender a cultura. Ao longo do meu trabalho na área da música, sempre descrevi aquilo que entendia como rock formations, e parece-me que essa já não é uma descrição adequada ao mundo de hoje para a cultura jovem. Muitas das ideias que eu sustentava, nomeadamente em relação ao facto de o rock funcionar em termos afectivos, considero que ainda poderão ser úteis, mas a minha descrição da forma como a música rock opera em relação ao contexto mais alargado já não é válida, por isso, caso quisesse continuar a trabalhar nessa área – e foi por isso que deixei de o fazer – teria de recomeçar tudo do zero. Escrevi um ensaio, intitulado «Reflections of a Disappointed Popular Music Scholar», onde afirmei que não iria mais escrever sobre música rock e iria desistir da área da música popular, porque entendia que poucos avanços haviam sido feitos nessa
área, porque me parecia ética e moralmente irresponsável não tentar perceber a forma como os jovens estavam a ser tratados, mas sobretudo porque me parecia inevitável reconhecer que o contexto havia mudado. Os discursos que se têm usado para escrever sobre a música rock são os mesmos desde os anos 60, mas o contexto mudou, e não estamos a olhar verdadeiramente para as implicações que essa mudança traz. Os jovens têm hoje uma relação muito diferente com a música, a música funciona de forma diferente para eles, e é necessário perceber essa diferença. Eu desisti; continuo a ouvir a música, mas já não escrevo sobre o assunto, a minha carreira seguiu um novo rumo, menos ligado à cultura jovem e mais à política.
Entrevista de Sónia Pereira, Mestranda em Estudos de Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, in Comunicação & Cultura, n.º 6, 2008, pp. 205-213
Ao longo do seu percurso nos cultural studies, procurou de diversas formas enfatizar a ideia de que estes deveriam assumir-se como um projecto que visa contar uma história acerca do mundo que nos rodeia e, a partir daí, abrir a porta a todas as possibilidades de mudança. Nesse sentido, de que forma olha hoje para o mundo que o rodeia?
Quer as pessoas estejam ou não dispostas a acreditar nisso, parece-me que se trata, ainda que num sentido algo peculiar, de um dado optimista o facto de as pessoas estarem hoje muito insatisfeitas. É comum as pessoas pensarem que não têm grande poder para efectuar mudanças reais no mundo; creio
que poderemos mesmo falar de uma maleita generalizada que se manifesta actualmente numa variedade de niilismos, cepticismos e apatia. Muitas das políticas que hoje observamos debruçam-se sobre um único assunto e não se preocupam em perceber as suas muitas implicações noutras áreas, o que também não tem dado bons resultados. Penso que a atmosfera dominante nos Estados Unidos, e um pouco por todo o mundo, se baseia nesse sentimento de que as pessoas não estão contentes com o mundo tal como ele está. E isso demonstra abertura, constitui-se como uma possibilidade, porque se as pessoas não estão satisfeitas, mesmo que não acreditem na sua capacidade de mudar as coisas, ainda assim podem começar a partir daí, dessa insatisfação, e agir no sentido de passarem a perceber que podem mudar algo, que podem construir um mundo melhor, diferente. Temos sempre de partir desse ponto onde as pessoas se encontram; não podemos mais dar-nos ao luxo de fingir que o mundo se encontra à espera da chegada de um grande líder que vai fazer a revolução, nem podemos sequer pensar que essa revolução é inevitável, que vai chegar por si só – não, temos de partir deste ponto real em que nos encontramos agora, percebendo, como a Direita fez, e muito bem, que as pessoas estão insatisfeitas e sentem que o mundo não é aquilo que deveria ser. E isso é uma abertura, uma grande abertura para a política.
Não acredita, portanto, na ideia da revolução...
Não, mas acredito na mudança, em qualquer tipo de mudança. O mundo está sempre a mudar, e as estratégias que desenvolvemos para lidar com essa mudança dependem sempre da nossa análise daquilo que o mundo é. Perceber aquilo que se passa hoje tem sempre de preceder qualquer estratégia que possamos conceber para mudar aquilo que se passa, e esse é um dos problemas com que nos deparamos agora, porque a Esquerda concebeu toda uma série de estratégias para mudar o mundo, mas parece não perceber aquilo que se passa hoje no mundo, e por isso essas estratégias têm vindo a falhar sistematicamente.
Posso conceber, em teoria, uma análise que leve ao caminho da revolução, mas acredito que revoluções violentas muito dificilmente poderão ser bem-sucedidas ou conquistar os objectivos que desejariam. Descrever a América, da forma como alguns elementos da Esquerda o fazem, como um país fascista, parece-me dar a ideia de que a única resposta possível para alterar essa realidade
seria uma revolução violenta. É certo que existem elementos de fascismo presentes hoje nos Estados Unidos, como em muitas outras partes do mundo, mas não me parece que essa descrição tão linear da América apresente qualquer tipo de estratégia viável para efectuar mudanças. Dificilmente apoiaria
essa ideia de uma revolução violenta, nem consigo imaginar o que ela significaria para os Estados Unidos hoje ou de que forma poderia ser bem-sucedida. Nos anos 60, Ronald Reagan chegou a falar em lançar bombas em Berkeley. Acha que hesitariam hoje em lançar bombas em Nova Iorque se soubessem que aí se estava a tentar fazer uma revolução? Não sei, acho que não.
Para efectuar essa mudança de que fala, será necessário, por um lado, acreditar que se tem o poder de a concretizar e, por outro, possuir a vontade, a paixão necessária para assumir esse compromisso. Parece-lhe que ambos os factores têm estado presentes desde sempre no percurso dos cultural studies?
É interessante, porque um dos meus principais argumentos, na altura em que me dedicava ao estudo do rock’n’roll, era que este raramente é político num sentido linear, mas aquilo que faz é criar as paixões que podem ser mobilizadas e articuladas com determinadas posições políticas em dados momentos. O rock, no fundo, criava as condições de possibilidade para que as pessoas se envolvessem em actividades políticas, precisamente porque organizava as suas paixões e permitia relacioná-las com determinados valores e determinadas práticas. O problema reside em como fazer essa articulação, como conseguir que as paixões das pessoas se venham a relacionar com lutas e estratégias políticas viáveis. Acredito que os jovens da América de hoje querem mudar o mundo, mas também me parece que não sabem como e acho que a responsabilidade é nossa por não lhes termos dado melhores ideias e melhores ferramentas para o fazerem. Precisamos de uma história melhor...
Politicamente, o seu discurso posiciona-se sempre do lado da Esquerda, tal como o de grande parte dos cultural studies. Vê algum motivo em particular para esta ligação?
Bem, infelizmente, parece-me que, em tempos recentes, grande parte dos melhores cultural studies que têm sido feitos na América vêm da Direita... É um facto que grande parte do trabalho académico dos cultural studies tem surgido da Esquerda, mas isso não quer dizer que tenha necessariamente que ser assim, até porque tem surgido de várias Esquerdas diferentes, com políticas e projectos diferentes. Não penso que seja uma inevitabilidade que os cultural studies tenham de estar ligados à Esquerda, nem penso que a história que contamos possa garantir as políticas que desejamos. Às vezes, o desejo de contar uma história melhor até pode beneficiar a Direita. Se procurarmos, por exemplo, as fundações de base de alguns dos grandes pensadores da Direita americana e verificarmos as bibliografias que eles citam, eles também leram Gramsci, e Hall, e Foucault. Muitos podem até achar que o conceito da luta hegemónica será aquele que melhor descreve o que estão a tentar fazer. Não
há nada em Gramsci que garanta, à partida, que se tratará de um projecto marxista. No entanto, Gramsci é sem dúvida uma ferramenta muito útil na sua descrição do contexto da Itália fascista, será até provavelmente a melhor história contada sobre aquele período e, com ela, abriu possibilidades quer para a Direita quer para a Esquerda. Por isso, não há garantias, à partida.
Actualmente, celebra-se na Europa o Ano do Diálogo Intercultural. Dado o seu actual posicionamento na área da cultura e da política, parece-lhe que este diálogo tem sido produtivo?
Confesso, para começar, que tenho alguma dificuldade em perceber sequer o que possa ser esse diálogo intercultural. Sou um grande crente na importância da conversação, mas não acredito muito que a conversação inevitavelmente resolva diferenças. Houve um momento na teoria da comunicação, e provavelmente essa ideia ainda existe em muita da teoria intercultural hoje produzida, em que se acreditava que se as pessoas se compreendessem melhor através da comunicação, todos os seus problemas desapareceriam. Eu, pelo contrário, acredito que se as pessoas se entenderem muito melhor, o mais certo é acabarem por se matar umas às outras muito mais rapidamente. Por isso, tenho alguma dificuldade em perceber o que se propõe alcançar esse diálogo
intercultural. Penso, no entanto, que o maior problema da União Europeia é, de facto, um problema cultural. É possível unificar sistemas económicos, até é possível tentar uma abordagem à unificação de estruturas políticas, como a União está agora a fazer, mas é muito mais difícil perceber como é que irão tentar unificar a cultura na Europa.
Será isso, de todo, possível?
Bem, seria possível argumentar que algumas partes da Europa têm pelo menos alguns princípios em comum, nomeadamente o Iluminismo, o Cristianismo, algumas visões sobre o liberalismo, etc. Se isso será ou não suficiente para ultrapassar as diferenças culturais que existem, já é outra questão. Um dos fenómenos mais interessantes da globalização é que, apesar de todas as pretensões de que esta estaria a provocar o enfraquecimento dos Estados-Nação, na verdade só o está a fazer em determinados aspectos, porque noutros está antes a fortalecê-los e a fazer crescer um certo sentido de identidade nacional e a aumentar a importância das estruturas de pertença em termos de nacionalidade e etnia. Não sei se os Franceses, os Alemães e os Ingleses alguma vez irão concordar com sistemas de aculturação ou noções do que deve ser a educação, noções de valor cultural, ou encontrar sistemas de tradução de valores culturais... Isso parece-me ser uma tarefa muitíssimo difícil. Mas pode acontecer, se estiver correcto o meu argumento sobre as alterações no papel da cultura e a tendência para a sua relevância diminuir face ao papel da economia, que isso venha a ter muito menos importância do que parece ter hoje.
Em que sentido lhe parece, então, que se deverão dirigir as actuais preocupações com o diálogo intercultural, o choque de civilizações e as questões da identidade e da diferença?
Acho que essa questão terá menos a ver com o diálogo intercultural e mais com as contradições inerentes do liberalismo, enquanto definição da modernidade. A contradição do liberalismo é uma contradição entre a individualidade, enquanto espaço de liberdade, e a comunidade, enquanto espaço
de identidade. A modernidade europeia sempre foi uma negociação precária entre o individualismo liberal e uma versão de comunitarismo, como lhe chamariam os teóricos políticos. Independentemente de esse comunitarismo ser definido por uma identidade racial, ou étnica, ou nacional, é um facto que as identidades não se têm constituído em termos individuais, mas sim em termos colectivos. No entanto, os direitos pertencem ao indivíduo – esta foi a base do grande desafio dos anos 60. No liberalismo europeu, os direitos são inerentes ao indivíduo enquanto cidadão. No entanto, houve grupos que começaram a exigir os seus próprios direitos enquanto grupo, e o liberalismo não tem forma de lidar com isso. Muitos teóricos políticos, como o Paul Gilroy ou mesmo o Stuart Hall em alguns dos seus textos mais recentes, têm tentado abordar esta problemática. Não sei qual será a solução, e esta poderá mesmo não estar disponível dentro dos termos da modernidade europeia. Esse poderá ser um dos motivos da pressão que nos tem empurrado para este modo de transição em que nos encontramos hoje, o facto de a modernidade europeia não ter uma resposta, um modo de reconciliar esses domínios. É uma contradição estrutural da modernidade europeia que se tem tornado cada vez mais difícil de negociar.
Neste contexto, e reconhecendo que em Portugal o caminho académico percorrido nessa área é ainda muito curto, será este um bom momento para o desenvolvimento e a prática dos cultural studies?
Recordando Charles Dickens, poderia dizer que «these are the worst of times, the best of times...». Acredito que este é um óptimo momento para se trabalhar na área dos cultural studies. É um momento assustador, aterrador até, para se viver neste mundo, mas talvez não tão aterrador quanto ter de passar pela Peste Negra. O mundo está em mudança, de muitas formas que não compreendemos,
para as quais não temos um vocabulário conceptual adequado que nos permita descrevê-las, e para as quais não temos uma visão política que nos permita resolvê-las. Parece-me que o mundo nos coloca, nos impõe mesmo, um conjunto de questões importantíssimas, que nós, intelectuais, temos de abordar, se não através dos cultural studies, pelo menos com algum tipo de abordagem interdisciplinar que permita observar as relações e os contextos. Acho que este é um momento óptimo para se estar nesta área, porque o mundo é tão interessante, e existe uma necessidade tão grande deste tipo de pesquisa. Não deixa, no entanto, de ser um momento difícil, sobretudo devido àquilo que se passa hoje nas universidades. Todas as pressões que são actualmente exercidas sobre as universidades estão a empurrá-las numa direcção em que este tipo de trabalho se torna... não diria impossível, porque em muitos sentidos é hoje mais fácil do que era há quarenta anos desenvolver trabalho interdisciplinar, mas, apesar disso, dificulta muito a nossa situação, porque há um mercado de trabalho diminuto, há pressões sobre as universidades para que encontrem fundos externos para suportar as suas pesquisas e não há muitas corporações dispostas a investir nos cultural studies. Não deixo de pensar que se conseguisse uma hora com alguém como o Steve Jobs [CEO da Apple] até era capaz de o convencer a investir neste tipo de pesquisa. Institucionalmente, este é de facto um momento difícil, e parece-me que estamos a atingir os limites. Até onde poderemos pressionar a universidade contemporânea para permitir a pesquisa crítica interdisciplinar que os cultural studies
requerem? As próprias disciplinas parecem estar a recuar, assistimos a um revivalismo das posições críticas em torno deste tipo de projectos interdisciplinares; as administrações parecem recuar e negar o seu apoio, a não ser que se consigam fundos externos; os estudantes começam também a recuar, porque não vêem onde isto os possa levar... Institucionalmente é um momento difícil, mas em termos sociais, ou históricos, é o melhor dos momentos para se fazer cultural studies.
O seu percurso levou-o a experimentar a realidade dos cultural studies britânicos e americanos. Diria que existem muitas diferenças entre ambos?
Diria mesmo que são muito diferentes e têm muito pouco em comum. Aquilo que me parece mais difícil de perceber para os europeus é o quão grande é o sistema universitário norte-americano. A quantidade de universidades que temos, a quantidade de professores que temos... temos mais universidades só na cidade de Nova Iorque do que aquelas que vocês provavelmente têm em Portugal. É um sistema gigantesco e por isso é muito difícil ter algum sentido de controlo sobre os cultural studies ou sobre qualquer outro discurso.
O que temos são grandes disciplinas, como a literatura, por exemplo. Quando o New York Times escreve sobre cultural studies, escreve basicamente sobre a MLA [Modern Language Association] e fala com as pessoas dessa associação, que afirmam fazer cultural studies. No entanto, a maioria dessas pessoas não sabe rigorosamente nada sobre a tradição de Birmingham, nem nunca ouviram falar de mim... O que eles entendem por cultural studies tem muito pouco a ver com aquilo que eu entendo serem os cultural studies, mas porque são uma organização muito poderosa, num certo sentido eles têm mais controlo sobre o discurso dos cultural studies do que eu. A verdade é que os
cultural studies nos Estados Unidos são extraordinariamente diversificados, e aquilo que as pessoas pensam que são os cultural studies é algo tão vago e disperso que seria muito difícil identificá-lo com precisão. Tenho uma rede de pessoas que estão mais de acordo com a visão que eu tenho dos cultural
studies e isso inclui indivíduos da área da literatura ou da antropologia, por exemplo. Ao mesmo tempo, há muitos antropólogos que abordam os cultural studies mas que nada têm em comum comigo, que não os concebem como interdisciplinares, nem necessariamente políticos... nesse caso, nem sei muito bem o que pensarão que são os cultural studies. Muitas vezes, dizem-me que sou mais conhecido fora da América do que propriamente na América; na Europa posso ser apresentado como um dos protagonistas dos cultural studies norte-americanos, mas no meu país nunca me apresentariam dessa forma, até porque a maioria das pessoas nunca ouviu falar de mim. Em Inglaterra, como se trata de uma dimensão muito menor, quer enquanto nação quer como meio
académico, é diferente. Há um sentido de identidade que persiste, as pessoas conhecem a origem dos cultural studies, sabem que tudo começou em Birmingham, reconhecem a importância do Goldsmiths College e sabem quem são as figuras mais relevantes do meio. Em muitos aspectos, tenho muito mais
a ver com essas pessoas do que com o meio americano.
Surpreendeu-o o encerramento do CCCS em Birmingham?
Devo confessar que os meus sentimentos em relação à situação foram um pouco contraditórios. Fiquei desiludido, claro, e também escrevi uma carta opondo-me ao encerramento, mas acho que é necessário ser realista e perceber aquilo que se pode ou não manter. Fiquei surpreendido por ter sido encerrado, porque mantinha a reputação de ser um local de ensino de qualidade excepcional, que os alunos adoravam. Tinha imensos alunos, excelentes professores, grandes programas, e é algo estranho para uma universidade encerrar uma das suas unidades de ensino mais bem sucedidas. Mas seria possível sustentar que, na altura em que fechou portas, era ainda um dos principais centros de investigação dos cultural studies no mundo? Não, certamente que não. As instituições têm as suas histórias, e no ponto em que esta estava seria difícil argumentar que se iria fechar um importantíssimo espaço de investigação dos cultural studies em Inglaterra. Fechou-se um bom departamento de pesquisa e um grande departamento de ensino, e no fundo fiquei mais surpreendido pelo encerramento da componente de ensino. De resto, aquilo já não era o CCCS. Mesmo assim, lamento, acho que foi uma má decisão, que ilustra bem as filosofias erradas que têm conduzido a administração do ensino superior no mundo ocidental. Mas, como tudo o resto, é complexo.
A verdade é que Birmingham sempre detestou o CCCS, nunca apreciou o seu verdadeiro valor, fez mesmo questão de o pôr o mais longe possível do centro do campus universitário, num espaço frio e isolado que ninguém queria – a universidade nunca se preocupou com o CCCS nem com os cultural studies, e sempre tratou francamente mal o Stuart Hall. Nesse sentido, acho que fiquei tão surpreendido com o facto de terem permitido ao CCCS manter-se durante todos aqueles anos como fiquei depois quando o encerraram.
Uma parte considerável da sua carreira foi dedicada à investigação da música rock e da cultura jovem, embora em tempos recentes tenha abandonado essa área. Como perspectiva esse campo actualmente?
Acho que hoje se faz música rock tão boa como sempre se fez. O meu período favorito na história do rock até hoje é aquele que vai de 1976 a 1985, a época do punk e do pós-punk. Mas hoje também se faz muito boa música, diversificada, apaixonante, adoro a música que se faz, e ouço-a a toda a hora. Metade da música que tenho no meu iPod é contemporânea, não ouço oldies a não ser aqueles que foram feitos nesse período do punk e da new wave. Por outro lado, embora adore a música e a ouça a toda a hora, já não consigo compreender a cultura. Ao longo do meu trabalho na área da música, sempre descrevi aquilo que entendia como rock formations, e parece-me que essa já não é uma descrição adequada ao mundo de hoje para a cultura jovem. Muitas das ideias que eu sustentava, nomeadamente em relação ao facto de o rock funcionar em termos afectivos, considero que ainda poderão ser úteis, mas a minha descrição da forma como a música rock opera em relação ao contexto mais alargado já não é válida, por isso, caso quisesse continuar a trabalhar nessa área – e foi por isso que deixei de o fazer – teria de recomeçar tudo do zero. Escrevi um ensaio, intitulado «Reflections of a Disappointed Popular Music Scholar», onde afirmei que não iria mais escrever sobre música rock e iria desistir da área da música popular, porque entendia que poucos avanços haviam sido feitos nessa
área, porque me parecia ética e moralmente irresponsável não tentar perceber a forma como os jovens estavam a ser tratados, mas sobretudo porque me parecia inevitável reconhecer que o contexto havia mudado. Os discursos que se têm usado para escrever sobre a música rock são os mesmos desde os anos 60, mas o contexto mudou, e não estamos a olhar verdadeiramente para as implicações que essa mudança traz. Os jovens têm hoje uma relação muito diferente com a música, a música funciona de forma diferente para eles, e é necessário perceber essa diferença. Eu desisti; continuo a ouvir a música, mas já não escrevo sobre o assunto, a minha carreira seguiu um novo rumo, menos ligado à cultura jovem e mais à política.
Entrevista de Sónia Pereira, Mestranda em Estudos de Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, in Comunicação & Cultura, n.º 6, 2008, pp. 205-213
Ayn Rand (1964)
PLAYBOY: Senhora Rand, os seus romances, ensaios e, em especial, o seu polémico best-seller, A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged), apresentam uma visão do mundo cuidadosamente projetada e consistente. Efetivamente, são expressões de um abrangente sistema filosófico. O que esperava alcançar com essa nova filosofia?
RAND: Eu buscava fornecer aos homens – ou seja, àqueles que se dignam a pensar – uma visão integrada, consistente e racional da vida.
PLAYBOY: Quais são as premissas básicas do objetivismo? Em que ponto ele começa?
RAND: Ele parte do axioma de que a existência existe, o que significa que uma realidade objetiva existe independentemente de qualquer observador ou das emoções, sentimentos, desejos, expectativas ou medos do observador. O objetivismo defende que a razão é o único método pelo qual o homem pode apreender a realidade e que ela é seu único guia de ação. Razão, aqui, significa a faculdade que identifica e integra o material percebido pelos sentidos do homem.
PLAYBOY: Em A Revolta de Atlas, o herói John Galt declara: “Eu juro – por minha vida e por meu amor a ela – que eu nunca viverei por outro homem, nem pedirei para que outro homem viva por mim.” Como essa declaração se relaciona aos seus princípios básicos?
RAND: A declaração de Galt é um resumo dramático da ética objetivista. Qualquer sistema ético é baseado e derivado, implícita ou explicitamente, de uma metafísica. A ética derivada da base metafísica do objetivismo defende que, dado que a razão é a ferramenta básica do homem para sua sobrevivência, a racionalidade é sua maior virtude. Fazer uso de sua mente, perceber a realidade e agir de acordo com ela é o imperativo moral humano. O padrão de valor da ética objetivista é a vida do homem – a sobrevivência do homem como homem -, ou seja, aquela que a natureza de um ser racional necessita para sua sobrevivência apropriada. A ética objetivista, essencialmente, propõe que o homem existe em prol de si mesmo, que a busca de sua felicidade é seu propósito moral mais elevado, que ele não deve sacrificar a si mesmo em benefício alheio nem sacrificar os outros em benefício próprio.
PLAYBOY: Que tipo de moralidade é derivada disso, em termos de comportamento individual?
RAND: Isso é mostrado em detalhes em A Revolta de Atlas.
PLAYBOY: A heroína de A Revolta de Atlas era, em suas palavras, “completamente incapaz de experimentar a sensação de culpa fundamental”. É possível existir um sistema moral sem algum tipo de culpa?
RAND: A palavra mais importante na citação destacada por você é “fundamental”. O termo “culpa fundamental” não indica a capacidade de julgar as próprias ações e arrepender-se de ações erradas que tenham sido cometidas. A expressão indica que o homem é maligno e culpado por natureza.
PLAYBOY: Quer dizer, o pecado original?
RAND: Exatamente. É o conceito do pecado original que minha heroína, eu ou qualquer outro objetivista é incapaz de aceitar ou jamais experimentar emocionalmente. O conceito de pecado original é uma negação da moralidade. Se o homem é culpado por natureza, não há qualquer escolha. Sem escolha, a questão não pertence à alçada da moralidade. A moralidade trata apenas da esfera de livre arbítrio do homem – apenas aquelas ações que estão abertas às suas escolhas. Considerar o homem naturalmente culpado é uma contradição em termos. Minha heroína seria capaz de experimentar culpa por conta de ações específicas. No entanto, sendo uma mulher de grande estatura moral e de auto-estima, ela se certificaria de que jamais tivesse que sentir culpa por seus atos. Ela agiria de forma plenamente moral e, portanto, não aceitaria culpa imerecidamente.
PLAYBOY: Em A Revolta de Atlas, um de seus personagens principais é questionado: “Que tipo de ser humano é o mais corrupto?” Sua resposta é surpreendente: ele não diz que é um sádico, um assassino, um maníaco sexual ou um ditador; diz que é “um homem sem um propósito”. A maioria das pessoas aparentemente atravessa suas vidas sem qualquer propósito claramente definido. Você as considera corrompidas?
RAND: Sim, até certo ponto.
PLAYBOY: Por quê?
RAND: Porque tal aspecto de seus caráteres está na raiz e é a causa de todos os males mencionados em sua pergunta. O sadismo, as ditaduras, ou quaisquer formas de males, são consequências da fuga do homem da realidade. São consequências de seu não-pensar. Um homem sem propósito é um homem movido por sentimentos aleatórios ou desejos desconhecidos e é capaz de qualquer espécie de mal, porque está totalmente afastado do controle de sua própria vida. Para estar em controle de sua vida, é necessário ter um propósito – um propósito produtivo.
PLAYBOY: Não se pode dizer que Hitler e Stálin, dois tiranos, estavam em pleno controle de suas vidas e que possuiam propósitos bastante claros?
RAND: Certamente não. Perceba que ambos terminaram, literalmente, como psicóticos. Eram homens sem qualquer auto-estima e, portanto, odiavam a existência. A psicologia que se aplica a eles está resumida no personagem de James Taggart em A Revolta de Atlas. O homem que não possui um propósito, mas precisa agir, age para destruir os outros. Isso não é o mesmo que ter um propósito produtivo ou criativo.
PLAYBOY: Se uma pessoa organiza sua vida em torno de um propósito único e claramente definido, ela não corre o risco de se tornar seus horizontes demasiadamente limitados?
RAND: Muito ao contrário. Um propósito central serve para integrar todas as outras preocupações da vida do homem. Estabelece uma hierarquia, as importâncias relativas de seus valores, poupa-o de conflitos interiores sem sentido, permite que ele desfrute de sua vida de maneira ampla e que ele transfira esse desfrute para todas as áreas abertas a sua mente; por contraste, um homem sem propósito está perdido no caos. Não conhece seus valores. Não sabe como fazer julgamentos. Não é capaz de discernir o que é ou não importante para si e, dessa forma, move-se impotentemente à mercê de estímulos ao acaso ou de impulsos momentâneos. Não é capaz de desfrutar de nada. Passa sua vida buscando valores que jamais encontrará.
PLAYBOY: A tentativa de eliminar da vida quaisquer formas de impulsos e de agir de maneira totalmente racional não pode levar a uma existência seca e infeliz?
RAND: Devo dizer honestamente que não sei do que você está falando. Vamos definir nossos termos. A razão é a ferramenta do homem de conhecimento, a faculdade que o torna capaz de perceber os fatos da realidade. Agir racionalmente significa agir de acordo com os fatos da realidade. Emoções não são ferramentas cognitivas. O que você sente não transmite qualquer conhecimento a respeito dos fatos; transmite apenas a sua estimativa dos fatos. As emoções são o resultado de julgamentos de valor; são causadas por suas premissas básicas, que você possui consciente ou subconscientemente, que podem estar certas ou erradas. Um impulso é uma emoção cuja causa você desconhece e não pretende descobrir. Portanto, o que significa agir por impulso? Significa que o homem está agindo como um zumbi, sem qualquer conhecimento daquilo com que está lidando, daquilo que deseja conquistar, do que o motiva. Significa que o homem age em estado de insanidade temporária. É isso que você chama de interessante e feliz? Na minha opinião, só o que pode advir disso é sangue. Agir em contrariedade com os fatos só pode levar à destruição.
PLAYBOY: Deve-se ignorar totalmente as emoções, rejeitá-las da vida por completo?
RAND: Evidentemente não. Deve-se tão somente mantê-las em seu devido lugar. Uma emoção é uma reposta automática, um efeito automático das premissas valorativas do homem. Um efeito, não uma causa. Não há necessariamente conflito, não há dicotomia entre as emoções e a razão do homem – dado que se observe seu relacionamento apropriado. Um homem racional sabe – ou ao menos pretende descobrir – a fonte de suas emoções, as premissas básicas de que advêm; se são erradas, ele as corrige. Ele jamais age impelido por emoções inexplicadas, cujo significado desconhece. Ao avaliar uma situação, ele sabe por que ele reage como reage e se está certo. Ele não tem conflitos interiores, sua mente e suas emoções estão integradas, sua consciência está em perfeita harmonia. Suas emoções não são suas inimigas, são seus meios de desfrutar da vida. Mas não são seu guia; seu guia é sua mente. Esse relacionamento não pode ser revertido. Se o homem toma suas emoções como causa e sua mente como efeito passivo, se ele é guiado por suas emoções e sua mente serve apenas para racionalizá-las ou justificá-las, então ele está agindo de maneira imoral, condenando a si próprio à miséria, ao fracasso, à derrota, e não alcançará nada além de destruição – sua e dos outros.
PLAYBOY: De acordo com a sua filosofia, o trabalho e a conquista são os maiores objetivos da vida. Você considera imorais aqueles que encontram maior realização nos laços de amizade e família?
RAND: Se colocam coisas como amizade e família acima do trabalho produtivo, sim, são imorais. A amizade, a vida familiar e os relacionamentos humanos não são primordiais na vida do homem. Um homem que coloca os outros em primeiro lugar, acima de seu próprio trabalho criativo, é um parasita emocional; em contraste, se coloca seu trabalho em primeiro plano, não há conflito entre seu trabalho e seu desfrute dos relacionamentos humanos.
PLAYBOY: Você acredita que tanto mulheres quanto homens devam organizar suas vidas em torno do trabalho? Se sim, que tipo de trabalho?
RAND: Claro. Eu creio que mulheres sejam seres humanos. O que é apropriado para um homem é apropriado para uma mulher. Os princípios básicos são os mesmos. Eu não pretendo prescrever que tipo de trabalho um homem deva executar, e também não faria tal coisa em relação às mulheres. Não há trabalho que seja particularmente feminino. Mulheres podem escolher seu trabalho de acordo com seus propósitos e premissas da mesma maneira que os homens.
PLAYBOY: Em sua opinião, uma mulher que escolha dedicar-se à família e à casa ao invés da carreira é imoral?
RAND: Imoral, não – eu diria que ela é imprática, porque uma casa não pode ser uma ocupação plena, a não ser quando os filhos são muito jovens. No entanto, se ela deseja uma família e quer fazer daquilo sua carreira, ao menos temporariamente, seria apropriado caso ela lide com a questão como uma carreira, ou seja, caso ela estude a matéria e defina regras e princípios segundo os quais ela deseja criar seus filhos, abordando o assunto de maneira intelectual. É uma tarefa muito responsável e importante, mas somente quando tratada como ciência e não como indulgência emocional.
PLAYBOY: Onde, você diria, que se encaixa o amor romântico na vida de uma pessoa racional cuja única paixão motivadora é o trabalho?
RAND: É sua maior recompensa. O único homem capaz de experimentar um profundo amor romântico é aquele motivado pela paixão por seu trabalho – porque o amor é uma expressão de auto-estima, dos valores mais profundos no caráter de um homem ou mulher. A paixão ocorre entre pessoas que compartilham valores. Se um homem não tem valores claramente definidos e não possui caráter moral, ele não é capaz de apreciar outra pessoa. A propósito disso, eu gostaria de citar uma passagem de A Nascente na qual o herói profere uma frase que é frequentemente mencionada pelos leitores: “Para dizer ‘Eu te amo’, é necessário antes saber como dizer ‘eu’”.
PLAYBOY: Você defende que a felicidade própria é o fim mais elevado e que o auto-sacrifício é imoral. Isso se aplica ao amor tanto quanto ao trabalho?
RAND: Ao amor mais que a qualquer outra coisa. Quando se ama, isso significa que a pessoa por quem se é apaixonado é de grande importância pessoal e egoísta para você e para sua vida. Não fosse você egoísta, isso significaria que você não tem qualquer prazer ou feliidade da companhia e da existência da pessoa que você ama e que você é motivado somente por pena auto-sacrificante da necessidade daquela pessoa por você. Não é necessário que eu explique para você que ninguém deve se sentir lisonjeado ou aceitar um conceito dessa ordem. O amor não é um auto-sacrifício, mas a mais profunda afirmação de suas necessidades e valores. É por sua felicidade que você precisa da pessoa que ama, e esse é o maior elogio e tributo que você pode dar a ela.
PLAYBOY: Você condena a noção puritana de que o amor físico é feio ou mau; no entanto, você escreveu que “o desejo e a indulgência indiscriminados são possíveis apenas àqueles que consideram o sexo e a si próprios como maus”. Você diria que a indulgência sexual seletiva e discriminada é moral?
RAND: Eu diria que uma vida sexual discriminada e seletiva não é o mesmo que indulgência. O termo “indulgência” implica uma ação executada superficial e casualmente. Eu proponho que o sexo seja um dos mais importantes aspectos da vida do homem e que, portanto, não deve jamais ser tratado de forma superficial ou casual. Um relacionamento sexual é apropriado somente quando considerado um dos maiores valores que se pode encontrar num ser humano. O sexo não pode ser nada além de uma resposta a valores. E é por isso que eu considero a promiscuidade imoral. Não porque o sexo seja maligno, mas porque o sexo é bom e importante demais.
PLAYBOY: Isso significa, em sua opinião, que o sexo deva envolver somente parceiros casados?
RAND: Não necessariamente. O que o sexo deve envolver é um relacionamento muito sério. Se esse relacionamento deve ou não tornar-se um casamento é uma matéria circunstancial, a depender do contexto das vidas das duas pessoas em questão. Eu considero o casamento uma instituição muito importante, mas é importante quando e se duas pessoas tenham encontrado a pessoa com quem desejam passar o resto de suas vidas – uma questão sobre a qual nenhum homem ou mulher pode ter certeza automaticamente. Quando há a certeza de que a presente escolha é a final, então o casamento é, naturalmente, um estado desejável. Mas isso não significa que qualquer relacionamento baseado em menos que uma plena certeza seja inapropriado. Penso que a escolha entre um namoro ou um casamento depende do conhecimento e da posição das pessoas envolvidas e deve ser deixada para a decisão deles. Qualquer alternativa é moral, dado que as partes levem a sério a relação e que a baseiem em valores.
PLAYBOY: Como alguém que defende a causa do auto-interesse esclarecido, como você vê a dedicação da vida de uma pessoa à auto-gratificação hedonista?
RAND: Sou profundamente contrária à filosofia hedonista. O hedonismo é a doutrina que defende que o bem é o que quer que gere prazer e que, portanto, o prazer é o padrão de moralidade. O objetivismo defende que o bem deve ser definido por um padrão racional de valor, que o prazer não é uma causa primária, mas tão somente uma consequência, que somente o prazer advindo de um julgamento de valor racional pode ser considerado moral, e que o prazer, como tal, não é um guia de ação nem um padrão de moralidade. Dizer que o prazer deve ser o padrão de moralidade significa simplesmente que quaisquer valores que você tenha escolhido, conscientemente ou não, racionalmente ou não, são corretos e morais. Isso significa que você deve ser guiado por sentimentos, emoções e impulsos casuais. Minha filosofia é o contrário do hedonismo. Eu defendo que não é possível alcançar a felicidade através de meios aleatórios, arbitrários ou subjetivos. Por valores racionais, não quero dizer quaisquer coisas que o homem declare arbitrária ou cegamente serem racionais. É a moralidade, a ciência da ética, que deve definir para os homens o que é um padrão racional e quais são os valores racionais a ser buscados.
PLAYBOY: Você já afirmou que o homem que passa seu tempo tentando conquistar mulheres é um homem que “despreza a si mesmo”. Pode elaborar?
RAND: Esse tipo de homem reverte a causa e o efeito em relação ao sexo. Sexo é uma expressão de auto-estima, de auto-valor. Mas o homem que não valoriza a si próprio tenta reverter esse processo. Ele tenta derivar sua auto-estima de suas conquistas sexuais, o que não é possível de se fazer. Ele não pode adquirir seus valores das várias mulheres que o consideram valioso. Contudo, é isso que ele tenta fazer.
PLAYBOY: Você ataca a ideia de que o sexo é “imune à razão”. Porém, não é o sexo um instinto biológico não-racional?
RAND: Não. Para começar, o homem não possui quaisquer instintos. Fisicamente, o sexo é somente uma capacidade. Como o homem exercerá essa capacidade e quem ele considerará atraente depende de seus padrões de valor. Depende de suas premissas, que podem ser conscientes ou subconscientes, e que determinam suas escolhas. É dessa maneira que sua filosofia dita sua vida sexual.
PLAYBOY: O indivíduo não é dotado de fortes e não-racionais impulsos biológicos?
RAND: Não. O homem é dotado de certo tipo de mecanismo físico e de certas necessidades, mas não possui qualquer conhecimento de como satisfazê-las. Por exemplo, o homem precisa de alimento. Ele sente fome. Mas a não ser que ele aprenda a identificar essa fome e então aprenda que precisa de comida e como obtê-la, ele morrerá de fome. A necessidade, a fome, não dirá a ele como satisfazê-la. O homem nasce com certas necessidades físicas e psicológicas, mas não é capaz de descobri-las nem satisfazê-las sem o uso de sua mente. O homem tem que descobrir o que é certo ou errado para si como ser racional. Seus impulsos não o informarão o que fazer.
PLAYBOY: Em A Revolta de Atlas, você escreveu: “Há dois lados a todas as questões. Um é o lado certo, o outro, errado, mas o meio do caminho é sempre maligno.” Não é este um conjunto de valores um tanto preto-e-branco?
RAND: Certamente. Eu enfaticamente defendo uma visão de mundo preto-e-branca. Definamos esse termo. O que se quer dizer pela expressão “preto-e-branco”? Quer dizer bom e mau. Antes de identificar algo como “cinza”, como “meio do caminho”, é necessário saber o que é preto e o que é branco, porque o cinza é apenas uma mistura dos dois. E quando você estabeleceu que uma alternativa é boa e que a outra é ruim, não há justificativa para a escolha da mistura. Não há jamais qualquer justificativa para a escolha de parte daquilo que se sabe ser mau.
PLAYBOY: Então você acredita em absolutos.
RAND: Sim.
PLAYBOY: O objetivismo, portanto, não pode ser chamado de dogma?
RAND: Não. Um dogma é um conjunto de crenças aceitos por fé; ou seja, sem justificativa ou evidência racional. Um dogma é não mais que fé cega. O objetivismo é o exato oposto. O objetivismo prega que não se deve aceitar qualquer ideia ou convicção a não ser que se possa demonstrar sua veracidade por meio da razão.
PLAYBOY: Se amplamente aceito, não é possível que o objetivismo se torne um dogma?
RAND: Não. Acredito que o objetivismo seja sua própria proteção contra pessoas que possam tentar usá-lo como dogma. Uma vez que o objetivismo requer o uso da própria mente, aqueles que tentam pegar princípios gerais e aplicá-los indiscriminadamente aos concretos de sua existência veem que isso não pode ser feito. São compelidos a rejeitar o objetivismo ou a aplicá-lo apropriadamente. Ou seja, têm que usar suas mentes, seus pensamentos, para aplicar os princípios objetivistas aos problemas específicos de suas vidas.
PLAYBOY: Você já se disse contrária à fé. Você acredita em Deus?
RAND: Certamente não.
PLAYBOY: Há uma citação sua que diz: “A cruz é o símbolo da tortura, do sacrifício do ideal ao não-ideal. Eu prefiro o símbolo do dólar.” Você de fato acredita que dois mil anos de cristianismo podem ser resumidos à palavra “tortura”?
RAND: Primeiramente, eu nunca disse isso. Não é do meu estilo. Nem literário, nem intelectual. Eu não digo preferir o símbolo do dólar – essa é uma tolice barata, e por favor não deixe de publicar isto. Eu não sei da origem dessa citação em particular, mas o significado do símbolo do dólar é esclarecido em A Revolta de Atlas. Como explicado claramente na história, é o símbolo das livres trocas e, portanto, das livres mentes. Uma mente livre e uma economia livre são corolários. Uma não pode existir sem a outra. O símbolo do dólar, enquanto símbolo de um país livre, é o símbolo da mente livre. Mais que isso, uma hipótese histórica bastante provável, embora nunca provada, é que o símbolo do dólar advém das iniciais dos Estados Unidos. É o que tenho a dizer sobre isso. Agora, deixe-me falar sobre a cruz. O que é correto é que eu de fato considero a cruz o símbolo do sacrifício do ideal ao não-ideal. Não é isso que ela significa? Cristo, na filosofia cristã, é o ideal humano. Ele personifica aquilo que os homens devem se esforçar para emular. Contudo, de acordo com a mitologia cristã, ele morreu na cruz não por seus próprios pecados, mas pelos pecados de pessoas não-ideais. Em outras palavras, um homem de virtude perfeita foi sacrificado por homens que eram viciosos e que deviam aceitar aquele sacrifício. Se eu fosse cristã, nada me deixaria mais indignada: a noção de sacrifício do ideal ao não-ideal, de virtude ao vício. E é em nome desse símbolo que se pede os homens se sacrifiquem aos seus inferiores. É precisamente dessa maneira que o simbolismo é usado. Isso é tortura.
PLAYBOY: Nenhuma religião, em sua estimativa, jamais foi capaz de oferecer algo de valor à vida humana?
RAND: Enquanto religião, não – no sentido de crença cega, de crença sem base ou contrária aos fatos da realidade e às conclusões da razão. A fé, como tal, é extremamente deletéria à vida humana: é a negação da razão. Mas deve-se lembrar que a religião é uma forma primitiva de filosofia, que as primeiras tentativas de explicar o universo e dar ao homem uma estrutura coerente de referência e um código moral foram feitas pela religião, antes que o homem se desenvolvesse o suficiente para chegar à filosofia. E, enquanto filosofias, algumas religiões possuem valiosos ensinamentos morais. Podem ter boas influências ou princípios apropriados, porém num contexto muito contraditório e – como dizer? – numa base perigosa e maligna: a fé.
PLAYBOY: Então você diria que se tivesse que escolher entre o símbolo da cruz e o símbolo do dólar, você escolheria o dólar?
RAND: Eu não aceitaria essa escolha. Em outras palavras: se eu tivesse que escolher entre fé e razão, eu nem consideraria possível escolher. Enquanto humano, deve-se escolher a razão.
PLAYBOY: Você considera ricos empresários como os Fords e os Rockefellers imorais porque usam suas riquezas para caridade?
RAND: Não. É privilégio deles, se desejam fazer isso. Minhas opiniões a respeito da caridade são muito simples. Não a considero uma virtude maior e, acima de tudo, não a considero um dever moral. Não ha nada de errado em ajudar outras pessoas, se elas são dignas de ajuda e se você pode ajudá-las. Eu considero a caridade uma questão menor. O que eu combato é a noção de que a caridade é um dever moral e uma virtude primária.
PLAYBOY: Qual é o lugar da compaixão no seu sistema filosófico?
RAND: Eu considero a compaixão apropriada somente àqueles que sejam vítimas inocentes, mas não para com aqueles que são moralmente culpados. Se uma pessoa sente compaixão pelas vítimas de um campo de concentração, não pode senti-la pelos torturadores. Se uma pessoa sente compaixão pelos torturadores, trata-se de um ato de traição moral para com as vítimas.
PLAYBOY: Seria contrário aos princípios objetivistas sacrificar-se por outra pessoa, colocando-se na frente de uma bala que vai atingi-la?
RAND: Não. Depende das circunstâncias. Eu me colocaria no caminho da bala se ela fosse direcionada ao meu marido. Não é um auto-sacrifício morrer protegendo aquilo que você valoriza: se o valor é grande o bastante, você não se importa em existir sem ele. Isso se aplica a qualquer suposto sacrifício em prol daqueles que se ama.
PLAYBOY: Você estaria disposta a morrer por sua causa e seus seguidores devem estar dispostos a morrer por ela? Para o objetivista verdadeiramente anti-sacrifício, há alguma causa que valha sua própria vida?
RAND: A resposta a isso está bem explicada em meu livro. Em A Revolta de Atlas, eu explico que o homem deve viver e, se necessário, lutar por seus valores – porque o processo de viver consiste na conquista de valores. O homem não sobrevive automaticamente. Ele deve viver como um ser racional e não aceitar menos que isso. Ele não pode sobreviver como um bárbaro. Mesmo o mais simples dos valores, como a comida, deve ser criado pelo homem, deve ser plantado, deve ser produzido. O mesmo é verdadeiro em relação a suas conquistas mais importantes e interessantes. Todos os valores têm que ser ganhos e mantidos pelo homem e, se desafiados, ele deve estar disposto a lutar e morrer, se preciso, por seu direito de viver como um ser racional. Você me pergunta se eu estaria disposta a morrer pelo objetivismo. Sim, estaria. Porém, o que é mais importante, eu estou disposto a viver por ele – o que é muito mais difícil.
PLAYBOY: Sua ênfase na razão a coloca em conflito filosófico com autores, romancistas e poetas contemporâneos – muitos dos quais se admitem como místicos ou irracionalistas. Por que isso ocorre?
RAND: Porque a arte tem uma base filosófica e as tendências filosóficas de hoje em dia são formas de neo-misticismo. A arte é uma projeção das visões fundamentais do artista em relação ao homem e à existência. Já que a maioria dos artistas não desenvolve uma filosofia independentemente, eles absorvem, consciente ou inconscientemente, as influências filosóficas mais conspícuas de seu tempo. A maior parte da literatura atual é um reflexo preciso da filosofia contemporânea – olhe para ela!
PLAYBOY: Um escritor não deve refletir o seu tempo?
RAND: Não. Um escritor deve ser um ativo líder intelectual de seu tempo, não um seguidor passivo de qualquer fluxo. Um escritor deve moldar os valores de sua cultura, deve projetar e concretizar os valores da vida humana. Essa é a essência da escola romântica de literatura, que quase desapareceu da cena literária atual.
PLAYBOY: O que nos coloca em qual posição, literariamente?
RAND: No beco sem saída do naturalismo. O naturalismo defende que o escritor deve ser um fotógrafo passivo ou um repórter que deve transcrever acriticamente o que quer que ele observe a seu redor. O romantismo defende que o escritor não deva simplesmente mostrar as coisas tais quais são a determinado momento mas, para citar Aristóteles, “como podem ser e devem ser”.
PLAYBOY: Você diria que é o último representante dos românticos?
RAND: Ou o primeiro de seu retorno, para usar uma fala de um de meus personagem em A Revolta de Atlas.
PLAYBOY: Qual a sua avaliação da literatura contemporânea em geral?
RAND: Filosoficamente, imoral. Esteticamente, aborrecida. Está se degenerando, dedicando-se exclusivamente a estudos de depravação. Não há nada mais desinteressante que a depravação.
PLAYBOY: Há algum romancista que você admire?
RAND: Sim, Victor Hugo.
PLAYBOY: Algum romancista moderno?
RAND: Não há ninguém que eu admire entre os escritores ditos sérios. Prefiro a literatura popular atual, que é a remanescência do romantismo. Dela, meu escritor preferido é Mickey Spillane.
PLAYBOY: Por que gosta dele?
RAND: Por que ele é, primariamente, um moralista. De forma primitiva, na forma de um romance policial, ele apresenta o conflito do bem e do mal, do preto e do branco. Ele não mostra nenhuma mistura cinzenta repulsiva em que há canalhas indistintos dos dois lados. Apresenta um conflito irreconciliável. Como escritor, ele é brilhante no aspecto da literatura que eu considero mais importante: o enredo.
PLAYBOY: O que você pensa de Faulkner?
RAND: Não muito. Bom estilista, mas praticamente ilegível em conteúdo – li muito pouco dele.
PLAYBOY: E quanto a Nabokov?
RAND: Li somente um livro e meio dele – o meio foi Lolita, que não consegui terminar. Brilhante em estilo, escreve muito belamente, mas seus assuntos, seu senso de vida e sua visão do homem são tão malévolos que nenhuma quantidade de habilidade artística pode justificá-los.
PLAYBOY:: Enquanto romancista, você considera a filosofia o propósito principal de sua escrita?
RAND: Não. Meu propósito principal é a projeção de um homem ideal, de “como ele pode e deve ser”. A filosofia é o meio necessário para atingir essa finalidade.
PLAYBOY:: Em um de seus romances anteriores, Anthem, seu protagnista declara: “É o meu arbítrio que faz a escolha, e a escolha do meu arbítrio é o único édito que eu respeito”. Isso não é anarquismo? O desejo ou a vontade pessoal é a única lei que se deve respeitar?
RAND: Não simplesmente a vontade própria. Essa é, mais ou menos, uma expressão poética usada no contexto da história em Anthem. Trata-se do julgamento racional próprio. Veja bem, eu uso a expressão “livre arbítrio” de maneira completamente diversa de como ela é normalmente utilizada. O livre arbítrio é a capacidade humana de pensar ou não pensar. O ato de pensar é o ato primário de escolha. Um homem racional jamais será guiado por desejos ou impulsos, somente por valores baseados em seus julgamentos racionais. Essa é a única autoridade que ele é capaz de reconhecer. Isso não significa anarquia, porque, se um homem deseja viver numa sociedade livre e civilizada, ele, racionalmente, teria que escolher a observância de leis – na medida em que essas leis seja objetivas, racionais e, portanto, válidas. Eu já escrevi um artigo a esse respeito para The Objectivist Newsletter, sobre a necessidade e a função apropriada do governo.
PLAYBOY:: Qual, em sua visão, é a função apropriada do governo?
RAND: Basicamente, só há uma função apropriada: a proteção dos direitos individuais. Uma vez que direitos podem ser violados tão somente pela força física e por certas derivações da força física, a função apropriada do governo é a proteção dos homens daqueles que iniciam o uso da força física – ou seja, de criminosos. A força, numa sociedade livre, pode somente ser utilizada em retaliação e somente contra aqueles que iniciam seu uso. Tal é a tarefa apropriada do governo: a de servir como policial que protege os homens do uso da força.
PLAYBOY:: Se a força só pode ser usada em retaliação contra o uso da força, o governo tem direito, por exemplo, de coletar impostos ou de obrigar o alistamento militar?
RAND: Em princípio, eu acredito que a taxação deva ser voluntária, como tudo o mais. Porém, a implementação dessa ideia é uma questão bastante complexa. Eu posso apenas sugerir certos métodos, mas não insistiria que eles fossem respostas definitivas. Uma loteria estatal, por exemplo, usada em muitos países da Europa, é um bom método de taxação voluntária. Existem outros. Os impostos devem ser contribuições voluntárias aos serviços apropriados do governo, aqueles necessários às pessoas e que portanto todos estariam e deveriam estar dispostos a pagar – da mesma forma que pagam por diversas formas de seguros. Mas, claro, esse é um problema para o futuro distante, para um tempo em que o homem estará prestes a implementar um sistema social plenamente livre. Seria a última, não a primeira reforma na qual se pensar. Quanto à questão do alistamento obrigatório, é injusto e inconstitucional. É uma violação dos direitos fundamentais do homem, do direito humano à própria vida. Nenhum homem tem o direito de enviar outro homem para lutar e morrer por sua causa – pela causa daquele que envia. Um país não tem direito de forçar os homens à servidão. Exércitos devem ser estritamente voluntários; e, como hão de dizer as autoridades militares, exércitos voluntários são os melhores.
PLAYBOY:: E quanto a outras necessidades públicas? Você considera, digamos, que os correios sejam uma instituição governamental apropriada?
RAND: Deixe-me ser bem clara aqui. Minha posição é totalmente consistente. Não apenas os correios, mas também as ruas, estradas e, acima de tudo, escolas devem ser propriedade privada e mantidas por entes privados. Eu defendo a separação do estado e da economia. O governo deve somente se concentrar com as questões que envolvem o uso da força. Ou seja: polícia, exército e os tribunais para resolver disputas legais. Nada mais. Todo o resto deve ser privado, e nesse caso seria muito melhor administrado.
PLAYBOY:: Você criaria algum novo departamento ou alguma nova agência governamental?
RAND: Não, e eu não sou capaz de discutir questões dessa maneira. Eu não sou um planejador estatal e não gasto o meu tempo concatenando utopias. Falo de princípios cujas aplicações práticas são claras. Se eu já disse que sou oposta à iniciação de força, o que mais se precisa discutir?
PLAYBOY:: E quanto à força nas relações exteriores? Você disse que qualquer nação livre tinha o direito de invadir a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial…
RAND: Certamente.
PLAYBOY:: … E que qualquer nação livre de hoje em dia tem o direito moral – embora não o dever – de invadir a Rússia soviética, Cuba ou outros países “senzalas”. Correto?
RAND: Correto. Uma ditadura – um país que viola os direitos de seus próprios cidadãos – é um regime criminoso e não tem quaisquer direitos.
PLAYBOY:: Você defenderia uma invasão americana à Cuba ou à União Soviética?
RAND: No presente momento, não. Eu não considero que seja necessário. Eu defenderia aquilo que a União Soviética mais teme: o boicote econômico. Eu defenderia um bloqueio a Cuba e um boicote econômico à Rússia Soviética. Dessa forma, ambos os regimes entrariam em colapso sem a perda de uma única vida americana.
PLAYBOY:: Você defenderia o fim das relações diplomáticas com a Rússia?
RAND: Sim. Não apoio a pretensão grotesca de uma organização supostamente dedicada à paz mundial e aos direitos humanos que inclua em suas fileiras a Rússia Soviética, o maior agressor e o regime mais sanguinário da história. A noção de proteger direitos com a inclusão da Rússia soviética é um insulto ao conceito de direitos e à inteligência de qualquer homem a quem se peça o endosso ou a sanção de uma organização desse tipo. Eu não acredito que um indivíduo deva cooperar com criminosos e, pelas mesmas razões, não acredito que países livres devam cooperar com ditaduras.
PLAYBOY:: Quais são suas visões a respeito do tratado de banimento aos testes nucleares que foi recentemente assinado?
RAND: Concordo com o discurso de Barry Goldwater a esse respeito no Senado. As melhores autoridades militares e, sobretudo, a maior autoridade científica, o dr. Teller, criador da bomba de hidrogênio, afirmam que esse tratado não é apenas irrelevante, como também perigoso à segurança dos Estados Unidos.
PLAYBOY:: Se o senador Goldwater for nomeado candidato republicano em Julho, você votaria nele?
RAND: No momento, eu diria que sim. Quando falo “no momento”, eu digo no momento em que esta entrevista está sendo registrada. Eu discordo dele em muitos pontos, mas concordo, em sua maior parte, com a política externa dele. De todos os candidatos potenciais de hoje, considero Barry Goldwater o melhor. Eu votaria nele se ele nos oferecer uma plataforma plausível ou, no mínimo, semi-consistente.
PLAYBOY:: E quanto a Richard Nixon?
RAND: Me oponho a ele. Me oponho a quem faz concessões e não tem ideias próprias, e nesses quesitos o sr. Nixon provavelmente é o campeão.
PLAYBOY:: E quanto ao presidente Johnson?
RAND: Não tenho opinião em particular sobre ele.
PLAYBOY:: Você é declaradamente anti-comunista, anti-socialista e anti-liberal. No entanto, você rejeita a noção de que seja conservadora. De fato, você reserva alguns de seus comentários mais negativos aos conservadores. Qual é a sua posição política?
RAND: Correção. Eu nunca descrevo minha posição em negativos. Eu advogo o capitalismo laissez-faire, os direitos individuais (não existem outros) e a liberdade individual. É sobre essa base que eu me oponho a quaisquer doutrinas que proponham o sacrifício do indivíduo ao coletivo, como o comunismo, o socialismo, o estado de bem-estar, o fascismo, o nazismo e o moderno liberalismo. Eu sou contrária aos conservadores da mesma maneira. Os conservadores defendem uma economia mista e um estado de bem-estar. Se diferenciam dos liberais em grau, não em princípio.
PLAYBOY:: Você já afirmou que os Estados Unidos estão em bancarrota intelectual. Você inclui nessa condenação publicações de direita como a National Review? Essa revista não é uma voz poderosa contra todas as coisas que você considera “estatismo”?
RAND: Eu considero a National Review a pior e a mais perigosa revista nos EUA. O tipo de defesa que ela oferece ao capitalismo não resulta em nada a não ser no descrédito e na destruição do capitalismo. Quer que eu diga por quê?
PLAYBOY:: Sim, por favor.
RAND: Porque ela liga o capitalismo à religião. A posição ideológica da National Review se resume, com efeito, ao seguinte: para aceitar a liberdade e o capitalismo, deve-se acreditar em Deus ou em alguma forma de religião ou misticismo sobrenatural. O que significa que não há bases racionais por que defender o capitalismo. O que se trata de uma admissão de que a razão está ao lado dos inimigos do capitalismo, de que uma sociedade escravista ou uma ditadura são sistemas racionais, e que somente com base numa fé mística podemos acreditar na liberdade. Nada mais depreciativo ao capitalismo que isso pode jamais ser dito, e o exato oposto é a verdade. O capitalismo é o único sistema que pode ser defendido e validado pela razão.
PLAYBOY:: Você atacou o governador Nelson Rockefeller por “colocar todos os oponentes do estado de bem-estar num mesmo grupo, ao lado de lunáticos”. Estava claro nas observações dele que ele criticava a John Birch Society. Você se ofende ao ser colocada no mesmo grupo que os integrantes da John Birch? Você os considera “lunáticos” ou uma força do bem?
RAND: Eu me ofendo ao ser colocada no mesmo grupo que qualquer um. Eu me ofendo com o método moderno de nunca definir ideias e agrupar pessoas completamente diferentes num coletivo por meio de calúnias e termos depreciativos. Eu me ofendo pelas táticas de calúnia do governador Rockefeller: sua recusa em identificar especificamente a quem e a que se refere. Quanto a mim, eu repito, eu não desejo ser agrupada com ninguém e certamente não com a John Birch Society. Se os considero lunáticos? Não, não necessariamente. O que há de errado com eles é que eles não parecem ter qualquer filosofia política específica e claramente definida. Portanto, alguns deles podem ser lunáticos, outros podem ser cidadãos de boa fé. Eu considero a Birch Society fútil, porque não são pró-capitalismo, são contra o comunismo. Percebo que eles acreditam que o estado desastroso do mundo atual é causado por uma conspiração comunista. Essa é uma visão infantil e superficial. Nenhum país pode ser destruído por uma mera conspiração – países só são destruídos por ideias. Os Birchers parecem ser não-intelectuais ou anti-intelectuais. Não dão importância a ideias. Não percebem que a grande batalha do mundo atual é um conflito filosófico e ideológico.
PLAYBOY:: Existem grupos políticos nos EUA atualmente que você aprova?
RAND: Grupos políticos em si, não. Existe algum grupo político hoje em dia que seja totalmente coerente? Esses grupos atualmente são são guiados por – e defendem – contradições gritantes.
PLAYBOY:: Você tem alguma aspiração política? Já considerou concorrer a algum cargo eletivo?
RAND: Certamente não. Creio que você não me odeie tanto para desejar que eu faça tal coisa.
PLAYBOY:: Mas você tem interesse em política, ou ao menos em teoria política, não tem?
RAND: Deixe-me responder dessa maneira: quando eu cheguei aqui, saindo da Rússia soviética, eu me interessava em política por somente uma razão – para chegarmos num dia em que eu não teria que ter interesse em política. Eu desejava uma sociedade na qual eu estaria livre para perseguir minhas preocupações e objetivos, sabendo que o governo não interferiria para destruí-los, sabendo que minha vida, meu trabalho e meu futuro não estariam à merc~e do estado ou dos impulsos de um ditador. Essa é minha atitude ainda hoje. Porém, eu sei hoje que essa sociedade é um ideal que ainda não foi atingido, que eu não posso esperar que outros o atinjam por mim e que eu, como todos os outros cidadãos responsáveis, devo fazer tudo que esteja a meu alcance para atingi-lo. Em outras palavras, eu somente me interesso em política para assegurar e proteger a liberdade.
PLAYBOY:: Em toda a sua obra, você argumenta que a maneira pela qual o mundo contemporâneo está organizado, mesmo em países capitalistas, afoga o indivíduo e impede a livre iniciativa. Em A Revolta de Atlas, John Galt lidera uma greve de homens da mente – que resulta no colapso da sociedade coletivista ao redor deles. Você acha que a hora chegou de os artistas, intelectuais e empresários criativos retirarem seus talentos da sociedade daquela forma?
RAND: Não, ainda não. No entanto, antes que eu explique esse ponto, eu devo corrigir um trecho de sua pergunta. O que temos hoje em dia não é uma sociedade capitalista, mas uma economia mista – isto é, uma mistura de liberdade e controle, que, a julgar pela tendência dominante, deve se transformar em ditadura. Em A Revolta de Atlas, os acontecimentos ocorrem num momento em que a sociedade alcançou o estágio de ditadura. Quando – e se – isso acontecer será o momento da greve, mas até lá, não.
PLAYBOY:: Qual o seu conceito de ditadura? Como você a definiria?
RAND: Uma ditadura é um país que não reconhece os direitos individuais, cujo governo possui poder total e ilimitado sobre os homens.
PLAYBOY:: Qual é a linha divisória, pela sua definição, entre uma economia mista e uma ditadura?
RAND: Uma ditadura tem quatro características: partido único, execuções sem julgamento por crimes políticos, expropriação e nacionalização da propriedade privada e censura. Sobretudo, esta última. Enquanto os homens puderem falar e escrever livremente, enquanto não houver censura, há ainda uma chance de reformar a sociedade e colocá-la num caminho melhor. Quando a censura é imposta, esse é o sinal de que os homens devem entrar em greve intelectual – isto é, não devem cooperar com o soistema social de forma alguma.
PLAYBOY:: Se não for por meio de uma greve dessa natureza, o que você aha que deve ser feito para trazer as mudanças sociais que você acredita serem desejáveis.
RAND: São as ideias que determinam as tend~encias sociais, que criam ou destroem sistemas sociais. Portanto, as ideias corretas, a filosofia certa, deve ser defendida e divulgada. Os desastres do mundo moderno, inclusive a destruição do capitalismo, foram causadas pela filosofia altruísta-coletivista. É o altruísmo que deve ser rejeitado pelo homem.
PLAYBOY:: E como você define “altruísmo”?
RAND: É o sistema moral que defende que o homem não tem direito de existir em prol de si mesmo, que servir aos outros é a justificação única de sua existência, e que o auto-sacrifício é o maior dever, valor e virtude moral. Essa é a base moral do coletivismo e de todas as ditaduras. Para buscar a liberdade e o capitalismo, o homem precisa de um código de ética não-místico e não-altruísta – uma moralidade que defenda que o homem não é um animal de sacrifício, que ele tem direito de existir por si próprio, sem sacrificar ele mesmo aos outros nem os outros a si. Em outras palavras, o que é desesperadamente necessário hoje em dia é a ética objetivista.
PLAYBOY:: Essencialmente, o que você diz, portanto, é que essas mudanças devem ser atingidas por meios educacionais ou propagandísticos?
RAND: Sim, claro.
PLAYBOY:: O que você pensa da alegação de seus opositores de que os princípios políticos e morais do objetivismo a colocam fora das principais correntes do pensamento americano?
RAND: Eu não reconheço como válido um conceito como uma “corrente principal de pensamento”. Isso pode ser apropriado para uma ditadura, para uma sociedade coletivista na qual o pensamento é controlado e na qual há uma pensamento principal coletivo – constituído de slogans, não de ideias. Não existe coisa do tipo nos Estados Unidos. Nunca existir. Contudo, eu já ouvi essa expressão ser usada com o propósito de barrar da comunicação pública qualquer indivíduo inovador, qualquer não-conformista, quem quer que tenha algo de original a oferecer. Eu sou uma inovadora. Esse é um termo de distinção, de honra, e não algo para se esconder ou pelo que se desculpar. Quem quer que tenha ideias novas e valiosas a oferecer se coloca fora do status quo intelectual. Mas o status quo não é uma corrente, nem muito menos uma “corrente principal”. É um lamaçal estagnado. São os inovadores que carregam a humanidade à frente.
PLAYBOY:: Você acredita que a filosofia objetivista vai eventualmente converter o mundo?
RAND: Ninguém é capaz de responder uma pergunta assim. Os homens possuem livre arbítrio. Não há garantias de que escolherão ser racionais em algum momento ou em alguma geração. Não é necessário que uma filosofia “converta o mundo”. Se você fizer a mesma pergunta de forma um pouco diferente, digamos, se você perguntar se eu acho que o objetivismo será a filosofia do futuro, eu direi que sim, só que com este porém: se os homens se voltarem à razão, se não forem destruídos por ditaduras ou jogados numa nova Idade das Trevas, se os homens permanecerem livres por tempo o bastante para poderem pensar, então o objetivismo será a filosofia que aceitarão.
PLAYBOY:: Por quê?
RAND: Em todo período histórico no qual os homens foram livres, foi vencedora a filosofia mais racional. É por essa perspectiva que eu digo que, sim, o objetivismo vencerá. Entretanto, não há garantias, não há nenhuma necessidade pré-determinada.
PLAYBOY:: Você é muito crítica do mundo como você o vê atualmente e seus livros oferecem propostas radicais para mudar não só a forma da sociedade, mas a própria maneira pela qual a maioria dos homens trabalham, pensam e amam. Você é otimista quanto ao futuro do homem?
RAND: Sim, sou otimista. O coletivismo, como força intelectual e ideal moral, está morto. Mas a liberdade e o individualismo, e sua expressão política, o capitalismo, ainda não foram descobertos. Eu penso que os homens terão tempo para descobri-los. É significativo que a agonizante filosofia de hoje em dia não tenha produzido nada além de um culto à depravação, à impotência e ao desespero. Olhe para a arte e a literatura modernas, que veem o homem como criatura impotente e estúpida, fadada ao fracasso, à frustração e à destruição. Essa deve ser a confissão psicológica dos coletivistas, mas não é uma imagem apropriada ao ser humano. Se fosse, nós nunca teríamos saído das cavernas. Mas saímos. Olhe à sua volta e olhe a história. Você verá as conquistas da mente humana. Você verá o potencial ilimitado do homem para a grandeza, e a faculdade que a torna possível. Você verá que o homem não é um monstro impotente por natureza, mas que ele se torna um quando descarta essa faculdade: sua mente. Se você me perguntar “O que é grandeza?”, eu responderei: é a capacidade de viver de acordo com os três valores fundamentais de John Galt: razão, propósito, auto-estima.
Entrevista de Alvin Toffler para a edição de março de 1964 da revista Playboy. Tradução de Erick Vasconcelos (fonte).
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