Ruth Levitas é hoje um nome incontornável no campo dos Estudos da Utopia. Doutorada pela Universidade de Sheffield e Professora de Sociologia na Universidade de Bristol, na Grã-Bretanha, Ruth Levitas tem dedicado a sua investigação a duas grandes áreas: a da teoria, definição e história do utopismo (com particular atenção à obra de William Morris), e a do pensamento político e social contemporâneo, centrando-se sobretudo nas implicações políticas da pobreza, da desigualdade e da exclusão social. É autora de livros que se tornaram já uma referência para estas áreas de estudo, como The Concept of Utopia (1990) ou The Inclusive Society? Social Exclusion and New Labour (1998), e é actualmente Presidente da Utopian Studies Society-Europe, Vice-Presidente da William Morris Society e membro da British Sociological Association e da Association of University Teachers.
Nesta entrevista, Ruth Levitas fala-nos do seu trabalho, da sua dedicação à busca de um mundo melhor, do seu desejo de lutar por um espaço de reflexão livre e transformador no mundo universitário, e do seu empenho em incluir a utopia nos gestos mais quotidianos – procurando o azul … e todas as suas combinações possíveis.
Quando despertou o seu interesse pela utopia?
A escultora Barbara Hepworth escreveu uma vez que achava que aquilo que temos a dizer é formado na infância e que, depois, passamos o resto da vida a tentar dizê-lo. Suponho que tenho de culpar os meus pais, que, de maneira diferente, me mostraram persistentemente que o mundo não tem de ser assim, e que é nossa responsabilidade criá-lo de outro modo. Mais particularmente, quando eu tinha dezassete anos, a minha mãe sugeriu que eu lesse News from Nowhere, de William Morris – a mesma edição que ela tinha lido quando era nova, nos anos 30. Penso que este foi um momento decisivo. O texto de Morris começa em Hammersmith, precisamente a zona de Londres onde eu vivia, e onde a minha mãe também vivia quando o leu pela primeira vez. O livro oferecia pois uma visão do meu próprio quotidiano transformado social e espacialmente. News from Nowhere permite-nos experienciar quer os mundos sociais quer os mundos físicos tal como eles foram, são, poderão ser ou poderiam ter sido enquanto copresenças imanentes. Escrevi sobre isto em Morris, Hammersmith and Utopia (2002). Na altura em que li o livro pela primeira vez, Hammersmith, como tantos outros locais, estava a ser destruído pelos planeadores. Refiro-me, em particular, a uma estrada principal que foi construída nas margens do rio, nos anos 50, a que se seguiu a construção de uma passagem elevada nos anos 60. A estrada divide o jardim da casa de Londres de William Morris, Kelmscott House; é aqui que hoje se encontra o quartel-general da Sociedade William Morris, da qual tenho actualmente a honra de ser Vice-Presidente. Mas o poder da escrita de Morris reside nessa capacidade de descrever uma sociedade em que gostaríamos de viver e, ao mesmo tempo, de demonstrar a relação entre os processos sociais, espaciais, ambientais e económicos.
A Sociologia e o Utopismo têm sido duas áreas de investigação privilegiadas no seu trabalho. Em que medida é que a associação entre elas tem sido produtiva?
Há imensas semelhanças entre a sociologia e a utopia – não apenas a insistência no holismo ou o olhar sobre as interligações entre processos, em que Morris era tão bom. Também há uma tensão, uma vez que a sociologia sempre apregoou a sua objetividade, a sua preocupação com o que é, em vez de com o que poderia ser. A utopia, por outro lado, é precisamente sobre o que deveria ser. Claro que a teoria social, num sentido mais alargado, e por oposição à sociologia enquanto disciplina institucionalizada, tem sido menos hostil à normatividade. Grande parte do meu trabalho tem realmente seguido duas tendências: a utópica, na qual apenas alguns sociólogos têm mostrado interesse; e a da análise das políticas contemporâneas como a Nova Direita [New Right] nos anos 80 e o Novo Trabalhismo [New Labour] nos anos 90. Para mim, elas sempre estiveram ligadas: a dimensão utópica informa uma leitura crítica distópica do presente e o debate político em prol da mudança. Portanto, é uma tensão criativa, espero eu.
Mas durante algum tempo, nos anos 70 e 80, era muitas vezes difícil para um sociólogo sustentar a ideia de que a utopia era uma área legítima de trabalho. Como muita gente, eu tenho uma grande dívida para com Lyman Sargent por me ter encorajado a persistir, e duvido que tivesse conseguido acabar de escrever The Concept of Utopia sem esse encorajamento. Nesse livro, tento estabelecer os diferentes modos como o conceito de utopia tem sido usado, e sugerir uma definição analítica mais alargada, que não esteja limitada pela forma, função e conteúdo. O que estou a tentar fazer agora é demonstrar a relação profunda entre sociologia e utopia em termos de método. H. G. Wells dizia, em 1909, que o próprio método da sociologia é a criação e a crítica exaustiva de utopias. Antes disso, escritores pré-disciplinares como Edward Bellamy, William Morris, Charlotte Perkins Gilman (que se apelidava de socióloga) e o próprio Wells não teriam reconhecido a diferença. Espero que numa era cada vez mais pós-disciplinar seja possível reverter a exclusão por parte da sociologia do seu conteúdo utópico necessário. Não prevejo qualquer problema em convencer os utopistas disto, mas se poderei convencer os sociólogos ou não, isso é outra questão.
A segunda edição do seu livro The Inclusive Society? Social Inclusion and New Labour (1998) foi publicada recentemente (com um novo capítulo avaliando os dados do Trabalhismo até 2004). Acredita que a ideia de inclusão social poderá ter um potencial transformativo (e utópico) ou será apenas mera retórica para legitimar as políticas existentes?
A primeira edição de The Inclusive Society é extremamente crítica relativamente ao Trabalhismo embora de facto acabe com a esperança de que a retórica da inclusão possa ser redireccionada para um sentido mais sócio-democrático. Nunca acreditei que isto pudesse acontecer com o partido Trabalhista, cuja política foi recentemente descrita como “Balinice” [Blatcherite]. E parte do argumento da segunda edição é que as políticas para combater a versão de “exclusão social” do governo são elas mesmo repressivas e excludentes nos seus efeitos – especialmente, mas não só, a abordagem ridícula ao “comportamento
anti-social”. Obviamente na Grã-Bretanha, a inclusão é parte de uma retórica política abrangente, entorpecedora e orwelliana. Quando ouço declarações de Blair ou dos “apparatchiks” que formam o governo, apetece-me gritar. Ao nível europeu, há também uma predisposição para pensar a inclusão em termos de mercado de trabalho. Eu acho que isto é errado, ainda que, se pensarmos na exclusão de outro modo, especialmente na exclusão no âmbito das relações sociais, possamos ver que a pobreza é causal, de tal modo que uma direcção dominante da política deva ser a redução da pobreza e da desigualdade. A desigualdade na Grã-Bretanha piorou com Blair, em vez de melhorar. Não estou certa, no entanto, de que o problema da Grã-Bretanha seja universal. Pondo a questão de outro modo, eu diria que o significado de inclusão social é um produto, assim como um constituinte, da cultura política, havendo portanto espaço para a acção positiva se o governo assim o quiser.
Estive recentemente numa sessão de trabalho no Canadá, onde o governo está a trabalhar no sentido de criar um programa de investigação sobre a inclusão social. Fiquei impressionada com o grau de empenho e debate. Fora dos confins da política da União Europeia, e fora da hegemonia britânica neoliberal, é perfeitamente possível ter-se uma discussão séria sobre o que a inclusão pode significar em diferentes contextos políticos e sociais. Por outro lado, nós estamos todos tão sujeitos à hegemonia do crescimento económico e do capitalismo global que a inclusão é sempre limitada por ela. A linguagem da inclusão por si só não vai mudar isto. A questão é sempre quem está incluído em quê, e em que termos.
Mas se houver outras forças transformativas em jogo, a inclusão poderá ser articulada com uma agenda mais igualitária e democrática.
Sugeriu recentemente que a necessidade da utopia está relacionada com uma demanda particular, que condensou nas expressões “procurar o azul” [“looking for the blue”] e “procurar o verde” [“looking for the green”]. Pode falar-nos um pouco mais sobre a natureza dessa demanda?
O termo “procurar o azul” é retirado de uma peça televisiva de Dennis Potter, de 1977, chamada Pennies from Heaven [Cêntimos do Céu]. O protagonista central, Arthur Parker, é um vendedor ambulante que vende pautas de canções populares dos anos 30: Meses e meses tenho trazido estas coisas comigo – estas canções – todas estas lindas canções – eu sempre acreditei nelas. Mas eu não sabia realmente como ou por que é que eu acreditava no que lá estava. Há coisas que são grandes demais ou importantes demais e simples demais para pôr nessa poesia snob, pretensiosa e assim, nos livros e tal – Mas toda a gente as sente… É procurar o azul e o dourado. O padrão do céu azul. O dourado da madrugada, ou da luz nos olhos de alguém – Cêntimos do Céu, é o que é.
[Months and months I’ve been carrying this stuff around - these songs – all these lovely songs – I’ve always believed in ‘em. But I didn’t really know how it was or why it was that I believe in what’s in here. There’s things that are too big and important and too bleedn simple to put into all that lah-di-dah, toffee-nosed poetry and stuff, books and that – but everybody feels ‘em. … It’s looking for the blue, ennit, and the gold. The patch of blue sky. The gold of the bleedin’ dawn, or the light in someone’s eyes - Pennies from Heaven, that’s what it is.] (Humphrey Carpenter, Dennis Potter: the Authorized Biography)
Sirvo-me deste termo para encapsular o tema de Ernst Bloch da falta e do desejo, da origem do impulso utópico, e da busca existencial de uma maneira melhor de ser, assim como a insistência de Bloch na natureza demótica da orientação utópica. Neste sentido, o utopismo está difundido ao longo da nossa cultura declaradamente anti-utópica – mas ele é muitas vezes fragmentário e está geralmente confinado ao que podemos chamar “esfera cultural” da arte, da música, da literatura e da religião. “Procurar o azul” está relacionado com as perguntas com que Bloch inicia o The Principle of Hope [O Princípio da Esperança]: ‘Quem somos nós? De onde vimos? Para onde vamos? De que estamos à espera? O que espera por nós? Ou, se quisermos, é uma demanda (por vezes secularizada) para compreendermos quem somos nós, por que é que estamos aqui, como nos relacionamos uns com os outros, e o que nos faz genuinamente felizes.
“Procurar o verde” é um termo que usei para assinalar a passagem desta demanda do campo da expressão cultural para o campo da organização social e da luta política – portanto, não é bem o mesmo que a passagem da “esperança desejante“ [“wishful thinking”] à “acção plena de desejo” [wish-full action”], embora envolva de facto isso. É antes a passagem do existencial para a questão do tipo de estrutura social que poderá reforçar uma demanda mais bem sucedida e talvez mais inclusiva. E, consequentemente, é também a passagem de uma expressão fragmentária para um holismo social. Claro que isto não é apenas sobre literatura utópica. Na verdade, é sobre os modelos implícitos e explícitos da boa sociedade que permeiam e informam a política contemporânea. Disse “procurar o verde” porque a conceção de um modo de vida compatível com a sustentabilidade ambiental é o desafio político crucial com o qual nos confrontamos neste momento. E não vai ser resolvido exortando as pessoas a reciclar garrafas vazias: serão necessárias grandes mudanças na organização da produção e do consumo, ou no que Marx chamou forças e relações de produção.
Em The Concept of Utopia (1990), já havia chamado a atenção para a dificuldade em se separar o estudo da utopia da demanda da utopia. Neste sentido, como descreveria o seu próprio trabalho? Encara-o como pertencendo mais ao domínio do “estudo desejante” [“wishful study”] ou ao da “ação plena de desejo” [“wish-full action”]?
Embora esta distinção entre a demanda e o estudo da utopia coloque algumas dificuldades, não estou certa de que a queira ultrapassar. Estudar a utopia sem o empenho da procura de um mundo melhor é capaz de levar, primeiro, a maus livros (o Faber Book of Utopia, do John Carey, é um deles), e, em segundo lugar – e mais importante ainda – à falência espiritual. “Estudo desejante” ou “ação plena de desejo”? Não sei… Suponho que o ímpeto de passar da “procura do azul” para a ”procura do verde” seja precisamente o processo da docta spes ou esperança educada que Bloch identificou com a passagem da utopia abstrata para a concreta.
Mas os atos de escrita e de ensino são um tipo de “ação plena de desejo”. Como o é também a tentativa de influenciar a direção da política do Governo, mesmo que de pequenas formas. Por outro lado, devemos ser realistas relativamente ao impacto do trabalho académico, quer na política, quer na cultura política. Muito poucos intelectuais realmente conseguiram mudar alguma coisa, e a maioria dos académicos, incluindo eu própria, não é sequer um intelectual com visibilidade pública. De certo modo, penso que o nosso papel mais importante é o de defender as Universidades como um espaço privilegiado de reflexão, para resistirmos ao utilitarismo do conhecimento ou à ideia de que a investigação precisa de comportar benefícios sociais óbvios e imediatos. Na Grã-Bretanha, pelo menos, a cultura atual é tão anti-intelectual – muitas vezes mesmo dentro das universidades. Portanto, a insistência no facto de isto ser importante também se torna um acto político – ainda que bastante pequeno.
Neste momento é presidente da Utopian Studies Society – Europe, da qual foi também um dos membros fundadores. Como é que surgiu a ideia de criar a USS?
Se bem me lembro, The Utopian Studies Society foi fundada em 1988 num congresso sobre a Utopia organizado pela International Communal Studies Association (penso eu), através do Dennis Hardy, e que teve lugar em Edinburgh e New Lanark (que, na altura, estava menos restaurado do que agora e não providenciava alojamento). The Society for Utopian Studies existia já desde 1975, e organizava um congresso anual na América do Norte. Mas isto foi antes da era (ecologicamente catastrófica) das tarifas aéreas baratas e da comunicação electrónica. Muitos académicos europeus não podiam custear viagens transatlânticas – e parecia absurdo que não tivéssemos uma rede de comunicação que não fosse através da ida à América do Norte. Houve então uma espécie de decisão coletiva, no bar, no sentido de montarmos uma rede. Penso que estava mais embriagada do que os outros, pois concordei com isso. Sei que o Vince Geoghegan estava lá, por isso a culpa foi provavelmente dele.
Olhando para esse momento inicial, 17 anos atrás, considera que a Utopian Studies Society atingiu os seus objetivos?
Estou muito satisfeita com o facto de a USS ter sobrevivido e se ter tornado, em última análise, numa organização genuinamente europeia, embora eu não tenha muita responsabilidade nisso. Não foi um processo perfeito. Durante alguns anos, no final da década de 80 e inícios da década de 90, a USS foi-se arrastando com uma cota pequena e uma newsletter ocasional enviada por mim pelo correio, enfiada em envelopes por adolescentes subornados, porque eu não tinha apoio a nível de secretariado. Organizámos um ou outro congresso, pequeno, com a duração de um dia. E ela foi relançada no final dos anos 90, quando a Lucy Sargisson organizou um congresso mais apropriado em Nottingham, e que se tornou o primeiro dos congressos anuais que actualmente promovemos. Foi formado um comité formal com a Lucy como Secretária, o Jim Arnold (de New Lanark) como Tesoureiro, e a Lorna Davidson (por vezes também Secretária) a fazer a maioria do trabalho a partir de New Lanark (que também já acolheu o congresso anual duas vezes). Fomos ajudados pela evidente emergência de um interesse pela utopia em volta do milénio – a Barbara Goodwin e o Lyman Sargent organizaram um congresso na Universidade de East Anglia, independentemente da USS, precisamente para assinalar este facto. E muitos centros foram criados pela Europa com um enorme trabalho a desenvolver-se em Itália, Portugal e Espanha, e Irlanda, por pessoas como Vita Fortunati, Rafaella Baccolini, Fátima Vieira e Tom Moylan. O marco desta europeização definitiva foi quando em 2003 o Alex-Alban Gómez Coutouly organizou o congresso anual em Madrid, e em 2004 a Fátima e tu, também, organizaram-no no Porto – e, como sabes, vamos agora para Tarragona em 2006, graças ao Pere Gallardo.
Como é que vê o futuro dos estudos da utopia? Haverá ainda outras “cores” (para além do verde e do azul) que valham a pena?
Eu tenho algum receio quanto à direcção dos estudos da utopia. Em todo o caso, talvez eu me preocupe mais com o futuro da Utopia do que com o futuro dos Estudos da Utopia. Mas preocupa-me o facto de, apesar de o campo ser relativamente forte em termos de estudos de ficção utópica, não o ser tanto em termos de teoria política e social. Pessoalmente, gostaria de ver ser posta mais ênfase no pensamento político e um maior empenho na atividade política. Caso contrário, há o perigo de os estudos da utopia se tornarem mais uma área de academismo, em vez de ser um questionamento e um compromisso intelectual arriscado, criativo e transformador. Há alguma pressão junto dos mais novos para desenvolverem um trabalho académico sem controvérsia, e as pessoas têm carreiras a construir. Por isso também penso que temos de defender as Universidades como espaços de debate intelectual, e não apenas académico. E, mais uma vez, penso que o estudo da utopia sem dedicação à utopia (ou pelo menos à crítica e à transformação que ela pressupõe) é estéril.
A questão das outras cores está relacionada com esta. Continuo uma socialista empenhada, por isso o verde tem de ser acompanhado com o vermelho, e por muito que esteja empenhada em procurar o azul, oponho-me a ela enquanto cor política. O que o socialismo pode significar, como pode ser possível, e como se relaciona com o verde, é uma questão complicada. Pode ser até que o termo socialismo seja em si de pouca ajuda. Mas, como William Morris dizia, Os Homens lutam e perdem a batalha, e aquilo por que lutaram acaba por despontar, apesar da derrota deles, e quando surge já não é o que eles pretendiam, e outros homens têm de lutar pelo que eles pretendiam sob um nome diferente.
[Men fight and lose the battle, and what they fought for comes about in spite of their defeat, and when it comes turns out to be not what they meant, and other men have to fight for what they meant under a different name.] (William Morris, A Dream of John Ball)
Entrevista de Marinela Freitas, Projecto “Utopias Literárias e Pensamento Utópico: a Cultura Portuguesa e a Tradição Intelectual do Ocidente “ Faculdade de Letras da Universidade do Porto. "Procurando O Azul – Entrevista a Ruth Levitas", E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 4 (2005). (link)