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Maria Filomena Mónica (2011)
Luísa Schmidt (LS): Como se consolidou do ponto de vista institucional o campo das ciências sociais em Portugal?
Maria Filomena Mónica (MFM): Antes da institucionalização, seja o que for que isto queira dizer, houve um homem, Adérito Sedas Nunes. O Gabinete de Investigações Sociais, o GIS, existiu porque existia o Adérito. Tal aliás como o ISCTE. O Adérito, como a certa altura desejou que o tratássemos, era um economista desiludido. Licenciara-se pelo ISCEF (agora ISEG), onde, durante anos, deu aulas, com base numa "sebenta" escrita por ele, sobre a história das ideias políticas e sociais. Nesta altura, ainda o não conhecia, porque, embora economia tivesse sido a minha primeira opção, acabei por a trocar por filosofia, curso em que me inscrevi em 1961. Em 1969, licenciei-me e, em 1970, entrei, como bolseira-estagiária para o Gabinete de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian, chefiado pelo Rui Grácio. Eu queria saber que tipo de cultura tinham os jovens de diversas classes sociais. Elaborei um formulário, aplicado em todo o país, aos alunos do ciclo preparatório, miúdos de 11 ou 12 anos, com base numa amostra de 8 000 crianças. Para meu espanto, descobri que a obra mais lida em Portugal pelos jovens escolarizados era A Rosa do Adro (1), de que nunca tinha ouvido falar. Comecei a tentar interpretar os dados, mas sobre alguns pontos tinha dúvidas. Um amigo, o José Carlos Ferreira de Almeida, que era sociólogo, criticou a composição da amostra, o que me levou à paralisia. Quando expus ao Rui Grácio as minhas hesitações, este aconselhou-me a falar com o professor Sedas Nunes, uma vez que ele não se sentia competente para me ajudar. Pedi uma audiência a Sedas Nunes, mas recusou. Rui Grácio sugeriu-me então que fosse estudar para o estrangeiro, com uma bolsa da Fundação. Escolhi sociologia, uma disciplina que, à época, era proibida em Portugal. Tendo sido admitida na Universidade de Oxford, em 1971, parti para Inglaterra, onde, em 1962, já tinha vivido. Inscrevi-me numa espécie de mestrado, o B. Phil, que exigia uma série de exames finais, de que o mais difícil era o de estatística. Farta de números e dos seminários que pouco me interessavam, a sociologia inglesa era muito influenciada pela americana, pedi ao departamento para subir um grau, passando, desde logo, ao doutoramento, o que me foi concedido. Comecei então a investigar o salazarismo, a fim de compreender o que tinha diante dos olhos, ou seja, o regime de Marcello Caetano. Eu não tinha uma liberdade total de escolha do tema: segundo as regras da Fundação, a tese tinha de ser sobre Portugal e, no meu caso, de se centrar em sociologia da educação. Foi assim que, após descobrir que nunca entenderia o que o ministro Veiga Simão andava a fazer sem recuar no tempo, acabei a estudar as políticas educativas de Salazar. O departamento de sociologia de Oxford ainda torceu o nariz, considerava que aquilo era demasiado histórico, mas era suficientemente flexível para me deixar fazer o que pretendia. No Natal de 1973, depois de um ano de leitura da bibliografia estrangeira, vim para Portugal a fim de fazer a investigação que desejava na Biblioteca Nacional.
LS: Estávamos então nas vésperas da Revolução de Abril?
MFM: Estávamos, mas ninguém o sabia. Lembro-me de ter ido a um jogo de futebol, um de apenas dois a que assisti, com o João Cravinho e de ter visto o estádio em pé, aplaudindo Marcello Caetano. Convenci-me de que o regime estava para dar e durar. Sabia que, se queria fazer a tese, teria de passar um ano na Biblioteca Nacional, mas temia que a estadia em Portugal me "estragasse" a cabeça. Sem a ajuda do Adérito, sem as suas conversas, sem o seu estímulo, sem a sua disponibilidade, é provável que tudo tivesse sido mais difícil. Subitamente, a minha vida alterou-se. Apesar de mal me conhecer, convidou-me para sua assistente no curso de sociologia que estava a preparar no ISCTE. Disse-lhe que não tendo a tese terminada, não me sentia preparada. Da equipa faziam parte vários amigos meus, como o Afonso de Barros e o Armando Trigo de Abreu. Mais importante, no ISCTE estava também a ensinar o Vasco Pulido Valente, o qual, tanto quanto me lembro, era assistente do Alfredo de Sousa. Eu continuava a resistir. A certa altura, disse ao Adérito que não me sentia preparada para leccionar uma cadeira chamada "Demografia e recursos humanos" (não se podia chamar "sociologia" por ser proibido). Depois, sob pressão do Vasco, que era o meu maior amigo, acabei por aceder ao convite do Adérito. A equipa começou a preparar as aulas em Fevereiro de 1974. Um mês antes da Revolução, dei comigo a falar do Exército Industrial de Reserva a 20 alunos. A coisa parecia, e era, surrealista. A certa altura, o Adérito informou-me ter eu na aula um PIDE, mas não me impediu de mandar os alunos ler Marx, o que fiz, em doses industriais.
A 25 de Abril, chegou o golpe de Estado. Nos dias que se seguiram, viveu-se, no ISCTE, um clima de incrível turbulência. A maior parte dos docentes era do MES e, entre eles, havia quem tivesse relações com os militares, por isso estávamos sempre a par de tudo o que se preparava. Criado para servir de contraponto ao insurrecto ISCEF, o ISCTE foi a primeira faculdade do país a entrar em auto-gestão.
No final de Abril, os assistentes invadiram o gabinete de Sedas Nunes, declarando que não o deixariam convocar o Conselho Escolar. Pelo próprio, soube que tinha ficado chocado que nós, os seus discípulos, pudéssemos imaginar dar-lhe ordens. Respondi-lhe que, com os capitães na rua, era evidente que ele não podia continuar a liderar a escola como se nada se tivesse passado. Para minha surpresa, a minha presença entre os rebeldes não impediu a continuação das boas relações que mantínhamos. Aliás, a invasão do gabinete cedo se revelou uma gota no oceano. Seguiu-se uma assembleia-geral de escola, onde, em princípio, se iriam proceder a saneamentos, mas que se limitou à inquirição de um pobre contínuo. Fiquei enojada.
Apesar de andar entusiasmada com a Revolução, e ao contrário do que me aconselhavam alguns amigos, não me inscrevi no MES. Inconscientemente, sabia que não tinha feitio para militâncias. Limitei-me a ir à reunião fundadora do Sindicato dos Professores. Mas até isto acabou por me desinteressar, uma vez que considerei que o que se estava a passar no ISCTE era mais grave. Os alunos elegeram, duas ou três semanas depois, uma comissão diretiva, onde, juntamente com a Miriam Halpern Pereira e o Adérito Sedas Nunes, me incluíram. Fiquei atónita, uma vez que não tinha qualquer passado anti-fascista. Os estudantes tinham feito uma lista com os critérios para o saneamento dos docentes, ter sido ministro, deputado na Assembleia Nacional ou procurador da Câmara Corporativa, mas esqueceram-se de fazer o trabalho de casa. Caso o tivessem feito, teriam verificado que o Adérito fora procurador à Câmara Corporativa. Desconhecendo o facto, acabou eleito. Mas a coisa não correu bem. Não tardou que as minhas posições desagradassem aos alunos. Eu queria criar uma escola de sociologia exigente, meritocrática e livre. Nada estava mais longe dos desígnios estudantis. Estes pretendiam fazer trabalhos de grupo, reorganizar os curricula de alto a baixo e recrutar alguns operários para a escola («Colocando-os depois numa jaula»?, questionei). Na segunda ou terceira reunião, era já tida como uma inimiga. Comecei a ter dúvidas sobre a vantagem de ali estar. Numa das últimas reuniões, os alunos apareceram com uma lista idiota, composta pelos títulos dos principais livros de Álvaro Cunhal e de Marta Harnecker. Mais do que a atitude dos estudantes, enfurecia-me a covardia de alguns catedráticos. Em Junho, decidi abandonar a escola.
Como disse, desde 1971 que era bolseira da Fundação Gulbenkian no estrangeiro. Dias após o 25 de Abril, escrevera ao director do meu departamento, o professor A. H. Halsey, pedindo-lhe para me deixar ficar em Portugal, interrompendo o doutoramento. Talvez por ter simpatias de esquerda, concordou. Também solicitei à Fundação Gulbenkian que interrompesse o pagamento da minha bolsa. No Verão de 1974, voltei a escrever ao Serviço de Bolsas de Estudo, explicando-lhe que desejava recomeçar o doutoramento. Expliquei ao Adérito, o qual, embora relutantemente, acabou por aceitar. No Outono de 1975, regressei a Inglaterra.
Em 1977, acabei a tese, defendida em 1978. Como já não tinha o dinheiro da bolsa, fui obrigada a dar aulas no ISCTE, o que me criou uma situação engraçada, pois me apercebi que tinha muito mais poder do que antes. Continuava a discordar de tudo, da gestão, da forma como os alunos eram examinados, do recrutamento de assistentes, mas como legalmente o Conselho Científico tinha de ter cinco doutorados e, na área das humanidades (história e sociologia) só havia quatro (comigo, cinco), se eu abandonasse o Conselho Científico, a escola deixaria de funcionar. Isto era, em grande medida, fruto de alguns catedráticos terem trocado o ISCTE, alguns terão mesmo sido saneados, por outras instituições. Foi assim que nasceu a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, fundada por Alfredo de Sousa.
LS: Nessa altura, o Sedas Nunes já tinha saído do ISCTE?
MFM: Sim, o Sedas Nunes tinha saído para a Universidade Nova, que ainda estava em fase de instalação. Aliás, tanto eu como ele, legalmente pertencíamos ao quadro da Universidade Nova, e estávamos emprestados ao ISCTE.
No Verão de 1976, quando vim de férias a Lisboa, encontrara um Adérito singularmente desiludido. Após o 25 de Abril, tinham ocorrido divisões entre ele e os seus amigos, como o Francisco Pereira de Moura e o Mário Murteira. Na altura, nada me dissera, mas depois contou-me que pensara em emigrar, tendo chegado a escrever nesse sentido a Alain Touraine. Mas acabou por ficar, e o GIS, criado com o apoio financeiro da Fundação Gulbenkian, voltou a ser a menina dos seus olhos.
Tendo-lhe dito que não tinha um local onde trabalhar, ofereceu-me um cubículo, num dos claustros do ISCEF, onde estava guardada a biblioteca do GIS (a instituição mantinha laços com a faculdade por onde o Adérito se licenciara). Fui então ocupar um corredor húmido, mas que me dava o que, para mim, era importante: silêncio. Guardo aliás desse tempo óptimas recordações. Mas o Adérito considerava que aquele buraco fazia mal à saúde. Passado algum tempo, disse-me para vir para um gabinete na Rua Miguel Lupi, que passei a ocupar de parceria com o João Ferreira de Almeida. Só agora noto que estou aqui há trinta e três anos!
Muito se passou pelo meio no que diz respeito a instalações, mas, como se vê, resisti, com sucesso, à transumância. No início da década de 1980, o Adérito e a maior parte dos colegas, especialmente os que ensinavam no ISCTE, mudaram-se para a Avenida das Forças Armadas e, mais tarde, já depois de o Adérito ter morrido, no início de 2000, para o atual edifício, na Avenida Professor Aníbal Bettencourt. Expliquei então, por escrito, ao Conselho Directivo do ICS, na altura era assim que se chamava, que, se me obrigassem a ir para a cidade universitária, seria forçada a deixar de ler 145 livros por ano, um número obviamente inventado, o que me prejudicaria e indirectamente a instituição. Ainda fui ver, ao novo edifício, o luxuoso gabinete que me estava destinado, mas nada me demoveu. Não queria passar horas no trânsito, sem que ninguém, nem eu, disso beneficiasse. Foi aqui, onde me estão a entrevistar, que acabei por passar o resto da minha vida académica.
Vi sempre com bons olhos a ideia de manter o GIS como uma instituição exclusiva de investigação e pós-graduação, o que era difícil, por não haver um precedente no país. Devo dizer que, se para mim, me era igual pertencer ou não a um quadro, o Adérito não pensava assim. Mais velho, e sobretudo mais realista do que eu, sabia que as aventuras são mais aprazíveis na juventude do que na velhice. Quanto entrei, não havia, como disse, formalidades. Quem decidia tudo era o Adérito, um déspota esclarecido, na melhor acepção da palavra; se não fosse ele nenhum de nós teria tido a carreira que hoje tem.
LS: Entretanto, o GIS também se institucionalizou.
MFM: Em 1979, o Adérito foi nomeado ministro da Coordenação Cultural e da Ciência. Odiou o posto tanto quanto antes detestara a presidência da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. Por boas e más razões, não gostava de luta política nem do quotidiano da alta administração. Aquilo que, de facto, apreciava era ficar de manhã em casa, a ler, e à tarde de vir até à Rua Miguel Lupi. No final da sua estadia no governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, que durou nove meses, decidiu elaborar um decreto institucionalizando o GIS.
Quando, pouco depois, Sá Carneiro chegou ao poder, determinou a anulação dos decretos publicados nas últimas semanas, pelo que o GIS voltou ao seu ambíguo estatuto. Só em 1982, o Adérito conseguiria aquilo por que, ao longo dos anos, tinha sonhado.
Quando viu a sua decisão ser anulada, ficou imensamente triste. Farto de conselhos de ministros que se arrastavam pela noite dentro, decidira fugir, tendo-se refugiado em Tróia. Acabei por lá ir, a fim de discutir o futuro do GIS. Mas as nossas visões nem sempre coincidiam. Para mim havia um risco que, para ele, não contava: o da burocratização.
Lembro-me de, uma vez, já ele regressara à Rua Miguel Lupi, lhe ter feito uma partida. Os membros do GIS tinham de preencher anualmente um formulário, com os projectos que tencionavam fazer, o andamento dos trabalhos anteriores e as verbas de que carecíamos (naquela altura, irrisórias). Intitulei o meu projecto: "Um estudo de caso: a burocratização do GIS". Depois, coloquei no papel todo o jargão sociológico que conhecia, acrescentando, como bibliografia, as obras de Max Weber, em alemão. O Adérito não achou graça à brincadeira, mas não se zangou comigo (o formulário deve estar algures no arquivo do GIS). Outra divergência dizia respeito à massificação do futuro instituto. Para ele, quanto mais gente melhor, desde que fosse ele a escolher, enquanto para mim, o ideal era um organismo pequeno, onde pudesse existir um contacto íntimo entre os investigadores.
Em data que já não sei determinar, decidiu-se constituir um grupo de trabalho informal para analisar a questão. Percebia a sua preocupação, a de que nós, os investigadores, tínhamos de ter garantia de trabalho, mas temia que o preço a pagar fosse demasiado elevado. Contactámos várias pessoas. Lembro-me do Afonso de Barros, do Alberto Romão Dias, do Luís Moniz Pereira, do António Barreto e do Vasco Pulido Valente, o qual, depois da morte de Sá Carneiro, estava disponível para voltar à carreira universitária. Depois de uma maratona, com uma minoria ou com o grupo no seu pleno, acabámos por agregar duas pessoas, o Manuel de Lucena, em quem eu tinha enorme confiança, e o então reitor da UL, Raul Miguel Rosado Fernandes, cujo contributo foi decisivo. Para que se criasse o instituto que desejávamos, este teria de ficar albergado numa universidade. Por várias razões, de entre a qual a mais importante era a resistência das faculdades, que viam com inveja um instituto sem alunos de licenciatura, as universidades, as três que existiam em Lisboa, ofereciam resistência à novidade e foi Rosado Fernandes quem impôs às faculdades a criação do Instituto de Ciências Sociais. Valeu a pena.
Outra questão, debatida ainda antes da queda do governo Pintassilgo, foi a proposta de lei da Dedicação Exclusiva da Carreira Universitária, igualmente elaborada pelo Adérito. Mais uma vez, houve divergência de pontos de vista, entre mim e ele. A mais relevante dizia respeito a uma alínea, que ele teimava em introduzir e que permitia, a quem optasse pela dedicação exclusiva num instituto de investigação, dar até quatro horas semanais de aulas numa faculdade. Eu era contra, entre outras razões porque muitos dos meus colegas do GIS davam aulas no ISCTE, o que considerava minar a personalidade da primeira instituição. Ainda lhe lembrei o bíblico argumento, "Não se pode servir bem a dois senhores", mas o Adérito era teimoso. Até que, ao fim de muitos debates, descobri o que estava por detrás da sua obsessão: ele queria continuar a ser professor. Eu achava que a medida iria dar mau resultado, como depois se veio a verificar: ninguém cumpria a dedicação exclusiva e continuava-se a fazer investigação e a dar aulas ao mesmo tempo.
LS: E o teu percurso científico no ICS?
MFM: Antes de entrar para o GIS, formara-me em filosofia. Foi com um pé já cá dentro que acabei o doutoramento em sociologia. Quando regressei de Oxford, tinha uma interrogação na cabeça: o que teria ficado no espírito dos miúdos que haviam sido sujeitos à dieta ideológica do Estado Novo? Que teriam absorvido dos valores "Deus, Pátria e Família" que o regime pretendera inculcar? E nos meios com uma cultura própria, como os operários, como se olhara a escola? Foi a partir destas perguntas que decidi estudar a classe operária. Havia ainda outra razão de peso: a Revolução supostamente feita em nome do proletariado.
Fui viver, durante um período, para a Marinha Grande, o símbolo por excelência de uma comunidade operária. Mas, quando ali cheguei, em vez dos operários de boina, montados em bicicletas, apenas vi rapazes de casacos de coiro a conduzir Toyotas. Falei com vários operários mais velhos que tinham participado no 18 de Janeiro (a sublevação de 1934), mas a maioria dos trabalhadores do vidro que entrevistei nas fábricas não sabia sequer o que isso era.
A minha primeira obra histórica foi sobre a classe operária no século XIX. Depois, estudei os patrões, primeiro os de Oitocentos, o que deu origem a um artigo na Análise Social e, mais tarde, a seguir à adesão do país à CEE, os empresários, um trabalho que acabaria por desembocar no meu livro Os Grandes Patrões da Indústria Portugueses.
Na década de 1990, a Assembleia da República encomendou ao ICS um trabalho interessante, a elaboração de um Dicionário Biográfico Parlamentar [reunido em 5 volumes]. Eu fiquei com a coordenação do período entre 1834 a 1910 (3 volumes). Com cerca de quarenta autores, que não entregavam as biografias a tempo, ia dando em louca. Foi o trabalho mais custoso da minha vida, mas provavelmente será o único que ficará para a posteridade.
LS: Como tens visto a evolução, o crescimento e percurso das ciências sociais e respetivas instituições, faculdades e centros de investigação?
MFM: Bem, mas com riscos. O principal problema deriva do crescimento, demasiado rápido, alimentado pelos fundos europeus. As instituições que crescem a uma velocidade acelerada correm o risco de perder a personalidade. Ao atribuir às faculdade e aos centros verbas per capita, ou seja, em função do número de alunos, a Europa estimulou a mediocridade. Isto permitiu que entrasse muita gente na universidade que não devia lá estar. O dinheiro, em vez de melhorar as instituições, piorou-as. Mas não quero ser demasiado crítica. O que se passa, em Portugal, é idêntico ao que acontece na maior parte dos países europeus e nos EUA. O mundo, também aqui, está globalizado.
LS: E a questão da interdisciplinaridade ao nível das ciências sociais?
MFM: Gosto de um tipo de ciências sociais que possibilite a mistura entre a história, a sociologia, a economia e a antropologia. O homem é uno, e por isso temos de usar a «imaginação sociológica», para citar o título do famoso livro de C. Wright Mills. A especialização mutila a realidade. Acabo de chegar de Florença, portanto não se admirem que pense em gente como Leonardo da Vinci ou Maquiavel, que se uniram para conceberem um plano, que acabaria por não se concretizar, a construção de um canal que ligasse aquela cidade ao mar. Nem um nem outro se interessavam apenas por quadros ou livros, mas por tudo o que os rodeava. As coisas não poderão ser agora como eram no Renascimento, mas devemos pensar as humanidades como um todo, porque, se não o fizermos, corremos o risco de acabarmos a estudar um canteiro seco. Por exemplo, faz-me impressão que muitos sociólogos, como aliás outros académicos, não leiam ficção. Convencidos de que lhes confere status, há jovens que preferem colar um rótulo na testa. É um erro, pois a especialização precoce faz mal à cabecinha.
Pelo seu percurso académico, o Adérito Sedas Nunes conhecia a bibliografia de várias áreas. Era culto, escrevia bem, e tinha uma capacidade espantosa para analisar a sociedade portuguesa. Um dia, critiquei-o por ele ter deixado de escrever, e ele respondeu-me: «Há uma coisa que a Mena tem de perceber: a criação não se faz só através da escrita, pode igualmente concretizar-se a nível institucional». E adiantou, com orgulho: «Nos últimos anos, dediquei-me a criar esta instituição e não estou arrependido». Embora tenha pena que não tivesse redigido o livro que ele desejava intitular Livres e Iguais estou-lhe grata por nos ter legado o ICS.
LS: E como vês a interdisciplinaridade com as outras ciências, as naturais?
MFM: As pessoas que estudam humanidades deveriam saber mais sobre as ciências exactas. Contra mim, falo. Até já me esqueci da fórmula do oxigénio! É uma vergonha. De certa forma, houve uma inversão. Depois de séculos, em que as ciências exatas eram o paradigma da ciência, por vezes há uma atitude de superioridade por parte das ciências sociais: nós, os da parte "mole" da barricada, desprezamos as ciências exactas. Excetuando a matemática, achamo-las simplórias. Já dei comigo a pensar se a medicina é uma ciência, uma vez que apenas aplica os conhecimentos adquiridos na biologia.
LS: E não achas que essas ciências também têm um desprezo pelas ciências sociais?
MFM: Sim, mas não tanto quanto há um século.
LS: Na actual conjuntura de crise e de restrições orçamentais, verifica-se na Europa uma tendência de diminuição de apoios à investigação na área das ciências sociais?
MFM: Ao contrário do que por vezes se apregoa, a ciência não é (não pode ser!) um instrumento que sirva apenas para o desenvolvimento tecnológico das sociedades. Uma universidade é um centro de saber, não um departamento de um ministério... Ninguém definiu melhor o que é uma universidade do que M. Oakeshott: para ele, a universidade era uma «conversa» entre pares. Não existe qualquer outra justificação para uma universidade a não ser a de aumentar o saber. As universidades não têm que ter um objetivo derivado. É evidente que, ao descobrir-se o DNA, as sociedades retiraram do facto benefícios. Mas isso não significa que as universidades tenham de ajudar os países na competição tecnológica. Talvez seja essa a missão dos politécnicos. Das universidades, não o é certamente. Atenção, não estou a dizer que o Estado não deva financiar o saber, o que estou a dizer é que o saber é um fim em si próprio e não um meio. Sou favorável a que os cursos de humanidades tenham o patrocínio do Estado, mas este não pode nem deve exigir nada em troca. Claro que se pode aproveitar uma ou outra encomenda, mas não demais. Uma instituição que recebe mais de metade do seu orçamento para investigações aplicadas está condenada. Os centros de investigação têm de pensar sobre o que é que vem ligado ao investimento para determinados estudos. É por isso que estou contra alguns dos chamados Observatórios, por estarem demasiado condicionados pelos desejos dos governos.
LS: E o futuro das novas gerações de cientistas sociais portugueses?
MFM: É negro. Há três anos, pela primeira vez na minha vida, dei um 20 a uma aluna; hoje, ela ainda está no desemprego. Por mais cultos, por mais viajados, por mais trabalhadores que sejam, os jovens não arranjam lugar nas universidades portuguesas: não têm onde ensinar, nem conseguem fazer a investigação que desejam. Que futuro têm os jovens que mandámos lá para fora, e bem, a fim de se doutorarem? E isto nem é o pior, porque, a outro nível, houve promessas criminosas. Os executivos deram a entender aos pais que se os filhos se licenciassem teriam um futuro glorioso. Pessoas humildes convenceram-se de ser isto verdade e fizeram sacrifícios impensáveis para mandar os filhos para a universidade. No final, verificaram muitos deles que eles só arranjam emprego, quando arranjam, nos call centers?
LS: Mas sem educação também não se vai a lado nenhum; ela não é sempre fundamental?
MFM: Claro, mas nem sempre pelos motivos invocados. Na altura em que se alargou o numerus clausus teria sido melhor avisar a população de que os estudos são importantes, por si só, mas que não garantem um emprego. A situação é mais grave nas humanidades do que, por exemplo, nas engenharias, porque se é evidente que é preciso reparar as pontes, o mesmo não acontece quando se fala de pôr um jovem a dissertar sobre Cícero.
LS: Qual é a tua avaliação sobre as linhas de força teóricas e empíricas que emergiram nas ciências sociais portuguesas nos últimos anos?
MFM: Não me interessa a conversa sobre linhas de força teóricas. Para mim, a sociologia assemelha-se ao papel de James Stewart no filme de Hitchcock, A Janela Indiscreta. Devemos colocar-nos a uma janela e observarmos o que se passa à nossa volta. Devemos ajustar a nossa máquina intelectual com o zoom necessário para o que pretendemos e sermos persistentes. Gradualmente, isto conduzir-nos-á às questões que se puseram os pais fundadores da sociologia, Marx, Durkheim e Weber. Um sociólogo tem de ter as ideias arrumadas, os olhos abertos e os ouvidos à escuta.
LS: De certo modo, os pais fundadores anteviam uma ruptura social e económica que seria induzida pelo capitalismo, e mantêm-se actuais?
MFM: Mantêm-se. Eles assistiram ao nascimento da Revolução Industrial. Nós estamos a assistir ao seu fim na Europa, mas não no mundo. Veja-se o que está a acontecer na China e na Índia. Assistimos ainda ao fim do comunismo, mas isso não nos impede de nos interrogarmos sobre que tipo de capitalismo estamos a forjar. Porque há muitos: basta olhar a Suécia e a China. O Estado Social é um bem que a Europa foi capaz de criar, mas que tem de ser repensado, porque a estrutura social mudou enormemente desde o final da Segunda Grande Guerra. Não é tanto de um apocalipse que tenho medo, mas sim das tendências populistas que podem surgir dos movimentos de rua. Especialmente se violentos, estes podem levar à emergência de ditadores. Se as pessoas não perceberem para que votam, se não perceberem o motivo das crises que atravessam, se não entendem o que representou a reunificação da Alemanha, corremos o risco de começar a pedir um ?salvador? que nos garanta a estabilidade. A falta de conhecimentos históricos leva a atalhos perigosíssimos.
LS: Sempre fizeste o que quiseste no ICS?
MFM: A minha liberdade foi sempre total. Nunca senti a menor pressão, nem por parte dos colegas, nem do director.
LS: Era um ambiente especial?
MFM: Era uma ilha de excelência. E isto deve-se, como disse, a um homem, Adérito Sedas Nunes. Se calhar, era ele quem tinha razão, quando me dizia que a criação institucional era mais importante do que a escrita. De cada vez que entro neste andar, tenho saudades dele, o que não posso dizer de muitas das pessoas com quem convivi na universidade. Os jovens que hoje estão no ICS não sabem o que custou transformar o frágil GIS numa instituição sólida. Alguma coisa se terá perdido pelo caminho. Mas se hoje há um quadro, um vínculo e orçamentos plurianuais, e se podemos conferir os graus de mestre e de doutor, isso deve-se, em grande medida, ao temperamento do fundador do ICS. Um obsessivo crónico, Adérito Sedas Nunes não parecia interessar-se por mais nada. Os seus anos finais foram difíceis, mas nada pode apagar o facto de me ter deixado, a mim e aos meus colegas, uma instituição de que nos podemos orgulhar. Não é pouco.
Notas
* Com a colaboração de Nuno Gonçalo Monteiro, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais.
(1) Romance da autoria de Manuel Maria Rodrigues (1847-1899).
Entrevista de Luísa Schmidt, revista Análise Social, nº 200, Lisboa (fonte)
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