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Alexandre O’Neill (1982)

«Portugal / meu remorso» – é ele a falar do País. «Eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá» – é também ele. Alexandre O’Neill, 57 anos, diante do seu fantasma, o tempo. Trinta anos de versos estão reunidos em volume e o «JL» quis ouvir este lisboeta com nome de aristocrata irlandês, recuperado de uma «panne» onde todas estas coisas mais doem, que é no coração.

«Sempre ‘sofri’ Portugal», diz Alexandre O’Neill ao «JL» nesta breve – porém laboriosa: já lá vamos – entrevista com o pretexto na publicação das suas Poesias Completas. O sofrimento deve entender-se, acrescenta o autor de Feira Cabisbaixa, «tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança», fórmula onde se descobriria, arrisca o poeta ecoando velhos versos parnasianos, um intenso, verdadeiro amor.

Foi Vasco Graça Moura que o convenceu a reunir a obra poética. Trinta anos de escrita, do Tempo de Fantasmas a As horas já de número vestidas, com exclusão apenas daquilo que O’Neill arruma formalmente sob a designação de ‘crónicas’. Mas dá-se o caso de as Poesias Completas incluírem precisamente alguns textos elaborados de raiz para jornais e que ao entrevistador pareciam resolver-se como prosa. Também sobre isso fala Alexandre O’Neill. Que entretanto, anfitrião simpático, irá buscar ao frigorífico uma garrafa de água mineral sem gás – ele não bebe bebidas alcoólicas – e pedirá a Laurinda, na hora de esta chegar a casa, «ora arranja lá um chá para nós três».

A casa é na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, a curta distância desse Jardim do Príncipe Real que entrou por direito próprio na poesia de O’Neill. Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso de livros: a poesia em força, mas também artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever «HCESAR». Cinzeiros. Luz sem excesso. Entro às 10 da noite e saio quatro horas depois. A última hora, porém, gastamo-la a ouvir Laurinda contar como foi um ‘show’ de José Afonso em Oeiras e a comentar a ‘gaffe’ de dois jornais brasileiros que aqui há semanas deram Octávio Paz por morto.

A entrevista fez-se com duas máquinas de escrever: o repórter do «JL» batia a pergunta, tirava a folha, estendia-a ao entrevistado, este batia a resposta, perguntava «está bem?», o repórter respondia «está, claro», e assim por diante.

Para a ficha do poeta: 57 anos de idade, lisboeta, redivorciado, dois filhos, um matulão, Alexandre, outro pequeno, Afonso; trabalha na Lápis – Estudos Promocionais, Lda., à Travessa da Condessa do Rio; andou pela TV como ‘pivot’ de vários programas e jurado da infausta Prata da Casa, que deu mosquitos por cordas; é tão bom conversador como sovina nas respostas dactilografadas, o que se perceberá lendo a continuação; sempre ‘sofreu’ Portugal, e sempre se gastou à velocidade de um fósforo, e sempre foi vítima de nervosos miudinhos; tudo junto, (en)fartou-se e poisou o canastro na UTIC de Santa Maria, a reparar avarias cardíacas; recuperado, ri com os dentes todos.

Começámos assim:

«JL» – reunir trinta anos de poesia tem algum significado especial para si? Digamos, sente-se etiquetado, arrumado, com um bilhetinho por cima a dizer «trinta anos»?

Alexandre O’Neill – De modo nenhum! Trinta anos é apenas para passar para outra coisa. Para dizer a verdade, estava farto de tudo o que tinha escrito até à publicação destas Poesias Completas. Você sabe o que é conviver demasiado com o que se vai fazendo, não sabe?

P – Calculo o que seja. Agora falando de biografia: você é de Lisboa, é um O’Neill Vahia de Bulhões (cheira-me a Santo António, desculpará) e no dizer do Cesariny em 1945, «no Café ‘A Cubana’, da Avenida da República», travou conhecimento com ele ou ele consigo. Essas aventuras surrealistas ainda têm alguma coisa que valha a pena contar? Dá-me a impressão de que vários surrealistas portugueses quiseram rasurar, a partir de certa altura, o nome «Alexandre O’Neill». Responde a esta longa pergunta?

R – Houve um especialista em hagiografia e, particularmente em Santo António, que me disse, para grande desgosto meu, que essa de o Santo se chamar Fernando de Bulhões era uma grande lenda. Claro que não me revelou o verdadeiro nome, de modo que eu continuo a aguentar a lenda e a dizer que sou… parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático!) milagreiro… Quanto às aventuras surrealistas está tudo contado, precisamente pelo Cesariny, que deve ter um baú quase tão grande como o do Pessoa. A rasura deveu-se à circunstância de eu ter abandonado a actividade grupal do surrealismo para me dedicar à política, calcule você! À política, mas naquele sentido estrito da militância nos movimentos juvenis por onde já o Cesariny tinha andado. Depois, ao publicar o primeiro livro, introduzi-lhe uma nota proeminal que demonstrava o fervor ridículo de todos os neoconvertidos e que dava pancada nos surrealistas ficantes chamando-lhes aventureiros, o que era perfeitamente desnecessário…

P – Exacto, e os que você apelida de «ficantes» mandaram cá para fora um papel basto feroz intitulado Do Capítulo da Probidade. Parecia tudo, pois, uma família com as partilhas feitas. Mas em 1961 na Antologia surrealista do cadáver esquisito, para espanto dos observadores, o Cesariny não esteve com mais aquelas e antologiou-o mesmo. Dá para entender?

R – Dá, dá! O Cesariny não me cita uma única vez no Surreal-Abjeccionismo, que é de 1963, mas já me inclui na Antologia, que você refere porque eu ajudei muito (e com muita honra!) a fazer cadáver.

P – Passemos a outra família, a sua. Nos Poemas com endereço o O’Neill escreve: «Estou no murmúrio de desgosto da minha família / da minha família imóvel diante de mim / (…) / da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos / pronta a saltar-me em cima a reduzir-me / a mais um da família.» O jovem poeta foi mal aceite? Ou foi aceite, mas em transe pejorativo?

R – A minha mãe (que já lá está, coitada!), quando apanhava um poema meu – melhor seria dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa (casa onde estive só até aos 16 anos). No fim da vida, já sentia um certo prazer em ser a mãe do poeta O’Neill, mas eu fingia que não a percebia, quando a questão era abordada…

P – Profissionalmente você está – para mim, que o conheço há uma dúzia de anos, sempre esteve – metido nas publicidades, sendo considerado inclusive um óptimo «copy-writer». Passe por cima do adjectivo «óptimo» e diga-me rapidamente o que é isso do «copy-writer», pode ser?

R – Pode. Ser «copy-writer» é uma actividade engraçada pelo lado da invenção de «slogans», por exemplo. Só é chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal. O jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc., vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho. Eu descobri a publicidade através do cinema publicitário. Propus uma vez a alguém (por brincadeira, claro) que oferecesse um «slogan» ao Metropolitano de Lisboa. O «slogan» era: «Vá de metro, Satanás!» Esta brincadeira ia-me custando o emprego. Mas também fiz um, a sério, que foi muito conhecido e ainda hoje é usado (que pena não o ter registado!): «Há mar e mar / há ir e voltar.» Os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração: «Há bar e bar / Há ir e voltar…»

P – De vez em quando o O’Neill aparece a colaborar em jornais. Para mim é uma complicação, porque eu tendo, numa primeira leitura, a ler «crónicas» onde não havia nada disso, mas poemas. Por outras palavras, dessas pretensas crónicas há algumas lançadas nas próprias Poesias Completas, como poemas em prosa. Ajuda-me a descalçar este escarpim?

R – Dê cá o pé! O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para os jornais que, depois, reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que não ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que lhe podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar ou apressar, e tomar por poema o que não é…

P – Eu diria, socorrendo-me aliás de leitores mais atentos do que eu, que você tem um tema dominante, Portugal (a Feira cabisbaixa aparece em italiano, na versão de Joyce Lussu, como Portogallo, mio rimorso, e muito bem), e um fantasma omnipresente, o tempo (cá vai uma de O’Neill entre aspas «Quandonde foi? / quandonde será? / / eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá»). Concorda?

R – É verdade. Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.

P – Quando se começa com o jogo do acerta é fatal: O’Neill herdeiro de Nicolau Tolentino e do abade de Jazente (quando não de Junqueiro, mas essa já eu não levo a sério). Em 1982, repetido o dito até à exaustão, que pensa você? Um tolentinista, um jazentista?

R – Nem herdeiro de um, nem de outro. A minha excelente prefaciadora diz que tanto o Tolentino como eu temos em comum fazermos uma poesia do feio. Mas se tudo é feio à nossa volta, por que havia precisamente de ser o Tolentino a inculcar-me o feio? Quanto ao Jazente, há uma coisa que pouca gente sabe: eu conheço perfeitamente Padornelo, o Marão (o do lado de cá) e aquela paisagem é-me bem familiar. Familiar no sentido exacto: a minha família materna é de Amarante, o concelho de que Padornelo é freguesia (ou era).

P – Eu por acaso, ao ler agora as Poesias Completas, fui outrossim sensível à insistência com que você refere os espanhóis, do Século de Ouro (Lope, Góngora) ou contemporâneos (António Machado). E também vi claramente visto como o O’Neill se entusiasma – exagero meu? – com brasileiros com o Manuel Bandeira ou o João Cabral de Mello Neto. Resultado: a sua família poética é um bocado mais complexa do que se tem escrito. Estou a sair dos carris?

R – De modo algum. Lope e Góngora sempre gostaram um do outro através de mim… Machado é um poeta que releio constantemente, tanto na poesia como na prosa. É um universo. E gosto dele em boa parte pelo que tem de «velho» (isto demoraria muito tempo a explicar, mas um dia sempre explicarei). Bandeira só é grande poeta menor, como disse a minha amiga Luciana Stegagno Picchio, para quem estiver distraído. Mello Neto é um velho amigo e um altíssimo poeta (sem saída aparente, diga-se). Não se esqueça que eu fui o curador da edição da «Quaderna» em Portugal, que se não foi a 1ª foi a 2ª do livro.

P – Morreu agora um dos seus «amigos pensados», o Belarmino Fragoso. Boxeou com ele? Hm… Conheceu-o bem, suponho. Como era?

R – Não conheci. Foi o Fernando Lopes que me pediu um poema para o programa de lançamento do filme «Belarmino». Sei que o Belarmino leu o poema e achou que eu era maluco…

P – E eu à espera de um perfil com luvas! Essa, O’Neill, é um «uppercut» na barbela! Bom, não o maçando mais, sempre queria saber como reagiu você quando o levaram, faz anos (poucos, creio), à UTIC do Hospital de Santa Maria com uma «panne» cardíaca. «É trivial a morte»? (in Abandono vigiado)

R – Quando se está com «panne» cardíaca o universo mingua e um sujeito «desliga». Passa para a categoria de «bom doente» para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta a casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…


Entrevista de Fernando Assis Pacheco para o Jornal de Letras, nº 36, 06-07-1982 (fonte)

David Landes (2000)

Para o historiador americano David Landes, a humanidade se divide em duas classes: a dos que vivem para trabalhar e a dos que apenas trabalham para sobreviver. "Quanto mais pessoas do primeiro tipo houver, mais chances uma nação terá de sair ganhando no jogo da globalização", diz ele. Landes tem 75 anos. Em décadas de trabalho como professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele se dedicou a desenvolver a idéia lançada pelo pensador alemão Max Weber de que a cultura e os valores de um povo são tão ou mais importantes para o seu crescimento econômico do que os fatores materiais. Suas teses ganharam forma de livro em 1998 e deram notoriedade ao autor. Escrito com verve e lidando com uma vasta quantidade de informações, A Riqueza e a Pobreza das Nações alcançou a lista de mais vendidos em diversos países, inclusive o Brasil, onde foi lançado pela Editora Campus. Na semana passada Landes visitou São Paulo para uma série de palestras, a convite da Fundação Armando Álvares Penteado e do Instituto Fernand Braudel, e deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Quais são as causas da riqueza e da pobreza das nações?

Landes – Não há dúvida de que fatores "clássicos", como o acesso a recursos naturais ou mão-de-obra, são importantes. Também estou certo de que a geografia e o clima podem ser determinantes, embora muita gente não concorde com isso. Mas eu gostaria de insistir em uma variável pouco lembrada: a cultura. Ela é preponderante no sucesso material de algumas nações e no insucesso de outras. Falo de cultura em sentido amplo. Não me refiro a obras de arte, mas aos valores e atitudes vigentes numa sociedade. Foi por prezar a liberdade individual, a curiosidade e a criatividade, e por assumir uma atitude positiva com relação ao trabalho, que a Europa Ocidental tomou a dianteira na corrida pelo desenvolvimento, 500 anos atrás. Fora da Europa, os países que assimilaram esses valores, como os da América anglo-saxônica, ou dispunham de tradições semelhantes em sua própria cultura, caso dos asiáticos, entraram para o clube dos vitoriosos.

Veja – Assim como o pensador alemão Max Weber, o senhor diria que o espírito protestante está diretamente ligado à ascensão do capitalismo? 

Landes – Certamente. As outras religiões monoteístas, incluindo o judaísmo, ao qual pertenço, fazem da pobreza uma virtude. Quase toda a história da cristandade inclui uma louvação da pobreza: os pobres vão para o céu, enquanto a riqueza é uma forma de corrupção. Nos países islâmicos, a pobreza é considerada um antídoto para os modos, o luxo, a auto-indulgência do Ocidente. O protestantismo foi importante por causa de sua atitude positiva com relação ao trabalho e ao enriquecimento. Também foi importante porque desde o começo os protestantes discordaram e discutiram entre si. O protestantismo era na origem pluralista, enquanto o catolicismo sempre foi centralizador.

Veja – E no que esse aspecto centralizador atrapalhou o desenvolvimento? 

Landes – O catolicismo não apenas tinha uma atitude ambivalente com relação aos empreendedores como também segregava os que pensavam diferente. Na sociedade colonial, comandada por espanhóis e portugueses, a imigração de europeus do norte era evitada a todo o custo. Imperava o fechamento. Além disso, o homem que vencia nos negócios era incentivado a retirar-se para uma vida aristocrática e não esperava que seus filhos repetissem seu itinerário de trabalho. Empreendimentos são realizados por pessoas que vivem para trabalhar, e não por aquelas que trabalham para viver. É preciso ter prazer no trabalho para tornar-se um empresário bem-sucedido.

Veja – O Brasil é mesmo "o país do futuro"? 

Landes – Acho que o Brasil vai conseguir diminuir suas taxas de pobreza. Quanto a tornar-se um dos países mais desenvolvidos, isso é outra história. Isoladamente, a Região Sul do país teria boas chances.

Veja – O senhor está sugerindo que o país se divida em dois?

Landes – Estou dizendo que se o Sul se separasse do Norte teria boas chances de alcançar os países mais avançados. Sei que as pessoas logo vão pensar em coisas do tipo: mas como assim, abrir mão dos infindáveis recursos da Amazônia? Pois eu lhe digo que, se vivesse em São Paulo, não me preocuparia muito com o destino do Amazonas. Minerais? Madeira? Tudo isso pode ser comprado. Não é preciso ser dono desses recursos. É mais fácil comprar e vender do que ser proprietário. Em nossa época, não existe nenhuma virtude intrínseca, política ou econômica, em manter um grande território e ser uma grande unidade.

Veja – Os Estados Unidos deveriam, então, abrir mão do Estado associado de Porto Rico, por exemplo? 

Landes – Não tenho a menor dúvida que sim. Se a população de Porto Rico votasse pela independência com relação aos Estados Unidos, não haveria nenhum bom motivo para que nós, americanos, permanecêssemos no país. Acho também que os russos estão loucos em fazer o que fizeram na Chechênia. O imperialismo e o expansionismo foram constantes na história do século XIX. Mas, na passagem do século XX para o XXI, numa era de comércio global livre, não há nada que nos obrigue a pensar que maior é melhor. Europeus e japoneses aprenderam essa lição e se deram muito bem.

Veja – Ao longo da década de 90, falou-se muito em "consenso de Washington" ou "consenso neoliberal". O senhor acha que existe realmente consenso no campo da economia? 

Landes – Creio que o único consenso existente é no que diz respeito à utilidade do livre comércio. É notável observar nos Estados Unidos, por exemplo, a concordância cada vez maior em torno da idéia de que o comércio com a China é desejável. Mesmo os republicanos, mesmo os visceralmente anticomunistas, têm defendido essa idéia. O que mostra que empreendimentos econômicos não são uma questão de ideologia. Tudo que os empreendedores querem é fazer dinheiro. Quando vêem um país onde é lucrativo investir, eles investirão, não importa quem esteja comandando o show.

Veja – Os Estados Unidos, no entanto, mantêm barreiras tarifárias contra vários produtos brasileiros. 

Landes – Pois deveriam derrubá-las. O único argumento protecionista que faz algum sentido é o da indústria incipiente. Para desenvolver internamente uma indústria nova, você precisa protegê-la de alguma forma, para que não seja esmagada pela concorrência. Foi o que os brasileiros fizeram nos anos 80 com relação à informática. Mesmo assim o argumento é perigoso, porque o protecionismo é um péssimo hábito, que tende a criar raízes. Muito tempo depois de uma indústria ter crescido, as pessoas querem manter as tarifas de proteção.

Veja – Recentemente, o Fundo Monetário Internacional passou a mostrar preocupação com causas sociais. Qual será o impacto disso? 

Landes – Talvez me chamem de cínico, mas creio que a razão por trás de muitas ações e palavras desses organismos internacionais é a simples gratificação de se sentir virtuosos doando fundos e recursos aos países pobres. Ações desse tipo podem aliviar a miséria e melhorar um pouco a expectativa de vida em alguns lugares. Mas existe uma diferença entre diminuição da miséria e desenvolvimento. A lacuna de desenvolvimento entre ricos e pobres continua a crescer. Não sei quantas gerações mais terão de passar sobre a Terra para que isso mude.

Veja – Em seu livro, o senhor fez altas apostas no Sudeste Asiático. Mas, nos últimos anos, essa região atravessou uma séria crise e os sinais de recuperação são incertos. O senhor mantém a sua aposta? 

Landes – Sim, mantenho. A Ásia vai continuar sendo um dos maiores centros de crescimento do mundo, pois as bases culturais do crescimento estão presentes lá. Os asiáticos têm um profundo senso de responsabilidade, são trabalhadores dedicados. Nesse período, foram vítimas da conjuntura global.

Veja – Fala-se muito que, com a globalização, os Estados nacionais perderam poder. Quando o senhor diz que países asiáticos foram vítimas da conjuntura global, está corroborando essa idéia? 

Landes – Não. Eu não acredito que os Estados nacionais perderam toda a importância com a globalização, nem que as comunidades locais estejam indefesas diante do que vem de fora. Veja o caso da Malásia. Eles adotaram uma atitude bastante inflexível diante de organismos internacionais como o FMI, recusando-se a adotar as regras dos gerentes do dinheiro internacional. Nem por isso afundaram. Hoje, há muitas pessoas prontas a emprestar novamente para a Malásia.

Veja – E a China? 

Landes – A China é uma região de risco. Se você quer investir seu dinheiro com segurança, deve fazê-lo em um país governado por leis, não por homens. A China é governada por homens, que ficam muito nervosos vendo toda a movimentação ocasionada pelo crescimento do comércio livre em algumas regiões do país.

Veja – Em muitos países da Ásia, o desenvolvimento econômico se deu graças à utilização de métodos autoritários pelos governantes. O que acha disso? 

Landes – Podemos voltar ao caso da Malásia. Lá, boa parte da economia é operada por uma classe empreendedora formada sobretudo por expatriados chineses, enquanto o governo, de fato autoritário, é comandado por uma elite local. Há precedentes históricos consideráveis para esse tipo de arranjo. Pense, por exemplo, na Alemanha do III Reich. Naquele tempo, a burguesia deixou de lado qualquer ambição de influir no governo ou de usufruir de um comando mais democrático, em troca da liberdade na condução da economia e oportunidade de criar cartéis, impor barreiras protecionistas e outras medidas desse tipo. Eu creio que esse tipo de arranjo só é sustentável durante algum tempo. Não pode haver capitalismo verdadeiro sem democracia real. E creio que, felizmente, o capitalismo tende a promover as liberdades individuais e instituições democráticas.

Veja – A esquerda diria o contrário. 

Landes – O capitalismo supõe desigualdades de riqueza e estas, por sua vez, podem se traduzir em desigualdades de poder. Até aí, concordamos. Mas, no que diz respeito à promoção de liberdades e oportunidades para todos, acredito firmemente que o capitalismo está muito à frente de todas as outras formas de organização já experimentadas.

Veja – A corrupção governamental sempre foi mencionada como uma das causas da pobreza em países como o Brasil. O que dizer então do escândalo que acaba de estourar na Alemanha envolvendo uma das figuras mais proeminentes da política européia, o ex-chanceler Helmut Kohl? 

Landes – Confesso que o caso de Kohl me surpreendeu. Mas a moral é simples: em todos os lugares e em todas as épocas, sempre houve quem achasse mais fácil tomar dinheiro do que fazer dinheiro. A política favorece aqueles que conseguem parecer bons, mesmo que não sejam. Às vezes, a falta de moral aparece em questões de dinheiro. Noutras vezes, em questões de sexo. Definitivamente, a política não é uma esfera da vida onde deveríamos procurar pela virtude.

Veja – Fala-se muito em liberdade de comércio, mas quando o assunto é liberdade na circulação de pessoas o discurso é outro. Basta ver os movimentos de direita na Europa contra os imigrantes. Qual é sua opinião? 

Landes – Meus avós chegaram aos Estados Unidos como imigrantes. Eu creio que as portas nunca deveriam ser fechadas. É claro que algum controle é necessário. Mas não fechamento. Os imigrantes são uma fonte potencial de energia. Nos Estados Unidos, um dos grupos mais efetivos em assimilar as técnicas e o conhecimento necessários para ter sucesso na nova economia é o dos imigrantes asiáticos. Na América Latina, os imigrantes protestantes teriam feito toda a diferença. Dito isso, gostaria de ressaltar que a atitude de desconfiança com relação aos estrangeiros não se limita aos países ricos. Veja a África Ocidental: há casos de expulsão maciça na região. É um problema da natureza humana. Isso é algo que aprendi em minha profissão: coisas ruins estão espalhadas por todas as épocas e lugares.

Veja – Como especialista na história da Revolução Industrial, o senhor acha que hoje estamos mesmo diante de uma nova revolução, baseada na informática e nas tecnologias de ponta?

Landes – Sim, acho que podemos utilizar essa palavra. Estamos assistindo a uma mudança profunda. Os países que tiverem a oportunidade de não apenas utilizar mas também de melhorar as novas tecnologias estarão em posição de vantagem na nova economia. Foi essa capacidade que salvou os Estados Unidos depois de anos de estagnação. Os Estados Unidos apostaram na importância do que chamamos de software. O hardware é muito importante. Mas eu creio que a longo prazo é o software que vai dominar. Qualquer um pode aprender como fazer um computador. Ou você pode importar uma fábrica de hardware – correndo o risco de que ela se mude para o vizinho se ele oferecer trabalho mais barato. Mas hoje já temos hardware melhor do que precisamos para muitas tarefas. Por isso, é na área do software que os novos países devem fazer suas apostas atualmente. E isso significa que precisam ter um sistema educacional eficiente e universal. Singapura conta com uma estrutura universitária muito forte. Talvez a China também possa ser citada como exemplo. A América Latina é uma interrogação – mas, se o continente tem de apostar em algo, é nos investimentos culturais e sociais capazes de criar pessoas aptas a ser inventivas na nova economia. Infelizmente, é o contrário do que países como o México, por exemplo, têm feito. Lá as universidades se encontram em péssimas condições. Se você não tiver cérebros, está acabado.


Entrevista à Revista Veja, nº 1641, 22/03/2000 (link)

Raymond Aron (1982)

En las últimas fechas, y especialmente a partir de la desaparición de Jean-Paul Sartre, mucho se ha escrito, y revisado, sobre Raymond Aron (París, 1905, doctor en filosofía, sociólogo y comentarista político en las páginas de Le Figaro primero y de L 'Express después, autor de una serie de libros entre los que destacan L'hommecontreles tyrans, Introducción a la filosofía de la historia, El gran cisma, El opio de los intelectuales, Dieciocho lecciones sobre la sociedad industrial, La lucha de clases, Democracia y totalitarismo). Esa notóridad creciente no se debe tan sólo - es seguro - a que Aron sea uno de los escasos sobrevivientes de una generación que incluyó al propio Sartre, a Paul Nizan, a Daniel Lagache. No. Hay algo más que la estimula y pronuncia : el hecho de que el tiempo, y lo que es encarnación de ese tiempo: la historia, ha dado la razón a la mayor parte de sus opiniones y pareceres. En efecto, y desde fechas muy lejanas, Aron se pronunció por la independencia de Argelia, postuló la urgencia y la necesidad de una Europa unida, denunció el carácter totalitario y expansionista del sistema soviético, defendió la Alianza Atlántica, se adhirió a Tocqueville (quien definió a la sociedad moderna por la igualdad de condiciones, es decir, por la democracia) y no a Marx (quien profetizó una revolución contra la miseria que la elevación del nivel de vida en Occidente ha evitado). Porqué Aron, que nadó casi siempre a contracorriente, acertó en sus pronósticos? La razón la ofrece él mismo en un pasaje del reciente libro-entrevista titulado Le Spectateur engagé: porque desde muy joven entendió que debía pensar los problemas nacionales e internacionales políticamente y no ideológicamente (o, podría añadirse, mágicamente). Esa actitud le viene, sin duda, de su profesión de fe liberal: es sabido que uno de los rasgos fundamentales de las democracias liberales es que su ideología ha sido, hasta cierto punto, una antiideología.

La Revista dela Universidad publica ahora la versión completa de la conferencia de prensa que Aron ofreció en la Asociación de la Prensa Extranjera en París , a comienzos de diciembre pasado. Allí abordó los temas que más le preocupan, y si alguno de ellos pudiera parecer alejado de los problemas latinoamericanos más acuciantes se trata, de seguro de una ilusión óptica: lo que Aron dice puede aplicarse con mínimas variantes al examen de nuestras virtudes y nuestras miserias .

Santiago Real de Azúa


- Cómo surgió Le spectateur engagé?

- No había idea ni programa ni conocía a los dos entrevistadores, Dominique Wolton y Jean-Louis Missika. Ellos me propusieron realizar tres programas para la televisión y les respondí que hicieran como quisieran, con una sola condición: que no me dijeran de antemano las preguntas que me iban a formular. Las entrevistas duraron casi veintidós horas durante nueve tardes, ellos eligieron los temas más pertinentes, más " telegénicos", y luego montaron los programas.
Cuando leyeron los textos los juzgaron interesantes y propusieron su publicación, a la que en principio me opuse , pues no estaba prevista. Luego el editor, un viejo amigo, me decidió a publicar un texto que fue corregido por un ex alumno del Liceo de Le Havre en 1934, el año en que Sartre se fue a Berlín y me dejó su cátedra. Yo me limité a corregir dos o tres pasajes, pero salvo esos pasajes es un verdadero libro de entrevistas, a diferencia de otros, empezando por mi propio libro La révolution introuvable en el que hay un pseudo-diálogo, compuesto por mi, aunque elaborado en un diálogo con un periodista (Alain Duhamel). En cambio, Le spectateur engagé no es un libro escrito sino hablado. Wolton y Missika trabajaron durante casi un año ; leyeron casi todas mis obras y artículos, se hicieron una idea de lo que había hecho en la vida y prepararon las preguntas, algunas molestas - de manera que el diálogo fue auténtico. No teníamos las mismas opiniones - por ejemplo, en 1968 ellos eran contestatarios y yo no - pero a lo largo de las entrevistas nos hicimos amigos, y aun si no estuvimos de acuerdo en todo, nunca hubo conflicto o querella entre nosotros. Así surgió este libro, al que yo no otorgaba ninguna importancia, pero al que algunos amigos, aun los más serios, le conceden cierto valor.

- Cómo se sitúa usted en el panorama político francés actual y cómo ve la actitud, sorprendente a primera vista, de la mayoría de los intelectuales?

- Estoy fuera de todos los partidos, e incluso cuando Giscard d'Estaing estaba en el poder mi situación no era muy diferente: no tenía demasiadas relaciones con él. Evidentemente, la prensa soviética decía que yo era el intérprete oficial del gobierno, pero como lo criticaba por lo menos dos veces de cada tres, era "un intérprete libre"... Actualmente atravesamos un periodo interesante: no hay un movimiento popular ni intelectual comparable al de 1936, época en la que hubo un movimiento popular sin parangón posible con el que llevó a Mitterrand al poder. El pueblo francés mira con curiosidad lo que va a hacer el gobierno y espera que lo haga bien, pero no hace nada especial para apoyarlo. Por lo demás, el propio Partido Socialista lamenta que haya tan poca participación. Por otra parte, los intelectuales franceses no dicen nada, ni a favor ni en contra. La inteligencia francesa no está especialmente excitada. Compruebo que no hay entusiasmo ni participación popular, yeso en medio de una gran tranquilidad. Pero - insisto - ninguno de los grandes intelectuales se ha manifestado para decir que estamos en la aurora de tiempos gloriosos.

- Quienes son, a su juicio, esos "grandes intelectuales"?

- Foucault, Lévi-Strauss, los llamados "nuevos filósofos"... Es difícil responder a esta pregunta después de la muerte de Sartre, porque no hay ninguna figura equivalente a la suya. Cuando la misma pregunta fue formulada a 450 intelectuales hace algún tiempo, ninguno de los votados obtuvo un cuarto de los sufragios, pero en todo caso puede decirse que los escritores más dotados no toman partido con la misma claridad con que lo hicieron en el pasado. Pienso en los años treinta, cuando todos los intelectuales de la NouVelle Revue Française (NRF) estaban comprometidos de un modo u otro. Hoy en día, los intelectuales se quedan quietos, no dicen nada; eso no quiere decir que lo lamente - me limito a comprobar un hecho que me parece interesante. Así, en el momento en que los socialistas llegan al poder se observa una despolitización, un menor interés por la política. Ese silencio resulta comprensible en la medida en que los intelectuales siempre prefieren estar en contra, y si ahora vacilan en adoptar esa actitud es porque la izquierda está en el poder.
También ocurre que no pasa nada que despierte entusiasmo: todo transcurre en calma.

- En qué medida estima que el proceso político que vive Francia desde mayo pasado es innovador?

- Pienso que Francia ya ha practicado la socialdemocracia. Mi argumentación al respecto es muy simple. Todas lás sociedades llamadas socialdemocracias - Alemania Federal, Dinamarca - tienen aproximadamente las siguientes características: la mayoría de las empresas son privadas y hay un sector público más o menos vasto, pero añadamos de inmediato que la extensión de ese sector no es el criterio de definición de la socialdemocracia, porque en ese caso podría decirse que Gran Bretaña es más socialdemócrata que la RFA. En cambio, una sociedad socialdemócrata actual, en Europa en todo caso, pertence a una economía internacional que se llama Comunidad Europea o bien mercado mundial.
Así, las socialdemocracias no escapan al mercado mundial y su principal característica es que practican a diferentes grados la redistribución de la renta, en particular através de un sistema de seguridad social extraordinariamente desarrollado. Por eso consideré que Giscard d'Estaing, a su modo, practicó la socialdemocracia, ya que el total del producto interno bruto consagrado a la seguridad social al principio de su mandato, en 1974, era de un 36%y al final ese porcentaje se elevaba a un 43%. Quiero decir que si lo esencial de la socialdemocracia es la redistribución de ingresos combinada con una economía de mercado y con una participación en la economía mundial y en la construcción europea, el movimiento socialdemócrata continuó desarrollándose bajo Giscard. El porcentaje consagrado a la seguridad social fue tan considerable que Mitterrand se comprometió a no superarlo - y, no obstante, ya lo superó y lo seguirá superando.
Aquí hay que destacar que la seguridad social francesa es una de las más desarrolladas de Europa - lo que es diferente es su financiación, ya que aquí el impuesto a la renta es más bajo que en los demás países. Pero si se considera que la seguridad social es el criterio rector de la socialdemocracia, Giscard era socialdemócrata y Mitterrand también lo es. En cambio, si ese criterio es la extensión del sector público, la RFA no es una socialdemocracia pues los alemanes consideran que las nacionalizaciones son contrarias a la eficacia económica.

- La tendencia hacia la socialdemocracia es irreversible?

- Es un problema que me interesa mucho y que me lo he planteado varias veces. Incluso pronuncié una conferencia en la London School of Economics sobre este tema y expliqué que una de las razones por las cuales nuestras sociedades occidentales se dirigen casi necesariamente hacia la socialdemocracia radica en que cuando los conservadores o la derecha están en el poder el movimiento se reduce, o se detiene completamente cuando se trata de la extrema derecha, como ocurre hoy en la Gran Bretaña de Margaret Thatcher. Pero en la mayoría de los casos, se practica un poco de socialdemocracia, aunque en dosis cuidadas y medidas. Después llega la izquierda y va mucho más allá y lo que hace es irreversible. La explicación es un poco simple, pero lo cierto es que hay una tendencia a que se cumpla este ciclo.

- Cuáles son las transformaciones más difícilmente reversibles?

- Las nacionalizaciones. La dificultad en devolver al sector privado lo que ha sido nacionalizado estriba en que hay que encontrar en el sector privado el capital necesario para volver a comprar. Y como el sector privado ha sido reducido, y como por otra parte esas grandes empresas son el resultado de una larga historia de alianzas y fusiones, es muy difícil volver a hacer lo que se ha hecho. La privatización es posible, pero buena parte de las nacionalizaciones me parece irreversible. En cuanto a los derechos sociales, todavía es más difícil poder dar marcha atrás. Todos los derechos otorgados al ciudadano se convierten en todos los países, y en particular en Francia, en lo que se suele llamar derechos adquiridos; y resulta muy difícil privar a talo cual categoría de los derechos que se le han concedido. En este punto tampoco hay que ser dogmático, ya que el proceso no es totalmente irreversible. Hay que esperar y ver lo que hace el gobierno en lo que concierne ala seguridad social.

- El Estado-Providencia tiene entonces un largo futuro todavía?

- El movimiento hacia el Estado-Providencia va a continuar en la mayoría de las democracias occidentales hasta el momento en que sea imposible practicarlo, es decir: sólo habrá marcha atrás cuando el sistema no funcione más, y ese momento - digámoslo - no es tan lejano. En todos los países, el aumento del porcentaje del producto nacional redistribuido es tal que a partir de cierto momento habrá dificultades crecientes. No afirmo que el movimiento socialdemocrático vaya a continuar indefinidamente, pero sí digo que es tan difícil detenerlo que las fuerzas capaces de frenarlo sólo estarán en condiciones de hacerlo cuando llegue la instancia en que sea imposible proseguir. Por el momento va a continuar, pero cada vez con mayores problemas por la sencilla razón de que es más difícil redistribuir ahora que cuando había una tasa de crecimiento del 4 o 5 por ciento anual.
Mientras contábamos con esa tasa de crecimiento, el Estado-Providencia podía funcionar, pero ahora, con sólo un 2 o 3 por ciento anual, y mientras el costo de la Seguridad Social aumenta en valor real el 5 o 6 por ciento, es más arduo financiarlo. Día llegará en que esas dificultades serán insuperables.

- Cómo establecer la línea conceptual que separa a la socialdemocracia del socialismo, dos regímenes que encarnan también dos tradiciones, dos familias políticas?

-Socialdemocracia y socialismo son dos términos equívocos y nadie sabe con certeza cuáles son las características que definen a uno u otro. Los regímenes que llamamos socialdemócratas son, en términos generales, los que aceptan los mecanismos del mercado y están integrados a la economía mundial. Todas las sociedades europeas aceptan las reglas del mercado internacional, están obligadas a exportar para comprar materias primas y deben limitar la planificación en la medida en que las exportaciones dependen del mercado mundial. Todas esas socialdemocracias comportan la redistribución del ingreso y un sector público, pero éste no es un factor decisivo, ya que Suecia es el país que más redistribuye y que menos empresas nacionalizad as tiene.
Así, Mitterrand ha dicho siempre el ex-primer ministro sueco Olaf Palme que su obra es muy buena, pero que cometió un error capital al no nacionalizar las grandes empresas.
Por su parte, los suecos contestan que para redistribuir ha y que obtener beneficios y que para conseguirlos se necesitan grandes empresas que exporten. Las socialdemocracias, me parece, se definen de manera aproximativa por las características que acabo de enumerar; sin olvidar que todas las libertades clásicas - personales, civiles y políticas - son respetadas, lo que la diferencia radicalmente del régimen soviético,

- Cómo reconocer al menos el pasaje de un régimen socialdemócrata a otro socialista?

- La dificultad para saber a partir de qué momento estamos no en un régimen socialdemócrata sino socialista radica en que, como admite Mitterrand en privado, la belleza del socialismo estriba en que no se le conoce. También dice que no hay que definirlo de manera muy precisa, pues es una aventura, una creación. Y cuando se deja llevar por sus impulsos líricos, Mitterrand también afirma que el socialismo representa "la revancha de Blum sobre Lenin". De ahí esa idea que tiene de que él representa otra cosa que la socialdemocracia: algo más aventurero, más rico , mucho más socialista entre comillas, y que no sería tan sólo la economía de mercado con justa redistribución. De ahí, también, la dificultad de saber cuándo Francia dejará de ser socialdemócrata para pasar a ser socialista. Antes de la experiencia actual, yo sostenía siempre que el test o las características estaban constituidos por las libertades cívicas, políticas y personales, primero, y, segundo, por la integración o no al mercado mundial - porque si uno se integra al mercado mundial está obligado en gran medida a respetar los mecanismos de ese mercado:

- Concretamente, cuál sería ese criterio en el caso francés?

- Francia ya ha abandonado la socialdemocracia para entrar en un régimen socialista? Mi respuesta es que no, porque hasta ahora Francia quiere permanecer en la Comunidad Económica Europea y en la economía mundial, y por lo tanto, acepta las reglas del mercado mundial y hasta trabaja con Satán, es decir con los multinacionales (ya que para el sentimentalismo de Mitterrand las multinacionales son Satán). Claro que pueden buscarse otros criterios de demarcación y afirmar que a partir del momento en que los bancos han sido nacionalizados el mundo ha cambiado. En realidad, todo dependerá de la manera en que esos bancos sean dirigidos. Si el sector estatal es usado para imponer la planificación, si usa y abusa de los bancos, en ese caso podrá hablarse de ruptura con la economía de mercado. En todo caso, la importancia del sector estatal da al Estado la posibilidad de conducir la economía de manera diferente a las socialdemocracias.

- Actitud por lo menos reticente...

- La segunda reserva que formularía a mi respuesta concierne a las instituciones : hay en los programas socialistas desde 1972 hasta 1981 el proyecto de crear un gran servicio de estado de la educación (lo que implica un cambio de estatuto de la escuela privada), un servicio nacional de salud (lo que significa cualquier cosa), y también un servicio nacional de la información. Por lo tanto, yo de eso no extraigo ninguna conclusión rápida pero señalo que hay cierto número de transformaciones institucionales que pueden producirse bajo el gobierno socialista. Una última reserva, un último punto que me pare ce interesante desta car y sobre el que no me pronunciar é pues todavía es prematuro: por primera vez tenemos simultáneamente un presidente electo por sufragio universal, lo que le confiere una autoridad considerable, y en la Asamblea General un partido que dispone sólo de la mayoría absoluta, y ni ese pr esidente ni ese partido son combatidos por los sindicatos. Este es el primer gobierno en los últimos veintidós años que cuenta con el favor de los sindicatos, de los sindicatos pro cornun ista s provisoriamente y de los otros sinceramente. Por lo tanto, hay actualmente un partido que dispone de un poder y de una capacidad de acción mucho mayores que los del propio general de Gaulle.
En efecto, una de las particularidades de nuestra constitución - ahora lo observamos - es que permite actuar al gobierno - pero también crear situaciones donde no hay contrapoderes. Cuando gobernaba la derecha o los conservadores, existían contrapoderes: los sindicatos , la hostilidad de los intelectuales, etc...

- En qué medida la victoria de Francois Mitterrand en mayo pasado, y la del PS en las legislativas de junio, modifican el sistema político francés?

- El partido socialista es un partido predominante que comparte el poder con el Presidente, lo que no ocurría desde comienzos de la V República, lo que permite afirmar que aunque eso supone un cambio de mayoría dentro de la V República, se trata de una República con un rostro diferente. El general de Gaulle gobernó durante cinco años (1962-1967) con un partido predominante - el gaullista -, y que fue un partido de circunstancias asociado a una persona, un accidente histórico que no tenía ni una estructura ni una ideología comparables a las del PS. Por primera vez, entonces, hoy tenemos un partido predominante que tiende a confundirse con la República, lo que a mi juicio constituye un aspecto original que justifica la expresión "nuevo régimen", ya que el cambio de mayoría fue brutal. A menudo escribí que el inconveniente del régimen establecido en la V República es que ofrece la posibilidad de gobernar aun si no se tiene la mayoría, pero da también al presidente la posibilidad de hacer todo o, en cualquier caso, muchas cosas. En Francia está, de cualquier manera, limitado por la propia realidad francesa, por el hecho de que no se puede hacer cierto número de cosas que implicarían salirse de la República liberal. Por último, se trata de una República original, con el mismo presidente, la misma mayoría decisiva, la misma capacidad de pronunciar la última palabra, pero también con un Presidente de la República que está obligado a discutir permanentemente con su partido. Un partido que, por lo demás, es un animal muy particular, con una estructura histórica original, hecha en la controversia permanente, institucionalizada, bajo la forma de conflictos de tendencias.

- Qué partido no tiene sus líneas, sus grupos, sus sensibilidades?

- En todos los partidos hay conflictos de tendencias, pero nunca están institucionalizados como en el PS, que es el partido francés que mayor predilección tiene por la discusión permanente entre las tendencias. El PS, después del congreso de Epina y de 1972, acunó siempre una batalla interna, y Mitterrand para conservar su posición se vio obligado a cambiar de mayoría varias veces. Que haya una izquierda y un ala derecha en un partido es natural, pero el juego interno tal como se desarrolla en el PS es un rasgo original y propio de un partido terriblemente ideológico o, si se prefiere, el PS es un partido de profesores a los que les gusta hablar.

- Qué futuro le asigna al buen entendimiento, al menos aparente, entre el Partido Socialista y el Partido Comunista?

- El PS quiere conservar la alianza con el PCF hasta las elecciones municipales de 1983 y eventualmente reducir más aún el porcentaje electora l de este último, quizás a través de una modificación del modo de escrutinio. No sé cuál será el modo de escrutinio que se elija, pero estoy convencido de que será modificado en beneficio de la mayoría. De ahí que el PS quiera conservar la alianza con el Partido comunista, necesaria para llevar a cabo la fase brutal de transformaciones bruscas. Así, tiene interés en contar con la semineutralidad de los sindicatos comunistas, y está decidido a conservar esa neutralidad hasta tanto juzgue que lo positivo supera a lo negativo, es decir, que el aspecto negativo de las posiciones del PCF quedan más que compensadas por las "ventajas del semiapoyo obtenido. Además, el PS tiene la posibilidad de expulsar a los comunistas en el momento en que lo juzgue necesario. Por el momento logra, por ejemplo, que el diario comunista L'Humanité no ataque la política exterior, y que sea muy moderado en la crítica de las posiciones atlantistas de Mitterrand.

- Qué valor le atribuye a la nueva política francesa hacia la URSS?

- La posición de Mitterrand ante la Unión Soviética es la misma que la de Giscard, con la diferencia de que este último reservaba sus opiniones a los consejos de ministros y no decía nada en público, apoyándose en el argumento de que Francia no pertenece al comando integrado de.la OTAN Y que, por lo tanto, el problema soviético no le concernía: Miterrand, por su'parte, le hizo un favor a Helmut Schmidt diciendo claramente que es partidario de los euromisiles, con lo que respaldó al canciller federal alemán e impidió que la Internacional Socialista hiciera presión sobre Schmidt. Por lo demás, la Internacional Socialista se convirtió en una fuerza en la escena diplomática, cosa que Leonid Brezhnev comprendió perfectamente. El hecho de que Mitterrand haya impedido que la Internacional tomara posición contra los Pershing fue un elemento positivo en el juego diplomático.

- Dónde está la supremacía en ese juego?

- Nunca se conoce el valor real de un ejército antes de la guerra, aunque existen elementos de comparación. Anatole France recordaba una broma que sostenía que se sabe de antemano cuál es la primera marina del mundo y que por eso no hay guerras navales; en cambio, todos los ejércitos son los mejores del mundo y por eso hay guerras en tierra.

- Usted hablaba de elementos de comparación...

- Si consideramos a los tanques y cañones , el arsenal soviético es muy superior al de EEUU, y lo mismo ocurre con los carros de asalto. En cuanto a las armas clásicas; la superioridad soviética es indiscutible. Las marinas son difícilmente comparables pues una tiene, al parecer, como objetivo la defensa de la libertad de los mares mientras que la función de la otra es impedírselo. Así, la estructura de las respectivas, marinas es muy diferente y no pueden compararse.
Todo lo que sabemos es que, en los últimos quince años, la URSS se dotó de una marina con mayor número de navíos que la de EEUU, lo que en sí mismo no significa nada, pues - insisto - no puede compararse navío contra navío. En cuanto a las armas nucleares estratégicas, se sabe concerteza lo que posee cada superpotencia (con certeza en cuanto a las armas norteamericanas y con cierto margen de inseguridad en cuanto a las soviéticas) ya que la verificación se efectúa a partir de satélites, lo que deja pendiente apenas un mínimo margen de incertidumbre. Tomemos, por ejemplo, el número de misiles soviéticos: lo que se cuenta realmente es la cantidad de rampas de lanzamiento, pero las rampas soviéticas pueden lanzar varios misiles, mientras que las norteamericanas sólo pueden ser utilizadas una vez. Por lo tanto, no sabernos si cada abertura de misil que ven los satélites implíca un misil soviético o varios. Pero aun admitiendo las cifras oficiales, la superioridad soviética es indiscutible.

- En todos los planos?

- Simplificando un poco podemos decir que en materia nuclear estratégica las fuerzas son aproximadamente iguales; en armamento clásico, la superioridad soviética es indesmentible.
En cuanto a los misiles de mediano alcance, los norteamericanos no tienen ninguno y los soviéticos por lo menos unos 200 ya desplegados - los famosos SS-20. Los misiles de alcance mediano son los que cubren una distancia de 4 o 5 mil kilómetros, es decir que no pueden viajar de un continente a otro, pero sí pueden hacerlo lo suficientemente lejos como para atacar cualquier punto en Europa occidental desde los Urales. Los norteamericanos tendrán los Pershing en 1983, si todo evoluciona de acuerdo a las previsiones, pero éstos son menos potentes que los SS-20. Cuando se sostiene que la URSS es la mayor potencia nuclear actual, la afirmación se basa en las cifras, pero las cifras no son todo: hay que tomar en cuenta la población, la calidad de sus dirigentes, etc... Es posible que la Unión Soviética sea una superpotencia ficticia - cada uno puede tener al respecto su opinión o, mejor dicho , su impresión. Pero en cuanto a las cifras, la URSS es la primer potencia militar del mundo, con todas las incertidumbres que se derivan del hecho de sacar conclusiones a partir de datos tan precarios.

- A primera vista, y tomando en cuenta su razonamiento, la ola pacifista que sacude a Europa Occidental - pero que en Francia ha sido muy débil - aparece como un fenómeno inexplicable.

- La ola neutralista es especialmente importante en Alemania Federal, y se explica a mijuicio por diversos factores: el horror comprensible y legítimo a la guerra en primer lugar, y, segundo, el deseo de hablar de los jóvenes, ya que esas grandes manifestaciones son un modo de expresión contra un mundo sobre el cual esos jóvenes tienen una influencia limitada. En tercer término, esos movimientos son financiados y están manipulados de un modo u otro a partir del Este, lo que no significa que los que participan en las manifestaciones estén vinculados a ese bloque. La URSS considera que los movimientos neutralistas le son muy útiles, ya que protestan contra los futuros Pershing, pero no contra los SS-20, que están ahí desde hace años. El único sentido de la acción pacifista, y puesto que rechazan totalmente la guerra, es privarse de la capacidad de defensa: la sola manera de estar completamente seguro de que no ha ya guerra es no tener los medios de defendernos. Por supuesto: en ese caso queda excluido el riesgo de guerra, pero no el riesgo de la servidumbre. Entonces seguramente no habrá libertades, pero tampoco riesgo de guerra. Si los pacifistas quieren ir hasta el fondo de su lógica, debieran colocarse bajo la protección de la URSS y de los EEUU: la protección norteamericana comporta el riesgo de guerra y la soviética no después del retiro de EEUU de Europa.

- Sus adversarios lo han presentado a menudo un poco como el defensor de causas perdidas. Ha tenido alguna vez esa sensación?

- No tengo la impresión de haber estado siempre en el campo perdedor, pero sí de haber defendido causas impopulares que en gran medida el futuro justificó posteriormente.
Por ejemplo, fui partidario de la independencia de Argelia y en 1957 publiqué La trágedie algerienne, libro que fue criticado por la izquierda porque sostenía que había que reconocer a
Argelia el derecho a la independencia. Después publiqué, cuando el general de Gaulle volvió al poder, L'Algérie et la République, cuya última frase sostenía que "la vuelta del general de Gaulle puede ser un renovamiento de la República a condición de que la Revolución sepa devorar a sus hijos" - es decir, exactamente lo que ocurrió. Siempre estuve a favor de la Alianza Atlántica, incluso en la época en que todos los intelectuales se oponían. Hoy todo el mundo es partidario de ella, incluido Mitterrand.


Conferência de Imprensa, Paris, fevereiro de 1982, in Revista de La Universidad de México, abril de 1982. (fonte)

François Colbert (2006)

Imagem de Pedro Ruiz - Le Devoir
François Colbert é um dos mais afamados especialistas mundiais em Marketing das Artes e da Cultura da actualidade. Com mais de 30 anos de carreira, já publicou diversos livros e dezenas de artigos nas mais prestigiadas publicações internacionais. Professor Catedrático em Marketing na École de Hautes Études Commerciales de Montréal, onde é titular da cátedra de Gestão das Artes Carmelle e Remi-Marcoux, é também o principal responsável da pós-graduação de Management of Cultural Organizations, um curso de estudos superiores especializado em gestão dos organismos culturais. Paralelamente, exerce ainda o cargo de director e principal redactor da publicação International Journal of Arts Management (IJAM), tendo dedicado grande parte dos seus estudos à gestão das artes do palco, dos museus e do cinema. François Colbert dirigiu igualmente numerosos seminários e conferências em todo o mundo, subordinados ao tema Arts Management, tendo como principal preocupação o marketing management num contexto cultural.
Membro do Board of Directors of the Canadian Association of Arts Administration Educators desde 1986, o Professor Colbert consegue ainda conciliar todas as suas actividades com uma vasta experiência profissional nos sectores público e privado, trabalhando como consultor de empresas, associações e governos.
Da sua vasta obra publicada, destacam-se os livros Le marketing des arts et de la culture (considerada a obra fundamental neste domínio), La gestion dans les médias, em colaboração com Cynthia Fortin, La population active du secteur culturel: bibliographie analytique et sélective, em colaboração com Benoît Légaré, Le marketing des arts d’interprétation: bibliographie, em colaboração com Chantal Pelletier e Diane Perrin, ou ainda La commandite dans le domaine des arts et de la culture: bibliographie, em colaboração com Normand Turgeon.

Qual é actualmente a importância de um ensino universitário da gestão cultural?

Em primeiro lugar, de há uns anos a esta parte, tem-se assistido a uma grande mudança nas estratégias do marketing da cultura. Existe um mercado maior e uma cada vez mais visível afirmação das organizações que fazem o marketing das artes, por oposição a todas aquelas que, por exemplo, se dedicam à venda de bens de consumo. Na essência estamos a falar de um artista que cria alguma coisa, e o papel dos estudiosos do marketing da cultura é precisamente o de encontrar um mercado onde as suas obras possam ser apreciadas. Dada a proliferação da oferta cultural nos dias de hoje, torna-se essencial uma especialização neste domínio.

A que públicos é que este estudo do marketing das artes deve ser dirigido? Alunos de Economia? Alunos de Comunicação Social ou Publicidade?

Na minha opinião poderá ser dirigido a qualquer um, desde que tenha uma verdadeira paixão pelo mundo artístico. Trata-se de um campo difícil, dado que, quando falamos de artes, a “estrela” não é o cliente e sim o artista. Ao contrário do que acontece no marketing tradicional, onde temos em mente
a venda de produtos de consumo que satisfaçam as necessidades dos consumidores, no campo das artes tudo se inverte! O papel do manager das artes deverá ser o de colocar no mercado os sonhos do artista que representa. Nós não podemos exigir ao artista alterações nas suas obras para que estas possam agradar um público mais vasto; temos é de encontrar as pessoas certas, aquelas que dêem à obra de arte o valor que ela merece. Se no marketing tradicional o CEO é a figura que assume maior protagonismo, no cultural é o artista.
E, enquanto marketeers, só poderemos divulgar o seu trabalho se nos apaixonarmos por ele, dado que a nossa remuneração é muito mais psicológica do que económica. A satisfação de fazer que as coisas aconteçam, de tornar o projecto do artista uma realidade visível no mercado, é a principal motivação
do marketeer cultural.

O que devem então fazer os profissionais do marketing das artes para promover as obras dos seus artistas?

Primeiro há que fazer uma distinção entre a chamada arte popular e a arte mais erudita. A primeira está mais associada a um produto tradicional, é mais fácil de ser vendida, dado que atrai todos os tipos de público, independentemente da sua condição social ou grau académico.
Quando pensamos em concertos sinfónicos, exposições de arte contemporânea, dança ou teatro, parte-se do produto, tendo por preocupação arranjar o mercado ou segmento certos para ele. É inútil tentarmos chamar pessoas ao teatro que não tenham qualquer interesse pela representação, elas só ficarão ainda mais desiludidas. Por isso o papel do marketing para grandes massas aqui não faz qualquer sentido! Nas artes não podemos mudar o produto tendo em mente as preferências do nosso potencial consumidor. Daí que, volto a sublinhar, é fundamental encontrar o público certo, que geralmente é muito mais pequeno do que o segmento-alvo da cultura popular.

Qual deve ser o papel do Estado na cultura?

De um modo geral, as pessoas encaram a arte como um serviço público. A produção artística per se assume um valor particular para a maior parte dos cidadãos. Acontece que nem toda a oferta cultural poderá sobreviver no mercado e, como nem todos os artistas conseguirão vingar no mundo artístico, há a percepção de que nós, enquanto sociedade, deveríamos investir colectivamente na divulgação e subsídios dos seus trabalhos, pois, para nós, conseguir receber os reflexos dessa arte que nos traz constantemente uma percepção diferente da realidade é sempre um valor acrescentado.

Entende que existem diferenças entre os eventos culturais patrocinados pelo Estado e todos aqueles que têm por sponsor uma entidade particular?

Quando falamos de patrocínios privados, parte-se do pressuposto de que a entidade patrocinadora se identifica com o projecto artístico e que, por essa mesma razão, decide incentivá-lo, apoiá-lo. No Canadá, por exemplo, o consumidor entende que deve ser o Estado a apoiar os museus, sendo que, quando se trata de um financiamento privado, é da opinião que este deverá existir, não por razões comerciais ou de promoção de imagem, mas tão simplesmente por solidariedade com o artista. Se, pelo contrário, for uma forma de arte mais popular, o canadiano já não se importa que a empresa patrocinadora use a publicidade para se promover a si mesma enquanto promove a obra de arte.
Hoje em dia, devido à diversidade da oferta, é cada vez mais comum vermos a banca tradicional associada à arte mais tradicional. Paralelamente, existem certas empresas que, por quererem assumir-se como diferentes, se associam mais à arte contemporânea. Ou seja, também aqui poderemos falar de uma pluralidade, desta vez de patrocinadores.
Devo acrescentar ainda que a questão da falta de subsídios para a cultura é uma constante em todos os países industrializados. Todos eles sofrem do mesmo tipo de dificuldades, não só em termos de verbas que possam patrocinar os espectáculos, como em termos de público, que, na maior parte dos casos, é manifestamente insuficiente. É errado pensar que a situação em Portugal é diferente da que existe em França, nos Estados Unidos ou no Japão. Nestes e noutros países a situação precária da cultura é uma realidade mais ou menos preocupante.

Se lhe fosse pedido para dar três razões para que o Estado apoiasse a cultura, quais seriam as mais importantes?

A primeira razão é aquela que já mencionei anteriormente: pela diversidade da oferta. Em segundo lugar, penso que alguns dos nossos artistas são como os grandes filósofos. Os seus pensamentos levam a que a sociedade evolua, trazem-nos sempre uma interpretação diferente da realidade. Por vezes, são muito críticos dos valores que defendemos como os mais certos, são cépticos acerca dos nossos modos de vida, por isso é sempre útil conviver em sociedade com uma multiplicidade de opiniões. Não penso que o Estado deva apoiar a arte segundo o argumento de que, sem os seus subsídios, a arte não sobrevive. O Estado deve exercer um papel importante no apoio à cultura porque esta deve ser encarada não como um custo, mas como um benefício para a sociedade, por adoptar constantemente um discurso diferente que só nos enriquece.

O que é que um manager cultural vende? Artistas? Produtos? Experiências?

Vende sobretudo experiências. Podem ser intelectuais, emocionais ou mesmo físicas, mas são, antes de tudo, experiências. Há quem procure preencher com as artes a sua sede de conhecimento. Este tipo de consumidor é geralmente aquele que procura benefícios culturais directos no produto artístico. Para o conseguir, visita um museu, de modo a poder aprofundar conhecimentos sobre esta ou aquela civilização, sobre este ou aquele movimento artístico. Existe depois aquele segmento que procura preencher certas necessidades simbólicas, algo que está relacionado com o entendimento psicológico que o produto tem para a pessoa em causa (o deslocar-se, por exemplo, à ópera, não por gostar deste estilo musical, mas para ser visto na ópera). Temos ainda todos aqueles que vêem nas artes a fórmula mágica de satisfazer as suas necessidades mais emocionais. Neste caso particular estamos a falar de indivíduos que procuram a evasão, a fuga aos problemas no emprego e às rotinas. Este tipo de pessoas geralmente opta, por exemplo, por deslocar-se a parques temáticos.
Seja qual for a necessidade, há contudo uma certeza: a maior parte das pessoas hoje em dia sai de casa para ir passear, e não propriamente para ver uma exposição. Esta atitude enquadra-se muito na indústria do lazer que temos actualmente. As pessoas têm gostos muito diferentes. Gostam de desporto, mas também gostam de viajar, gostam de passear ao ar livre, gostam de ir para os centros comerciais, daí que saiam simplesmente de casa para viver experiências diferentes. E é aqui que a arte cumpre actualmente o seu papel: ela é uma experiência diferente.

Na sua opinião, qual entende ser a arte mais difícil de promover?

Qualquer forma de expressão contemporânea, dado que precisa de um mercado muito específico para a apreciar devidamente. Quando falamos de arte contemporânea não é só o sentir ou a beleza da obra que estão em causa, mas também as nossas capacidades intelectuais para entender a mensagem do artista.
Arte contemporânea é “intelecto”, é reflectir sobre a sociedade em que vivemos, chegando mesmo a assumir um discurso filosófico, daí que sejam poucos aqueles que verdadeiramente gostam deste tipo de abordagem. Já no campo da arte dita popular temos muito mais pessoas interessadas! Comparemos, a título de exemplo, o número de pessoas que vai assistir a um filme norte-americano no cinema ou que vai a um concerto de rock, ao número e indivíduos que, no mesmo dia, decide visitar uma exposição num museu.
A arte contemporânea nunca poderá ser tão lucrativa como a arte mais clássica, pois ainda não há uma abertura suficiente de mentalidades sensível à novidade, à inovação.

Então como é que poderemos vender a arte contemporânea?

Mais uma vez, temos de encontrar o mercado certo, prepará-lo e levá-lo até à obra de arte. Temos de estudar os seus hábitos de leitura, o que gosta de ouvir, o que verdadeiramente o entusiasma, e só depois estabelecer uma comunicação própria com o nosso consumidor cultural.

E quem é geralmente esse consumidor?

Se tivermos em mente a arte dita erudita, são todos aqueles que tiveram alto níveis de educação ou instrução. São pessoas cuja família e escola os educou para o gosto pelas artes. De um modo geral, esta apetência forma-se até aos 20 anos de idade. Será pois muito difícil arrastar alguém de 50 anos que nunca teve grande contacto com a música clássica a um concerto de uma orquestra sinfónica, por exemplo.
Quanto mais contemporâneo for o estilo de arte, mais formação terão os nossos consumidores (70% a 80% são licenciados). As mulheres são o nosso principal target, mas também depende muito do tipo de arte. Na dança, por exemplo, talvez 70% a 75% do público seja feminino, nos concertos de música
clássica não há grandes distinções, no jazz temos mais homens na assistência, enquanto nos museus e no teatro temos dois terços de mulheres como consumidoras.
Quanto a hábitos de leitura, temos mais mulheres a ler romances e mais homens a ler jornais. Relativamente ao sector cinematográfico, existem dois grandes segmentos: aquele que engloba pessoas entre os 15 e os 25 anos; e outro que reúne pessoas com idades superiores a 25 anos. E já que falamos em idades, devo acrescentar que, na música clássica, no bailado e no teatro teremos tendencialmente um público mais velho, enquanto no jazz e na dança contemporânea existe uma audiência mais jovem. Mais uma vez, o tipo de consumidor varia muito consoante o tipo de arte que lhe é oferecido.
No que toca à arte mais popular temos um público-alvo mais vasto, falamos então da população em geral, independentemente do seu grau académico ou da sua origem geográfica ou social.

Se, tradicionalmente, o público feminino é o principal consumidor de arte, porque foi desde a infância mais educado para a cultura, qual a razão de existirem mais artistas masculinos no mercado?

Porque tradicionalmente era mais fácil para os homens ingressarem no mundo artístico. Para as mulheres era inaceitável. Se escolhiam, por exemplo, ser actrizes, tendiam a ser mal aceites pela sociedade. Mas esta visão, nos dias de hoje, é cada vez menos recorrente, por isso é que, cada vez mais, vemos mulheres como actrizes, coreógrafas, maestrinas. E eu creio que esta mudança de
mentalidades talvez se deva ao papel que as artes, com as suas visões alternativas de vida, têm vindo a desenvolver na sociedade.

Numa das suas obras dá particular destaque à crítica: qual é verdadeiramente a sua importância? As pessoas seguem, de facto, as opiniões dos críticos de arte?

As pessoas que costumam seguir a opinião dos críticos sobre determinados espectáculos, filmes ou exposições são geralmente pouco autoconfiantes, ou então entendem que, por terem pouco tempo ou dinheiro, devem fazer a escolha certa. Ao invés, as pessoas que percebem de arte preferem saber a opinião dos críticos após o visionamento dos eventos, para poderem comparar. Se a crítica é bem conceituada e unânime, pode dizer-se que influenciará a afluência das pessoas; se se divide, o efeito causado é muito menor; se pensarmos, finalmente, em críticos desconhecidos, o feedback é nulo.
Considero mais importante, por exemplo, o fenónemo do “boca-a-boca”. Somos mais levados a ver um filme ou uma peça de teatro se os nossos amigos ou familiares tiverem dito muito bem dos mesmos. No caso do cinema, por exemplo, ainda temos outro factor que pode ditar as nossas escolhas: se o filme for realizado por um cineasta de que gostemos muito, ou se do seu elenco constarem os actores ou actrizes da nossa preferência, será sempre mais bem acolhido.

Portugal é conhecido como sendo um país com uma história vastíssima e, consequentemente, uma cultura bastante rica. Todavia, essa cultura não é bem preservada internamente, sendo pouco divulgada internacionalmente. Assim sendo, como é que poderíamos construir uma marca nacional
baseada na arte e cultura portuguesas?

Primeiro, temos de pensar muito bem no que temos de oferecer. O mercado do turismo está a expandir-se cada vez mais, e a principal razão que leva as pessoas a viajar para outro país é precisamente a sua necessidade de conhecer diferentes culturas. Para se posicionar no mercado internacional, Portugal tem de juntar pessoas e instituições culturais. Estas devem passar a trabalhar, não como concorrentes, mas como uma equipa que tem a “marca Portugal” para oferecer. Uma vez conseguida esta união de esforços, será necessário fazer uma reflexão sobre o que é que Portugal tem para oferecer de realmente diferente, e fazer convergir todas as energias para a divulgação dessa diferença!

Acontece que a maior parte dos visitantes que se desloca anualmente ao nosso país vem em busca de sol, mar e de um estilo de vida mais barato. Nestas circunstâncias, como é que poderemos divulgar de forma mais eficaz a nossa cultura?

Se Portugal já recebe muitos visitantes por outras razões que não a sua cultura, há que procurar manter esses mesmos visitantes durante mais tempo no país, oferecendo-lhes mais alternativas, que não o clima ou as praias. Há que tentar abrir as suas mentes para novas experiências, que deverão ser únicas e inesquecíveis. Actualmente, a expansão da indústria do turismo é notável, sobretudo quando
pensamos nos países europeus, que estão numa posição muito favorável, devido ao seu passado histórico riquíssimo. No entanto, apesar de a sua oferta cultural ser mais vasta, terão de se preocupar, agora mais do que nunca, em desenvolver uma marca sua, que os distinga além-fronteiras.

Em 30 anos de estudo, o que é que acha que mudou mais na gestão cultural?

É cada vez mais profissional, utiliza actualmente instrumentos de pesquisa muito inovadores para aferir as preferências do público. Nas minhas aulas, costumo dizer que nós devemos sempre procurar aperfeiçoar as técnicas de marketing aplicadas à cultura, primeiro para termos a certeza de que o artista é (bem) pago por aquilo que faz e, em segundo lugar, para que possamos maximizar a sua exposição pública. Falar em marketing cultural é falar da promoção da obra de arte, é aumentar a sua visibilidade e a sua aceitação.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o conceito surgiu mais cedo do que na Europa, dado que o Estado tinha um papel muito pouco interventor na cultura. De qualquer modo, na grande maioria dos países industrializados, como já referi, existe sempre o mesmo problema: pouco dinheiro dos governos e um
cada vez maior número de artistas a querer mostrar o seu trabalho. Como o orçamento do Estado para a cultura é quase sempre insuficiente, é necessário contar, cada vez mais, com o trabalho dos marketeers culturais, sobretudo quando falamos em angariação de sponsors. Como vê, não é um problema português. Esta é uma realidade que está presente em quase todos os países europeus e também na América.

"Marketing das Artes: importância e actualidade", entrevista de Rita Curvelo, então Assistente Convidada da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, in Comunicação & Cultura, n.º 1, 2006, pp. 173-180 (fonte)

Ian Buruma (2014)

Valor: Em seu mais novo livro, 1945 é apresentado como o ano zero da era contemporânea. Por que não 1914, com o começo do fim dos velhos impérios europeus, ou 1918, com o fardo imposto à Europa Central pelo Tratado de Versalhes?

Ian Buruma: São dois marcos importantes e podemos pensar em paralelos históricos, mas precisamos considerar diferenças importantes. A primeira delas é a ideia, clara entre os Aliados, de que a Segunda Guerra, ao contrário da Primeira, era, de fato, “justa”. Acreditava-se profundamente que era preciso lutar. Entre 1914 e 1918, as razões de enfrentamento foram diversas e muito mais nebulosas. Outra diferença fundamental é o fato de que algumas lições da Primeira Guerra haviam sido aprendidas em 1939 e houve, com o fim das hostilidades, seis anos depois, uma tentativa real de não se repetir certos erros. Os julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg e no Japão, são o exemplo mais claro, mas podemos ir além: a ONU é uma instituição mais ambiciosa do que a Liga das Nações e até mesmo as terríveis limpezas étnicas na Europa Central e Oriental no pós-Segunda Guerra, que relato no livro, têm um caráter diferente do da vingança orquestrada e institucionalizada em Versalhes.

Valor: Esse não é seu primeiro livro sobre a Segunda Guerra. O senhor lançou, há 20 anos, “Wages of Guilt: Memories of War in Germany and Japan”. O que o estimulou a voltar ao tema?

Buruma: Em “Wages” tratei especificamente da maneira como o conflito é lembrado no Japão e na Alemanha. O fio da meada para “Ano Zero” foi a história recuperada de meu pai, quando ele retornou da Alemanha para sua cidade na Holanda e viu como a necessidade da população local de voltar à normalidade incluía, por exemplo, trotes violentos em sua universidade. O que se aprendeu, afinal, com o conflito? Que tipo de mundo se criou a partir de tamanha destruição, e o que mantivemos do passado, se é que havia essa possibilidade em meio a tanta ruína? Ao mesmo tempo, reflito sobre esse novo mundo, iniciado em 1945, que parece estar gradualmente se acabando, chegando, agora mesmo, enquanto conversamos, próximo de seu fim.

Valor: O senhor também trata do esquecimento recente das lições de 1945...

Buruma: Sim, a quantidade de pequenas guerras comandadas nas últimas décadas pelos EUA, culminadas em invasões cujas consequências não foram levadas em consideração, também me instigaram a escrever “Ano Zero”. Foram guerras comandadas nos EUA e Europa por líderes inexperientes, comandantes civis e militares que nunca haviam tido a experiência real de guerra, nem mesmo no Vietnã. Talvez por isso tenham sido ingênuos o suficiente para acreditar na fórmula de enviar tropas, derrubar o ditador da hora e pronto. Obviamente, essas ocupações, como podemos observar agora no Iraque e no Afeganistão, criam novos problemas, incitam rebeliões, semeiam o caos. Humildemente, achei que era um bom momento para lembrar as pessoas das reais e duradouras consequências das ocupações civil-militares. Voltei, pois, à Segunda Guerra.

Valor: Um dos aspectos mais definidores de “Ano Zero” é sua decisão de contar a história a partir de personagens mais ou menos comuns, ignorando teorias históricas sobre o período abordado.

Buruma: Sim, foi algo que decidi logo no início das minhas pesquisas: estão proibidas nesse livro declarações de acadêmicos ou historiadores. Somente contaria com depoimentos de testemunhas, de gente que viveu o conflito, incluindo diários, relatos, reportagens. A experiência pessoal e a capacidade de descrever o mundo em transformação à sua volta usando seus olhos foi um pré-requisito para determinado trecho, fato ou relato entrar no livro. Não queria escrever mais um livro oferecendo alguma teoria histórica inovadora sobre as causas e efeitos da Segunda Guerra. Meu objetivo foi o de criar, tal qual um romancista, um quadro da vida cotidiana naquele momento e locais específicos. A ideia era levar a vida daquela gente, em 1945, para o livro.

Valor: Um de seus personagens é Nobusuke Kishi, importante na terrível campanha da Manchúria. Ele jamais é julgado e sai da prisão para se tornar, no fim dos anos 50, primeiro-ministro do Japão. Para o senhor, a ocupação aliada do Japão e da Alemanha nazista, mesmo com a permanência no palco público de atores importantes no teatro de guerra, foi muito mais inteligente do que a do Iraque e do Afeganistão na primeira década deste século, não?

Buruma: Nesse aspecto, 1945 oferece uma lição política para as atuais gerações. Quando a invasão do Iraque começou, falava-se da necessidade de destruir o Partido Baath, de Saddam Hussein, da “desbaathificação” do país. O modelo usado pelos neoconservadores era o que eles imaginavam ter sido a “desnazificação” da Alemanha. Mas eles não perceberam que o Iraque ficaria ingovernável se toda a elite sunita fosse marginalizada. Obviamente, era preciso fazer algo em relação aos mandachuvas da ditadura, mas é de uma ingenuidade ímpar desmantelar toda a burocracia estatal e querer governar o país ocupado a partir do zero. O resultado foi a anarquia a médio prazo e o risco de uma guerra civil de longa duração. Esse foi um caso terrível de falta de conhecimento cultural dos que estavam no comando.

Valor: Com o fim da Guerra Fria, o senhor diria que a integração econômica, desde o “ano zero”, em formas diversas, serviu de nova barreira para evitar a eclosão de um conflito de proporções globais?

Buruma: Antes de mais nada, precisamos lembrar que a economia europeia, em 1914, era muitíssimo integrada. E já havia a Liga das Nações. Então, não se trata de uma barreira tão forte assim. Mas interdependência econômica sempre ajuda. Como imaginar os EUA em guerra com a China? Seria economicamente terrível para os dois países. O federalismo, por sua vez, tem seus limites. Veja a Comunidade Europeia. Como classificar essa instituição federalista? Não é uma democracia liberal. Não é um império. Não é uma monarquia. É um híbrido que ninguém de fato deseja. O idealismo de 1945 ofereceu à Europa a possibilidade de criação de uma série de instituições fabulosas, mas as melhores intenções às vezes mascaram graves problemas para o futuro.

Valor: Para o senhor, três das heranças mais importantes de 1945, especificamente no mundo ocidental, mas não só, foram a consolidação da democracia liberal, a defesa do Estado de bem-estar social e o combate moral das desigualdades sociais. O que observamos desde os anos 1980, no entanto, é o questionamento desses três pilares incrementados no “ano zero”, não?

Buruma: Sim. O fim da Segunda Guerra trouxe, como um de seus efeitos principais, uma “explosão de idealismo”, em que a construção de um mundo mais justo, mais igual, se tornou imperativa. Mas esse idealismo não pode durar para sempre. Ele ficou mais caro com o passar do tempo. Os interesses da burocracia e dos sindicatos ganharam poder com a rigidez desse idealismo e se tornam alvos de outros setores, críticos dos limites da social-democracia e da solidificação do Estado de bem-estar social. O que se vê, hoje, no Hemisfério Norte, são os últimos suspiros desse momento histórico.

Valor: O senhor vê alguma “explosão de idealismo” no momento, o aparecimento de pensadores interessados em criar alternativas ao capitalismo de Estado chinês ou ao neoliberalismo euro-americano?

Buruma: Decididamente, não. A esquerda parou no tempo. Os ideais clássicos de esquerda se revelaram, na prática, ou muito caros, ou muito rígidos, ou acabaram cooptados por interesses corporativos. O colapso do império soviético no fim dos anos 80 e começo dos 90 ainda nutre, duas décadas depois, terríveis sequelas, de certa forma subtraindo o crédito de tudo o que esteja relacionado ao marxismo. A base ideológica da esquerda foi varrida do mapa. E nada ocupou de fato o espaço da velha esquerda do século XX na era do materialismo individualista em que vivemos.

Valor: As políticas de redistribuição de renda no Brasil não dariam a pista de um caminho possível para as esquerdas neste milênio, como, por exemplo, na denúncia da desigualdade social que se vê hoje nos Estados Unidos?

Buruma: Sim, mas especificamente para a esquerda latino-americana ou, quiçá, a de parcela significativa do Hemisfério Sul. Os caminhos da América Latina, desde o “ano zero”, foram bem diferentes dos da Europa Ocidental, por exemplo, que experimentou a social-democracia a partir de 1945. As seguidas ditaduras e governos de direita ao sul do Rio Grande ofereceram uma reação natural na figura, por exemplo, de um Lula. Uma encarnação de esquerda que classifico de moderada e, ouso dizer, provavelmente saudável para o Brasil. Mas não vejo como os dois principais modelos de social-democracia oferecidos à sociedade brasileira poderiam ser aplicados fora da América Latina.

Valor: O senhor ocupa a cadeira de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo da Universidade Bard. E há de considerar que esses três importantes pilares da vida social mudaram muito desde 1945, não?

Buruma: Enormemente. E o jornalismo, provavelmente, foi o que se transformou de forma mais radical, por causa da emergência da era digital. A maior preocupação que tenho é com a qualidade do chamado jornalismo internacional, vital para a aproximação e compreensão de culturas, função exercida pelos correspondentes durante todo o século XX. Mas as empresas não conseguem mais bancar esses profissionais, o que é uma tremenda perda. E se o acesso via internet aumentou a sensação de conexão com o estrangeiro, a autoridade da imprensa diminuiu decididamente. A internet, com as redes sociais, não reconhece mais a autoridade do jornalista. Ela se tornou o reino das opiniões, dos desabafos, dos diários disfarçados de notícia. Os filtros se foram, há de tudo no mesmo saco: reportagens de alta qualidade, opiniões de todos os naipes e importância, polêmica gratuita, tudo dividindo o mesmo espaço. Espaço que, talvez, até seja mesmo muito mais democrático, no entanto carente da importância e da capacidade de interferência de antes.

Valor: Por outro lado, a era digital ofereceu a possibilidade do desmascaramento de delitos oficiais, dos vazamentos de informação sigilosa, em uma proporção jamais vista.

Buruma: Sem dúvida, mas então precisamos deixar algo muito claro: isso não é jornalismo, é uma outra coisa, algo completamente diferente. Revelar dados não é jornalismo. Jornalismo é quando o “Guardian” ou o “New York Times” exercem sua capacidade de edição, de decidir o que é mais ou menos vital, o que deve ser publicado, e como esses documentos serão explicados, seu contexto, sua importância. Edward Snowden precisou de um jornalista e dos velhos dinossauros da imprensa escrita para divulgar seus achados.

Valor: Passemos aos direitos humanos. Houve, nas últimas sete décadas, uma avanço inegável nessa área, não?

Buruma: Sim, mas talvez tenhamos ido longe demais. A defesa dos direitos humanos se tornou quase uma religião, uma versão laica das missões cristãs. A ideia de guerras modernas em outros países, justificadas pelo ideário dos direitos humanos, é um equívoco prático, com a inevitável transformação do que era ruim em algo muito pior. Veja a Líbia. O resultado da deposição de Muamar Gadafi, em um primeiro momento fato histórico difícil de não considerar positivo, foi a produção de uma sociedade civil ainda mais violenta. Os direitos humanos só podem ser de fato universais se você os estreita a pontos racionalmente globais, como, por exemplo, o direito de não ser torturado. Quanto mais você os alarga, mais difícil se torna a tarefa de aplicá-los universalmente, ao menos de forma honesta.

Valor: O senhor mencionou a crença dos aliados de que 1945 foi uma “guerra justa”. Onde o senhor estabeleceria o limite do uso da força com a justificativa da defesa dos direitos humanos?

Buruma: Direitos humanos e dogmatismo não podem caminhar juntos. Há casos em que é preciso usar força militar para impedir, por exemplo, genocídios ou limpezas étnicas, mas não pode ser nunca a norma. Chegamos ao limite da ideia de que temos de intervir sempre que se detectar abuso de direitos humanos. Essa pode ser até, paradoxalmente, a semente para a criação de um novo Hitler.

Valor: Ao mesmo tempo, a justificativa de ações militares em “guerras justas”, guiadas pela necessidade de proteger a população de povos estrangeiros de seus governantes, tem força moral diminuída quando se enfrenta a crítica do desrespeito aos direitos humanos em casa.

Buruma: Sim, e imagino que você esteja se referindo à prisão de Guantánamo. Uma crítica honesta à administração Obama é justamente a timidez em relação às violações de direitos humanos praticadas pelos EUA. Não houve uma mudança política significativa de rompimento com as diretrizes da era Bush. A principal diferença é que Bush usava de forma cínica a noção de intervenção humanitária para justificar ações militares. Os “neo-cons”, curiosamente, usaram esse viés missionário cristão e se apropriaram, de certa forma, do ideário da velha esquerda, ocupando, nos EUA, o posto de internacionalistas da hora, acreditando de fato que tinham o dever moral de intervir e estabelecer democracias mundo afora. Alguns dos principais colaboradores de Obama, como a chefe da missão dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power, comungam, pelo viés liberal, do mesmo ideário, mas trata-se, em geral, de uma administração mais cautelosa, como se viu recentemente na Síria.

Valor: E a democracia? Há de fato uma crise do modelo das democracias liberais?

Buruma: Os governos nacionais, desde o “ano zero”, foram gradualmente perdendo sua importância, submetidos ao interesse de corporações globais poderosíssimas, que ultrapassam os limites históricos da nação. Consequentemente, as pessoas que elegemos são cada vez menos efetivas para lidar com o mundo à sua volta. Cria-se uma crise de confiança: mais e mais pessoas acreditam que a democracia liberal e a classe política não são mais aptas a nos governar. O resultado é a emergência de magnatas como Berlusconi, na Itália, ou, em países com economia em desenvolvimento, como Egito, Tailândia, Turquia e Ucrânia, uma crescente oposição de interesses entre a elite urbana e as populações interioranas. Há um consenso democrático de que todos os egípcios, turcos e tailandeses devem ter o direito ao voto. Mas também há uma enorme dificuldade de entender que o eleitor nos grotões desses países elegerá candidatos de acordo com seu interesse regional, quase sempre diverso do das elites urbanas e, muitas vezes, desrespeitando uma das fundações da democracia: a garantia dos direitos das minorias, outra herança importante do “ano zero”.


Entrevista de Eduardo Graça para a revista Valor Económico em janeiro de 2014 (fonte)

Tom Holland (2012)

ÉPOCA – Como surgiram as dúvidas em relação à história do islamismo?

Tom Holland – Nos anos 1950 e 1960, historiadores começaram a estudar os hadiths, as citações de Maomé, e a questionar se eram realmente do tempo do profeta. Quando ficou claro que, nesse caso, as “provas” que a tradição islâmica oferecia eram fracas, a estrutura toda começou a ruir. As biografias do profeta, os comentários ao Corão, as informações sobre o surgimento do islamismo, tudo ficou sob suspeita. Recentemente, os historiadores começaram a se perguntar se aquilo que os historiadores islâmicos dos séculos IX e X escreveram sobre o começo de sua fé era historicamente verdadeiro. A conclusão tem sido que, para entender o islamismo, as fontes islâmicas não são suficientes. Assim como se questiona se as narrativas sobre a vida de Cristo, escritas dois ou três séculos depois que as coisas aconteceram, correspondem aos fatos, o mesmo começa a ser feito com o islã.

ÉPOCA – Como surgiu a história do islã que conhecemos hoje?

Holland – Os bispos que triunfaram no Concílio de Niceia, no século IV, reescreveram a história do cristianismo para assegurar que houvesse uma única narrativa, linear, desde os tempos de Cristo. Provavelmente ocorreu o mesmo no islamismo. Existem diferentes interpretações dentro do islã, que parecem recuar no tempo até o século VII. Aquilo que conhecemos hoje como islamismo demorou pelo menos tanto tempo quanto o cristianismo para se consolidar. A história mostra que religiões e grandes civilizações não emergem formadas. Elas surgem pela confluência de circunstâncias e influências. Evoluem lentamente.

ÉPOCA – O senhor diz que o Corão é composto de várias influências – inclusive mitologia grega –, mas afirma que como documento histórico ele é sólido. Como é isso?

Holland – Quando se estudam as citações atribuídas a Maomé (os hadiths), percebe-se nitidamente que foram moldadas pelo período em que foram escritas. Elas contêm alusões claras a eventos históricos que tiveram lugar décadas e mesmo séculos depois da morte do profeta. Com o Corão, não é assim. Tanto quanto podemos perceber pelas cópias mais antigas, parece que todos aqueles que o copiaram agiram como se estivessem lidando com algo extremamente sagrado. Eles tentavam não mudar nada. Mesmo quando havia problemas entre o texto do Corão e rituais e leis islâmicas correntes, o texto foi preservado. Por exemplo, os muçulmanos rezam cinco vezes ao dia, e isso parece ter origem nas práticas do zoroastrismo, a religião dos persas. Mas o Corão diz que se deve rezar três vezes. Não se tentou alterar o texto do Corão para adequá-lo à realidade, embora isso pudesse facilmente ter sido feito. Ao que tudo indica, o Corão foi tratado como o livro mais sagrado, com que não se podia brincar. Portanto, o texto que temos hoje parece ser algo original, que veio de um período remoto e foi preservado através dos séculos.

ÉPOCA – O Corão foi escrito quando se diz que ele foi escrito?

Holland – Um de nossos desafios é descobrir precisamente de que período veio esse documento. A tradição islâmica diz que esse texto emergiu pronto da boca de alguém chamado Maomé, que viveu num certo período (570-632 d.C.). O peso das evidências dá apoio à tradição. O Corão parece aludir a episódios que tiveram lugar no início do século VII, um dos quais é uma derrota romana para os persas, que ocorreu na Palestina, exatamente no período em que a tradição diz que o profeta viveu. Há também uma passagem referente a Alexandre, o Grande. Ela ecoa, quase palavra por palavra, um texto escrito no Irã em 630 por um sírio ligado ao Império Romano. Essa é a data mais antiga em que podemos identificar uma fonte no Corão, e ela corresponde ao que nos informa a tradição. Uma vez que você aceita isso, pode aceitar o Corão como uma fonte de informação legítima, primária, capaz de nos dar pistas sobre onde, como e por que Maomé agia.

ÉPOCA – O senhor diz que Meca talvez não tenha sido o lugar onde Maomé nasceu e deu origem ao islamismo. Por quê?

Holland – Meca é um problema. De acordo com a tradição islâmica, ela era uma cidade pagã, sem traços de comunidades cristãs ou judaicas, e estava localizada num deserto. Maomé, vivendo ali, era analfabeto, porque não poderia ter aprendido a ler. Entretanto, no Corão há centenas de referências a profecias judaicas e cristãs. A Virgem Maria aparece no Corão mais que no Novo Testamento. Não só o profeta parece familiarizado com essas citações, como parece contar com uma audiência igualmente familiarizada com as tradições bíblicas – embora a tradição afirme que em Meca havia apenas pagãos. Algo ainda mais problemático é Meca ser mencionada uma única vez no Corão, de uma forma ambígua. Pode ser uma referência a um vale tanto como a uma vila. Não está claro. E nenhuma outra fonte do período menciona a cidade. De nenhuma forma. A primeira vez que o nome da cidade aparece é em 741. Quase um século depois da morte de Maomé. Mesmo assim, a cidade é localizada num deserto no interior do atual Iraque, não na Arábia. Não acho que Maomé seja originário de Meca. Ele provavelmente veio mais do norte. As evidências do Corão sugerem isso.

ÉPOCA – Por que a tradição islâmica situa o nascimento da religião em Meca?

Holland – Justamente porque ela é tão remota, tão isolada. Se você acredita que o Corão veio direto de Deus, você tem de deixar claro que não poderia ter vindo de nenhuma fonte mortal. O paralelo é com a virgindade de Maria, na tradição cristã. Se os cristãos acreditam que Jesus é o filho de Deus, divino, eles não podem tolerar que Jesus seja filho de um pai terreno. Logo, Maria tem de ser virgem. Então, se o Corão é divino, se vem diretamente de Deus, os muçulmanos não podem tolerar nenhuma menção de que ele possa ter vindo de influências judaicas ou cristãs. Eles precisavam situar sua origem num lugar o mais remoto possível. Esse lugar é Meca.

ÉPOCA – Qual sua conclusão sobre Maomé? Ele existiu ou é apenas uma lenda?

Holland – Tenho certeza de que existiu. A dificuldade está em saber quanto mais do que isso podemos dizer. Sabemos que ele existiu porque há um texto de propaganda cristã, em 634, que descreve os árabes num ataque à Palestina sob a liderança de um “profeta dos sarracenos”. Quem poderia ser senão Maomé? Isso parece demonstrar, no mínimo, que alguém muito parecido com Maomé estava ativo na Palestina durante aquele período. Mas Maomé, de acordo com a tradição islâmica, morreu em 632. O mesmo texto que confirma a existência do profeta contradiz a tradição sobre a data de sua morte.

ÉPOCA – O que os muçulmanos acham de seu livro e de suas conclusões?

Holland – Isso depende. Alguns estão furiosos. Outros reconhecem que o debate é parte do processo de que emergirá uma forma ocidental de islamismo. Na tradição ocidental, é natural que a religião seja alvo de investigação intelectual e acadêmica. Agora que o islã está se tornando uma religião europeia, ele será alvo do mesmo tipo de abordagem histórica que foi feita em relação ao cristianismo e ao judaísmo. Quase todos os muçulmanos com quem conversei foram muito generosos e abertos a respeito de minhas ideias.

ÉPOCA – O senhor não tem medo de sofrer perseguições por causa de seus pontos de vista?

Holland – Acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém que não é muçulmano duvidar que o Corão tenha vindo de Deus. A presunção muito difundida de que questionar a origem do islamismo significa receber automaticamente uma sentença de morte e que barbudos furiosos atacarão quem fizer isso está muito distante da verdade. A islamofobia assume que os muçulmanos são tão violentos e irracionais que, se você apenas questionar sua religião, eles virão matá-lo. Não acredito nisso. Essa imagem não corresponde a nenhum muçulmano que conheço.

ÉPOCAO escritor Salmam Rushdie talvez discordasse dessa afirmação.

Holland – Bem, Salmam Rushdie era originalmente muçulmano. No caso dele, havia uma acusação de apostasia (trocar uma religião por outra). Mas ele também estava fazendo um esforço deliberado de provocar. Defendo seu direito de fazer isso como artista, mas insultar propositalmente a figura do profeta é muito diferente de questionar as bases históricas do que sabemos a respeito dele.


Entrevista de Ivan Martins para a revista brasileira Época (fonte)