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Vitorino Magalhães Godinho (2009)

Jornal de Letras: Acaba de publicar A Expansão Quatrocentista Portuguesa, uma edição (muito) revista e aumentada de uma obra da década de 60, A Economia dos Descobrimentos Henriquinos. O que o levou a fazê-lo agora?

Vitorino Magalhães Godinho: Há certas obras que, com o tempo, se tornam clássicas. Podem estar ultrapassadas em alguns dados mas constituem um modelo e uma lição para nós. Outras, como A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, fizeram contribuições científicas importantes na altura da sua publicação (teve uma grande repercussão em Portugal e no estrangeiro). Considerou-se que marcou uma nova etapa na historiografia da Expansão e dos Descobrimentos Portugueses na medida em que se tratava de uma obra que considera a História como uma construção científica e não como um discurso literário.

JL: Que era o que predominava até aí?

VMG: Havia trabalhos de erudição extremamente valiosos, mas a explicação histórica tendia ainda a basear-se mais em lendas, mitos, tradições do que numa investigação rigorosa. Estou consciente de que a obra tal como estava continuava a ser importante mas passou-se quase meio século e senti que era meu dever para com o leitor publicá-la como se surgisse pela primeira vez. Mudei alguma coisa no modo de escrever, mas sobretudo levantei novos problemas, aprofundei alguns temas e incorporei dados de investigações novas, minhas ou de outros historiadores. Em Ciência não há conclusões defi nitivas e há temas que nos vão surgindo ao longo do tempo. Várias obras minhas nasceram de cursos que realizei. A primeira versão desta obra era um pequeno ensaio justamente intitulado A Expansão Quatrocentista Portuguesa. Do aprofundamento dessa investigação surgiu justamente A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, cujo título estava relacionado com as comemorações do quinto centenário da morte do Infante Dom Henrique. Neste caso, posso dizer que regresso ao título original.

JL: O que há de novo?

VMG: Essencialmente, a abordagem da Europa nos séculos XIV e XV. Criei o conceito de complexo histórico-geográfi co para estudar realidades díspares com as suas estruturas sociais e económicas. Ora, nós podemos encontrar nessa Europa várias realidades muito distintas: a atlântica, a do mar do Norte e do mar Báltico, a zona do interior do continente e a mediterrânica. Até aqui explicava-se a origem do movimento de expansão a partir dos problemas dessa realidade mediterrânica, nomeadamente a partir dos interesses das poderosas repúblicas italianas já pré-capitalistas. Neste livro, mudo de perspectiva, relacionando a génese da expansão com os problemas de uma periferia atlântica que tem uma vida própria. Portugal, como toda essa zona costeira, sentia a necessidade de metais amoedáveis e de mão-de-obra escrava. Outro aspecto que julgo ser inovador é a ideia de que não há só uma expansão; há movimentos guerreiros, há colonização dos novos territórios como é o caso das ilhas e há campanhas de demanda de ouro e escravos. Estas diferenças radicam na própria divisão social do reino. Há movimentos que dependem mais dos interesses da burguesia urbana e outros que se relacionam com as motivações da média nobreza, ansiosa por obter novas rendas a partir de novas terras. Por vezes, houve confluência de objectivos, mas por razões diferentes.

JL: Que papel desempenhava a motivação religiosa, o espírito de cruzada de que tanto falavam os cronistas da época?

VMG: Correspondia a um factor de ideologia e, como tal, a uma forma de justificar essa expansão, o que não quer dizer que não existisse a crença profunda na necessidade de submeter os bárbaros. Considerava-se que estas terras tinham sido roubadas aos cristãos. A Cruzada servia de justificação ideológica, embora não seja a explicação das causas desse movimento. Servia também para obter algumas regalias junto do Papa, como a Bula de Cruzada ou rendas adicionais. Assegurava uma espécie de legitimação aos olhos do Direito Internacional da época.

JL: Considera que o passado das nações diz muito sobre o seu presente. O que é que o processo de expansão diz sobre o Portugal de hoje?

VMG: Portugal é um país que se expandiu para o exterior quando estava ainda em pleno processo de formação (o que, aliás, também acontece com a Europa) nos séculos XIV e XV. A nossa génese enquanto nação está, pois, ligada a esse processo. Por outro lado, também não deixa de ser importante como ao longo dos tempos foi vista a expansão. O movimento republicano procurou recuperá-la como grande gesta do povo português, o que lhe asseguraria um lugar de prestígio à escala mundial. Não se tratava só de conservar as colónias, era também uma afirmação de importância. Com as descolonizações, os povos criaram uma memória nacional por oposição aos colonizadores. Criou-se a ideia de que a expansão fora algo infamante, exigindo-se mesmo assunções de culpa. Ora, em meu entender, isto é tão disparatado como a glorificação desses colonizadores. Os processos históricos têm dinâmicas próprias e há que pô-los no respectivo contexto. Que culpa tenho que o Vasco da Gama mandasse incendiar uma nau adversária com 600 mulheres e crianças? Ambas as atitudes são prejudiciais à investigação histórica.

JL: Acha que já recuperámos desse sentimento de culpa?

VMG: Não inteiramente. Repare que a História desde o fi nal do século XX tem vindo a ser desvalorizada e deixou de ser parte fundamental da cultura. Dos cursos de Gestão e Economia praticamente desapareceram as cadeiras de História Económica. Hoje só interessa o imediato e, como tal, as pessoas ignoram tudo o que se tenha passado há mais de 5 anos. Grande parte dos economistas de hoje não sabem como era a Economia das décadas de 1970 e 1980. Mas para haver responsabilidade tem de haver um equilíbrio entre o que vem de trás, o que recebemos e aquilo que podemos fazer. Não é a novidade pela novidade. Há uma capacidade de produção cada vez maior, há transformações laborais que geram desemprego deliberadamente, de que resulta uma diminuição da procura e do consumo. O desemprego não é um acidente, resulta da organização estrutural da Economia.

JL: A desvalorização da História e da Cultura é uma decisão deliberada dos políticos?

VMG: Penso que os políticos são sobretudo ignorantes. Eles próprios não receberam formação cultural e resistem a ela como a qualquer coisa que não se domina. O que é deliberada é a decisão de que tudo o que importa é o lucro. O ataque à cultura assume, aliás, várias formas: uma delas é querer submeter os países da Europa a uma língua única (o Inglês) em detrimento das línguas nacionais. No nosso país há já escolas superiores em que se dão aulas em Inglês e em que os professores, quando reunidos, usam esta língua. A União Europeia, na sua génese, tinha como objectivo o respeito pelas diversidades e pelas especificidades nacionais. Por outro lado, hoje é a Economia que dita a agenda da investigação científica. Tudo se tornou muito caro e, como tal, os centros de investigação estão sobretudo ligados a indústrias poderosas, como as do ramo farmacêutico ou de armamento. A hipertrofia da técnica não desenvolve a ciência, subordina-a. A ciência já não serve para nos ajudar a compreender o universo e a nós próprios, o que é outra forma de ataque à cultura e ao espírito crítico que foi sempre apanágio da tradição europeia. Aliás, é chocante ver como todo este processo técnico coexiste com o regresso a formas de feitiçaria, a maneiras de pensar antigas capazes de anular o esforço científico dos últimos séculos. Eu diria que há um choque cultural no interior de cada civilização.

JL: A História tem sido desvalorizada no Ensino?

VMG: Totalmente. Os programas de História do Ensino Secundário são perfeitas aberrações. Não há sentido do que é a História e de como ela deve pôr problemas não só sobre o passado mas também sobre o homem de hoje. Prefere-se falar em conceitos, o que está totalmente errado. Quando se fala de maus resultados dos alunos, eu digo que não compreendo é como alguém aprende alguma coisa com estes programas. Se o fazem são autênticos heróis. Por outro lado, os jovens são despropositadamente infantilizados. Evitase tudo o que seja esforço, quando as crianças e jovens gostam de desafios e de superar difi culdades. Eu gosto muito de fazer História, mas admito que há aspectos muito aborrecidos e que talvez preferisse não fazer. Gosto de interpretar dados numéricos, mas aborrece-me muito fazer recolhas e listagens. No entanto, é necessário. Alguém aprende a nadar sem sair da piscina? Ou a conduzir sem sair da auto-estrada? Julgo que há uma política deliberada de quem não sabia para onde estava a conduzir a Educação.

JL: Família republicana, laica e anti-salazarista O professor pertence a uma família que teve sempre grandes preocupações cívicas e políticas.

VMG: O meu pai pertencia a uma família do meio rural de Ancião. O meu avô era professor primário, dos primeiros a introduzir o sistema métrico decimal, o que foi reconhecido com uma carta de mérito do rei D. Luís. O meu pai foi fazer o Liceu para Coimbra e trabalhou muito para o conseguir uma vez que fez de tudo, desde contabilidade de empresas a explicações para pagar as aulas e os livros. A família da minha mãe era de Aveiro e o meu bisavô conseguiu passar de pé descalço a Par do Reino, graças às inovações que introduziu nas pescas. Fundou um jornal muito importante na região (O Campeão das Províncias). O meu avô teve quatro filhos, um dos quais foi governador de Macau e Cabo Verde até ser demitido pelo golpe militar de 28 de Maio. Seguiu a carreira militar, participou nas expedições militares realizadas em África contra os alemães ainda antes de Portugal entrar na Guerra Mundial. Depois, fez toda a guerra em França. Foi através dele que os meus pais se conheceram. Esteve na escola de guerra ao mesmo tempo que o meu pai. Tornaram-se amigos e, através dessa amizade, levou o meu pai lá a casa. A minha mãe era a irmã mais velha. Casaram quando ela tinha 20 anos, mas já era muito responsável porque tomava conta da família desde que perdera a mãe, aos 14 anos. Os meus pais tiveram quatro filhos (duas raparigas e dois rapazes).

JL: O seu pai, a quem dedicou uma biografia, foi ministro na Iª República.

VMG: Foi ministro dos Negócios Estrangeiros e do Interior. Nestas funções, esmagou a revolta do General Sinel de Cordes, em 1925. Mais tarde veio saber que o próprio ministro da Guerra, seu colega de governo, estava implicado neste movimento, situação, aliás, que veio a repetir-se também no 28 de Maio de 1926. Contou muito com a cooperação e apoio de um homem de coragem exemplar como foi o Presidente da República de então, Manuel Teixeira Gomes. Tal como o meu pai, também ele se sentiu muito magoado com as atitudes de alguns republicanos que, afinal, ansiavam por um regime autoritário.

JL: Afastou-se da política definitivamente?

VMG: Absteve-se de qualquer intervenção a partir de finais de 1925, mas nem por isso deixou de ser uma das pessoas mais perseguidas por Salazar e seu regime. O meu pai era oficial, foi chefe de Estado-Maior da Divisão portuguesa que combateu na Batalha de La Lys, criou os primeiros serviços de Estatística a partir de 1923. Acabou por ser afastado do Estado-Maior, regressou à arma de Infantaria e foi destituído das funções de professor da Escola de Guerra. Em 1928, seria demitido também das funções de director de Estatística. Mais tarde, esteve também na administração dos caminhos-de-ferro e foi também afastado.

JL: Foram tempos muito difíceis na sua família?

VMG: Muito. Para ter uma ideia do nível de perseguição, digo-lhe que meu pai, como coronel, tinha direito a frequentar o curso para o generalato. Recusaram-lhe a inscrição e uma semana depois foi admitido como professor porque a escola estava totalmente carente de quadros. Ou seja, dava aulas aos futuros generais, posto a que ele estava impedido de ascender. Mais tarde, foi reformado compulsivamente. Outro processo bizarro fora a sua demissão de director-geral de Estatística. Ganhou todos os processos que moveu contra o Estado, incluindo o do Supremo Tribunal. Perante isto, Salazar criou, de propósito, o Conselho Superior de Administração Pública, o qual de manhã deu razão ao meu pai e à tarde decretou a sua demissão.

JL: O professor também conheceu na pele essa perseguição. Foi afastado do ensino... Duas vezes.

VMG: Em 1944, era professor da Faculdade de Letras de Lisboa. Quiseram instituir uma fiscalização às minhas aulas, alegando que eu faria propaganda política e atacaria a religião. Em 1962 voltei a ser demitido em resultado da crise académica. Era professor no ISCPU e não me tinha associado à carta de apoio a Salazar no princípio da guerra colonial. Pus-me ao lado dos estudantes e não houve mais nenhum professor catedrático a ser demitido, embora na tradição do meu pai tenha ganho os processos até ao último. No mesmo Diário do Governo vinha a deliberação da minha reintegração e a do meu afastamento - uma a seguir à outra. Foram anos muito difíceis, durante os quais nem sempre sabia com que dinheiro contaria no dia seguinte. Em 1944, já estava casado, tinha duas filhas, fui trabalhando nas edições Cosmos. Felizmente consegui ser chamado para França em 1947 para o Centre Nationale de la Recherche Scientifique, onde fiz toda a carreira académica, nomeadamente o doutoramento de Estado (que é também o concurso para catedrático). Voltei a Portugal para essa experiência funesta no ISCPU. Seguiram-se então mais sete anos muito difíceis, em que sobrevivia a dirigir colecções para editoras, a fazer traduções. Voltei a França para dar aulas e regressei a Portugal no pós 25 de Abril. Fiquei, persuadido pela minha família e amigos, mas hoje tenho muitas dúvidas de que tenha sido a melhor solução.

JL: Porquê?

VMG: Se tivesse ficado em França teria continuado com outras condições de trabalho. Vim para aqui julgando que podia fazer coisas novas e importantes para o país, mas cheguei à conclusão de que, na verdade, os portugueses não estão interessados em coisas novas. Gritam, barafustam muito mas só querem que fique tudo na mesma.

JL: Foi ministro da Educação no pós 25 de Abril. Que memória guarda dessa experiência no poder?

VMG: O meu irmão José pressionou-me imenso para regressar. Na verdade, não pude voltar imediatamente após a revolução porque o ano lectivo estava a decorrer. Mas a minha vontade de intervir era tal que escrevi três artigos para o jornal República que agradaram muito a vários dirigentes políticos, nomeadamente ao Presidente da República de então, o general Spínola. Quando no Verão houve uma crise no governo, o primeiro convenceu-me a assumir a pasta da Educação, mas só lá estive de Julho a Novembro porque rapidamente percebi que não se podia fazer nada de sério. Depois disso, recusei sempre cargos políticos. Aliás, sou contra as carreiras políticas. Defendo que, como cidadãos, todos temos o direito e o dever de intervir em determinado momento político, mas mantendo sempre a nossa profissão.

JL: Foi fundador da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Conseguiu fazer as inovações que se propunha?

VMG: Parti para esse projecto com a convicção de que, de facto, era possível fazer uma coisa nova. Estive lá até à reforma, em 1988, mas nunca consegui fazer singrar as minhas propostas. Foi sempre tudo torpedeado.

JL: Por quem?

VMG: Por muitos políticos mas também pelo professorado que não queria grandes esforços. Basta dizer que dois professores com quem eu contava se recusaram a dar aulas e abandonaram a Faculdade porque, diziam, não conseguiam fazer as suas investigações. A minha ideia era muito simples e, talvez por isso, não havia quem a apoiasse. Acreditava que não nos era possível fazer escolas sem ter pessoal preparado. Se queríamos ter uma Universidade Nova, a nossa primeira missão seria preparar os professores condignamente numa espécie de escola de altos estudos para licenciados. Isto funcionou durante dois anos para áreas como a Antropologia, a História e a Sociologia. Depois disso, o I Governo Constitucional acabou com esta organização e impôs-nos um modelo igual aos das Faculdades de Letras. Ora, nós precisávamos de outra coisa.

JL: Como correram as coisas depois do encerramento dessa área?

VMG: Consegui ainda que houvesse uma área comum de Ciências Sociais que, para além das disciplinas que referi, incluísse a Comunicação Social. Infelizmente, estes cursos tornaram-se uma coisa lamentável, à semelhança do que acontece com os cursos de Gestão. Hoje vejo a Faculdade que ajudei a criar com muita tristeza: tornou-se uma coisa obsoleta e desprovida de autoridade. Por outro lado, sempre defendi o estreitamento da relação entre ensino e investigação científica. Isto hoje está completamente posto de parte pelo Processo de Bolonha que considero feito por indivíduos que não fazem a mínima ideia do que é o Ensino Superior. Os políticos foram atrás. Parece-lhes muito bonito pôr os alunos a andar de um lado para o outro. De que serve a um português aprender Medicina na República Checa? Dizem que os cursos são em Inglês. E os doentes não falarão esta língua? Não são tratados? Nós temos um ministério da Ciência que não sabe o que é a investigação científi ca para além de certas áreas da Física e da Biologia. As Faculdades não têm condições de trabalho nem os centros de investigação de que tanto necessitavam. Há alguns anos propus a criação de um Centro de Investigação de História dos Descobrimentos. Consegui patrocínios internacionais, arranjei pessoal, instalações e o Governo recusou. Hoje não há ideia de que a História é uma ciência, confundem com uns romancecos policiais passados na Idade Média. A Economia que se ensina não tem qualquer relação com a realidade. O economista norte-americano Galbraith advertia precisamente para isso. Em Portugal fecham-se maternidades, urgências, escolas, mas não temos um estudo do que deve ser a distribuição geográfi ca destes equipamentos. Em França faz-se um estudo destes com o princípio de que nenhuma localidade deve ficar a mais de 25 kms de um hospital ou de uma escola. Hoje vai-se do Guincho à Malveira da Serra e constata-se o desaparecimento da mancha florestal e da agricultura. Não há ordenamento de território, apenas casuística pura. Por outro lado, não se pode falar em desenvolvimento sem uma aposta na base cultural séria do povo. E isto não se pode confundir com saber ler, escrever e contar mais o inglês.

JL: Está desencantado com o rumo da democracia em Portugal?

VMG: Não só em Portugal. O mundo actual defrontasse com problemas muito graves de que as pessoas não têm consciência precisamente porque são incultas e porque não estudaram História. Os regimes políticos que, no pós-II Guerra Mundial, se tinham construído sobre uma base democrática retrocederam de modo que o processo de democratização não se completou. Quando se fala em Estado de Direito não se diz absolutamente nada. Lamento muito mas o nazismo era um Estado de Direito. Votar sem opções verdadeiras, sem discussão nacional, sem consciência, não é Democracia. Aliás, basta ver que foi aprovado um Tratado para a Europa sem ouvir os cidadãos e ratificando um incrível Acordo Ortográfico contra os pareceres competentes e o sentir das populações. Como tal, não estamos em Democracia em nenhum país. Nem sequer é um ideal porque todos os objectivos estão voltados para o mercado, que é o único valor. Precipitámo-nos para actividades económicas que nos encaminharam para becos sem saída. Todo o processo económico está estrangulado de tal maneira que o mundo é dirigido por grandes redes em relação aos quais os governos não têm qualquer poder, como se vê agora com os preços do petróleo. Dizem-nos que não pode haver emprego que não seja precário? Quem diz isto não ganha 400 ou 500 euros nem tem empregos precários. As políticas ditas neoliberais fracassaram, desembocando numa crise mundial de incalculáveis dimensões, mas certamente estrutural. A orientação do equilíbrio das contas públicas não integradas num planeamento económico que vise o bem público não evita essa derrapagem. Lembre-se que Salazar saneou as finanças, chegando a obter superavite - e o que tivemos depois? 40 anos de atraso do país. Além do fracasso das democracias e do triunfo de uma economia da desigualdade, defrontamo-nos com outro problema crucial: o fanatismo religioso e o ataque à laicidade. Volta-se à obsessão da tradição como combate à modernidade, violando-se direitos humanos essenciais. Esse enquistamento de doutrinas e práticas que consideraríamos obsoletas ateiam vagas de extrema violência, tornando insuportável a vida quotidiana. Porque não voltamos à utopia?

Entrevista de Maria João Martins publicada no Jornal de Letras, nº 984, aquando do 90º aniversário do historiador (fonte)