Michelle Sales: Eu gostaria de começar esta conversa com a sua formação e a sua vontade de fazer cinema.
Fernando Lopes: Bom, eu fui pra Londres no final de 1959 e voltei quase em finais de 1961. E fui para London Film School e tive sorte de apanhar uma série de
pessoas que estavam também eles próprios a fazer uma revolução no cinema inglês.
Lindsay Anderson foi meu professor, Tony Richardson, Karel Reisz foi meu professor de montagem, gente assim... e mesmo no teatro, na parte dos atores. Isso foi importantíssimo para o movimento intelectual que existia nessa altura, Left Review e coisas assim, mais à esquerda. E para além disso, Londres foi importante porque eu consegui
ver filmes, todos os grandes clássicos que não conseguíamos ver na altura...
MS: O quê, por exemplo?
FL: Filmes que vinham desde Eisenstein ao Pudovkin, tudo, e acompanhar, por exemplo, o início do Bergman, do Ozu. E isso evidentemente marcou-me muito e, sobretudo, o movimento do free cinema, com Tony Richardson, Karel Reisz, Lindsay Anderson, e eu como aluno da escola pude participar em documentários como estagiário em algum desses filmes. Portanto era todo um movimento que simultaneamente coincidia com o que estava a ser o movimento da nouvelle vague na França. Isto tudo juntou-se, eu estava entre Londres e Paris frequentemente. E por outro lado também podia ver em Londres filmes que aqui nunca podia ter visto, porque havia a censura e essas coisas todas, como o Shadows do Cassavetes, que me marcou imenso e outros que eram os pré-cineastas independentes americanos, e isso era uma nova idéia do cinema, uma nova
imagem, novas idéias de imagens e de sons... a relação do cinema e da vida era muito forte nessa altura. Portanto, eu lembro-me perfeitamente de ter assistido a estréia do A Bout de Soufle do Godard, Os Quatrocentos Golpes do Truffaut, com quem depois fiz uma entrevista em Londres. Com isso tudo, deu-nos a idéia que o cinema não
era uma coisa puramente técnica à americana com os gêneros... Era uma coisa que tinha a ver com nossa própria vida, digamos que a relação entre o cinema e a vida
era muito forte nesse grupo de cineastas. E eu tive a possibilidade de ter ficado em Londres, porque eu tive convites para ficar quer na BBC, quer na Shell Film Unit e
decidi que tinha que vir para Portugal, com tudo que isso significava em 1961, 1962...
Que era vir para um país cinzento, com uma ditadura, mas que era possível com outros amigos meus fazer qualquer coisa juntos, dar uma outra imagem, outros sons sobre
este país, e foi um bocado assim que começou o cinema novo. Tivemos a sorte de apanhar um produtor que também tinha estado em Paris com Paulo Rocha, o Antônio
de Cunha Teles, que tinha alguma fortuna pessoal e, portanto, pudemos fazer quer Os Verdes Anos, quer o Belarmino, e o próprio Domingo à Tarde do António Macedo, sem
subsídios. Até porque não podíamos concorrer porque tínhamos uma ficha na PIDE e não podíamos concorrer...
MS: O senhor tinha uma ficha na PIDE?
FL: Tínhamos todos. Eu tinha um bocadinho mais porque como eu tinha começado na televisão em 1957 e, particularmente, porque em 1962 houve uma grande crise
acadêmica aqui, grandes manifestações de estudantes e, naquela altura, eu assinei um papel e dei apoio aos estudantes na televisão em 1963. Foi aí que eu fiz o Belarmino.
MS: E esse papel que o senhor assinou era para quê?
FL: De apoio aos estudantes.
MS: Entendi.
FL: E isso foi parar na PIDE.
MS: Entendi.
FL: Bom... E, portanto tive que sair. Saí em 1963. Foi muito bom porque acabei por fazer o Belarmino. Porque encontrei o Cunha Teles que decidiu fazer o filme com o dinheiro dele. Eu não podia concorrer nem ao Fundo de Cinema, nem o Paulo Rocha, nem o Macedo. Portanto, era uma forma de resistência cultural e política. E isso vinha de um movimento do qual, de certo modo, todos tínhamos participado, quer eu, quer o Paulo Rocha, quer o Macedo... que era o movimento cineclubista, que era um movimento muito forte, muito importante, e que obviamente tinha uma grande conotação política, de resistência política e de resistência cultural. E isso fazia com que nós pudéssemos ver alguns filmes que não passavam nas salas: o Rosi, Alan Renais, e outros e outros e outros que eram só vistos em cineclubes. É isso... o cinema novo é feito como uma forma de resistência mais cultural, mas obviamente que o cultural implica o político.
Digamos que a questão estética não era a única, havia também uma questão ética e ideológica. Isso é marca dos filmes quer do Paulo Rocha, quer meus. Particularmente, Paulo Rocha com Os Verdes Anos e o Mudar de Vida e eu com Belarmino e Uma Abelha na Chuva.
MS: E como surgiu a idéia para o Belarmino?
FL: Eu conhecia o Belarmino da noite, da má vida. Ele era um boxer, um boxer falhado e parecia que era uma bela metáfora de Portugal. Eu conhecia-o dos cabarés da noite, e decidi que seria interessante fazer um filme com ele. E aí lembrei-me muito do Shadows do Cassavetes... E acabei por fazer o Belarmino contra todas as regras
do cinema português daquela altura que era quase inexistente. Fazia-se muitos filmes,
mas a questão estética era inexistente. Era um cinema de regime, pequenas comédias populares... O Belarmino nesse sentido era uma aventura pessoal fortíssima. Eu
tive uma equipe reduzida, que estava toda a começar, éramos todos fora do sistema,
desde o diretor de fotografia até o realizador. E nesse aspecto foi uma pequena revolução. O que é curioso é que, simultaneamente, assim como aconteceu aos Cassavetes e ao Godard e ao Truffaut, ao Chabrol e toda essa gente... Isso coincidiu
com o conhecimento que eu tive aqui em Portugal, na altura... é curioso... A primeira
pessoa, uma das primeiras pessoas que assistiu a montagem do Belarmino foi o Cacá
Diegues e depois o Glauber Rocha. O Belarmino chegou a passar no Festival de Pésaro
clandestinamente. O primeiro festival de cinema novo... O mesmo festival que deu ao
Glauber Rocha o prêmio pelo Barravento, deu o prêmio de crítica para mim pelo Belarmino. E aí ficamos muito amigos, tivemos imensas relações, eu e o Glauber, sobretudo em Paris, e depois aqui em Lisboa já na fase final do Glauber, quando eu era
diretor de co-produções do serviço público, já muito depois do 25 de Abril. Naquela
época, tivemos a idéia de fazer um filme que se chamava Uma Cidade Qualquer. Depois que ele morreu, eu dei o roteiro para a mãe dele...
A relação com o cinema novo brasileiro foi sempre muito forte. Não só minha,
mas o Paulo Rocha que também era muito amigo dele. E há, de resto, um livro sobre
o Glauber Rocha onde estamos todos durante o último ano da vida dele aqui em
Lisboa com o Cunha Telles, na casa do Cunha Teles... Foi publicado na França esse
livro. E estou eu, o Paulo Rocha, o Glauber. Nesse sentido, a idéia do cinema novo, “câmera na mão e pé no chão”, foi seguida à letra para o Belarmino.
MS: E o senhor acha então que para além de uma coincidência de língua e uma
proximidade cultural, há uma proximidade ética e estética também entre os movimentos, aquilo que aconteceu no Brasil...
FL: Não sabíamos muito bem o que é que cada um estava a fazer. Mas depois, na
medida em que íamos vendo as imagens que cada um de nós fazíamos, achávamos
que fazíamos parte da mesma família. Família estética, cinematográfica e política.
MS: E o senhor acha que o Gláuber teve uma influência no meio cinematográfico
português da altura?
FL: Ele até teve, teve uma grande influência. Não tanto sobre mim, mas particularmente sobre o Paulo Rocha. O Mudar de Vida, por exemplo, é um filme que é
muito marcado pelo Glauber. Eles eram muito amigos, o Glauber e o Paulo. E mesmo
quando chegou o 25 de Abril nós fizemos um filme coletivo, e talvez o melhor momento
do filme coletivo que fizemos, As Armas e o Povo, é do Glauber.
As armas e o povo foi feito no 1º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril. Eu fiz
o comício aqui perto da minha casa enquanto o Glauber andava aí pela rua. Foi
muito boa a intervençaõ dele no filme... convivemos muito nessa altura, ele participou
imenso na organização do sindicato dos cineastas portugueses. Depois, voltou para
Paris, mais tarde voltou aqui em Lisboa, mas já na fase final quando ele acabou,
praticamente, por morrer aqui... Foi muito acompanhado por nós todos, por mim, por
Paulo, por José Fonseca e Costa...
MS: E a sua relação com o grupo do neo-realismo literário? Percebi que o senhor
adaptou, além do Abelha na chuva, o Delfim, do Cardoso Pires que são escritores com uma atuação política muito forte, uma postura ideológica totalmente contrária ao
regime.
FL: Não adaptei só o Carlos de Oliveira e o Cardoso Pires, adaptei também o
Tabucchi, o António Tabucchi, O Fio do Horizonte. São pessoas politicamente muito
fortes. Fizeram parte da minha vida.
MS: E qual era a sua relação política com essas pessoas?
FL: Era forte, era muito forte. É difícil tentar explicar isso, mas era muito forte.
Tínhamos uma posição política de absoluta oposição ao regime, à ditadura. Depois
havia nuances. Uns podiam ser do partido comunista, outros poderiam não ser, o que
era o meu caso. Eu, por acaso, nunca fui membro do partido comunista, mas sei que
alguns eram. O Carlos do Oliveira e o Cardoso Pires, por exemplo, foram. E isto dava
também discussões muito interessantes.
MS: Que sentido? Do tipo: “você devia ser também do partido comunista?”
FL: Eles achavam que eu devia e eu tentava explicar porque eu não queria ser.
MS: E por que o senhor não era?
FL: Porque eu tinha vivido na Inglaterra, e depois tinha feito um grande estágio
nos Estados Unidos de seis meses, fui até estagiário do Nicholas Ray que é outra
das minhas referências. E ali tinha visto democracias a funcionar e, portanto, passei a
nutrir uma espécie de profunda dúvida sobre o que era o socialismo real, o chamado
socialismo da União Soviética. Depois de viver em Inglaterra e nos Estados Unidos
percebi que preferia de facto esse lado, o confronto que há aberto na democracia. Eu
não gostava dos "dictators". Mas isso nunca desfez a nossa amizade, entre mim e o
Carlos de Oliveira ou entre mim e o Cardoso Pires, porque tínhamos uma coisa em
comum: era preciso deitar abaixo o fascismo em Portugal.
MS: E o senhor acha que esse foi o propósito do grupo do cinema novo?
FL: Na pequena e modesta medida que o cinema pode influenciar na sociedade:
foi.
MS: Porque o Belarmino, apesar de ser um personagem que quer mudar de
vida, porque ele quer ascender socialmente, ele não é um personagem revolucionário,
porque ele não quer transformar.
FL: Não, não, ele era revolucionário por si mesmo, para a vida que ele fazia. Ele
era o oposto do sufoco que era Portugal nessa altura. Ele era... ele mexia-se bem, era
vivo, porque era pugilista, tinha um corpo que se mexia, que era uma coisa já em si
revolucionária. E depois no fundo, ele acreditava que alguma coisa podia mudar. Havia
sempre essa esperança. E nesse sentido, Belarmino é um personagem, digamos,
quase emblemático do que viria acontecer.
MS: De mudança...
FL: De mudança, sim.
O Belarmino tinha sempre a esperança de que tudo podia mudar, e que de um
dia para o outro ele podia chegar a ser campeão. Isto era uma coisa rara no cinema
português daquela altura. Para não dizer de hoje, que estamos em democracia. Mas
naquela época era fantástico, e ele acreditava, de resto, no final do filme, com aquelas
grades, há uma voz em off, que diz: “e agora, o que vais fazer?”, e ele diz: "Vou fazer
campeões". Era a nossa palavra de ordem.O free cinema...
MS: É um filme muito forte... E por que o senhor escolheu o Abelha na Chuva, do
Carlos de Oliveira?
FL: O Carlos de Oliveira é, sobretudo, um grandíssimo poeta, talvez um dos
maiores poetas do século XX português. Como o Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre ONeill... E foi mais por esse lado
poeta que eu peguei o Abelha na Chuva. O lado material daquela terra pobre, muito
mais que a história, digamos, quase neo-realista que existe no livro. Eu nunca quis
seguir os ditames do neo-realismo que vinham do realismo socialista. Nesta época
tinha até muitos escritores portugueses, o Alves Redol e outros. O Carlos de Oliveira
era muito mais sofisticado que isso, muito mais sensível, embora sempre membro do
partido comunista. Mas ele era muito heterodoxo esteticamente e culturalmente em
relação ao partido comunista. E heterodoxo, sobretudo, em relação à teoria do realismo socialista. Ele é sobretudo um grande, grande poeta. E foi a partir da poesia dele
que eu fiz o Abelha na Chuva que é um filme que faz mais ruptura com o cinema que
se fazia na altura do que o Belarmino, pois eu fiz o Abelha na Chuva como se tivesse
dois filmes lá dentro. Um está na banda sonora e outro está na imagem. Portanto, era
a destruição da narrativa clássica.
MS: E o Delfim é um romance também bastante heterodoxo em relação à linguagem do neo-realismo.
FL: Sim, mas é o mais clássico dos meus filmes. Não é por acaso também que
foi o que correu melhor com o público e com a crítica, porque as pessoas querem a
"narrativazinha". Mas é muito bem produzido, é um filme bem produzido, que eu gosto,
do ponto de vista da produção foi o filme que eu tive mais meios para produzir, com
atores muito bons, mas é o mais clássico dos meus filmes.
MS: E a sua relação com o Cardoso Pires na altura, ele te deu algum direcionamento para o filme, ele interferiu? Como foi a relação com ele?
FL: Não, não. Nós tinhamos uma grande confiança, éramos grandes amigos.
Minha relação com o Cardoso Pires era um bocado parecida com a relação com o
Belarmino, era noturna, portanto, era uma relação de copos e de má vida.
Encontrávamos por Lisboa à noite... Parávamos sempre às sete da manhã, por
todos os cabarés e cafezinhos, e tascas que abriam nesta cidade. E íamos falando,
falando, falando... O Zé sempre foi muito amigo. A adaptação foi feita pelo Vasco Pulido
Valente que também era um grande amigo dele e que é hoje um grande colunista e
historiador. E, portanto, ele tinha uma absoluta confiança no que íamos fazer. E ainda
por cima tive a sorte de fazer o filme numa altura em que eu já tinha saído da televisão,
estava absolutamente livre, e com bons meios de produção, com os atores que eu
quis, com tudo muito bem trabalhado: décor, guarda-roupa. Neste aspecto é um filme
que funcionou muito bem, quer junto à crítica, quer junto ao público. Mas é o mais
clássico de todos... Eu sou por natureza mais experimental, gosto de experimentar
mais. Neste aspecto tem mais a ver com... como é que eu diria... Este era um dos
lados que me ligava um bocadinho ao Gláuber.
MS: O senhor acha que havia uma coincidência com o movimento literário neorealista na altura? Em propostas, em estética... Ou havia uma coincidência de grupos, entre o grupo que se convencionou chamar de novo cinema português e o neo-realismo literário? Porque muitos livros foram nesta altura adaptados, muitos romances.
FL: Sim, mas nunca chegou a haver verdadeiramente um neo-realismo no cinema
português.
MS: O senhor acha que não?
FL: Não, o Manuel Guimarães é o único que andou por lá perto, que fez o Alves
Redol e coisas assim e que seguiu esta regra, era um dos que estavam de fato muito
mais ligados ao realismo comunista. No meu caso, no caso do Paulo Rocha, mesmo
no Macedo... Nós pegávamos nos livros, porque eram autores que nós admirávamos,
gostávamos do que eles escreviam, mas de certo modo nunca aceitamos o princípio
no neo-realismo passado ao cinema tout-court, literalmente. Nós achávamos que uma
obra cinematográfica tinha que ir para além disso. E do modo geral tínhamos em comum o fato de detestarmos as teorias do realismo socialista, do herói positivo... A
vida é mais complexa que isso, e isso nós sabíamos.
E os sentimentos são mais complexos que isso. E eram os sentimentos que nos
interessavam.(. . . ) Os grandes escritores neo-realistas, para ser franco, eram quase
todos membros do partido comunista. Só que havia alguns que eram heterodoxos.
Carlos de Oliveira era um caso desse. Ele foi sempre alguém muito ligado ao partido
comunista, mas era simultaneamente um grande poeta, e os poetas fogem à regra. É
difícil... Se pensar bem, mesmo em termos de União Soviética, o Maiakóvski acabou
como acabou. Não é? O Boris Pasternak acabou como acabou. Os poetas fogem
disso. E eu sou muito sensível a isso. Eu costumo dizer que eu não consigo fazer um
filme sem previamente ter um poeta na cabeça. Em todos. Mesmo no caso do Delfim
que é uma narrativa. Portanto é sempre assim. E acho que os meus colegas também
eram assim, particularmente o Paulo Rocha. E Paulo Rocha é até o que tem menos
a ver com o movimento neo-realista e com os escritores neo-realistas. Ele vinha de
outra área, até mais católica, católica progressista...
MS: O senhor nunca teve relação com a Igreja?
FL: Não.
MS: E com nenhum partido?
FL: E com nenhum partido. Mas, como disse, compartilhava com eles a minha
rejeição absoluta do Estado em que vivíamos, e isto unia-nos. O que é curioso, é que
logo a seguir ao 25 de Abril, cada um foi para o seu lado. Uns ficaram agarrados ao
partido, outros foram para a extrema esquerda, outros defenderam a idéia de uma
democracia ocidental, européia, foi o meu caso. E outros não participaram porque,
por exemplo, o Paulo Rocha neste aspecto é mais poeta, vive num outro universo. O
Macedo é um pouco mais prático, estava aqui para fazer filmes, fazer filmes e ponto
final. O Fonseca e Costa teve grandes relações com o partido comunista, mas é interesssante perceber que os filmes dele vêm mais da tradição do grande cinema clássico,
e com alguma influência do Antonioni. O Zé Fonseca foi estagiário do Antonioni no
Eclipse e, portanto, há um lado existencial nele, como há em mim também. Eu também
tenho uma grande admiração pelo Antonioni, porque ele teve muita influência sobre
mim, e não é por acaso que quando estou a dizer o Antonioni imagino que é alguém
que dentro do neo-realismo italiano fugiu à regra.O free cinema...
MS: E o senhor acha que havia uma proximidade estética do grupo português
com os neo-realistas italianos?
FL: Sim, sim...
MS: Para além do Fonseca e Costa?
FL: Sim, sim... Em mim isso havia, com Rossellini, com Antonioni... E eu próprio
um bocadinho mais maluco pegava mesmo nos pequenos: Dino Risi, Mario Monicelli e
gente assim. Mas isso havia... O cinema italiano teve de facto uma grande importância
em Portugal, era muito visto aqui. Eu nunca teria feito o Belarmino se não tivesse visto
Salvatore Giuliano, por exemplo. O cinema italiano teve uma importância enorme,
enorme... Só muito mais tarde, depois do 25 de Abril é que passamos quase todos
os filmes brasileiros no canal que eu era diretor: Diegues, Glauber Rocha, Hirszman,
todos.
MS: Então a influência do cinema novo brasileiro que o senhor disse era mais
pela presença do Glauber aqui, do que pelo visionamento dos filmes que nessa altura
não passava...
FL: Não só a presença do Glauber aqui, mas depois nós conseguimos passar
de facto aqui muitos filmes brasileiros. Por exemplo, eu acho que o Fonseca e Costa
tem muito a ver com o Cacá Diegues, de quem ele gosta muito. Não é por acaso
que ainda hoje Fonseca e Costa tem quase sempre co-produção com o Brasil, e com
vários atores brasileiros nos filmes dele. Um dos filmes de maior êxito no cinema português Kilas, O Mau da Fita é com o Lima Duarte. Ele tem uma grande tendência para
ir buscar atores brasileiros e ter alguma relação com certo tipo de cinema brasileiro,
particularmente o do Cacá.
MS: E qual era a relação de vocês com a crítica cinematográfica que se fazia na
altura?
FL: A crítica era muito mais criativa do que hoje é aqui em Portugal. Essa é outra
questão... Porque os que faziam crítica acabaram por fazer filme. Fonseca fez crítica,
o António Pedro Vasconcelos fez crítica, Seixas Santos fez crítica, eu tive uma revista
de cinema... Eu fui diretor da Cinéfilo onde estava eu, João César Monteiro, e outros.
Portanto, a nossa relação era simultaneamente uma relação da ação, fazendo filmes,
e de reflexão. Isso hoje não é assim.
Hoje vem tudo da internet, se fores ler a crítica nos jornais portugueses metade
do que está lá eu sei que vem da internet. Acho uma desgraça. Não há reflexão.
E depois já não há os grandes pensadores de cinema. Não há o Bazin, já não há o
Aristarco e por aí adiante. O Kracauer, Siegfried Kracauer. Estou a reler aquilo que era
o meu livro de curso, A teoria do filme do Siegfried Kracauer. Agora depois de tantos
anos, estou a reler. A crítica que se faz hoje em dia, e não é só aqui, estou a lhe dizer
porque eu olho muito a imprensa estrangeira, sou um leitor compulsivo de jornais, e
portanto leio o português, francês, americano... A internet que é fantástica, tem muita
informação. Mas hoje em dia todos os filmes têm os seus sites e, portanto, uma boa
parte da crítica de cinema que se faz hoje, se você for ler bem, já está implícita no
marketing do filme. Ou seja, deixou de se pensar sobre o que é o cinema. Por isso é
que o cinema, particularmente o cinema americano, está tão banalizado como está.
O ato de refletir sobre o cinema e de fazer cinema era comum. O Truffaut era
um grande crítico de cinema, o Rohmer, o Alain Resnais, o Godard, para não falar de Michelle Sales, outro, o Godard... E a relação entre o pensamento sobre o cinema e pô-lo em prática
era uma coisa, como poderia dizer, natural. E o que nós, hoje, temos nas revistas e
nos jornais, mesmo nas revistas mais prestigiadas, é uma espécie de marketing, o
próprio Cahiers Du Cinèma não é mais o que era... Hoje em dia já não é mais o que
era. E isso faz com que o cinema seja menos inquietante do ponto de vista estético e
do ponto de vista ético. É o que eu penso.
MS: E a sua revista não sofreu nenhum impedimento da censura?
FL: Sofreu muitos, e acabou-se no 25 de Abril, em Junho de 74. Mas teve imensos
problemas com a censura.
MS: De que tipo?
FL: Processos... muitos.
MS: Foi preso?
FL: Não.
MS: Mas o senhor era perseguido, politicamente?
FL: Sim, tinha este problema.
MS: Mas aconteceu alguma situação que o senhor se lembre, que tipo de perseguição
havia na altura?
FL: Às vezes ia ao tribunal.
MS: Para falar sobre a revista?
FL: Sobre a revista e não só sobre a revista. Sobre amigos, sobre pessoas que
iam presas e eu tinha que ir como testemunha. (. . . )
MS: E qual é a sua formação, a sua origem? O senhor nasceu aqui em Lisboa?
FL: Não. A minha origem é absolutamente rural, em princípio eu não viria a ser
cineasta. Por isto é que este documentário que lhe ofereci chama-se Fernando Lopes
Provavelmente.
MS: O senhor acha que deveria ter sido o quê? Se não fosse cineasta.
FL: Rural... Eu nasci numa pequena aldeia no centro de Portugal, paupérrima,
muito pobre. E se eu seguisse tudo o que estava pré-determinado na minha vida, ia
plantarbatatas, cuidar do campo.
MS: E como surgiu esta sua vontade de transformar?
FL: Porque a minha mãe teve que fugir da aldeia. Mas eu conto tudo aí... Teve
que fugir da aldeia e me trouxe quando eu tinha três anos e meio.
MS: Para Lisboa?
FL: Para Lisboa e, depois, ainda fui para a casa de uns tios meus. Aos doze
anos é que voltei para Lisboa e a partir daí comecei a ir ao cinema, ir ao cinema, e
disse. O meu pai era uma figura ausente. Eu fiz os cursos que podia ter feito, e tive os
empregos que podia ter tido. Mas sempre com aquela idéia de que o que eu queria
era fazer filmes. E por isto é que isso se chama Provavelmente.
MS: O senhor achava como Belarmino que o cinema português ia vencer um dia?
FL: Achava, absolutamente. Por isso fiz o Belarmino, e o Paulo Rocha fez Os
Verdes Anos. Nós achávamos mesmo que iríamos mudar o mundo. Mas o Glauber
também achava, o Cacá também achava, o Joaquim Pedro, o Hirszman, sei lá, o
Truffaut, o Godard também achava. Cada um a sua escala, e França, Brasil, e não
sei mais... Nesse aspecto o Glauber teve uma importância muito grande para nós.
Glauber acreditava mesmo nisso. O free cinema...
MS: E o senhor queria transformar o mundo em quê? Transformar para quê?
FL: Para que fosse um mundo mais solidário, mais aberto. Em que cada um
tivesse suas oportunidades, qualquer que fosse a classe social de onde viesse. Tão
simples quanto isso. Foi como aconteceu a mim, eu tive sorte. Eu costumo dizer que
eu tive os sorrisos do destino, por isso estou aqui a falar consigo.
MS: Obrigada!
FL: Quer um café? (. . . )
Entrevista de Michelle Sales para o Doc On-line, n.07, Dezembro 2009, pp. 141-151.142
Fonte: http://www.doc.ubi.pt/index07.html
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