Michael Schudson é professor de comunicação nas Universidades da Califórnia (San Diego) e de Columbia (Nova Iorque). Entre outros, escreveu os livros Discovering the news (1978), The power of news (1995), The good citizen (1998) e The sociology of news (2003). Nesta entrevista, ele passa em revista a formação da vida cívica americana, o modo como as notícias são produzidas e o nascimento de géneros como a entrevista, os efeitos e as tendências do jornalismo. Em Abril de 2008, Michael Schudson esteve no programa de doutoramento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (UCP).
Deu como título a uma aula leccionada em Lisboa «Seis ou sete coisas que as notícias podem fazer pela Democracia». Pode resumir essas funções do jornalismo?
A primeira tarefa é seguramente o fornecimento de informação, permitindo que os cidadãos construam a sua opinião dotados do maior número possível de ferramentas. Dessa forma, o jornalismo permite também potenciar a participação cívica.
Num segundo plano, julgo que cabe também ao jornalismo investigar práticas irregulares de governos, instituições e indivíduos – a função de investigação.
Reconheço, todavia, que muitas organizações jornalísticas, hoje em dia, cumprem a primeira destas funções, mas não a segunda, porque isso se torna muito dispendioso e moroso.
A terceira função jornalística é a capacidade de providenciar cenários de análise para que o público saiba retirar de uma ocorrência todas as implicações que ela poderá ter. Nem sempre a informação disponibilizada oficialmente é sincera e completa, e creio que cabe ao jornalismo essa descodificação social.
A quarta função é uma das mais antigas no jornalismo ocidental: a mobilização.
Não no sentido de mobilização partidária, como sucede há muitas décadas em alguns sectores do jornalismo norte-americano, mas no sentido de mobilizar para estimular a participação cívica na vida pública.
Encontro uma quinta função no facto de o jornalismo constituir um fórum público, um espaço onde as pessoas se podem fazer ouvir através dos mecanismos colocados à sua disposição, como a secção de cartas ao director.
Num sexto nível, identifico ainda a função de empatia social. Embora muitos média se refugiem hoje na sua vertente de entretenimento e nas reportagens de interesse humano, não creio que o papel do jornalismo se esgote nessa condição. O jornalismo relata-nos vivências de outras comunidades em nosso redor, de outros países para além do nosso. Explica aos homens algo sobre as mulheres; explica aos negros algo sobre os brancos; explica aos heterossexuais algo sobre os homossexuais. E isso é fundamental.
Por fim, encontro ainda uma última responsabilidade importante. Na tradição norte-americana, os jornalistas satisfazem-se com a noção simplista de que providenciam informação aos cidadãos que, por sua vez, construirão a sua opinião e serão os governantes da sociedade. Para mim, essa é uma versão populista da democracia. Os governantes de uma sociedade democrática não governam isoladamente os seus eleitores. Há todo um conjunto de instituições que protegem os direitos civis, que protegem as minorias e que, no fundo, as tornam as guardiãs principais da sociedade contra a concentração de poderes.
É curioso que, embora as crianças americanas sejam ensinadas várias vezes na sua carreira académica sobre este princípio elementar do funcionamento democrático, acabam por esquecê-lo mais tarde. Pelo menos, é o que eu sinto quando contacto com os meus alunos na universidade. Por isso, essa função tem de ser reforçada. Na minha opinião, o jornalismo é um dos meios de que dispomos para salvaguardar essa separação de poderes. Há muito para ser contado sobre a forma como a nossa sociedade funciona, como as nossas instituições interagem e de como os nossos direitos devem ser salvaguardados. E essa responsabilidade social também compete ao jornalismo.
No seu livro The Good Citizen, escreveu sobre liberdades cívicas e concluiu que as organizações cívicas estão a perder importância nos Estados Unidos. Porquê?
Considero que algumas dessas instituições foram cruciais para a sociedade civil dos EUA durante as décadas de 1950 e 1960. É, porém, inquestionável que muitas estão a perder membros e algumas já serão quase inexistentes. Muitas nasceram como clubes de negócios masculinos, criados em função de determinadas corporações. Eram, por assim dizer, organizações de carácter profissional.
Estou a pensar no Lions Club, no Rotary Club ou no Junior Chamber of Commerce Club. Defendo nessa obra que estas organizações estão a perder membros, tal como outro tipo de instituições que foram importantes há quarenta anos, como as organizações de pais ou de professores. Há observadores que defendem que isso é um sintoma do declínio social da América. Eu sou um pouco mais agnóstico. As investigações realizadas sobre o fenómeno desvendaram um fenómeno curioso: o nível de participação em meados da década de 1990 era muito similar ao de 1945. Há algo peculiar nessa circunstância.
Não sei ao certo se a pergunta é formulada correctamente, quando os investigadores procuram perceber como e porque ocorreu o declínio de participação. Proponho até como possível resposta que o fenómeno foi o inverso: entre 1950 e 1965, houve uma invulgar participação cívica nos Estados Unidos, que, depois, naturalmente, decaiu. Discordo, aliás, da glorificação que se promove dessas organizações quando, ao mesmo tempo, não se menciona que elas segregavam frequentemente mulheres, que eram quase sempre fechadas a outros indivíduos que não homens brancos e que eram praticamente restritas às elites locais das classes médias.
Repare que, no mesmo período de análise, houve outro tipo de organizações, que não sofreu um declínio de participação tão grande nos EUA e que tinha a particularidade de ser muito menos hermética face às diferenças sociais, diferenças de género e ocasionalmente também de etnia. Refiro-me às várias igrejas que, ao contrário das suas congéneres europeias, não registaram uma quebra sensível de fiéis.
De certa forma, a minha crítica prende-se apenas com o conceito de declínio. Se a década de 1950 foi a «época dourada da participação cívica», eu não quero regressar a esses tempos. Foi uma década de profunda segregação étnica e de género. As classes etárias mais velhas viviam em profunda pobreza. Esse é o meu argumento. Contesto essa ideia de um «paraíso cívico» nos Estados Unidos ocorrido há cinquenta anos e tento colocá-la em perspectiva.
Em Sociology of News, estabelece uma relação entre as teorias de Jürgen Habermas e de Benedict Anderson que lhe valeu algumas críticas. Escreveria hoje da mesma forma?
Habermas defendeu que as notícias contribuem para criar uma vida pública racional e democrática, uma discussão entre cidadãos sobre o governo, a política, sobre quem deve governar e que tipo de políticas devem ser tomadas. Anderson acreditava que as nações são «comunidades imaginadas», ou seja, entidades que existem na mente das pessoas como objectos de orientação e filiação. E eu creio que os media também o são, como atrás referi.
Nessa obra, adoptei dois conceitos que me interessavam bastante: a necessidade de construir uma esfera pública, e a necessidade de criar comunidades. Mas tive o cuidado de mencionar que eles são muitas vezes independentes um do outro. Pensemos no período em que Portugal viveu em ditadura. Seria teoricamente possível construir então uma comunidade de leitores de um jornal, mas isso não implicaria necessariamente um debate público, uma expressão dessa comunidade na esfera pública. Para mim, os conceitos não são antagónicos. De todo.
O que pensa sobre a campanha presidencial norte-americana deste ano e sobre o papel dos media neste processo político? Já declarou em entrevistas anteriores que se tornou notório, pelo menos numa primeira fase, que Barack Obama foi apadrinhado por uma boa parte da comunidade jornalística, que reconheceu e acarinhou o seu discurso e não tanto as suas potenciais capacidades.
Eu acrescentaria a essa análise que «a novidade» associada a uma personalidade política não pode ser dissociada de algum nível de competência. Caso contrário, os jornalistas não se interessariam durante muito tempo. Mas reconheço que é um fenómeno muito curioso da cobertura noticiosa de eleições primárias nos Estados Unidos. Há uma tendência para canalizar a maioria do tempo de antena para os candidatos que parecem ter boas possibilidades de ganhar.
Caso um candidato recolha poucos votos nas primeiras eleições, perderá muito interesse para os jornalistas e isso não tem nada a ver com as suas ideias. Repare que os jornalistas que acompanham as campanhas ouvem as mesmas palavras todas as noites. Tomam contacto com as ideias do candidato de forma muito mais marcada do que a generalidade dos eleitores. É evidente que eles buscam a novidade, algum aspecto humano que possa quebrar a monotonia da campanha e do seu trabalho. Procuram autenticidade, mesmo que ela esteja escondida pela intervenção dos gestores de campanha...
Foi sob esse prisma que comentou que as lágrimas da candidata Hillary Clinton ajudaram muito a sua campanha, porque forneceram autenticidade à sua campanha, até ali mais asséptica?
Sim. O seu choro em público tornou-a humana. Deu a entender que a verdadeira Hillary estava ali, e não tenho dúvidas de que isso lhe proporcionou uma cobertura noticiosa muito mais favorável do que nas semanas anteriores. As eleições primárias do Partido Democrata constituíram um fenómeno particular porque os media se interessaram imenso por Obama e por Hillary como possíveis representantes de grupos normalmente excluídos da eleição presidencial. Noto, porém, que foi dada muito mais relevância à possibilidade de uma mulher disputar o mais importante lugar político do país do que à questão étnica representada por Obama. Atrevo-me a sugerir que esse aspecto étnico não foi tão importante porque, no passado, já existira um candidato chamado Jesse Jackson, que assumira a sua condição de líder afro-americano, mas ninguém lhe atribuíra qualquer possibilidade de discutir a eleição presidencial.
Em contrapartida, Obama nunca assumiu uma dimensão racial no seu discurso. Talvez por isso os media americanos não tenham sido tão peremptórios em ligá-lo a questões de ordem étnica, mas sim ao seu estilo discursivo e à sua promessa de ruptura.
Sublinhou, numa das sessões leccionadas em Lisboa, que se nota uma importância crescente dos programas humorísticos de discussão política, como o «Daily Show». De certa forma, através da função de entretenimento, o público acaba por ter acesso a mais informação?
É um fenómeno curioso. Esse programa que mencionou é essencialmente visto por um público jovem, que não presta atenção a outros tipos de noticiário. Para muitos, aquela é a sua principal fonte de informação. Há observadores que se indignam com essa realidade. Do meu ponto de vista, há muitos anos que os eleitores mais novos prestam menos atenção aos noticiários políticos do que os mais velhos. Isso não me indigna, embora reconheça que o nível de interesse entre os jovens é hoje ainda menor do que era há quarenta ou cinquenta anos. Por isso, se esta é uma forma de os cativar, aplaudo-a vigorosamente. E sublinho ainda outra dimensão: para mim, este tipo de noticiários irreverentes representa uma crítica tanto à política como aos próprios media. Com a vantagem de que os comediantes não têm as mesmas restrições que os jornalistas e podem ser muito mais irreverentes e cínicos nas suas análises.
Em Power of News, outro dos seus livros, tentou desconstruir o mito popular de que foi a imprensa que derrubou Nixon ou de que foram os debates presidenciais entre Nixon e Kennedy em 1960 que decidiram as eleições americanas. Como avalia a cobertura noticiosa da campanha presidencial de 2008?
Parece-me que, se tiver existido um grupo de pressão pró-Obama nesta campanha – e não tenho dados objectivos que mo permitam garantir –, isso não se deveu ao alinhamento das posições políticas dos jornalistas com as do candidato, mas sim à empatia com a sua postura pública, à sua confiança na genuidade do candidato. Há vários casos documentados no passado em que um candidato demonstrou determinada posição de independência face ao poder partidário ou face às regras tradicionais do debate político, e invariavelmente os média aplaudiram-no pela autenticidade. Creio que isso poderá ter ocorrido com Obama e também, a certo nível, com John McCain no Partido Republicano.
A forma como Obama resolveu o problema criado por um reverendo que lhe estava próximo e que assumiu posições raciais inconvenientes para um candidato presidencial foi muito impressionante. Por outro lado, a independência de McCain face a vários grupos de pressão republicanos e o seu registo histórico de votações como independente valeram-lhe também um registo noticioso que destacou frequentemente a sua autenticidade e autonomia. Mas as campanhas, pela sua própria natureza repetitiva e monótona, produzem muitas vezes assimetrias no tratamento noticioso dos candidatos.
Em várias obras, descreveu a época contemporânea como uma era dourada da informação, um período histórico em que a informação está mais disponível do que nunca para os cidadãos. Pode confirmar?
A Internet é uma arma fantástica. Aqui, estou em Lisboa, a milhares de quilómetros da minha biblioteca, e há uma hora não me lembrava do nome de um investigador que pretendo mencionar numa aula. Em poucos segundos de consulta num computador em rede, descobri. Isso era impossível há vinte anos. Os meus alunos são muito cépticos em relação aos media americanos, mas a rede permite-lhes ler on-line jornais ingleses, franceses ou mesmo a Al-Jazeera em inglês. Há blogues e páginas de Internet disponíveis. Não tenho dúvidas de que há um volume de informação e de opinião política sem precedentes na História...
Mais informação significa então um debate mais profundo do que no passado? Mencionou numa das suas sessões em Lisboa que temos hoje acesso a temas que, há alguns anos, seriam tabu, como a informação direccionada para mulheres ou para grupos étnicos minoritários. No passado, os media não cobriam áreas como a sexualidade ou áreas da saúde íntima.
Eu procuro estabelecer a diferença entre uma era da informação – que inegavelmente vivemos – e uma era da informação rigorosa. Tudo depende do uso que damos à informação. É verdade que temos acesso a possibilidades infinitas de informação, mas continuamos a precisar de intérpretes, de mediadores que descodifiquem a informação fragmentada que nos chega e que a coloquem em contexto. Precisamos desesperadamente de que alguém lhe atribua sentido. Dou-lhe um exemplo: a minha universidade de San Diego participou num projecto que pretendia envolvê-la mais activamente em temas locais. Por isso, perguntámos à comunidade o que podia a universidade fazer por ela. A resposta foi inesperada: a maioria dos membros da comunidade afirmou que gostaria que a universidade fornecesse mais ajuda para preencher candidaturas a fundos governamentais ou privados. Isso espantou-me, porque significa que a minha universidade, como todas as outras, deve ter uma função social adicional: ajudar a dar sentido ao mundo. E essa função, apesar de óbvia, escapava-se-me. As pessoas têm sede de contexto, de linhas que as orientem neste mundo de informação acessível e fragmentada.
Entrevista conduzida por Rogério Santos (coordenador da área científica de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Humanas da UCP) e Gonçalo Pereira (doutorando no ISCTE). In revista "Comunicação & Cultura", n.º 5, 2008, pp. 173-179 (fonte)