Eduardo Mendieta – Professor Habermas, deixe-me iniciar congratulando-o pelo Prêmio espanhol Príncipe das Asturias e também pela Medalha de Ouro da Fundação Madrilenha de Belas Artes. O senhor deve ter pegado muitos espanhóis de surpresa, os quais, assim como eu, não conheciam sua admiração por Miguel de Unamuno e Miguel de Cervantes, autores espanhóis apaixonadamente existencialistas.
Jürgen Habermas – Essa admiração vem desde a minha época de escola e de universidade. Naquele momento, logo após a Segunda Guerra Mundial, o que dominava nosso ambiente eram as peças literárias de franceses como Sartre, Mauriac e Claudel, executadas nos teatros de porão – o existencialismo permitiu a expressão de nosso sentimento de vida. Um livro do filósofo de Tübingen, Friedrich Bollnow (que, aliás, também completaria 100 anos de idade em 2003, assim como Adorno), me chamou atenção, naquele momento, para o “Don Quixote” de Unamuno. De modo semelhante, também fui levado na direção de Kierkegaard, do Schelling tardio e do Heidegger à época de Ser e Tempo. O fato de eu logo haver me distanciado da perspectiva do Ser e me voltado, de modo mais enfático, para questões relativas às teorias sociais, políticas e jurídicas tem uma razão simples: em um país, a República Federal da Alemanha, que se encontrava mental e moralmente desacreditado e tratava de lidar com o que Jaspers denominou situações-limite [Grenzsituationen], era mais pertinente valer-se e discutir nos termos da linguagem de Marx e Dewey do que ter de se debater com o jargão da autenticidade.
Mendieta – Para voltar à oportunidade do Prêmio recebido recentemente, poderia nos dizer algo sobre o fato de que, entre os demais homenageados, também estavam Susan Sontag, Gustavo Gutierrez e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva – ou seja, figuras inequivocamente da esquerda e que se expressaram em alto e bom tom contra a Guerra no Iraque?
Habermas – Esse prêmio desfruta de uma publicidade surpreendente no âmbito de fala hispânica. Quando se reflete um pouco, essa coincidência pode ser mais do que um acaso. Na Espanha, de qualquer maneira, os protestos nas ruas contra a política de Aznar e seu apoio à Guerra no Iraque foram ainda mais imponentes do que nos demais países europeus.
Mendieta – O senhor também foi muito crítico das guerras conduzidas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque. Mas durante a crise no Kosovo, apoiou o mesmo unilateralismo e justificou uma forma de humanismo militar, para usar a expressão de Chomsky. Como se pode diferenciar esses casos – o Iraque e Afeganistão, de um lado, e Kosovo, de outro?
Habermas – Sobre a intervenção no Afeganistão, expressei-me de modo bastante reservado, em uma entrevista com Giovanna Borradori. Depois de 11 de setembro, o governo Taliban se recusou veementemente a retirar o seu apoio ao terrorismo da Al Qaeda. Até então, o direito internacional não havia perpassado tais situações.
As objeções que levantei naquele momento não eram, porém, de natureza legal, como o foram no caso da campanha no Iraque. Independentemente das manobras e mentiras utilizadas pelo governo atual dos Estados Unidos a partir de setembro de 2002, reveladas nesse meio tempo, essa última Guerra no Golfo era uma óbvia oposição de Bush às Nações Unidas, bem como uma ameaça pública e um desrespeito ao direito internacional. Nenhum dos dois possíveis fatos justificáveis, os quais legitimariam uma intervenção, poderia ser observado naquele momento: nem uma correspondente resolução do Conselho de Segurança da ONU, nem um ataque ou invasão iminente por parte do Iraque. E isso tem sua validade, independentemente do fato de se encontrar ou não armas de destruição em massa – atômicas, biológicas e químicas – no Iraque. Não existe nenhuma justificação para algo como um ataque preventivo: ninguém pode iniciar guerras com base em suspeitas.
Aqui se vê o contraste com a situação no Kosovo, quando o Ocidente se viu forçado a decidir, sobretudo depois das experiências acumuladas na Guerra da Bósnia – pensemos aqui no desastre de Sebrenica! –, se assistiria mais uma vez a outro processo de limpeza étnica por parte de Milosevic ou se faria uma intervenção – sem que tivesse, nesse caso, ao menos aparentemente, interesses particulares para tanto. De fato, o Conselho de Segurança ficou bloqueado. Ainda assim, havia duas razões legitimando a intervenção, uma formal e outra informal, mesmo que elas não pudessem necessariamente substituir o consentimento do Conselho de Segurança, como estabelecido na Carta da ONU. Por um lado, poder-se-ia apelar ao erga omnes – direcionado a todos os Estados – como ordem de apoio de emergência, no caso de um genocídio ameaçador, princípio esse que representa um sólido componente do direito internacional consuetudinário. Por outro, pode-se também pesar na balança a circunstância de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) representa uma aliança de Estados liberais, cuja construção interna se apóia nos princípios da Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela ONU. Basta comparar isso com a coalizão dos dispostos (Coalition of Willing), que levou à divisão do Ocidente e envolveu Estados que desrespeitam os direitos humanos, como o Uzbekistão e a Libéria de Taylor.
Tão importante quanto esses fatos é a perspectiva de que os países da Europa continental, como França, Itália e Alemanha, justificaram sua participação na intervenção em Kosovo naquele momento. Na esperança de aprovação adicional pelo Conselho de Segurança, entenderam tal ação como antecipação de um direito cosmopolita efetivo, um passo partindo do direito internacional clássico em direção ao que Kant definira como condição cosmopolita, a qual concederia também aos cidadãos de um Estado o direito de proteção com relação aos crimes de seu próprio governo.
Já naquela época, em 29 de abril de 1999, em um artigo para o jornal Die Zeit, estabeleci uma diferença característica entre as duas iniciativas, a européia continental e a anglo-saxã: “Uma coisa é quando os EUA seguem os rastros de sua admirável tradição política e assumem, instrumentalizados nos direitos humanos, o papel de fiador hegemônico da ordem. Outra coisa é quando nós fazemos a transição ainda precária de uma clássica política de poder para uma condição cosmopolita (...) entendo-a como comum processo de aprendizagem a ser a administrado mutuamente. A perspectiva mais abrangente também requer uma precaução maior. A auto-autorização da NATO não pode se transformar em regra”.1
Mendieta – Em 31 de maio de 2003, o senhor e Jacques Derrida publicaram um tipo de manifesto com o título “O 15 de fevereiro ou: o que une os europeus – defesa de uma política internacional comum – primeiro no Núcleo-Europa”. No prefácio, Derrida explica que assinou o artigo escrito pelo senhor. Como é que dois dos mais importantes pensadores atuais – que se olharam com suspeita durante as duas últimas décadas, consideraram de forma cautelosa o que um ou o outro fazia mais além da outra margem do Reno, e têm sido vistos por muitos como totalmente distintos e não compreendidos um pelo outro –, de repente, se entendem e decidem publicar juntos um documento tão importante? Isso é simplesmente uma questão política ou o texto assinado em conjunto é também
um gesto filosófico? Uma suspensão, um cessarfogo, uma reconciliação, um presente filosófico?
Habermas – Não tenho qualquer idéia sobre como Derrida responderia a essa pergunta.
Para o meu gosto, você exagera um pouco na importância do assunto com tais formulações. Primeiro, é claro que se trata de um posicionamento político, com o qual Derrida e eu concordamos, o que, aliás, tem ocorrido freqüentemente nos últimos anos. Depois do encerramento formal da Guerra no Iraque, quando muitos temiam que os governos pouco dispostos a colaborar com Bush se ajoelhariam perante ele, eu e Derrida – assim como Eco, Muschg, Rorty, Savater e Vattimo –
fomos convidados por carta a nos envolver em uma iniciativa relativa ao tema (Paul Ricoeur foi o único que não participou, apoiado em considerações políticas, ao passo que Eric Hobsbawm e Harry Mulisch não puderam fazê-lo por razões pessoais). Derrida não estava em condições de escrever seu próprio artigo, pelo fato de estar passando por uma série de exames médicos, um tanto desconfortáveis, naquele momento.
Mas gostaria de estar envolvido com a idéia e me propôs o procedimento, que colocamos em prática.
Eu fiquei bastante contente com isso. Havíamos nos encontrado, pela última vez, em 11 de setembro de 2002, em Nova York. Já tínhamos retomado nosso diálogo filosófico havia alguns anos e nos encontrado em Evanston, Paris e Frankfurt.
Portanto, não há necessidade de nenhum grande gesto agora.
Na ocasião em que recebeu o Prêmio Adorno, Derrida fez um discurso altamente sensível na Paulskirche, em Frankfurt, manifestando de modo bastante impressionante a relação de similaridade, no que diz respeito à mentalidade, entre ele e Adorno. Algo assim não deixa ninguém intato. Mais além de aspectos políticos, é a referência filosófica a um autor como Kant que me conecta com Derrida. O que nos separa, porém, é o Heidegger tardio – já que temos aproximadamente a mesma idade, mas histórias de vida bem distintas como pano de fundo. Derrida se apropria do pensamento de Heidegger inspirado na visão judaica de um Levinas. Eu me deparei com Heidegger como um filósofo que falhou e silenciou como cidadão – em 1933 e, acima de tudo, depois de 1945 –, mas também como filósofo que se tornou suspeito a mim, já que, nos anos 30, absorveu o pensamento de Nietzsche exatamente como os novos gentios (Neuheiden) que, como ele, estavam em voga na época. Diferentemente de Derrida, que empresta à memória (Andenken) um caráter afeito ao espírito da tradição monoteísta, considero a forma pervertida com que Heidegger pensou o Ser (Heideggers vermurkstes “Seinsdenken”) como nivelamento daquele limiar epocal da história da consciência humana, denominado por Jaspers de tempo axial (Achsenzeit). Segundo minha compreensão, Heidegger comete uma traição àquele momento de cesura, expresso de modo distinto tanto pelas palavras profético-despertadoras no Monte Sinai quanto pelo esclarecimento filosófico de Sócrates.
Na medida em que Derrida e eu conseguimos entender mutuamente essas distintas motivações como pano de fundo, nossa diferença no que diz respeito às versões não significa, necessariamente, nenhuma divergência quanto aos fatos.
De qualquer forma, cessar-fogo ou reconciliação provavelmente não são as expressões adequadas para caracterizar o contato amigável e aberto que mantemos.
Mendieta – Por que o senhor deu o título “15 de fevereiro” ao texto, e não, como proporiam alguns americanos, “9 de setembro” ou “9 abril”? O
15 de fevereiro foi uma resposta histórica ao 9 de setembro
– em vez das campanhas contra o Taliban e
Saddam Hussein?
Habermas – Esse é um número grande demais. A redação do jornal Frankfurt Allgemeinze Zeitung, aliás, publicou o artigo com a seguinte manchete: “Nossa renovação. Depois da guerra: o renascimento da Europa”, talvez querendo demonstrar e jogar com o significado das demonstrações ocorridas em 15 de fevereiro. A indicação dessa data deveria fazer lembrar as demonstrações maiores ocorridas em cidades como Londres, Madri e Barcelona, Roma, Berlim e Paris, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Tais demonstrações não eram nenhuma resposta ao ataque de 11 de setembro, as quais levaram imediatamente a uma impressionante reação de solidariedade por parte dos europeus. Mas, pelo contrário,
trouxeram a expressão da revolta furiosa e
impotente de uma grande variedade de cidadãos,
muitos dos quais nunca, até então, haviam participado
de demonstrações nas ruas. O apelo dos
que se opuseram à guerra voltava-se inequivocamente
contra as políticas mentirosas e inaceitáveis
perante as leis internacionais, colocadas em
prática por seus próprios governos ou por governos
aliados. Não considero esse enorme protesto
uma pequena amostra de antiamericanismo, do
mesmo modo que, em outro momento, as
manifestações contra a Guerra no Vietnã não o
foram – somente com a triste diferença de que
não pudemos nos aliar aos impressionantes protestos
ocorridos, entre 1965 e 1970, nos Estados
Unidos. Por isso, fiquei muito feliz quando meu
amigo Richard Rorty espontaneamente tomou a
iniciativa intelectual, de 31 de maio, de participar
desse processo, ao escrever um artigo que, política
e intelectualmente, foi o mais preciso entre
todos os publicados sobre o tema.
Mendieta – Continuando a questão referente
ao título original do artigo, que conclama a uma
política externa européia comum, incorporada primeiramente
no Núcleo-Europa, ele sugere a existência
de um centro e de uma periferia – algo que é
insubstituível e algo que não é. Para alguns, essa expressão
soou como um tímido eco da diferenciação
feita por Rumsfeld entre a Europa velha e a Europa
nova. Estou seguro de que, tanto para Derrida
quanto para o senhor, a atribuição de tal semelhança
e afinidade pode trazer dores de cabeça. Vocês lutaram
vigorosamente em favor da constituição da
União Européia, na qual tais gradações geopolíticas
não têm lugar algum. O que o senhor quer dizer
com Núcleo-Europa?
Habermas – Núcleo-Europa é, em primeiro
lugar, uma expressão técnica, introduzida pelos
peritos em políticas internacionais do partido alemão
União Democrática Cristã (Christiche Demokratische
Union-CDU) Schäuble e Lamers nas
discussões durante os anos 90, quando o processo
de unificação européia tornou-se moroso, para
fazer lembrar aquele momento em que seis dos
iniciadores da Comunidade Européia haviam adquirido
um papel pioneiro. Tanto naquela época
como hoje em dia, tratava-se de realçar a França,
os Estados do Benelux, a Itália e a Alemanha
como a força motriz na fundação das instituições
da União Européia. Enquanto isso, a decisão ofig
Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003
123
cial tomada na cimeira dos chefes de Estado da
União Européia, reunida em Nizza, optou até
mesmo pela cooperação reforçada entre os membros
individuais quanto a questões políticas específicas.
Esse mecanismo é agora conhecido pelo
nome de cooperação estruturada e foi adotado no
esboço da Constituição Européia. Alemanha,
França, Luxemburgo, Bélgica e, mais recentemente,
a própria Grã-Bretanha fizeram uso dessa
opção no plano comum para o estabelecimento
das forças armadas européias. O governo dos
EUA se utiliza admitidamente de considerável
pressão sobre a Grã-Bretanha para tentar evitar a
construção de quartel-general europeu, que seria
apenas associado da NATO e nada mais. Nesse aspecto,
o Núcleo-Europa já é uma realidade.
Por outro lado, é claro que, nos dias de hoje,
existem muitas associações com o que Rumsfeld
e seus consortes propositadamente definem
como uma Europa dividida e debilitada. A idéia
de uma política internacional e de segurança desenvolvendo-
se de modo comum no Núcleo-Europa,
e ampliando-se para além dele, desperta medos,
especialmente numa situação em que a
União Européia torna-se dificilmente controlável,
após a sua ampliação em direção ao Leste europeu
– acima de tudo, quando se trata de países
que, por razões históricas compreensíveis, lutam
contra uma integração continuada. Muitos dos
Estados-membros querem se agarrar a seus campos
de ação política no âmbito nacional. Estão
mais interessados no modo já existente de decisões
intergovernamentais do que na consolidação
de instituições supranacionais com decisões da
maioria sobre campos políticos cada vez mais
amplos. Assim, os países coligados, oriundos do
Centro e do Leste europeu, estão mais preocupados
com soberania nacional há pouco alcançada,
ao passo que a Grã-Bretanha teme danificar a
sua relação especial com os EUA.
A política estadunidense de divisão encontrou
dois ajudantes dispostos em Aznar e Blair.
Essa afronta completa deparou-se com o que ficou
conhecido na Europa como a linha de fratura,
latente havia muito tempo, entre os integracionistas
e seus oponentes. O Núcleo-Europa é uma
resposta a ambos – à desgastante disputa internoeuropéia
relativa à finalidade do processo de unificação,
totalmente independente da Guerra no
Iraque, como também à corrente motivação externa
que leva a esse contraste. As reações na palavra-
chave Núcleo-Europa são ainda mais nervosas
quanto mais se considera a pressão externa e
a interna sobre essa questão. O unilateralismo
hegemônico do governo dos EUA demanda virtualmente
que a Europa finalmente aprenda a falar
de política internacional a uma só voz. Mas em
virtude do aprofundamento bloqueador representado
pela União Européia, somente poderemos
aprender a fazer isso quando dermos um
passo inicial a partir do centro.
França e Alemanha já adotaram freqüentemente
esse papel no curso das últimas décadas.
Dar continuidade, nesse caso, não significa necessariamente
excluir. As portas estão francamente
abertas a todos. A crítica severa, expressa
acima de tudo pela Grã-Bretanha e pelos países
do Centro e do Leste europeu à nossa iniciativa,
pode também ser explicada por uma circunstância
provocante, ou seja, de que o impulso para a
tomada de posição em favor de uma política internacional
e de segurança comum ao núcleo europeu
deu-se num momento oportuno, quando,
em toda a Europa, a grande maioria da população
recusou uma participação européia nas aventuras
de Bush no Iraque. Esse elemento provocante me
ocorreu com a nossa iniciativa de 31 de maio. Infelizmente,
não se desenvolveu nenhuma discussão
fértil desde então.
Mendieta – Nós sabemos claramente que os
Estados Unidos também utilizaram o jogo entre a
nova e a velha Europa para denotar a influência
deles sobre a NATO. O futuro da União Européia
está conectado mais a uma redução ou a um aumento
do poder desse organismo internacional? A
NATO pode ou deve ser substituída por alguma outra
coisa?
Habermas – Ela desempenhou um papel
positivo durante a Guerra Fria e também posteriormente
– mesmo quando se trata de evitar que
uma saída unilateral, como a ocorrida no caso da
124 Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003
intervenção em Kosovo, não se repita periodicamente.
Porém, a NATO não terá nenhum futuro,
se for considerada não tanto como uma aliança
com funções consultivas, mas, cada vez mais, o
instrumento de uma política de poder internacional
unilateral, voltada a interesses nacionais próprios.
A força particular da NATO poderia consistir
justamente no fato de ela não se esvaziar na
função de um poderoso exército aliado, mas de
seu poder e efetividade militar estarem conectados
ao valor agregado (Mehrwert) de uma dupla
legitimação. Vislumbro uma justificativa de sua
existência somente como uma aliança de Estados
indubitavelmente liberais, podendo atuar apenas
se estiver declaradamente de acordo com a política
de direitos humanos das Nações Unidas.
Mendieta – “Os americanos são de Marte e
os europeus, de Vênus”, afirma Robert Kagan, num
ensaio que recebeu muita atenção por parte dos discípulos
neoconservadores de Strauss e de membros
do governo Bush. Pode-se entender esse ensaio, que
originalmente deveria ser intitulado “Poder e fraqueza”,
até mesmo como o manifesto então trabalhado
por Bush para desenvolver sua doutrina da
segurança. Kagan distingue os americanos dos europeus,
caracterizando os primeiros como hobbesianos
e os segundos como kantianos. Os europeus entraram
realmente no paraíso pós-moderno kantiano
de uma paz perpétua, ao passo que os americanos
permanecem do lado de fora no mundo do
poder político, de cunho hobbesiano, para poder
atuar como guardas das muralhas que não podem
ser defendidas por europeus, os quais somente se
aproveitam das benesses disponíveis?
Habermas – A comparação filosófica não
leva muito longe. Kant foi, em certo sentido, um
discípulo leal de Hobbes; de qualquer modo, descreveu
o modo compulsório como o direito moderno
se impõe e o caráter de dominação do Estado
de forma tão sombria quanto o fez Hobbes.
No que se refere à maneira de um curto-circuito
exagerado como Kagan tenta conectar esses dois
pólos, ao relacionar tradições filosóficas, de um
lado, e mentalidades nacionais e políticas, de outro,
é melhor que a deixemos de lado. As diferenças
de mentalidade, que alguém estaria tentado a
determinar valendo-se de uma tomada de distância
entre anglo-saxões e europeus continentais,
refletem experiências históricas de longo prazo,
mas não vejo nenhuma relação entre elas e as mudanças
político-estratégicas de curto prazo ocorridas
atualmente.
Na tentativa de separar os lobos das ovelhas,
Kagan recorre, porém, a alguns fatos: o reinado
de terror dos nazis apenas foi superado pelo
uso de força militar e, enfim, pela intervenção dos
EUA. Durante a Guerra Fria, os europeus somente
conseguiram garantir o desenvolvimento e a
reforma do Estado de bem-estar social por conta
da proteção atômica dos EUA. Na Europa, e especialmente
nas populações das classes médias
mais abastadas, espalharam-se as convicções de
caráter pacifista. Enquanto isso, os países europeus
apenas poderiam se opor ao poderio militar
estadunidense por meio de palavras vazias, já que
dispunham de um orçamento comparativamente
pequeno e de forças armadas mal equipadas para
qualquer confronto. Por tudo isso, a interpretação
caricaturesca, feita por Kagan, desses fatos
leva-me ao seguinte comentário: a vitória por sobre a Alemanha nazista
também se deu em razão das lutas e
grandes perdas do Exército Vermelho; constituição social e peso econômico
são fatores relativos a um poder brando
e não-militar, que dão aos europeus uma
influência no equilíbrio de forças globais,
o qual não deve ser subestimado; hoje em dia, na Alemanha, também
como conseqüência de uma reeducação
promovida pelos Estados Unidos, domina
um pacifismo sempre bem-vindo,
que, entretanto, não impediu a República
Federal da Alemanha de participar de
intervenções lideradas pela ONU em regiões
como Bósnia, Kosovo, Macedônia,
Afeganistão e, finalmente, de se envolver
no oeste da África; e são os próprios EUA que pretendem se
contrapor aos planos de construção de uma força européia independente da
NATO.
Com essa troca de acusações, porém, não
nos colocamos no nível correto de um debate. O
que considero incorreto é a forma unilateral um
tanto estilizada da qual Kagan caracteriza a política
dos EUA no século passado. A luta entre o realismo
e o idealismo em políticas internacionais e
de segurança não se dá necessariamente entre os
continentes, mas no interior da própria política
estadunidense. Sem dúvida, a divisão bipolar da
estrutura do poder mundial, entre 1945 e 1989,
levou a uma política de equilíbrio fundada no poder
de aterrorizar. Durante a Guerra Fria, a competição
entre os dois sistemas de armas nucleares
constituiu o pano de fundo para Washington impor
uma crescente influência da escola realista nas
relações internacionais. Mas não podemos esquecer
nem o impulso dado pelo presidente Wilson,
após a Primeira Guerra Mundial, à fundação da
Liga das Nações, nem a influência dos advogados
e políticos americanos depois da retirada do governo
estadunidense da Liga das Nações, em Paris.
Sem os EUA, não se chegaria ao Pacto Briand-
Kellog, ou seja, à primeira iniciativa de direito internacional
proscrevendo as guerras por razões
unilaterais. Acima de tudo, porém, as políticas do
vencedor introduzidas por Franklin D. Roosevelt,
em 1945, atrapalham o quadro beligerante
que Kagan deseja pintar como o único papel dos
EUA. Em seu discurso não realizado, o Undelivered
Jefferson Day Address, de 11 de abril de
1945, Roosevelt exigiu que o mundo deve buscar
não somente o fim da guerra, mas o fim do começo
de toda e qualquer guerra.
Nesse período, o governo estadunidense
havia se assentado no topo do novo internacionalismo
e tomado a iniciativa de fundar as
Nações Unidas, em São Francisco. Os EUA foram
a força motriz por trás da ONU, que, não por
mera casualidade, tem sua sede em Nova York.
Eles foram responsáveis por trazer à vida as primeiras
convenções internacionais em defesa dos
direitos humanos, lutaram para garantir a supervisão
global, e também a prossecução judicial e
militar dos que desrespeitassem tais direitos, e levaram
os europeus, primeiro contra a resistência
dos franceses, a aceitar a idéia de uma unificação
política da Europa. Esse período de um internacionalismo
sem precedentes causou uma onda de
inovações no direito internacional nas décadas seguintes,
iniciativas admitidamente bloqueadas
durante a Guerra Fria, mas, ainda assim, parcialmente
realizadas após 1989. Naquele momento, a
única superpotência que restara ainda não tinha
se decidido entre duas possibilidades: se voltaria a
exercer seu papel de liderança, no sentido de levar
ao caminho de uma ordem mundial cosmopolita,
ou se assumiria o papel de um poder hegemônico
imperial, que se pretende mais além do direito internacional.
George Bush, pai do presidente atual, teve
outra visão da ordem mundial, embora de forma
vaga, que as esboçadas por seu filho. A ação unilateral
do governo atual e a reputação de seus influentes
membros e conselheiros neoconservadores
têm, certamente, alguns precedentes, como
a recusa em assinar o Protocolo de Kyoto, o acordo
para a não proliferação de armas atômicas, biológicas
e químicas, a Convenção das Minas Explosivas
e o protocolo relativo às chamadas crianças-
soldado, entre outros. Mas Kagan sugere uma
falsa continuidade. A negação definitiva do internacionalismo
permaneceu sob reservas para o recém-
eleito governo de Bush: a recusa em aceitar
a Corte Criminal Internacional já não poderia ser
mais vista como uma ofensa de cavaleiro. No entanto,
a marginalização ofensiva das Nações Unidas,
assim como o desprezo indelicado ao direito
internacional, do modo com que esse governo
deixa transcorrer, não devem ser considerados
como expressões consistentes de algo que valha
como constante na política internacional estadunidense.
Esse governo, que perdeu obviamente
de vista a sua meta declarada de dar maior atenção
aos interesses nacionais internos, pode ser reeleito
ou não. Por que, então, não separar essa administração
já em 2004 daquela visão de governo
que Kagan penaliza com mentiras?
Mendieta – Nos Estados Unidos, a guerra
contra o terrorismo transformou-se em uma guerra contra liberdades civis e a infra-estrutura jurídica
que torna possível uma cultura democrática
viva foi contaminada. O Ato Patriótico, de
Orwell, é uma autodestrutiva vitória pirrônica, na
qual nós somos os perdedores junto com nossa democracia.
Essa guerra contra o terrorismo chegou
a afetar a Europa de maneira semelhante? Ou a experiência
com o terrorismo dos anos 70 fez com que
os europeus se tornassem imunes a uma desvalorização
de liberdades civis, em favor de um Estado
de segurança nacional?
Habermas – Não creio que isso ocorra. Na
República Federal da Alemanha, as reações ocorridas
no outono de 1977 foram suficientemente
histéricas. Além disso, nós conhecemos outro
tipo de terrorismo nos dias de hoje. Eu não sei o
que teria acontecido se as Torres Gêmeas tivessem
desmoronado em Berlim ou em Frankfurt. É
claro que, após as experiências de 11 de setembro,
também fomos submetidos a pacotes de segurança,
mas não na extensão estranguladora e de tamanha
inconstitucionalidade como se vê nas regras
surpreendentes impostas nos EUA, analisadas
e atacadas pelo meu amigo Ronald Dworkin
de modo inequívoco. Se há, nesse sentido, diferenças
de mentalidade e práticas entre um lado e
outro do Atlântico, eu as veria muito mais com
relação ao pano de fundo de suas respectivas experiências
históricas. Talvez o choque bastante
compreensível resultante dos atentados de 11 de
setembro por lá seja realmente maior do que poderia
ocorrer em um país europeu acostumado
com guerras – mas como ter certeza disso?
Certamente, os êxtases patrióticos que se
seguiram ao choque tiveram um caráter bem estadunidense.
Mas eu buscaria a chave para entender
as razões à restrição de direitos, por você
mencionada – desrespeito à Convenção de Genebra,
em Guantânamo, à criação do Ministério de
Segurança Nacional (Department of Homeland
Security) etc. –, em outras considerações. De fato,
se vê a militarização da vida dentro e fora do
país, a política belicista deixando-se contaminar
pelos métodos dos presumidos oponentes e, com
isso, a evidência do Estado hobbesiano no palco
mundial, em que a globalização dos mercados parece
forçar o elemento político completamente
para a periferia. A população dos EUA politicamente
esclarecida não teria respondido e aceitado
nada disso com o aval da grande maioria, se o governo
não houvesse reagido ao choque de 11 de
setembro com pressão, propaganda inescrupulosa
e exploração das incertezas de modo manipulador.
Para um observador europeu e um gato escaldado
como eu, a intimidação sistematicamente
dirigida e a indoutrinação impressa nos meses de
outubro e novembro de 2002, quando eu me encontrava
em Chicago, incomodaram bastante.
Essa não era mais a minha América. Meu pensamento
político se alimenta dos ideais estadunidenses
do final do século XVIII desde quando eu
tinha 16 anos de idade, graças a à perspectiva de
uma razoável política de reeducação (reeducation policy),
implementada pela ocupação da Alemanha
no pós-Guerra.
Mendieta – Em sua conferência para a seção
plenária do Congresso Mundial de Filosofia, ocorrido
em 2003, em Istambul, o senhor disse que a segurança
internacional é ameaçada atualmente de
maneira nova, sob as condições da constelação pósnacional,
por três lados: o terrorismo internacional,
os Estados que desrespeitam as leis internacionais, e
as novas guerras civis que originam Estados desintegrados.
O terrorismo é algo contra o qual os Estados
democráticos podem declarar uma guerra?
Habermas – Democrático ou não, normalmente
um Estado pode declarar guerra somente
contra outros Estados, entendendo-se essa palavra
num sentido preciso. Quando, por exemplo,
um governo aplica sua força militar contra rebeldes,
esse método nos faz lembrar uma guerra,
mas tal iniciativa possui outra função – o Estado
tem a prerrogativa de zelar pela ordem e pela paz,
dentro de seus limites territoriais, quando os órgãos
da polícia não estiverem em condições suficientes
de fazê-lo. Apenas quando a tentativa de
uma pacificação forçosa falha, e o próprio governo
sucumbe à luta interna entre várias partes em
conflito, é que se deve falar de guerra civil. Essa
analogia lingüística com relação à guerra entre
Estados é correta, porém, somente num sentido – ao se tratar da dissolução da autoridade estatal
e da desintegração do executivo, a simetria entre
adversários políticos em disputa é similar ao caso
normal de conflito bélico entre Estados. Não
obstante, falta aqui o sujeito próprio das ações e
negociações: a organização coercitiva do poder
estatal. Perdoe-me por essa conceitualização pedante.
Entretanto, no caso do terrorismo internacional,
que atua mundialmente e se espalha por
meio de células operacionais em grande parte
descentralizadas e conectadas unicamente de
modo solto, deparamo-nos com um novo fenômeno,
que não devemos tentar assimilar apressadamente
como algo simples e conhecido.
Sharon e Putin podem se sentir encorajados
por Bush, porque ele considera tais diferenças
como farinha do mesmo saco. Como se Al
Qaeda não fosse algo distinto da luta partidária
por determinados territórios, como a levada a
cabo por movimentos terroristas de independência
ou de resistência na Irlanda do Norte, na Palestina,
na Tchechenia etc. A Al Qaeda também
difere do que se entende por grupos terroristas e
grupos tribais mantidos por corruptos senhores
da guerra, que atuam sobre as ruínas de processos
frustrados de descolonização, além de ser algo diverso
do governo criminoso de Estados que conduzem
à guerra, a fim de promover limpezas étnicas
e genocídios contra sua própria população
ou, ainda, como no caso do regime Taliban, que
apoiou o terrorismo mundial. Com a Guerra no
Iraque, o governo dos EUA não apenas empreendeu
uma tentativa ilegal, mas também incompetente
de substituir a concepção de uma guerra
assimétrica entre Estados pela assimetria entre
um Estado de tecnologia altamente sofisticada e
uma rede terrorista intangível, que, até então, atuava
à base de facas e explosivos caseiros. As guerras entre
Estados são assimétricas, quando um agressor
objetiva não a vitória de forma convencional, mas
a destruição de um regime, com base na presunção
a priori do equilíbrio transparente de forças.
Pensemos na movimentação de tropas ocorrida
durante meses, ao longo das fronteiras do Iraque:
não é preciso ser nenhum especialista em terrorismo
para reconhecer que isso não destrói a infra-
estrutura de uma rede, as logísticas da Al Qaeda
e as suas bases escondidas, nem afeta o ambiente
no qual um grupo com essas características
vive.
Mendieta – Juristas defendem, com base no
direito internacional clássico, a opinião de que o jus
ad bellum traz consigo uma limitação inerente ao
jus in bello. Já nos ordenamentos sobre as guerras
entre países, elaborados de modo detalhado pela
Corte Internacional de Haia, busca-se limitar a violência
exercida sobre a sociedade civil e contra soldados
prisioneiros de guerra, o meio-ambiente e a
infra-estrutura da sociedade em questão. As regras
da guerra também têm o objetivo de tornar possível
um acordo de paz aceitável por todas as partes. Mas
a disparidade monstruosa no equilíbrio da força
tecnológica e militar entre os Estados Unidos e seus
respectivos oponentes – no Afeganistão ou no Iraque
– torna quase impossível aderir ao jus in bello.
Os EUA não deveriam ser acusados e julgados pelos
crimes de guerra que têm cometido de modo óbvio
no Iraque, mesmo que em seu próprio território essas
questões estejam sendo totalmente ignoradas
pela população?
Habermas – O Ministério de Defesa dos
Estados Unidos estava, exatamente com relação a
essa questão, orgulhosamente entusiasmado pela
utilização de armas de precisão, que – presumidamente
– iriam fazer com que as perdas na população
civil fossem mantidas no menor nível
possível. Porém, quando, em 10 de abril de 2003,
se lê uma reportagem, na edição vespertina do
New York Times, sobre as vítimas civis no Iraque,
e nela o relato de uma regra segundo a qual Rumsfeld
assume as mortes da população civil como
meras casualidades, a alegação de que a população
estaria protegida pela precisão das armas já não
oferece nenhum consolo: “Os comandantes da
aeronáutica deveriam se reportar ao secretário de
Defesa, Donald L. Rumsfeld, e obter sua aprovação,
caso qualquer ataque pudesse resultar em
mortes de mais de 30 civis. Foram feitas mais de
50 propostas para operações desse tipo e todas
elas foram aprovadas”.2 Não sei o que a Corte Internacional de Haia diria sobre esse acontecimento.
Mas considerando as circunstâncias de que
esse tribunal não é reconhecido pelos EUA, e de
que o Conselho de Segurança da ONU não pode
tomar nenhuma decisão contra um de seus membros
com direito a veto, toda essa pergunta provavelmente
deve ser feita de modo diferente.
Estimativas conservadoras assumem já haver
cerca de 20 mil iraquianos mortos. Esse número
monstruoso, comparado com perdas ocorridas
nas próprias frentes, jorra luz sobre a verdadeira
obscenidade moral que experimentamos
por meio das telas de televisão, com imagens selecionadas
e até mesmo controladas tão cuidadosamente,
revelando-nos essa guerra como um
evento militar assimétrico. Essa assimetria das forças
militares teria outro significado se refletisse não
tanto a relação entre força superior e a impotência
entre dois oponentes em uma guerra, e sim o
poder de polícia de uma organização mundial.
Às Nações Unidas é dada atualmente, segundo
sua Carta, a função de garantir a manutenção
da paz e da segurança internacional, bem
como a implementação da proteção aos direitos
humanos individuais. Se considerarmos de modo
contrafactual a possibilidade de essa organização
ter assumido mesmo tal função na situação atual,
ela teria de cumpri-la unicamente sob a condição
de dispor do poder de sanção não-seletiva contra
os atores e Estados que desrespeitassem as regras,
aplicando a intimidação por meio de sua superioridade.
Nesse caso, a assimetria das forças teria
tido outro caráter.
A transformação infinitamente árdua e ainda
improvável, levando a possíveis ações de caráter
policial autorizadas pelo direito internacional,
ao invés de guerras criminosas e seletivas, exige
mais do que uma corte imparcial para decidir sobre
as penas adequadas, necessárias a determinadas
ofensas. Nós também precisamos aprimorar
o jus in bello para transformá-lo num direito de
intervenção, fazendo o direito penal no âmbito
interno dos Estados nacionais funcionar de
modo semelhante à ordenação da Corte de Haia,
que, todavia, trata as ações de guerra, e não as formas
civis de adscrição de penas ou do sistema penal.
Graças ao fato de a vida de outros inocentes
também estar em jogo, sempre no caso das
intervenções humanitárias, a força necessária deveria
ser regulada de maneira estreita para que
ações ostensivas de uma polícia mundial percam
o caráter de pretexto e, assim, ganhem aceitação
mundial. Um bom teste são os sentimentos morais
dos observadores globais – não para ver se
formas de lamentos ou piedade tendem a desaparecer,
e sim como testemunha da revolta espontânea
perante algo obsceno, que muitos de nós
sentimos ao assistir, durante semanas, os ataques
de mísseis sob o céu iluminado em Bagdá.
Mendieta – John Rawls vê a possibilidade
de as democracias realizarem guerras justas contra
estados criminosos (unlawful states). Mas o senhor
vai ainda mais longe em seu argumento, afirmando
que mesmo os Estados indubitavelmente democráticos
não teriam o direito de decidir por suas próprias
medidas e arbítrio sobre o início de uma guerra
contra um Estado que fosse, presumidamente,
déspota, ameaçador da paz ou criminoso. Em sua
conferência, em Istambul, o senhor diz que os julgamentos
imparciais nunca podem chegar a agradar
um só lado. Por essa razão cognitiva, deve-se
abandonar o unilateralismo de alguma parte que se
afirme como a hegemonia da legitimidade, mesmo
a mais bem-intencionada: “Essa falta não pode ser
resolvida com a constituição democrática baseada
no intento de uma hegemonia bondosa”. O jus ad
bellum, que caracteriza o núcleo do direito internacional
clássico, não se torna obsoleto também no
caso de uma guerra justa?
Habermas – O último livro de Rawls, Law
of Peoples, já foi bastante criticado, e com razão,
porque, em certo sentido, afrouxa os rígidos
princípios da justiça, a serem satisfeitos pelos Estados
democráticos constitucionais para que haja
uma relação e um trânsito com Estados autoritários
ou meio-autoritários, e põe a proteção desses
preceitos reduzidos nas mãos de Estados democráticos
específicos. Nesse contexto, Rawls cita,
com aprovação, a doutrina de guerra justa proposta
por Michael Walzer. Ambos consideram a
justiça entre nações desejável e possível, mas se contentam em deixar a execução e implementação
da justiça internacional ao julgamento e à decisão
de certos Estados soberanos. Com isso,
Rawls parece pensar, assim como Kant, em uma
vanguarda liberal da comunidade de Estados
(Staatengemeinschaft), ao passo que Walzer considera
que isso remete às nações envolvidas em
cada caso, independentemente de suas respectivas
constituições internas. Diferentemente do
proposto por Rawls, a desconfiança de Walzer
com relação aos procedimentos e às organizações
supranacionais tem motivação em suas considerações
comunitaristas. A proteção da integridade
das formas de vida e do ethos de uma comunidade
organizada de modo estatal deve ter prioridade
por sobre a implementação global de abstratos
princípios de justiça, contanto que isso não leve a
genocídios e a crimes contra a humanidade. É
mais fácil refletir e esclarecer a questão subjacente
à concepção de Walzer do que considerar a
defesa indiferente que Rawls fez do direito internacional.
Desde o Pacto de Briand-Kellog, de 1928,
as guerras de invasão estão proscritas do direito
internacional. A aplicação de força militar só deveria
ser permitida quando se trata da autodefesa.
Assim, o jus ad bellum foi abolido, em sua compreensão
segundo o direito internacional clássico.
Mas como as instituições estabelecidas pela Liga
das Nações, após a Primeira Guerra Mundial, foram
consideradas muito débeis, depois da Segunda
Guerra Mundial as Nações Unidas passaram a
ser implementadas com a autoridade para realizar
operações destinadas à manutenção da paz e para
executar sanções, tendo pagado o preço de dar o
direito a veto às grandes potências mundiais de
então, de modo a obter a cooperação por parte
delas. A Carta da ONU fixa a prioridade do direito
internacional por sobre os sistemas jurídicos
nacionais. A articulação da Carta com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e com a autoridade
ampla desfrutada pelo Conselho de Segurança,
segundo o capítulo VII, causou uma
onda de inovações jurídicas, que, embora não
utilizadas de modo efetivo até 1989, foram compreendidas
corretamente como um processo de
constitucionalização do direito internacional (Konstitutionalisierung
des Völkerrechts). A organização
mundial, incluindo, nesse meio tempo, 192 Estados-
membros, tem uma verdadeira constituição
que fixa os procedimentos segundo os quais as
infrações internacionais são determinadas e penalizadas.
Desde então, não há mais nenhuma guerra
justa ou injusta, apenas guerras legais ou ilegais,
ou seja, guerras justificadas no direito internacional
ou guerras sem justificação.
É necessário ter em mente esse impulso da
evolução do direito para poder reconhecer a ruptura
radical impressa pelo governo Bush – tanto
por meio de sua doutrina da segurança nacional,
ignorando as condições prévias legais atuais para
o propósito de qualquer intervenção com o uso
de força militar, como também mediante seu ultimato
ao Conselho de Segurança, para que abençoasse
a política agressiva dos Estados Unidos
com relação ao Iraque ou se tornasse inútil e sem
sentido. No nível retórico da legitimação, não se
tratava, de maneira alguma, de uma redenção realista
das idéias idealistas. Ainda que Bush tivesse o
interesse de alijar um sistema injusto e democratizar
a região do Oriente Médio, os objetivos
normativos ou prescritivos não estariam em desacordo
com o programa das Nações Unidas. O
que torna a sua iniciativa discutível não é a possibilidade
de justiça entre nações, mas a maneira
de implementá-la. De modo ad acta, e com apelos
morais, o governo Bush descartou o velho projeto
de regulamentação jurídica das relações internacionais
(Verrechtlichung der internationalen Beziehungen),
proposto há mais de 220 anos por
Kant.
O comportamento do governo estadunidense
somente admite a conclusão de que, na sua
concepção, o direito internacional, como meio
para a solução de conflitos internacionais e para a
implementação da democracia e dos direitos humanos,
foi manipulado. Esses objetivos fazem
com que a potência mundial afirme, pública e declaradamente,
o conteúdo de uma política fundada
não mais no direito, e sim em seus valores éticos
e convicções morais particulares, impondo,
assim, suas próprias justificativas normativas, ao invés de seguir os procedimentos jurídicos. Porém,
uma coisa não substitui a outra. A renúncia
à utilização de argumentos jurídicos sempre significa
uma desconsideração das normas gerais reconhecidas
previamente. Partindo-se da visão limitada
da própria cultura política e do próprio
entendimento do mundo, mesmo o poder
hegemônico bem-intencionado não pode sempre
ter a certeza de que entende e leva em conta a situação
e os interesses das demais partes do processo.
Isso vale tanto para os cidadãos de uma superpotência
fundada democraticamente quanto
para os políticos que a governam. Sem a inclusão
de ações legais contemplando todas as partes envolvidas
e considerando as suas respectivas tomadas
de posição, não se constrange a parte superior
a deixar a perspectiva central de um grande império
para se envolver pela descentralização de
suas perspectivas de interpretação, como exige o
ponto de vista cognitivo da apreciação de todos
os interesses.
Mesmo um poder ultramoderno como o
dos EUA acaba caindo novamente no falso universalismo
dos velhos impérios, quando substitui
o direito positivo por moralidades e éticas, em
questões relativas à justiça internacional. Na perspectiva
de Bush, os “nossos” valores valem tanto
quanto os universais, devendo ser aceitos da melhor
maneira possível por todas as demais nações.
O falso universalismo nada mais é do que uma
ampliação do etnocentrismo. Não há nenhuma
relação entre ele e uma teoria da guerra justa, derivada
de tradições teológicas ou do direito natural,
mesmo quando assume hoje o vestuário comunitarista.
Não digo que as razões oficiais do
governo estadunidense com a Guerra no Iraque
ou as convicções religiosas expressas oficialmente
pelo seu presidente sobre o bem e o mal cumpram
os critérios estabelecidos por Walzer para
justificar uma guerra justa. Como jornalista,
Walzer não deixou nenhuma dúvida quanto à sua
própria oposição. Mas como filósofo, ele define
seus critérios, independentemente do fato de serem
racionais ou não, com base unicamente em
princípios morais e considerações éticas, e, portanto,
não no marco de uma teoria do direito, que
relaciona o julgamento sobre guerra e paz com
procedimentos imparciais de produção e aplicação
de normas aceitáveis.
Nesse contexto, interessa-me apenas uma
conseqüência de tal posição: os critérios de julgamento
sobre uma guerra justa não foram traduzidos
no âmbito jurídico. Somente assim pode-se
tratar de uma sempre controversa justiça material
e verificar como as guerras podem ser julgadas
em sua legalidade. Os critérios de Walzer para
uma guerra justa são, mesmo quando encontrados
no direito internacional habitual, de natureza
essencialmente ético-política. Sua utilização em
casos específicos escapa à verificação por tribunais
internacionais de justiça, já que tais situações ficam
sob a jurisdição da esperteza (Klugheit) e do senso
comum de justiça de cada Estado nacional.
Mas por que o julgamento imparcial de
conflitos deveria ser salvaguardado apenas num
Estado valendo-se dos meios legais? Por que sua
validez não deveria ser aplicada também às disputas
internacionais? Trata-se de algo trivial: quem
deveria determinar, no plano supranacional, se os
nossos valores realmente merecem o reconhecimento
universal ou se nós verdadeiramente empregamos,
de modo imparcial, os princípios reconhecidos
universalmente? Isto é: se nós, de fato,
não atuamos de modo seletivo numa situação
discutível, ao invés de meramente considerar o
que nos é relevante. Esse é o grande sentido dos
procedimentos jurídicos inclusivos, os quais articulam
as decisões supranacionais à condição da
tomada de perspectiva envolvendo as distintas
partes e seus interesses.
Mendieta – Mas, para honrar o seu projeto
kantiano, o senhor assume o papel de advogado de
um humanismo militar?
Habermas – Não sei o contexto exato dessa
expressão, mas suspeito que ela aluda ao perigo
de se tentar um reducionismo das oposições ao
processo de moralização cultural (Moralisierung).
Exatamente quando se trata do plano internacional,
a demonização do lado oposto – pensemos
no eixo do mal – não contribui em nada para a solução
de conflitos. Hoje em dia, o fundamentalismo cresce por todos os lados, tornando os
conflitos insolúveis – no Iraque, em Israel e em
outros lugares. Com esse argumento, incidentemente,
Carl Schmitt também defendeu um conceito
de guerra não-discriminatório durante toda a
sua vida. O direito internacional clássico, de acordo
com o argumento de Schmitt, considerava a
guerra sem maiores necessidades de justificação
como método legítimo para a solução de conflitos
entre Estados, mas, com isso, servia, ao mesmo
tempo, de importante precondição para a civilização
de confrontações bélicas. Por sua vez, a
criminalização dos ataques bélicos, que se dá a
partir do Tratado de Versalhes, fez com que a
própria guerra fosse vista como crime, causando
uma dinâmica de desfronteirização de limites
(Entgrenzung). Isso porque, assim, o oponente
sentenciado moralmente transformava-se num
inimigo a quem se devia aversão e se buscava destruir.
Quando, nesse processo de moralização, as
partes contrárias não se consideram mais merecedoras
de respeito – justus hostis –, as guerras, até
então restritas, se degeneram em guerras totais.
Até mesmo quando a guerra total se volta
logo para uma mobilização nacionalista em massa
e para o desenvolvimento de armas atômicas, biológicas
e químicas, de destruição em massa, não
se pode dizer que tal argumento seja falso. Porém,
isso referenda a minha tese de que a justiça
entre as nações não pode ocorrer por meio de uma
moralização, e sim pela regulamentação jurídica
(Verrechtlichung) das relações internacionais. O
julgamento discriminatório é contrário à paz somente
quando uma das partes reivindica, com
base em seus próprios padrões morais, o julgamento
da outra como tendo cometido um crime.
Não podemos confundir tal julgamento subjetivo
com a condenação legal de um governo comprovadamente
criminoso, por meio de um processo
jurídico ocorrido diante dos foros e de uma
comunidade supranacional constituída por Estados
(Staatengemeinschaft). Tal procedimento amplia
a proteção legal também para uma parte que,
embora acusada, tem sua inocência validada até
que se prove o contrário.
A diferenciação entre moralização cultural
e regulamentação jurídica das relações internacionais
não teria, de forma alguma, agradado a Carl
Schmitt, pois, para ele e seus contemporâneos
fascistas, a luta existencial fundamental sobre a
vida e a morte possuía uma aura decididamente
vitalista. Por isso, Schmitt considera que a substância
do político ou a auto-afirmação da identidade
de um povo ou de um movimento não podem
ser domesticadas normativamente, além de
afirmar que cada tentativa de se domar algo juridicamente
deve ser reagida de maneira selvagem,
valendo-se da cultura moral. Se o pacifismo legal
pudesse ter sucesso, ele nos roubaria o meio essencial
para a renovação da autêntica existência.
De qualquer modo, não precisamos nos deter
mais sobre esse confuso conceito.
O que devemos tratar, nesse ponto, é o emprego
de uma suposta premissa realista, defendida
por hobbesianos de esquerda e de direita: o direito,
mesmo na forma moderna do Estado constitucional
democrático, sempre é unicamente o
reflexo e a máscara do poder econômico ou político.
Sob essa condição prévia, o pacifismo legal,
que quer estender o direito ao estado natural
como condição para a relação entre os Estados,
aparece como pura ilusão. De fato, o projeto de
Kant objetivando uma constitucionalização
(Konstitutionalisierung) do direito internacional
se ressente de um idealismo sem ilusões. A forma
do direito moderno tem, como tal, um núcleo
moral que não dá margem a dúvidas, afirmandose
e se fazendo notar a longo prazo como civilizador
gentil (gentle civilizer, de Koskenniemi) –
uma força suavemente civilizatória –, em que o
meio jurídico é aplicado como um poder amoldado
à constituição (eine verfassungsgestaltende
Macht).
De qualquer modo, o universalismo igualitário,
inerente ao direito e a seus procedimentos,
deixou rastos empiricamente verificáveis na realidade
política e social do Ocidente. A idéia do tratamento
igualitário, investido pelo direito tanto às
pessoas quando aos Estados, somente pode ser
vista como cumprindo uma função ideológica,
quando entra em jogo, ao mesmo tempo, como um padrão para a crítica da ideologia. Por isso, os
movimentos de oposição e de emancipação, no
mundo inteiro, utilizam atualmente o vocabulário
dos direitos humanos. Mesmo quando a retórica
dos direitos humanos se presta aos fins da
opressão e da exclusão, tal abuso pode ter o seu
antídoto ao se lançar mão dessas mesmas palavras.
Mendieta – Justamente como um defensor
incorrigível do projeto kantiano, o senhor deve ter
ficado profundamente desapontado com as maquinações
maquiavélicas que freqüentemente dominam
a prática das Nações Unidas. O senhor mesmo
já percebeu e discutiu a seletividade monstruosa
com a qual se tratam casos que chegam ao Conselho
de Segurança para que ele tome alguma
iniciativa prática. O senhor fala da prioridade sem
vergonha desfrutada pelos interesses nacionais
diante das obrigações globais. Como as instituições
das Nações Unidas devem ser alteradas e reformadas
para que essa organização não seja mais
vista como uma defensora dos interesses e objetivos
unilaterais pró-ocidentais, e sim como uma ferramenta
efetiva para a busca e a garantia da paz?
Habermas – Esse é um tema amplo. Não se
conclui tudo com as reformas institucionais. São
importantes as ações como a composição do
Conselho de Segurança proporcional à mudança
nas circunstâncias e relações de poder atuais, discutida
nos dias hoje, e a restrição ao direito de
veto por parte dos grandes poderes. No entanto,
elas não são suficientes. Deixe-me selecionar alguns
pontos de vista sobre esse complexo, em
que o todo não é muito transparente.
A organização mundial apóia-se corretamente
na inclusão completa. Ela é aberta a todos
os Estados comprometidos com as formulações
do texto da Carta e as declarações relativas ao direito
internacional propostas pela ONU – independentemente
da correspondente extensão da
aplicação prática, de fato, desses princípios no âmbito
doméstico. Considerada em relação às suas
próprias bases prescritivas, existe – apesar da
igualdade formal entre os membros – uma tendência
comum quanto à legitimação, que une os
liberais, os quase-autoritários e, às vezes, até mesmo
os Estados despóticos membros da organização.
Isso chama a atenção, por exemplo, quando
um Estado como a Líbia assume a presidência do
Comitê de Direitos Humanos. John Rawls teve
o mérito de advertir sobre o problema fundamental
da legitimação por níveis distintos. A vantagem
na legitimação, a ser exercida pelos países
democráticos, e no que Kant já havia colocado
toda a sua esperança, não pode ser formalizada.
Mas poderiam ser desenvolvidos hábitos e métodos
que a levassem em conta. Desse mesmo ponto
de vista, torna-se clara a necessidade de reforma
do direito a veto dos membros permanentes
do Conselho de Segurança.
O problema mais urgente é, certamente, a
limitação da ação de uma organização mundial,
que não dispõe de nenhum monopólio de poder
e necessita do apoio ad hoc de seus membros
mais poderosos, sobretudo em casos de intervenção
e processos de construção de nações. O problema
não se dá, porém, na ausência do monopólio
de poder e de força – a diferenciação entre o
poder constitucional e o Poder Executivo também
pode ser observada em outras situações,
como na União Européia, em que o direito dela
rompe com os direitos nacionais, ainda que os
Estados nacionais possuam os métodos alojados
para o exercício legítimo da força militar. Além
de sua condição financeira subdimensionada, as
Nações Unidas sofrem, acima de tudo, com a sua
dependência de governos, que não apenas buscam
os seus interesses nacionais, mas também
dependem do voto e do consentimento de suas
respectivas populações. Até que venham a ocorrer
mudanças no nível sociocognitivo, já que, em
sua autopercepção, os Estados-membros se entendem,
desde sempre, como protagonistas soberanos,
devemos refletir sobre como alcançar um
desacoplamento relativo (relative Entkoppelung)
dos níveis de decisão. Os Estados-membros poderiam,
por exemplo, manter certos contingentes
militares à disposição permanente da ONU, sem,
no entanto, restringir seus direitos nacionais de
manter suas próprias forças armadas.
De modo realista, contudo, a meta ambiciosa
de uma política internacional integrada, sem governo mundial, apenas pode ser pensada, como
projeto, sob a condição de que a organização
mundial se limite a suas duas funções mais importantes
– a manutenção da paz e a implementação
global dos direitos humanos –, deixando a
outros sistemas e instituições de negociação, de
nível intermediário, a coordenação política nas
áreas da economia, meio-ambiente, transporte,
saúde e outras. Porém, no momento atual, esse
nível de global players capazes de atuar politicamente
e negociar entre si para chegar a acordos
só pode ser ocupado por algumas instituições,
como a Organização Mundial do Comércio.
Uma simples reforma bem-sucedida das Nações
Unidas não causaria nada se os Estados-nação
não se unissem, em cada continente distinto, em
regimes continentais segundo o modelo da
União Européia. Para isso, existem atualmente algumas
iniciativas modestas. É aqui, e não na reforma
da ONU, que se dá o elemento utópico de
uma condição cosmopolita.
Sobre a base de uma divisão de trabalho no
interior de um sistema global com seus vários níveis,
poder-se-ia cobrir, de modo parcialmente
democrático, a demanda por legitimação necessária
a uma ONU decididamente capaz de ações eficientes.
Em outras palavras, uma esfera pública
global como essa que se deu, pelo menos até agora,
apenas em ocasiões de grandes eventos históricos
mundiais, como o 11 de setembro. Graças
às mídias eletrônicas e aos sucessos surpreendentes
de organizações não-governamentais com
operações mundiais, entre elas, a Anistia Internacional
e a Human Rights Watch, é possível, porém,
constituir uma infra-estrutura mais sólida da
esfera pública, que um dia poderá ganhar maior
continuidade. Sob tais circunstâncias, não estaria
tão longe o dia em que seja realidade a idéia de se
estabelecer um Parlamento da Cidadania Global
ao lado da segunda câmara da Assembléia Geral
das Nações Unidas ou, ao menos, acrescentar
uma representação dos cidadãos à já existente câmara
de representantes dos Estados. Com iniciativas
desse tipo, a evolução do direito internacional,
que já vem ocorrendo há muito, teria sua expressão
simbólica e uma correspondente amarração
institucional. Porque nesse ínterim, não
somente os Estados, mas também os próprios cidadãos
transformaram-se em sujeitos do direito
internacional: como cidadãos cosmopolitas, todos
também podem clamar por seus direitos, fazendo-
os valer, se necessário, até mesmo contra
seus próprios governos.
Decerto o pensamento sobre a idéia abstrata
de um parlamento cosmopolita causará fraudes
fáceis. Mas, considerando as funções limitadas
das Nações Unidas, devemos ter em conta que os
deputados desse parlamento representariam populações
não necessariamente interconectadas
por meio de densas tradições, como se dá com os
cidadãos de uma comunidade política. Em vez da
solidariedade cívica, bastaria um acordo negativo,
isto é, a revolta comum contra iniciativas de guerra
e o desrespeito aos direitos humanos por parte
de grupos criminosos e governos, ou mesmo o
horror comum com relação aos processos de limpeza
étnica e genocídios.
Porém, as resistências e recaídas a serem superadas
no caminho de uma constitucionalização
completa são tão grandes que o projeto só terá
sucesso quando os EUA se colocarem novamente,
como em 1945, na condição de locomotiva à
frente desse movimento. Isso não é tão improvável
como talvez pareça no atual momento. Por
um lado, trata-se de um golpe de sorte da história
mundial que a única superpotência seja, ao mesmo
tempo, a democracia mais antiga na Terra e,
por isso, diferentemente do que Kagan nos quer
fazer crer, apresenta afinidades, de fato e desde
sempre, com a idéia kantiana de regulamentação
jurídica das relações internacionais. Por outro lado,
é do próprio interesse dos Estados Unidos
fazer com que a ONU se torne capaz e efetiva, antes
que outra grande potência, menos democrática,
transforme-se numa superpotência. Os impérios
vêm e vão. Finalmente, a União Européia
chegou há pouco a um acordo quanto aos princípios
de uma política de segurança e defesa internacionais
(Sicherheits- und Verteidigungspolitik)
em oposição ao ataque antecipado (pre-emptive
strike) e propôs o engajamento preventivo (preventive
engagement), tornando-se, com isso, capaz de influenciar a formação da opinião na esfera
pública política de seus aliados americanos.
Mendieta – O desprezo do governo dos EUA
pelo direito internacional e pelos pactos internacionais,
o seu uso brutal da força militar e sua política
da mentira e da extorsão levaram a um antiamericanismo
não injustificado, pelo menos quando
aplicável ao presente governo dos Estados Unidos.
Como a Europa deveria tratar esse sentimento generalizado
e tentar prevenir que o antiamericanismo
mundial se degenere em ódio contra o Ocidente?
Habermas – O antiamericanismo é um perigo
na própria Europa. Na Alemanha, ele sempre
se uniu com os movimentos mais reacionários.
Então, é importante para nós, como na época da
Guerra do Vietnã, poder fazer frente às políticas
do governo americano lado a lado com uma oposição
interna dos próprios americanos a seu governo.
Se pudermos nos relacionar com um movimento
de protesto dentro dos Estados Unidos,
a acusação contraprodutiva de um antiamericanismo
aqui encontrada seria nula. Outra coisa é a
emoção antimodernista contra o mundo ocidental.
Nesse sentido, carece implementar uma defesa
autocrítica das realizações da era moderna ocidental,
mas, ao mesmo tempo, sinalizando a franqueza
e a abertura para aprender, dissolvendo,
acima de tudo, a identificação idiota da ordem democrática
e da sociedade liberal com o capitalismo
selvagem. Devemos, por um lado, estabelecer
um limite inequívoco com relação ao fundamentalismo,
inclusive com o cristão e o judeu, e, por
outro, reconhecê-lo também como fruto de uma
modernização desarraigadora (einer entwurzelnden
Morenisierung), em cujo desenvolvimento
os disparates de nossa história colonial e a descolonização
frustrada desempenharam papel crucial.
Em oposição às estupidezes fundamentalistas,
podemos sempre colocar claramente que,
afinal de contas, a crítica justificável ao Ocidente
se apóia nos padrões dos discursos desenvolvidos
ao longo de dois séculos de autocrítica ocidental.
Mendieta – Recentemente, foram praticamente
rasgados dois planos políticos desde os impulsos
oriundos da guerra e do terrorismo: o chamado
“roteiro de percurso” (roadmap), que levaria à paz entre israelenses e palestinos, e o cenário imperialista de Cheney, Rumsfeld, Rice e Bush. O script para o conflito em Israel deveria ter sido escrito junto com um programa para a reconstrução de todo o Oriente Médio. Mas as políticas dos Estados Unidos amalgamaram o antiamericanismo com o anti-semitismo. Nos dias de hoje, o antiamericanismo
se aproxima de velhas formas de um anti-semitismo assassino. Como se pode desativar essa bomba com uma mistura explosiva?
Habermas – Esse é um problema especialmente na Alemanha, onde atualmente as eclusas se abrem para um contato narcisista com as suas
próprias vítimas, depois de certa censura, imposta ao longo de décadas, tanto às conversas informais (Stammtische) quanto à opinião oficial sobre o assunto.
Mas essa mistura, que você descreve corretamente, nós somente conseguiremos colocar
em acordo, se tivermos sucesso em separar convincentemente a questão da crítica legítima à visão
fatal de Bush sobre a ordem mundial dos exageros de ações antiamericanas. Assim que a outra
América possa ser vista em contornos visíveis, a base que serve para acobertar o anti-semitismo
também cederá.
1 HABERMAS, J. Die Zeit, 29/abr./99
2 New Yok Times, Nova York, 10/abr./03
*Entrevista traduzida do alemão por Amós Nascimento para a Impulso Revista de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Metodista de Piracicaba (fonte)
escritores
filósofos
lusófonos
historiadores
mulheres
músicos
sociólogos
antropólogos
realizadores
professores
psicólogos
poetas
jornalistas
pintores
actores
John Lennon
críticos
teólogos
Agostinho da Silva
Ayn Rand
Christopher Hitchens
David Lynch
Edgar Morin
Federico Fellini
Fernando Savater
Frank Zappa
George Steiner
Hans Kung
Jared Diamond
Kurt Vonnegut
Lévi-Strauss
Raymond Aron
Simone de Beauvoir
Steven Pinker
Woody Allen
arqueólogos
astrónomos
biólogos
economistas
editores
geógrafos
Al Worden
Alain Corbin
Alain de Botton
Alberto Manguel
Aldous Huxley
Alexandre O’Neill
Almada Negreiros
Amartya Sen
Amos Oz
Anselmo Borges
Anthony Giddens
Antonio Tabucchi
Atom Egoyan
Bart Ehrman
Bob Marley
Bruno Latour
Carl Gustav Jung
Carl Sagan
Carlos Drummond de Andrade
Clarice Lispector
Cláudio Torres
Colin Renfrew
Companhia da Palavra
Daniel Dennett
Darcy Ribeiro
Dave Gibbons
David Landes
David Niven
Debbie Harry
Eduardo Galeano
Eduardo Lourenço
Elis Regina
Emil Cioran
Erich Fromm
Evelyn Waugh
Fernando Lopes
Francis Bacon
Francis Fukuyama
François Colbert
François Furet
Geoffrey Miller
Georg Lukács
Gilles Deleuze
Gilles Lipovetsky
Gonçalo M. Tavares
Gunter Grass
Hannah Arendt
Harold Bloom
Henry Rousso
Ian Buruma
Irene Pimentel
Isaac Asimov
J. G. Ballard
J. R. Searle
Jacques Barzun
Jacques Derrida
Jacques Le Goff
James Gandolfini
James Hillman
Jaron Lanier
Jean Genet
Jean-Paul Sartre
John Gray
John Keegan
Joni Mitchell
Jorge Amado
Jorge Lima Barreto
Jorge Luis Borges
Joseph Campbell
José Gil
José Mattoso
João Bénard da Costa
Júlio Resende
Jürgen Habermas
Kwame Anthony Appiah
Laurence Olivier
Laurie Anderson
Lawrence Grossberg
Lester Brown
Lindley Cintra
Luc Ferry
Luiz Pacheco
Manuel António Pina
Manuel Hermínio Monteiro
Marc Augé
Margaret Atwood
Marguerite Duras
Maria Filomena Mónica
Maria José Morgado
Mario Vargas Llosa
Marlon Brando
Marshall McLuhan
Marshall Sahlins
Martin Heidegger
Martin Rees
Michael Schudson
Michel Serres
Milan Kundera
Monteiro Lobato
Muhammad Ali
Orson Welles
Paul McCartney
Paul Ricoeur
Peter Singer
Philip Roth
Pier Paolo Pasolini
Quentin Smith
Ray Bradbury
Raymond Chandler
Renato Russo
René Pélissier
Richard Feynman
Robertson Davies
Roger Chartier
Ronald L. Numbers
Rui Bebiano
Ruth Levitas
Saldanha Sanches
Salvador Dali
Sam Peckinpah
Sebastião Salgado
Sherry Ortner
Stanley Kubrick
Theodor Adorno
Tom Holland
Tony Judt
Truman Capote
Vinícius de Moraes
Vitorino Magalhães Godinho
Vladimir Nabokov
Vítor Silva Tavares
Warren Buffett
William Gibson
Zygmunt Bauman
ambientalistas
astronautas
desportistas
empresários
fotógrafos
físicos
informáticos
jornalismo
juristas
marketing
politólogos
políticos