Evando Nascimento: No ano passado o Sr. fez a conferência de abertura dos Estados Gerais da Psicanálise na Sorbonne. Quais são hoje as formas de “resistência” à psicanálise enquanto instituição? O que é feito do legado de Freud? E do de Lacan?
Jacques Derrida: A palavra resistência é carregada de sentido no vocabulário e na lógica da psicanálise. Escrevi um livro que se chama “Résistances - De la Psycanalyse” para mostrar como a resistência é um conceito psicanalítico. É uma palavra que pode designar a resistência do mundo e da sociedade à psicanálise, e Freud teve essa experiência imediatamente após a invenção da psicanálise; mas também designa a resistência no interior da psicanálise, ou seja, a resistência dos próprios psicanalistas às exigências, às injunções, ao próprio pensamento psicanalítico. Tentei analisar simultaneamente as raízes comuns dessa resistência que vem de fora e de dentro. Evidentemente essa resistência sempre ocorreu, dando-se como processo interminável, mas ela ganhou formas diferentes a cada momento da história da psicanálise. E na conferência a que o Sr. faz alusão, na abertura dos Estados Gerais da Psicanálise, tentei explicar ou me explicar com o que se passa hoje no campo mundial da psicanálise: o que resiste à psicanálise de fora e de dentro. Enfatizei isso com referência a certos textos de Freud, em especial textos sobre a guerra, a sua troca de cartas com Einstein. Tentei imaginar o que poderia ou deveria ser hoje a resposta da psicanálise a fenômenos específicos da atualidade : a globalização, a consolidação do direito internacional, o conceito de guerra, as novas formas da crueldade, as novas formas do mal, e naturalmente muitas coisas nessa conferência giram em torno desse conceito de crueldade, que Freud utiliza amplamente: “Grausamkeit”. Ele mostra ser ela uma realidade que, de certo modo irredutível, encarna no homem uma pulsão de crueldade, uma pulsão de poder, uma pulsão de morte. Mas Freud ao mesmo tempo convoca essa pulsão cruel à paz, ao domínio sempre pela cultura. E pude indagar qual poderia ser hoje a tarefa dos psicanalistas em face justamente da transformação do mundo: a crise da soberania, a transformação do direito internacional, a questão da pena de morte. Tudo isso é colocado no interior dessa conferência para marcar, ao mesmo tempo, a especificidade insubstituível das tarefas da psicanálise, aquilo que somente a psicanálise “sem álibi” - e a expressão “sem álibi” retorna freqüentemente na conferência - é convocada a fazer, e que infelizmente até agora ela não fez. Ou seja, ajustar a suas próprias ações um novo pensamento e uma nova lógica do inconsciente e, conseqüentemente, uma nova definição da responsabilidade, da ética, da moral e da política. Como a psicanálise pode hoje ser levada em consideração por todos os que têm a tarefa de transformar o direito internacional, o conceito do político, mas também como pode ajudar a pensar a ética de uma outra maneira? A partir do momento em que a referência à intencionalidade livre do eu soberano não é mais a instância última da decisão ética, jurídica ou política, como se pode manter uma idéia de responsabilidade? O que é a responsabilidade em face da psicanálise? Estou falando de um valor de responsabilidade ética, bem como jurídica ou política. Quanto a meu interesse pelos legados de Freud e de Lacan, é preciso levar em conta esses dois grandes momentos da psicanálise, quer dizer, herdá-los e ver o que nessa herança ainda solicita questões de tipo desconstrutor. É o que sempre procuro fazer quando leio Freud e Lacan: reconhecer a necessidade dos procedimentos metodológicos deles, tentando do mesmo modo determinar o preço que eles têm a pagar por seus textos e inovações, especialmente quais são os limites metafísicos desse pensamento. A herança é algo de muito complicado e contraditório, trata-se de ser fiel sem dogmatismo e de às vezes contradizer ou construir uma crítica por fidelidade. A esse respeito creio que não se trata no caso de Freud e de Lacan de duas heranças distintas. O próprio Lacan era um herdeiro de Freud, e por antecipação já tinha colocado muitas questões a Freud. Assim é uma herança sobredeterminada, e há muito me encontro numa espécie de debate e de explicação bem animados com os dois.
EN: Seus últimos livros tratam de questões tais como as da alteridade radical, do estrangeiro, da hospitalidade, do dom, do perdão incondicional e de outros temas que tradicionalmente pertencem ao domínio do que a filosofia chama de ética e de política. Contudo o Sr. utiliza relativamente pouco essas palavras. Por que razão?
JD: Utilizo raramente essas palavras, ética e política, porque, para resumir, elas se prestam freqüentemente a mal-entendidos. Quanto à ética, o que me interessa não é propor uma ética ou o conteúdo de uma ética, mas pensar o que quer dizer a eticidade da ética. Como, onde aparece ou o que é a ética? Um dos paradoxos do que tento propor é que só há ética, só há responsabilidade moral, como se diz, ou decisão ética ali onde não há mais regras ou normas éticas. Se há regras ou se há uma ética disponível, ou um conjunto de regras, nesse caso basta saber quais são as normas e proceder a sua aplicação, e assim não há mais decisão ética. O paradoxo é que, para haver decisão ética, é preciso que não haja ética, que não haja regras nem normas prévias. É preciso reinventar cada situação singular ou regras que não existem previamente. Portanto, se tenho tanta dificuldade de utilizar essa palavra é, em particular, porque paradoxalmente sinto que a exigência de uma responsabilidade ética implica a ausência de uma ética, de um sistema ético e de uma norma ética. Diria a mesma coisa em relação ao político, acrescentando o seguinte: recorro à palavra política, mas como o Sr. já observou, sempre com uma espécie de circunspeção. Pois percebo há alguns anos que se deve pôr em questão - e deve-se não como tarefa moral, mas porque a história do mundo, do político e da política obriga a isso - e reconsiderar o conceito do político, o que se chama de político. Até aqui na tradição ocidental, em princípio grega donde vem a palavra, e européia em geral, o político está ligado à “pólis”, à cidade, ao Estado. Mas assiste-se hoje a uma dissociação entre uma nova forma de politização e a referência fundadora ao Estado-Nação e à cidadania. O que chamo freqüentemente de democracia porvir (“à venir”) é uma democracia que não esteja essencialmente fundada na soberania do Estado-Nação e, portanto, na cidadania. Tento pensar uma política que não seja, em última instância, a de um Estado ou de uma cidadania. Certamente nada tenho contra a cidadania, penso que em certos contextos os direitos políticos e até, com freqüência, o próprio Estado são uma boa garantia contra as forças internacionais e as corporações capitalistas. Assim não sou simplesmente contra o Estado, mas creio que existe (no momento em que os limites do Estado e da soberania do Estado-Nação se evidenciam e devem mesmo ser lembrados) alguma coisa que se pode chamar de político, que no entanto não se apóia mais na referência ao Estado-Nação e à cidadania. Daí minha relação um pouco complicada com o cosmopolitismo. Sou a favor do cosmopolitismo, mas preferiria chamar isso de outro modo, porque o cosmopolitismo na tradição cristã, paulina, assim como na tradição kantiana, é sempre uma mundialidade dos cidadãos, uma politização cosmopolítica, a dos cidadãos do mundo. De minha parte, sou a favor - situo isso nos “Espectros de Marx” - de uma solidariedade mundial que não seja simplesmente uma solidariedade entre os cidadãos, mas que poderia ser também uma solidariedade dos seres vivos, não constituindo justamente, em primeiro lugar, uma política dos cidadãos. Por isso me sinto pouco à vontade com a palavra política, utilizo-a com a condição de poder precisar tudo o que acabo de referir.
EN: O Sr. poderia falar da questão da imigração ligada à da soberania, em particular à soberania do Estado?
JD: Claro. Como o Sr. observou, compartilho com outros a preocupação com a hospitalidade e as notícias sobre o drama dos estrangeiros, dos imigrados, dos exilados. Tento pensar uma hospitalidade incondicional que não esteja ligada à cidadania. Existem leis da hospitalidade ligadas à cidadania; Kant, por exemplo, quando fala do tratado da paz universal, pensa numa hospitalidade de cidadão para cidadão. Mas hoje devemos nos preocupar com pessoas que são lançadas fora de seus países, sem cidadania, e que não são respeitadas como cidadãos. É preciso pensar numa hospitalidade não mais voltada somente para cidadãos, porém que se dirija a qualquer um. Evidentemente o que acabo de dizer da ética e da política vale, por excelência, nas relações com o estrangeiro, o imigrado, o exilado etc. Todos os que, desde pelo menos a primeira guerra mundial, foram lançados na estrada do mundo: milhões de deportados, pessoas deslocadas, imigradas à força. Há pessoas sem estatuto...
EN: Sem documento...
JD: Pois é, sem documento, sem estatuto político, sem identidade nacional. Claro que quando falo de uma solidariedade internacional que não seja simplesmente cosmopolítica, ou somente a aliança entre os cidadãos do mundo, penso com certeza nessas pessoas. Tudo o que procurei escrever sobre a hospitalidade, principalmente em “De L’Hospitalité” e no livro “Adieu - à Lévinas”, diz respeito a esse problema.
EN: O sucesso internacional da “desconstrução” seria contraditório com relação a um certo papel de anticonformismo (político, epistemológico, institucional) das estratégias desconstrutoras?
JD: Eu seria muito prudente com relação a falar de “sucesso internacional da desconstrução”. Por certo a palavra desconstrução tem uma espécie de crédito internacional, fala-se dela um pouco em toda parte no mundo... Não exageremos: um pouco em toda parte nas universidades, em certos meios acadêmicos, literários. Mas não existe sucesso internacional, não devemos exagerar. Então isso não me parece contraditório com o anticonformismo. A desconstrução, por um lado, somente é conhecida com esse nome em pequenos meios universitários, urbanos e literários; por outro lado, mesmo nesses meios existe uma guerra furiosa, por meio da qual se combate a desconstrução. Ela é alvo de verdadeiras cruzadas, de ódio. Não creio que haja sucesso, assim não vejo contradição.
EN: Pode-se talvez falar de uma paixão da desconstrução: amor e ódio...
JD: Acredito que sim. Amor, não sei - quanto ao ódio, estou certo. Como o Sr. sabe, não existe “a” desconstrução: há muitas singularidades, pessoas diferentes, estilos e estratégias diversas. Não existe a unidade de uma escola, de uma doutrina, nem discurso ou estilo a ser identificado. Por outro lado, ela não é tampouco - poderia ser, mas simplesmente não é - um discurso e menos ainda um discurso acadêmico. Digo freqüentemente que a desconstrução é o que acontece (“c’est ce qu’il arrive”), o que se passa ou chega. O que acontece mesmo sem carregar esse nome: é o que acontece no mundo. Como, por exemplo, respondendo há pouco sua questão precedente, eu falava do terremoto que sacode o político, a soberania do Estado-Nação, o conceito de guerra. Todas essas coisas não têm mais identidade conceitual reconhecível. Desse modo, vê-se muito bem que a idéia de soberania - uma herança teológica - se encontra atualmente muito abalada pelo que ocorre no mundo. Essa desconstrução não é um discurso teórico, é o que acontece, levando-se tudo em conta: a técnica, a economia, as armas, o exército... Toda a história do mundo está em desconstrução, desconstrói-se por si mesma. “Isso” se desconstrói. É preciso então distinguir entre o que freqüentemente se chama “a” desconstrução como discurso essencialmente filosófico - que apareceu com esse nome na universidade - e o processo imemorial, pois começou desde sempre, prosseguindo ao longo do tempo com feições muito diferenciadas, e que hoje se acelera. É um processo em curso com ou sem esse nome, quer se saiba ou não.
EN: Existe um valor moral no acontecimento de “desconstrução”, em outras palavras, a questão do bem e do mal pode ainda ser colocada em relação ao que acontece?
JD: Nesse caso, só posso remeter ao que, momentos atrás, dizia da ética. A desconstrução não dispõe de uma tábua de valores morais. A desconstrução não é uma moral. Não é um dever moral. Acontece (“Ça arrive”). Acontece por meio de aporias, de dificuldades, de coisas impensáveis. As desconstruções não são temas que vêm do intercâmbio moral, em outras palavras, por um julgamento moral. Elas não têm mais uma moral. Em princípio, não são nem colocam uma moral.
EN: Qual seria ainda o papel do homem ou do valor humano nesse horizonte das “desconstruções”?
JD: Nesse horizonte, não se está mais seguro do que quer dizer a palavra homem. Existe uma história do conceito de homem e é preciso se interrogar sobre essa história: donde vem o conceito de homem, como o homem ele mesmo pensa o que é o próprio do homem? Por exemplo, quando tradicionalmente se opõe o homem ao animal, afirma-se que o próprio do homem é a linguagem, a cultura, a história, a sociedade, a liberdade etc. Pode-se colocar questões sobre a validade de todas essas definições do “próprio” e do homem e, portanto, sobre a validade do conceito de homem tal como geralmente é utilizado. Colocar-se questões sobre esse conceito de homem é nada ter de seguro a esse respeito. Mas isso não quer dizer ser contra o homem. Freqüentemente acusa-se a desconstrução de, ao colocar questões sobre a história do conceito de homem, ser inumana, desumana, contra o humanismo. Nada tenho contra o humanismo, mas me reservo o direito de interrogar quanto à história, à genealogia e à figura do homem, quanto ao conceito de homem, o conceito do próprio do homem. Creio, e o disse muitas vezes, que nenhum dos conceitos pelos quais se define o próprio do homem resistiria a uma história efetiva: a linguagem, a técnica, o simbólico, tudo isso que literalmente “caça” o animal. Assim creio que o conceito de homem precisa ser inteiramente repensado. Mas não se trata, com isso, de se opor ao que existe com o nome de homem, muito menos de se opor ao conceito do direito do homem. Acredito no direito do homem, acredito na história do conceito jurídico. Por exemplo, uma grande parte do que hoje acontece é determinada por esse acontecimento que foi, depois da guerra de 45, uma definição de “crime contra a humanidade”. Ele mudou muitas coisas, que estão na origem das transformações do direito internacional. Portanto, ainda que o conceito de humanidade permaneça por desconstruir, deve-se tentar compreender o que são esses enunciados performativos ou acontecimentos jurídicos: eles consistem em criar um conceito jurídico tal como o de crime contra a humanidade. Dessa forma, a estratégia é muito complicada: deve-se reservar o direito de interrogar quanto à genealogia do conceito de homem, sem contudo fazer dessa questão uma arma destrutiva em relação ao humanismo, aos direitos do homem, ao conceito de crime contra a humanidade. É aí que a responsabilidade política e ética é difícil de ser assumida, e é justamente por ser difícil que se trata de uma responsabilidade a assumir. Se houvesse uma norma, se estivéssemos tranqüilos em relação ao que acontece, sabendo que o conceito de direito do homem e de crime contra a humanidade é muito claro, não haveria nenhum problema, nem responsabilidade a assumir. Existem verdadeiras responsabilidades a assumir quando se reconhece que o conceito de homem é precário e problemático, provocador de questões, e que, ao mesmo tempo, ao se colocar essas questões é preciso não ameaçar conquistas, tais como a dos direitos do homem, da mulher, e da transformação dos direitos do homem. A história dos direitos do homem não se fez num único lance, é um processo de transformações e determinações crescentes. Não se parou de acrescentar direitos aos direitos do homem desde que foram criados. Direitos ao trabalho, direitos da mulher. Pode-se, desse modo, colocar questões quanto à história do conceito de homem e, em seguida, contribuir na elaboração, para o progresso do direito do homem. E diria que essas coisas são mesmo indissociáveis. Aliás, sabe-se que nada é dado na natureza, o que faz com que se possa interrogar a respeito dessa história e, ao mesmo tempo, tentar transformá-la, contribuindo com o processo.
EN: E o problema do genoma? Creio que está relacionado com o que o Sr. acabou de falar.
JD: Um dos problemas que coloco a respeito do genoma, mas há muitos, é o da apropriação do saber. Atualmente há duas grandes respostas para essa questão. Há, por exemplo, a resposta tipicamente americana. Falo em princípio desta, a qual consiste em dizer que, a partir das descobertas recentes, o seqüenciamento do genoma deve ser patenteado. Ou seja, deve se tornar propriedade dos laboratórios, da indústria farmacêutica, dos que o descobriram. E isso resultou em lucros e num mercado altamente rentável pela apropriação da patente. Já os cientistas franceses dizem que, ao contrário, tudo o que é descoberto se torna logo propriedade universal e deve estar imediatamente acessível ao conhecimento de todos no mundo. Eis um dos problemas com relação ao genoma, ou seja, o que se vai fazer com esse precioso saber, quem dele vai tirar proveito, quem vai explorar os recursos químicos, farmacêuticos e médicos dos países ricos e dos países pobres? Tudo isso representa um enorme problema. Essa é uma das questões do genoma. O que as últimas descobertas tornaram evidentes é que o genoma humano não é nem mais rico nem mais complicado que outros existentes. Não se pode a partir do genoma deduzir o que se acreditava deduzir da cultura. Não está escrito no genoma o desenvolvimento da cultura, das línguas, do simbólico nem mesmo da morte...
EN: Da História...
JD: Da História.
EN: Tanto na França quanto nos Estados Unidos seus textos têm dado margem a vários tipos de leitura, algumas até mesmo incompatíveis entre si, ou pelo menos bastante divergentes. O Sr. costuma ler tais interpretações e o que acha do relativismo inerente a algumas delas?
JD: Não posso dar uma resposta longa a esse respeito, pois existem muitas leituras; responderei apenas uma parte da questão. Não sou relativista, e aos que acreditam poder tirar uma lição relativista das leituras de meus textos diria simplesmente que se enganam. O relativismo é uma filosofia que consiste em dizer que todas as perspectivas se equivalem, que todos os pontos de vista têm o mesmo valor, e que tudo depende do lugar onde o indivíduo se encontra, do tempo, do assunto etc. Nunca pensei desse modo. Creio que a origem dos mal-entendidos no caso se deve a que sou muito enfático a respeito da singularidade e das diferenças: a singularidade das culturas, das nações, das línguas. Não acredito que se possa deduzir um relativismo da atenção à singularidade, mas como enfatizo muito a incondicionalidade, o perdão incondicional, a hospitalidade incondicional etc. conclui-se daí que sou relativista. Muito ao contrário, o motivo da incondicionalidade é justamente o que abala todo e qualquer relativismo e hipóteses condicionais. Existem coisas que é preciso fazer, às quais é preciso responder de maneira imperativa, com urgência, e que não se deixam relativizar. Acredito também na verdade das ciências, não sou cético, acredito no saber, acredito no objetivo dos cientistas. Trata-se evidentemente de uma objetividade garantida pela discussão, pela comunidade científica, pelos protocolos de interpretação. Em todo caso, jamais fui relativista. E naturalmente enganam-se os que tiram essa conclusão, privando a desconstrução de toda espécie de força de convicção. Isso supõe, segundo a definição clássica, que se você se diz relativista, ou cético, como pode acreditar na verdade do que diz? Penso que a interpretação relativista é uma interpretação fraca.
EN: Como a pesquisa universitária poderia ajudar a pensar a questão da pena de morte, por exemplo, nos Estados Unidos?
JD: Ela deveria ajudar, mas não o faz suficientemente!
EN: De que maneira ela poderia fazê-lo?
JD: Abordando o assunto. Há dois anos faço um seminário sobre a pena de morte. Evidentemente é uma questão que não se pode separar da questão da soberania, de que falávamos há pouco. O direito de vida e de morte sobre um cidadão sempre foi o apanágio exclusivo da soberania. Tentamos nos seminários ao mesmo tempo ler a história da pena de morte, consultando a bibliografia a esse respeito, mas também analisar a situação atual, especialmente a constatação indubitável que os Estados Unidos representam a única democracia de tipo ocidental, com predomínio da fé cristã, que não apenas mantém o princípio da pena de morte, mas o aplica de maneira generalizada e cruel. Desse modo, o seminário se relaciona em larga medida ao que se passa hoje nos Estados Unidos. O que se depreendeu da leitura de vários textos clássicos sobre o assunto foi que nenhum texto filosófico jamais tomou partido contra a pena de morte. Nenhum. Isso nos leva a indagar por que a filosofia em sua totalidade esteve do lado da pena de morte. Por que, embora um ou outro filósofo no fundo do coração pudesse ser contra, nenhum opôs à pena de morte argumentos de tipo filosófico? Nesses seminários criticamos o discurso a favor mas também analisamos as fraquezas do discurso abolicionista existente, procurando assim construir um novo discurso que justifique a abolição da pena de morte. E como se trata de um seminário que já dura dois anos, tenho dificuldade de resumir em poucas palavras. Em todo caso, um dos grandes lances do direito hoje é que se passou de uma maioria para uma minoria de países praticantes da pena de morte. De fato, somente um número relativamente pequeno de países a mantém: são os Estados Unidos, além da China, do Irã, e de alguns países do mundo árabe. Procuramos compreender o que aí acontece, quais são as histórias, quais os dados nessa história que não se encontram simplesmente limitados ao campo do direito penal. Isso diz respeito a tudo, a todas as políticas, de que falava momentos atrás, a toda a questão de soberania, a questão da vida e da morte.
EN: E o perdão, qual a relação entre a pena de morte e o imperdoável?
JD: O seminário sobre a pena de morte vem em seguida a um seminário sobre o perdão. O elo entre os dois é que evidentemente decide-se pela pena de morte quando se considera que uma falta ou um crime é sobre a terra imperdoável. Ao menos relativamente imperdoável. Mas acontece também que a única coisa que o perdão deve perdoar é o imperdoável. Se o perdão perdoa o perdoável não é um perdão. Portanto, se existe perdão, ele deve perdoar o imperdoável. O que implica naturalmente analisar as questões do perdão e do indulto, do indulto soberano e da pena de morte. Aí também, trata-se de uma coisa um tanto complicada, que conduz a essa idéia teológica da soberania, ao direito absoluto do soberano. Aliás, tanto faz que o soberano seja uma pessoa, um monarca absoluto, por direito divino, ou que seja o povo. O conceito de soberania não se vê fundamentalmente transformado quando se passa do soberano como monarca absoluto por direito divino a soberano como povo, por razões de contrato social. O perdão deverá ser, se ele existe, um conceito incondicional, ele não é um conceito jurídico. O Sr. me perguntou qual seria a relação entre o perdão e a pena de morte: o perdão é estrangeiro ao domínio do direito, do direito penal. O perdão não é um julgamento, um veredicto público. Quando se fala assim do perdão, está-se fazendo confusão. O próprio perdão, o que chamo de perdão incondicional, não pertence ao que lhe reserva o domínio do direito, não deve nem mesmo ser pedido. Em geral, o perdão somente é dado a quem o pediu. O perdão incondicional nem mesmo precisa ser pedido, pois se peço que me concedam perdão, ele se torna uma condição. O perdão incondicional nem precisa ser pedido. Isso pode parecer uma loucura, impossível, mas o perdão é uma espécie de loucura, ele faz o impossível.
EN: Então não há política do perdão.
JD: O perdão não é uma questão política no sentido tradicional. A questão do perdão e a da pena de morte não são a mesma. O perdão não pertence ao campo do político nem ao do jurídico. Não se pode inscrever o perdão no direito. Já o direito ao indulto é reservado excepcionalmente - e a questão da exceção é um dos temas desse seminário. A questão da pena de morte de alguma maneira não é mais um conceito, é uma exceção, e uma crueldade. Uma exceção porque é o recurso ao soberano que é excepcional.
EN: O que resta ainda da “metafísica da presença” (presença como consciência, subjetividade, identidade plena, vontade, determinação etc.) diante da virtualização ou o do que o Sr. chama de “espectralização” do mundo?
JD: “Metafísica da presença” é uma expressão um tanto global que abandonei porque ela se prestava excessivamente a mal-entendidos. Não existe “uma” metafísica da presença. Eu diria que de fato houve nessa unidade - “metafísica da presença” - muitas rupturas, diferenças, mutações. Mas entenda-se que as espectralizações sozinhas não bastam para pôr em questão o que se chama de “presença”. O espectro é uma forma de presença e o virtual é também uma espécie de presença. Simplesmente percebe-se que a oposição presença/ausência não funciona mais de maneira tranqüilizadora quando se trata do virtual e do espectral. É, aliás, por isso que esse conceito de espectral desde sempre me interessou muito - não apenas recentemente, nos “Espectros de Marx” -, porque o espectral está relacionado ao retorno dos mortos e ao luto. O espectral é o que transita entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o presente e o ausente. Portanto, o valor de espectralidade é por si próprio desconstrutor, uma força que atrapalha o crer na presença. Mas pode-se sempre, para se tranqüilizar - e isso continuará ocorrendo sempre -, formar ou forjar efeitos de identidade, de consciência, de subjetividade para justamente resistir à angústia do espectral. Quanto mais o espectral e o virtual invadem o campo da experiência, tanto mais se tem necessidade de reconstituir forças estáveis de identidade, de presença, de consciência, de subjetividade etc. Noutras palavras, não creio que os efeitos de espectralidade vão suprimir o desejo de condições estáveis para a subjetividade, a presença, a identidade. Ocorre, no momento, uma mudança na definição do campo e uma nova forma de reatividade aos perigos que vêm da espectralização, e isso resulta na necessidade de identificação, de tomada de consciência, de subjetivização. Cada vez mais se vê a reivindicação a respeito de tudo o que hoje se chama de identitário: a reivindicação da identidade e do direito individual ou coletivo. Tudo isso são reações novas, em intensidade, às ameaças decorrentes das invasões do espectral e do virtual. Quanto mais existe espectralização, tanto mais há respostas, reações e apego ao lugar sólido da identidade, da subjetividade etc. Igualmente, quanto mais se tem globalização, passagens de fronteira, comunicação rápida etc., mais prementes se fazem as reivindicações pelo nacional, os nacionalismos, as configurações identitárias ou comunitárias. Em toda parte surgem nacionalismos, reivindicações identitárias, retornos às raízes, à língua, ao indivíduo, ao sujeito. Em todo caso, as coisas parecem se opor mas os opostos se nivelam. O renascimento do nacionalismo é o complemento normal da crise do Estado nacional e da globalização.
EN: Mas enquanto reação.
JD: Enquanto reação. Como atualmente se desenvolvem movimentos contra a globalização - por exemplo, o que ocorreu em Porto Alegre - e que são, aliás, mais ou menos legítimos. Porém, antes de tudo reagem ao que há de ameaçador na globalização.
EN: Qual seria o lugar do livro no contexto de emergência das novas tecnologias?
JD: A esse respeito, freqüentemente me expliquei que não quero ser obrigado a escolher entre a tradição do livro e os novos meios de comunicação ou os novos suportes técnicos. Em vários lugares de fato procurei defender a tradição do livro. Não simplesmente por conservadorismo ou passadismo, mas porque em primeiro lugar sei que há riquezas asseguradas, e também porque o suporte livro ainda é o que melhor atende às exigências de leitura, do tempo de leitura, do tipo de atenção, do refinamento de escrita e de leitura. Há um grande número de valores relacionados ao livro, e creio que é preciso salvá-los e desenvolvê-los, exatamente ali onde o livro se encontra ameaçado. Mas não quero fazer isso em oposição ao desenvolvimento dos novos meios de comunicação, dos computadores, do fax, do telefone celular. Quero continuar ao mesmo tempo a escrever à mão, a digitar no computador e a utilizar o telefone. Digo freqüentemente - é uma comparação um tanto boba, mas que esclarece bastante - que quando se dirige um automóvel não se pergunta o que se deve escolher: o freio ou o acelerador? Em algumas situações, acelero e, em outras, freio. É a mesma coisa: de acordo com o contexto, quero defender o livro, o passado no interior do movimento, desde que o movimento de aceleração não destrua as bibliotecas. E noutros casos pretendo acelerar os novos meios de comunicação, porque eles trazem coisas insubstituíveis, avanços preciosos. Por exemplo, internet, comunicações internacionais a uma velocidade e a uma facilidade que não existiam antigamente. Isso permite aos estudantes transgredir censuras, combater efeitos de censura e limites de comunicação. Diz-se - não deixa de ser anedótico, mas acredito ser verdade - que o totalitarismo não resiste a uma certa densidade da rede telefônica. Quando numa cidade a rede telefônica ultrapassa um certo limiar, a ditadura não se sustenta: as pessoas podem falar, resistir à polícia. Desse modo, a democracia e a democratização em curso se beneficiam tanto dos novos meios de comunicação quanto do livro. Acredito, pois, que é melhor politicamente desenvolver esses meios. Há evidentemente perigos que lhes são relacionados: na internet, pode-se dizer qualquer coisa, existe a propaganda nazista e são veiculados discursos fascistas. Em contrapartida, há também uma estratégia que se beneficia desses novos meios de comunicação, sem deixá-los ser invadidos pelo que se considera como o inimigo.
EN: Qual o lugar da literatura nesse contexto?
JD: Como o Sr. sabe, acredito muito na literatura. Articulando ao que acabei de dizer, a literatura, em sentido estrito, é uma definição moderna. Não falo da literatura oral. Estou falando da publicação sob forma de livro, de escritos públicos e assinados. A literatura, a invenção da literatura, é uma coisa européia, desde suas origens. Não digo eurocêntrica, quero dizer que a literatura em sentido estrito é uma invenção, uma instituição européia bastante jovem e nova. Ela é contemporânea da própria idéia de democracia moderna. Vale assinalar que a literatura é o direito de “dizer tudo”. Relativamente é uma forma excepcional, pois é o direito à fala pública, em princípio sem censura. Naturalmente sabe-se que a literatura foi com freqüência censurada. Mas no conceito de literatura está implicado que se tem o direito de dizer tudo e que a literatura é incompatível com o Estado não-democrático. É por isso, aliás, que justamente foi fundado o que se chama de Parlamento Internacional dos Escritores: uma instituição nova, destinada a convocar todos os escritores, os que são portadores de uma fala pública e que são perseguidos por esse motivo em seus países, oferecendo-lhes trabalho, asilo, cidades-refúgio etc. Isso se desenvolve felizmente com bastante rapidez, mas significa também que o escritor no sentido estrito de literatura se encontra ameaçado um pouco em toda parte no mundo e muitas vezes acaba exilado por representar a democracia. Por representar uma fala livre que assegura - com os novos meios de comunicação - um alcance imediato maior que antes. Assim os regimes ditatoriais procuram calar os escritores certamente pelo que eles representam. Isso pode acontecer não somente com Salman Rushdie, mas também com muitos na Argélia e em outros lugares. Então o pensamento sobre a literatura - e me interessa muito pensar tudo o que ela é nela mesma - se torna um lance político considerável. É um lugar muito sensível para analisar e transformar o espaço político.
Entrevista de Evando Nascimento para o suplemento Mais! da Folha de S. Paulo, em 27.5.2001 (fonte)
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