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Carlos Drummond de Andrade (1963)

Carlos Drummond de Andrade ("o maior poeta que o Brasil já teve", na opinião de Manuel Bandeira) recebe aquele estudantezinho atrevido que, de saída, lhe pergunta, sem a menor cerimônia, já amigo de tu:

- Onde nasceste?

A vontade de Drummond seria responder: "Em Itabiriste." Mas contém e fica à espera. O menino, decididamente da extrema esquerda, quer que todos assumam posição no mundo de hoje. E pergunta:

- Drummond, qual é a posição de escritor nos dias que vivemos?     

Este não hesita e dispara:

- A posição do escritor pode ser de pé, sentada ou deitada, conforme lhe resulte mais cômodo.

E, diante do espanto do mocinho, aconselha:

- Menino, se você não é comunista, vá sendo logo, que é para deixar de ser depressa. Eu também já fui e deixei.

Não sei quem pôs na cabeça do Drummond que ele é gauche . ("Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: vai, Carlos, ser gauche na vida.") Foi ele mesmo que inventou que é insociável. ("Mas se tento comunicar-me, o que há é apenas a noite e uma espantosa solidão.") Um homem que desperta ternura coletiva como ele, que tem um papo que faz a delícia de seus amigos ("Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício. "), meteu na cabeça que existe uma barreira entre ele e o mundo. O homem do sentimento do mundo se protege com um verniz isolante que é fino e penetrável a qualquer calor humano. ("Eu sei quanto me custa manter esse gelo digno.")

Muita gente acha que Drummond fugiu de algum quadro de Modigliani. Pra mim ele esteve, mas foi metido em alguma obra de El Grecco e não quer dizer. Bom pai, extravasa, constantemente, a ternura que vota a Maria Julieta, casada com o advogado Manuel Grana Etcheverry (autor de uma curiosa utopia e que já lhe deu três netos).

Falar de mim, Bloch? Pra isso eu preciso de preparo espiritual. Minha filha, sim. Ela lhe diria tanta coisa! Calcule a falta que me faz: ela em Buenos Aires e eu aqui. Já recebi o Prêmio F. Chinaglia, outro dia. Agora, vem você. Já fica muito holofote em cima de mim. Eu não sei falar de mim. Criei carapaça de tartaruga. Não pense que todo mundo é como você. Ainda existe gente que diz mal de minha poesia. Aquela história da "pedra no caminho" ... Até hoje.

         Relembro quase sem querer:

         "João amava Teresa que amava Raimundo

         que amava Maria que amava Joaquim

         que amava Lili que não amava ninguém.

         João foi pros Estados Unidos. Teresa para oconvento.

         Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia.

         Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes.

        Que não tinha entrado na história."

Muita gente não compreendia razões, raízes, motivos. Não compreendia e, como como todos os que não compreendem, emitia opiniões definitivas.

A modéstia de prummond não anda, se esgueira. Não fosse seu ar de asceta, se diria conspirador. É sombra dele mesmo. Luís Jardim me conta que, um dia, ao ser apresentado a Drummond, se dirigiu para ele de mão espalmada, disposto a um daqueles apertões bem nossos, mas a mão "saiu como um suspiro". "Não pude nem tocar. Drummond é intocável." ("Toda essa mão para fazer um gesto que de intocável nunca se modela.")

Nasceu em Itabira de Mato Dentro, Minas, em outubro de 1902. ("Alguns anos vivi em Itabira./Principalmente nasci em Itabira./Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro./Na cidade toda de ferro,/as ferraduras batem como sinos.") Filho de Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Drummond de Andrade. ("Meu pai montava a cavalo e ia para o campo/minha mãe ficava sentada cosendo." "De Itabira touxe/este orgulho, esta cabeça baixa.") E Carlos Drummond de Andrade quieto e só, lia Robinson Crusoé, outro solitário. Fez belas descrições no grupo escolar. Em 1916 foi pro Colégio Arnaldo de Belo Horizonte. Lá conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos. Em 1925 casou. E farmacêutico, mas nunca exerceu a profissão. Em 1925 entrou para a burocracia. ("Tive ouro, tive gados, tive fazendas./lHoje sou funcionário público./ltabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói") Está aposentado.

Em 1930 surge seu primeiro livro: Alguma Poesia. Com a obra se avolumando, com o correr do tempo, surgiu, certo ano, um movimento para dar a Drummond o Prêmio Nobel de Literatura. ("O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa o transforma em notícia.") A certa altura, começou a tomar vulto, mas foi o próprio escritor que desencorajou a idéia.

- O homem que propôs isto é um estudioso e tradutor americano, mas sem credenciais. Em Portugal o movimento partiu de um ex-aluno de Literatura Brasileira, de Thiers Moreira. Em Minas fui alvo de tanta manchete, que me senti assim uma espécie de Miss Brasil. Não tenho condições para tal prêmio. Sou pouco traduzido e difundido no estrangeiro, minhas ambições não chegam lá.

Todos sabemos, porém, que elas poderiam chegar. Garanto a Drummond que ele é um Fernando Pessoa nosso. E, em certas coisas, com vantagem. Drummond sorri:

- Quem dera! Fernando Pessoa era muitos poetas. Quem sou eu? Acho que poetas poucos conseguem sê-lo, e eu gostaria de ser um. O poeta verdadeiro precisa de aprendizado, de uma adequação da própria vida. A poesia, para mim, resulta de um desabafo, da inconformidade com o mundo. Ela contém, também (e muito), coisas irônicas, não poéticas. O poeta verdadeiro não é como eu, de formação irregular. É como um Dante, que tem uma mensagem imensa a viver.

Lembro a Drummond o que, um dia, me dissera Cecília Meireles:

"Poesia, para mim, é uma tentativa constante de dizer algo. A gente vai tentando dizer, torna a dizer de outra maneira e jamais alcança dizer o que realmente gostaria de ter dito."

Drummond concorda:

- Se eu me sentisse bem integrado na vida, não sentiria necessidade de dizer mais nada. A poesia anda espalhada em todos. Minha empregada, outro dia, quando viu a televisão começar a cair, pegou-a na queda e explicou:

- Eu peguei ela na flor do ar.

Posso dizer o mesmo na minha técnica. Mas ela tem isso inato.

O verdadeiro poeta não é o que tem o dom. Dom todo mundo tem. O dom mais a experiência, mais o gosto dessa expressão é que fazem o poeta. ("Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não olhes no chão o poema que se perdeu.")

É atrás dessas explicações que Drummond esconde sua grandeza verdadeira. Não é somente grande no verso. Na prosa, também, faz milagres. Tem maneira de dizer muito sua.

Ainda está convalescendo da gripe que o atacou e fala do vírus da gripe "esta porcariinha tão mais sutil que o micróbio, o ambíguo vírus que não é carne nem peixe, e que chega a cristalizar no organismo, como os inquilinos de apartamentos vendidos; o que se sabe de positivo a seu respeito é que é um refinado calhorda". Viu alguém melhor definição?

Falando do Rio de hoje, diz: "Compadre: escrevo-lhe sob a lanterna de pilha, pois não há certeza de que amanhã possa fazê-lo à luz do sol. Haverá sol?"

Chega a prodígios quando fala do pão de hoje, o antipão: "O pão de pau, contudo, ainda é pré-pão. Dele sairemos para o pão plástico ou pankex. E com as cores fascinantes que têm hoje os plásticos, os parquês vinílicos e os materiais de construção em geral, o pão eternil policromo e arrebatador."

- Somos casados há trinta e oito anos, me diz dona Dolores. - Carlos ainda era estudante.

O olhar que dirige ao marido revela a harmonia em que vivem. O poeta corrige:

- Quarenta e três. As mulheres têm sempre a mania de diminuir a idade em tudo. E, com ternura, para a esposa:

- Você não contou os cinco de namoro.

- Nós nos conhecemos num cinema. Naquele tempo, em Belo Horizonte, não havia outro lugar pra gente se conhecer. Aliás, minto: havia a igreja. Mas naquele tempo eu era anarquista. Anarquista não podia ir à igreja, podia? ("Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe bondes, ônibus, rio de áço do tráfego.")

- Nunca atropelei ninguém, nem nunca fui pisado. Não havia pedra alguma em meu caminho. Todas as coisas na vida me vêm sem eu pedir. Tenho muitos amigos e gosto de falar deles.

Olho Drummond (e ... curioso!) Augusto Frederico Schmidt, de corpo todo matéria ... é espiritualista. Carlos Drummond de Andrade que é só alma e sombra ... é materialista.

- Sou materialista com algumas nebulosas. Vivo perguntando-me coisas. ("Tudo é possível, só eu impossível. Sinto que nós somos noite, que palpita­mos no escuro e em noite nos dissolvemos. Começo a ver no escuro um novo tom de escuro. Sou apenas um homem. O essencial é viver!")

Materialista que vive perguntando a José Olímpio: "Será que existe o lado de lá?"

- Eu não fui o menino quieto que muitos supõem. Pelo menos em Belo Horizonte e depois. Quando ali cheguei, havia um grupo de transviados da e dedicavam às coisas mais estranhas: a gente vivia arrancando placa de médicos e fazendo entrerro de delegado. Uma noite fiquei danado porque a turmanão me convidou. Reclamei, desapontado: "Vocês todos saíram no jornal e meu nome nem apareceu!" Era uma desmoralização.
Prossegue, enquanto, para surpresa minha, me serve conhaque. Nunca imaginei Drummond, que não fuma, tomando conhaque.

- Naquele tempo, no Restaurante Colosso, de Belo Horizonte, a refeição custava dois mil-réis. Papai era seco por fora, mas doce por dentro. Pra ter dinheiro pros meus gastos particulares comecei a achar que a comida de casa não prestava e pedi dinheiro pra comer no Colosso. Papai me dava dinheiro pro almoço e pro jantar, mas eu só jantava. Um dia ele explodiu. Eu me fizera tão magro que parecia personagem de Josué de Castro.

- Eu era um adolescente anarcóide. Hoje ninguém diz, me vendo já com esta idade e com este jeito. (Do lado esquerdo carrego meus mortos / Por isso caminho um pouco de banda.) Vou envelhecendo. Os meus vivem sessenta e poucos. Estou velho (Há muito suspeitei o velho em mim / Ainda criança já me atormentava; Vai-se-me a vista assim baixando / ou a terra perde o lume?).

Mílton Campos (que não é escritor mas produziu um belíssimo soneto sobre Camões), Abgar Renault, Gustavo Capanema, Alberto Campos, João Alphonsus, Rodrigo MeIo Filho, depois Ciro dos Anjos, me ajudaram muito. Nos reuníamos no Café Estrela, pro choque e pra média. Cada um fazia a crítica honesta do outro. Abgar escrevia versos que ele mesmo recitava nos salões e que faziam as moças se apaixonarem incessantemente.

Um dia cometi um soneto. Cada um deles leu e me olhou com uma cara muito desconsolada. Nunca mais fiz soneto. Marchei para o modernismo.

Muito modernista deve ter nascido assim. Eu, por exemplo, tinha um terrível sentimento de infelicidade porque não sabia fazer versos como todo mundo.

- Ao Mílton Campos devo o conhecimento de Anatole France. Pra nós, na intimidade, era o Anatole, pra cá e pra lá. Nosso quartel-general era a Livraria Alves, de Belo Horizonte, com seus caixotes de livros de novidades francesas. O Capanema comprava logo os melhores. Depois descobri que dava aulas particulares a vinte mil-réis. Mário Casassanta, Pedro Nava, Emílio Moura eram outros amigos, todos tolerantes com minhas besteiras.

Uma pausa:

- Eu sou do tempo em que professor era mestre. Cantava mal. Não ousava abrir a boca nem para o Hino Nacional. Minhas preferências musicais são modestas: me encanta a música de realejo. (Uma coisa triste no fundo da sala / Me disseram que era Chopin.) Mas como eu ia dizendo ... (ou não disse ainda ?) ... Havia poucos colégios em Minas. Papai achou que o Anchieta, de Friburgo, seria bom para mim. No primeiro dia, logo de saída, pra não perder tempo e chamar atenção sobre mim, me declarei, nada mais nada menos, anarquista. Eu nem sabia direito o que isso era. Naqueles dias se jogava muita bomba na Catalunha. Eu achava lindo esse negócio de jogar bomba. Enfrentei a caçoada dos colegas. Me deram logo o apelido de Anarquista. Eu era tratado por esta alcunha ou então por 74. Esse negócio de ser número me horrorizava. Na correspondência pra casa sempre censurada, falava do ambiente. Tive um incidente com um professor de português, Guedes, que me mandou sair da sala. Naquele tempo o importante não era a instrução. Era o comportamento. Diante de toda a classe, o aluno era desmoralizado. O 74 teve quatro em comportamento ... por comiseração. Eu reagi. Queria a nota justa ... sem comiseração alguma.

Fui expulso, perceberam em mim o germe do anarquista. Você não calcula, seu Bloch, o que sofri de pesadelos por causa dessa expulsão

Homem de rara agudeza e de imensa cultura, Drummond despista: - Eu, desde menino, gostava muito de ler. Em 1913, papai mandou buscar e chegou a Itabira, em lombo de burro, a famosa Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Com sua leitura me considerei o cidadão mais culto da cidade. Meu irmão José, dono da metade da biblioteca, então a perdeu para mim, porque o venci numa discussão. Até hoje a conservo. Meu acervo de cultura era essa biblioteca. Dava pro rapazote brilhar. Sabia um pouco de tudo. Aquilo me abriu a janela para o mundo. Um irmão meu ainda me mandava revistas e jornais do Rio, além das formigas e abelhas de Maeterlinck.

Drummond nunca viajou. (Preciso fazer um poema sobre a Bahia / Mas eu nunca fui lá.) Para ele o mundo acaba em Buenos Aires. Três netos e três viagens. Pronto.

- Só mesmo minha filha e meus netos me levariam a viajar. Nunca fui à Europa.

Conta-me histórias de seus netos:

- Carlos Manuel, muito preocupado com a vida, que ele imagina se estender até os cem anos, diz, um dia, filosoficamente. "A vida é curta mesmo! Tenho sete anos ... dentro de noventa e três anos me metem no caixão e fim!" Num domingo foram ver aviões rompendo a barreira do som. No domingo seguinte os netos souberam que a prova ia ser repetida e um deles se espantou: "Vão romper de novo? Já a consertaram?"

Drummond recorda Buenos Aires:

- Tive a ventura de viver, ali, um momento de glória. Entrei na Calle Florida, pra fazer a barba. O barbeiro me olha e diz: "O senhor é um poeta brasileiro, não é?" Fiquei feliz. Que celebridade! Conhecido até pelos barbeiros de Buenos Aires! O meu ego começou a inflar de orgulho, quando o homenzinho pica o balão com alfinete: "Eu reconheci logo o senhor. Vi um retrato seu pintado por aquele Portinari, em casa de seu genro, na Calle Arroyo. Eu faço a barba dele, também."

- Pouco depois (ironia do destino), entre intelectuais que homenageavam, numa livraria, o poeta espanhol Rafael Alberti, antifranquista exilado em Buenos Aires, ninguém me reconheceu.

Viagem se associa a poema do avião. Pergunto: - Drummond, você tem medo de avião?

Ele me olha, com aquela chaminha mansa escondida por detrás dos aros de tartaruga, e explica:

- Não, Bloch. Tenho medo de todos os meios de transporte, inclusive o avião. Há muita coisa que eu admiro muito. E gosto de admirar. Você sabe? Em geral a literatura não conduz à boa conduta moral. Escritor se junta pra falar mal dos outros. Entretanto, nem padeiro fala mal de padeiro.

Drummond me fala de suas admirações e alergias:

- Leio e releio Machado de Assis desde adolescente. Mas com medo. Ele me impregna tanto que tenho medo de plagiá-lo involuntariamente. Realiza a literatura que eu gostaria de ter feito. É discreto e profundo. Minha admiração por Machado é tremenda. Já o Euclides da Cunha tem o tipo de estilo que me desagrada, cheio de riquezas verbais que, para meu gosto, não funciona. Admiro-o, mas não me aproximo dele. Admiro com raiva. E antípoda do meu gosto. Gonçalves Dias me satisfaz mais, muito mais, que Castro Alves. Gonçalves Dias é mais próximo de mim. A gente julga o valor das coisas pelo gosto que tem. As condições sociais de Castro Alves desapareceram. Quando ele é lírico me agrada muito, mas não é meu poeta de cabeceira.

Recordo, neste instante, o que Drummond havia escrito em carta: "A melhor maneira de admirar Castro Alves é não imitá-Io. Castro Alves é fascinante como mau exemplo. Ele resiste até os amigos. Há poetas que se impõem à nossa admiração, especialmente quando não queremos admirá-los."

- Prossegue:

- Guimarães Rosa, para mim, continua admirável. Por mais que ele tenha em boa conta a originalidade de seus processos literários, vai muito além do seu próprio julgamento. Acho que "ele é um louco que pensa que é Guimarães Rosa".

Quando vim para o Rio, trouxe uma admiração infinita por Alvaro Moreira. Achava bonito como ele escrevia e me encantavam, principalmente, suas reticências. Aquelas reticências ... pareciam penumbra ... coisa esmaecendo ... surdina ... Quando aqui cheguei, em 23, a primeira coisa que fiz foi procurar o Alvinho em "O Malho". Me deu um livro, com uma dedicatória em tinta roxa. Eu achei aquela tinta roxa o máximo! Depois começaram a sair coisas minhas no "Para Todos". Quando eu era publicado, ficava andando, com a revista debaixo do braço, com a esperança de que os transeuntes, através de um raio X especial pudessem ver. Tinha a impressão de que era um grande escritor.

Quando se toca em Manuel Bandeira, Drummond é todo enlevo:

-Bandeira é mais velho do que eu. Aprendi a fazer versos através dos versos dele. E um homem excepcional. Os poetas, em geral, ou morrem aos vinte e poucos anos ou atingem os cinqüenta e deixam de escrever. Um homem de setenta e sete anos, escrevendo com a graça do Bandeira, é algo de assombroso. Ele é uma espécie de arco-íris na poesia brasileira. Abrange todas as experiências ... até mesmo o concretismo! Mário de Andrade fez bons poemas, mas era revolucionário. O Bandeira é esclarecedor. (Lembra-me o João Condé que o Drummond, que também é caricaturista, já desenhou capa de livro de Bandeira.)

Diz-me Manuel Bandeira:

- O Drummond é o maior poeta que o Brasil já deu e reconheço sua superioridade sobre mim. De nós dois, o poeta moderno, o que captou a complexidade do momento presente e a transmite como ninguém é o Carlos.

- Bandeira, por que é que o Drummond não entra para a Academia?

- Por várias razões. Em primeiro lugar, não está no feitio dele visitar acadêmicos. Depois ... ele nunca fez um discurso de verdade em toda sua vida. Além disso ... temos a tragédia do fardão! Ele tem é susto de fardão. Você já imaginou o Carlos vestindo aquilo? Eu mesmo passei por este problema. Não sei se você sabe que eu não tenho fardão: não queria comprar porque só o usaria no dia da posse e não queria que os meus amigos me oferecessem. O Otávio TarquÍnio me arranjou emprestado com a viúva de João Luís Alves. Nunca mais o vesti. Aliás, o Macedo Soares me ofereceu um belíssimo colar. Nunca usei.

E concluiu sorrindo:

- Se eu tenho medo do fardão ... calcule o Drummond!

A palavra genial pode ser usada em seu sentido mais amplo, com todo seu peso específico, quando se trata de Drummond. Banalizaram-se tanto os adjetivos que genial passou a ser qualquer pingente da glória. E o próprio quem aconselha.

- Se hesitar entre dois adjetivos, jogue ambos fora e use o substantivo.

Outro conselho revelador !

- Não responda a ataques de quem não tem categoria literária; seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria ... não ataca, pois tem mais o que fazer. (Recordo o poema-orelha: "Esta é a orelha do livro por onde o poeta escuta/se dele falam mal/ou se o amam./lNão me leias se buscas/flamantes novidades/ou sopro de Camões ... "..."a poesia mais rica é um sinal de menos".)

Drummond diz, com seu falar precipitado, taquifêmico:

- Pedro, se se parar de fabricar automóvel e produzir alimentos... o mundo acaba. Mas se parar de produzir sonata ou poema... o estoque dá para alimentar a humanidade para o resto da vida. Atrás dela já estão Goethe e Beethoven, compreende? O homem já se realizou na arte. O homem já disse tudo o que podia dizer. Onde outros colocam Deus eu coloco a obra de arte. Quem não acredita em Deus ainda pode acreditar em Mozart.

Aquele homem diz que não crê em Deus; entretanto, insiste com José Olímpio: "Será que existe o outro lado? Será que existe o lado de lá?" Suas conversas com o editor são infinitas. "Sua poesia se vende, Drummond" - lhe diz este. E Drummond: "Eu não quero a minha poesia mercenária."

Drummond renunciou a muita coisa na vida, por modéstia, humildade, timidez. Muita coisa pra ele foi como o seu verso: "boneca partida antes de brincada". O resultado das vivências e das frustrações nos dão esse homem singular, de uma grandeza humilde, que escapa ao nosso alcance. Envergonha-se como um colegial, quando colegiais, sem a menor vergonha, dele se aproximam e expressam sua infinita admiração. Aí Drummond não sabe como desaparecer. O mestre das palavras não encontra palavras. Reage de maneira peculiar. Ele e José Olímpio são dois críticos de cinema frustrados. Um dia, Drummond, tendo visto Morangos Silvestres, ficou tão empolgado, mas tão empolgado... que foi até o. Leblon e voltou... a pé. Outro teria feito comício ("Já me quiseram fazer deputado, mas eu não saberia falar aos eleitores... e não teria mais de três votos"), gritado, se embriagado. Drummond, não. Andou.

- Gosto tanto de cinema - me explica ele - que quase não vou. Fico indignado quando assisto a um mau filme.

Há poucos dias estavam Drummond e José Olímpio num bate-papo, quando o editor lhe diz:

- Drummond, eu acho que estou ficando burro:

O poeta se alarma.

- Sim, Drummond. Eu estou ficando burro.

- Burro por quê? - quer saber o outro.

José Olímpio baixa os olhos e confessa sua imensa vergonha, meio gaguejante: - Sabe, Drummond? ... Eu fui ver ... sabe? ... Ano Passado em Marienbad ... e não gostei.

Drummond o analisa com piedoso olhar e consola:

- Não, José Olímpio. Você não é tão burro assim. E confessa, sem o menor pudor:

- Eu também não gostei.


Entrevista de Pedro Bloch, publicada originalmente na revista Manchete, nº 582 de 15/06/1963 e republicada no livro "Pedro Bloch entrevista". Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989 (fonte: Tiro de Letra)