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José Gil (2003)

Jacinto Godinho: Enquanto pensávamos que iríamos viver num tempo de revolução das sexualidades, de libertação das sexualidades, num tempo em que as sexualidades eram usadas para tudo e mais qualquer coisa, para definir as identidades, para redefinir a nossa ligação ao corpo, surgiu, de repente uma contracorrente cultural fortíssima. Uma contracorrente em que parecem ter explodido as possibilidades mais perigosas dessas sexualidades antes tidas por libertadoras. O que é que pode explicar essa contracorrente?

José Gil: O que pode explicar isso é muito difícil de dizer porque o que podemos constatar é precisamente o facto global e talvez haja aí uma causa. Um facto global que se estende a muitos domínios e não só ao da sexualidade. Parece-me que o que nós podemos descrever neste processo  (não apontar como causa) é um fenómeno que aparece em várias circunstâncias históricas, de vez em quando surge, é uma espécie de antinomia que se cria com representações macroscópicas do bem e do mal. Se você não é pelo bem, assim definido, então é pelo mal e não há outra maneira de pensar. Choca sempre o tipo de exemplos que vamos dar. Vamos pensar em três. O primeiro exemplo é o dos direitos humanos, em segundo lugar a pedofilia e em terceiro lugar a sexualidade de que falou. Para ser rápido, repare, quando aparece um horror macroscopicamente pensado como o gulag, com os cinquenta milhões, ou sessenta ou trinta, não interessa, milhões de mortos no gulag, ruiu a possibilidade de se pensar num tipo de liberdade que não fosse jurídico-universal e criou-se então a ideia ou... ressuscitou-se, retrabalhou-se a ideia de direitos humanos. Então os direitos humanos começaram a ser uma arma, uma arma contra a qual não se pode ir. Quem é que é contra os direitos humanos? Se você é contra os direitos humanos é um bárbaro. Mais! Os direitos humanos são uma arma que têm uma certa eficácia. O que é paradoxal, porque é um princípio que no fundo serve para pouco e através dos direitos humanos, como você sabe, ocultam-se as práticas mais fraudulentas, mais corruptas no exercício prático da ajuda, em nome dos direitos humanos. Serve, por exemplo,  aos povos desfavorecidos ou contra as ditaduras, etc. É impossível não ser pelos direitos humanos, simplesmente nós deixamos de poder pensar um outro tipo de direitos, os direitos do indivíduo na nossa sociedade que eventualmente se opõem às leis que regem a sociedade democrática. Defender os direitos dos indivíduos seria então opor-se à democracia, e defender as ditaduras, o fundamentalismo, a intolerância, etc. Fomos encurralados, entalados num double bind. Pego no segundo exemplo, e estou a ser muito sumário e rápido para que se compreenda melhor. A pedofilia é um exemplo brulant. A pedofilia... em Portugal, na França, na Bélgica, etc... a pedofilia tornou-se crime mediatizado. Criou-se uma imagem macroscópica desse crime, quer dizer temos aqui a barbárie perfeita. Se você não é contra a pedofilia, então você é um criminoso e está a defender os pedófilos e deixa de poder pensar na própria sexualidade da criança. Deixa-se de poder pensar numa formação da sexualidade da criança em que o adulto intervenha sem que haja... tudo o que seja violência, etc. Os conceitos aí são extremamente fugidios, deve-se pensar esse fugidio dos conceitos, o que é complacência, o que é condescendência, o sentimento da criança ou não, quer dizer, o que é o abuso... Repare, nada disso é definido como deve ser e pensado pela lei. Deixa-se de poder pensar. Criámos uma antinomia entre o bem e o mal, e você é entalado entre os seus dois pólos. Estamos a regredir em relação ao Freud . Isto corresponde à nossa sociedade normalizada portuguesa e eu acho isso gravíssimo. Se você perguntar, mas então é pelos pedófilos? Eu digo: - Mas não é essa a questão, claro! Contudo, sou levado, nas condições actuais, a dizer apenas uma parte do que penso – e penso-o realmente – a saber que a violência pedófila feita a crianças – às vezes com dois meses, imagine – é um crime hediondo, horrível; que as redes pedófilas deveriam ser persistentemente perseguidas, destruídas, condenadas – e sabe que não é o que acontece. Então? O discurso médio ou mediatizado sobre a pedofilia está armadilhado: por um lado condena-se verbalmente, e o crime mundial – que chega a homicídios de crianças, não falando em todo o tipo de violências e brutalidades – continua impune; por outro lado, deixa-se de pensar na sexualidade das crianças – como se elas não tivessem sexualidade! – cria-se uma barreira de silêncio a qual, precisamente, vai permitir o discurso médio e a impunidade dos pedófilos. Como se, agora, falar da sexualidade das crianças fosse um apelo à pedofilia… Não falar nisso é, pois, o que permite supostamente condená-la.

J. Godinho: Essa é que é a questão...

J. Gil: ... a questão piège. Isto é, uma questão armadilhada...

J. Godinho: Isto é portanto uma questão armadilhada?

J. Gil: Isto é completamente armadilhado percebe? Porque se torna evidente que, tal como as coisas estão, não se pode pensar de outro modo. Mas eu não estou de acordo como as coisas estão. Simplesmente, quero pensar uma sexualidade extremamente forte e extremamente alegre e como potência de vida que é extraordinária nas crianças e nós deixámos de saber como lidar com isso, com a nossa própria sexualidade, percebe? É verdade que existe a psicanálise. A psicanálise que, como dizia Foucault e é impossível pensar nestas coisas sem pensar no Foucault, ajuda os psicólogos a elevarem-se ao estatuto de possuidores de direito do saber da sexualidade, que é o saber da personalidade da criança. Aí o Freud foi um grande descobridor e um grande entalador do pensamento quando caracterizou a criança como um perverso polimorfo. Ora, essa concepção traz  certos perigos para a relação do adulto com a criança que é uma relação erótica, não esqueçamos isso. Estou-me a lembrar, nos escritos do Foucault, de uma petição, de um homossexual, Hocquengheim, que já morreu, e do próprio Foucault, mais outros, e assinada pela Françoise Dolto, católica, psicanalista de crianças, talvez a mulher que no mundo melhor conhecia as crianças e que assinou contra uma lei que fazia...

J. Godinho: ...posição essa que está a ser alvo de grande polémica em França!

J. Gil: Portanto, e estou de acordo consigo, como responder à sua pergunta? Parece-me que há circunstâncias em que -  quando se criam imagens, através de discursos,  imagens macroscópicas antinómicas do bem e do mal – o pensamento deixa de existir.

J. Godinho: Eu gostaria de tentar perceber um pouco esse piège do binarismo que perante determinadas imagens ou acontecimentos do horror como explicou não permite uma terceira alternativa. Não permite uma terceira via. O que é que fará com surjam estes fenómenos  tão fortes que provocam armadilhas no pensamento? Será por, em relação a eles, termos radicalizado de tal forma o pensamento para um dos extremos que o outro depois irrompe com violência não deixando criar essa terceira alternativa? Ou seja, será que o discurso liberal sobre sexualidade de há vinte, trinta anos atrás não esqueceu as possibilidades mais perigosas e deixou que elas agora irrompessem com violência incontrolável?

J. Gil: É certamente verdade o que diz. Acho é que há outros factores banais mas que modificaram muito as coisas. Citemo-los; primeiro a pílula, depois a sida. Isso modificou os comportamentos sexuais, como toda a gente sabe. É a banalidade mesmo. Agora o que me parece é que nós temos de pensar um outro aspecto que contribui para esse fenómeno. É o da mediatização. E na mediatizaçao eu quase que incluo o fenómeno da erotização ou da cinematografia erótico-hollywoodiana (não estou a falar na pornografia) que cria precisamente uma imagem em que a sexualidade tem uma relação com o poder. Isso obriga a um certo controlo dos corpos e depois tem aspectos complexos, quer dizer, o nosso corpo, não só o nosso corpo mas o nosso espaço de corpo, o nosso espaço de pensamento, está-se cada vez mais a retrair, como se diz, a encolher. Enquanto há uma espécie de publicitação máxima do espaço privado, o espaço privado vai-se recolhendo na sua pequenina concha. Ora, o que é que acontece? Acontece, aí, um efeito de poder sobre a sexualidade. Há um desaparecimento dos corpos e há ao mesmo tempo uma espécie de procura desesperada do que é ainda um corpo, e do que é uma identidade corporal através de um certo tipo de sexualidade e de erotismo que passa no cinema, como passa nos media, como passa na publicidade. Quer dizer, é ao mesmo tempo um duplo efeito de desaparecimento do corpo e de aparecimento de uma imagem de um corpo, supostamente erotizado que não o é; efeito de erotização e procura pelo espectador, por todos nós, de um certo tipo de realidade corporal última que se terá refugiado no sexo, naquilo que nós chamamos a sexualidade e que quase se reduz à genitalização do sexo, quando o sexo não é isso.

J. Godinho: Há uma espécie de efeito de aprisionamento das sexualidades numa imagem do corpo, numa fortíssima imagem do corpo? Uma imagem que não potencia o corpo próprio mas que o reduz?

J. Gil: Absolutamente. Essa imagem combina sexo e violência. As imagens de violência, como as de sexo, pretendem, paradoxalmente, superar a anestesia dos corpos, indo para além do limiar de insensibilidade a que eles chegaram. Mas contribuem ainda mais para a anestesia emocional, para a neutralização do espectador diante do sofrimento dos outros, etc. O que leva a que se levante mais a fasquia, e a violência e o sexo violento atinjam graus in ac reditáveis. Mas ainda não vimos tudo… Às vezes, surgem outras contra-contra-correntes. Eu queria lembrar-lhe aqui, não sei se viu um filme que vai contra, não é uma terceira via como disse, é outra coisa. É uma diferença que é criada em relação a este tipo de corpos, a este tipo de erotismo, a este tipo de sexualidade. É um filme que teve um grande sucesso na Europa, em França, em Paris, e não foi através da publicidade, foi pelo telefone árabe como eles dizem, quer dizer “de boca a orelha”. Chamava-se, chama-se Café Bagdad, não sei se viu, em que o erotismo passava, um erotismo fortíssimo, passava pelo corpo de uma mulher gorda, mas maravilhosamente gorda. Aquilo é tão bem feito que o corpo e a vida são erotizados em todos aqueles homens e mulheres que viviam numa espécie de motel no deserto. Tem que ver o filme. É um filme maravilhoso, maravilhoso, realizado há uns oito ou dez anos.

J. Godinho: Mas não deixa de ser estranho e curioso que entre todas as imagens possíveis do corpo, como esta que referiu, do corpo gordo e todas terão um erótismo bastante forte, se tenham, todas elas, reduzido a esta imagem do corpo hercúleo, limpo de impurezas, perfeito, que hoje em dia vigora com um efeito absolutamente demolidor sobre a identidade e a subjectividade. O que impôs esta imagem sobre todas as outras?

J. Gil: Isto tem a ver com a linguagem e tem a ver com o tipo de trabalho a que os corpos são sujeitos e aí temos que seguir em parte o método foucaultiano. Quer dizer o trabalho actual, é um trabalho que implica a produção de uma certa subjectividade. Onde fica o corpo? O que é o nosso trabalho hoje? Não estamos a falar de Portugal que é uma sociedade, para empregar esta tipologia foucaultiana/deleuziana, ainda disciplinária e já de controlo, em superposição. Suponhamos uma sociedade de controlo, ou seja uma sociedade dominada pelas novas tecnologias. O que é o corpo aí?  Como dizem todas as utopias das novas tecnologias que aparecem, o corpo desaparece, passa a ser virtual. Que é o corpo que está à frente de um computador, e desaparece? É um instrumento. Você poderia ter próteses e não dedos. E sabe que há um novo fenómeno social:  jovens que se fecham em casa diante do computador, milhares de jovens no Japão. Já  há isso também nos Estados Unidos. Bem, o corpo aí desaparece. Para responder à sua pergunta, de onde é que vem a produção dessa subjectividade, de onde vem o desaparecimento do corpo? Vem de uma, digamos, para empregar uma expressão antiga, de uma «estrutura de produção» que tem a ver com o universo das novas tecnologias, que vai ser o futuro. Universo no qual não haverá lugar  para o corpo. A menos que haja, da nossa parte, da parte das pessoas que podem pensar viver com um corpo, um corpo real, uma luta contra esse desaparecimento do espaço real do corpo, que é um espaço que tem a ver com a terra, que tem a ver com as cidades, que tem haver com o espaço real tal como o respiramos, não é? A produção de uma imagem do corpo hercúleo, perfeito, é uma reacção ao desaparecimento do corpo, mais a influência kitsch, e de todas as técnicas corporais de bodybuilding, etc. Ao corpo fragilizado, somatizador de todas as doenças psi de hoje, contrapõe-se a imagem de um corpo invulnerável, imortal, fonte inesgotável de energia. Mais um double bind que se nos propõe: ou és hercúleo, sexy, etc, ou serás doente, anémico, incapaz de “fazer f ace”, to cope – ou seja, um looser, um nada.

J. Godinho: Existe sobre a experiência  um equilíbrio que o corpo concreto, em todas as suas dimensões, consegue estabelecer e que este outro “corpo”, disperso, virtual, recomposto através das imagem fortes, não conseguirá?

J. Gil: Eu, sobre isso, tenho uma outra ideia, tenho uma ideia um bocado diferente, acho que a noção de corpo próprio é uma noção que se arrisca a ser pouco frutífera se não a modificarmos. Como sabe é uma noção que vem da fenomenologia. E se nós pelo contrário pensarmos diferentemente o virtual? E se pensarmos o corpo como o corpo real /virtual? Virtual porquê? Porque no seu corpo estão atravessando neste momento mil outros corpos, mil outros espaços de outras pessoas através daquilo que se chama o inconsciente, que se pode chamar um virtual inconsciente ou um inconsciente virtual. Quer dizer, e isto é uma banalidade, por mais isolados que nós queiramos viver como esses jovens do Japão, somos habitados e constantemente atravessados por outros. Isso não é uma intersubjectividade, não é uma intercorporeidade que supõe primariamente, dois corpos próprios que depois se ligam ou se comunicam. Não é comunicação, é outra coisa muito mais directa e, de certa maneira, profunda. Você é atravessado constantemente por uma série de linhas que são outros. Você, na sua própria subjectividade, é um constante devir. Repare, falámos na criança e na sexualidade da criança, porque é que a noção de perverso polimorfo na criança é uma enormidade? Porque precisamente, faz do corpo da criança e da sexualidade da criança uma espécie de imagem fechada em si, uma espécie de mónada, quando a sexualidade da criança é polimorfa porque está em constante devir, está em constante investimento, está em constante transformação e auto-devir. A criança investe eroticamente nos objectos, nos pais e tudo isso é um investimento de um campo espacial e de um campo temporal através dos quais ela se forma. Não pensar, por exemplo, no erotismo que atravessa esse investimento que é potentíssimo na criança, é deixar de pensar na formação da criança. Ora, hoje quem vai falar na formação da criança em Portugal, dizendo: “O discurso contra a pedofilia está a fazer esquecer as crianças, a fazer de todos os adultos um perigo potencial”?  Porque se eu toco numa criança… É como o assédio sexual e mil coisas assim que aparecem. Sabe, este discurso que estou a ter é um discurso que se alguém o tem na praça pública é imediatamente posto na cruz, é crucificado. Não se pode falar desse modo, nesta sociedade normalizada. Portanto, quando você diz: “Porquê isto?”, tem de se perguntar: “A quem serve isto?” e então entramos na relação entre sexualidade e poder tão bem estudado por Foucault.

J. Godinho: Como alterar isto? E para enquadrar um pouco a pergunta gostaria de tentar perceber se também o próprio pensamento não terá algumas responsabilidades? Porque ao o desconfiar de tudo o que era racional, em vários momentos do século vinte não terá potenciado uma exagerada e utópica “autodeterminação” do sujeito fixada nas, demasiado perfeitas, imagens do corpo? Ou “ser-pelo-corpo” e “ser-para-o-corpo” esquecendo ou descuidando também esse outro lado mais difícil, mais estratégico, se quiser, que é a relação com outros, o estar-na-relação?

J. Gil: Com certeza que tem razão, infelizmente nós só pensamos e temos que pensar nas coisas quando elas não funcionam. Se tivéssemos um funcionamento, entre aspas, da relação de corpo que fosse “visível”, e “visível” significa que estivesse na direcção da vida e não na direcção nihilista, não pensaríamos, agiríamos, como uma criança que não pensa no corpo; é o adulto que a faz pensar no corpo. “Olha aqui, estás sujo!” e isso corta qualquer coisa... Nós sabemos, sabemos que isto é inevitável mas temos de pensar nessas aporias constantes. Tem com certeza razão! Há uma responsabilidade do pensamento. Estou a compreender a sua ideia. Como se o pensamento moderno, em todos os campos, o vanguardismo na arte e na literatura, etc, com as suas experiências-limite tivessem desencadeado forças que não souberam controlar. Não se deu demasiada importância a Sade, a Masoch, ao “desregramento de todos os sentidos”, para citar Rimbaud? Não foi a permissividade, e Nietzsche, e Foucault, e Deleuze, e a antipsiquiatria e tudo o resto que são responsáveis por tudo o que acontece hoje? Como se os modernos e modernistas (a que os anglo-saxões chamam pós-modernos) andassem a brincar com o fogo, numa grande inocência culpada. Pensar isso é entrar num grande equívoco. Infelizmente é o que pensa muita gente. E não podemos discutir isso agora, levaria muito tempo. Mas como sair hoje destes impasses? Não é só com pensamento, mas também com pensamento! É por exemplo fazer o que nós estamos a fazer agora, ir contra... ir contra... o inaceitável mas que é no fundo tolerado por uma passividade e uma cobardia sociais imensas. É por exemplo fazer, olhe cito-lhe um caso, não sei se deva citar o nome na sua revista, é o caso do Miguel de Almeida...

J. Godinho: Miguel Vale de Almeida ...

J. Gil: ...Vale de Almeida, que casou agora, é um homossexual! Aí está uma resposta à sua pergunta: “Que fazer?” Fazer o que ele faz! Fazer o que ele faz que é de uma coragem extraordinária, não é?  Em Portugal, como noutros países, afirmar assim a sua homossexualidade. Aliás a homossexualidade é, como sabe, em Portugal, um estigma ainda. É um estigma tal que, repare, nem a mediatização o pode ainda utilizar. Podemos imaginar num estado avançado da mediatização e da exploração de tudo, do aberto completo, que o casamento do Miguel Vale de Almeida seria aproveitado mediaticamente, extraordinariamente. Podia ser. Não foi! Não foi porque ainda é escândalo! Porque ainda é impossível e insuportável! Porque vai contra os medos e todos têm medo de quê? Tem-se medo do desejo da criança. A sexualidade é uma questão de desejo, não é uma questão de prazer, somente, e há toda uma complexidade de noções que temos de pensar. Primeiro, aliamos muito ainda, e não só em Portugal, a sexualidade à ideia de Freud de que a sexualidade tem um fim e está ligada a uma prática final que justifica tudo - a reprodução. Em segundo lugar, a sexualidade é heterossexual, heterossexual e adulta, pronto! Em terceiro lugar, a sexualidade não é o erotismo! Em Portugal não se sabe o que é o erotismo. Julga-se que o erotismo é uma prática, sei lá... preliminar, do quê? Do coito, da relação sexual! O erotismo, você olha para a brincadeira de uma criança com os seus amigos ou pais, ela está em puro erotismo. Não estou a fazer o elogio do pan-erotismo, não, mas ali, na criança, aquilo é erótico e temos que pensar o Eros de uma maneira diferente da ideia de Freud, etc.

J. Godinho: Gostaria de voltar a esta questão dos medos, dos medos gerais, dos medos da população. Será que esse medo é apenas um medo moralista, o medo em si, ou seja o medo de arriscar nas potencialidades, nas possibilidades mais difíceis como por exemplo, aceitar o desejo da criança ou aceitar a homossexualidade, ou por outro lado esse medo poderá ser justificado, como o medo das potencialidades mais perigosas, como o medo da predação? Ou seja, será que teremos por um lado essa coisa que é o desejo da criança mas não teremos por outro lado essa outra coisa difícil de gerir e de governar que é o desejo da predação? O desejo de transformar a sexualidade, como exercício do poder, numa relação mestre escravo?

J. Gil: Ou eu não estou a compreender a segunda parte da sua pergunta ou estou a ac har estranhíssimo que o diga porque o que me parece que existe na sociedade portuguesa, mas não só, é essa relação de predação. Quer dizer, se nós olharmos para um casal heterossexual, não falarei aqui do homossexual porque conheço mal e aliás, casais homossexuais há poucos, há muitos mas escondem-se, ou não são públicos. O casal heterossexual é uma relação de predação, é uma relação de domínio. Eu vi uma estatística  numa revista, quando há mais de dez anos a li, não vou dizer que revista era, que mais de oitenta por cento das mulheres portuguesas eram batidas e em todas as classes sociais. E não se sabe! Nós vemos as caras dessas pessoas nas revistas de moda e elas são batidas. Portanto a relação de predação está aí! O medo não vem daí! O medo vem de... olhe como as mulheres interiorizaram o discursos dos homens! Agora aparecem uma ou duas pessoas a queixarem-se que foram batidas não é? Onde estão as oitenta por cento ou mais? O que é isto? É considerar a mulher como o quê? Portanto não falaremos em sexualidade normalizada porque o bater e a relação de poder têm a ver precisamente com a sexualidade. Há uma coisa linda, uma frase linda, assim uma espécie de iluminação do Kant, na antropologia filosófica do Kant quando ele diz que o casamento é a compra dos órgãos genitais da mulher pelo homem. Ele aí teve uma intuição única e genial no campo das relações humanas concretas. É isso, e continua a ser! Portanto é estranho que me diga isso. Os medos são medos que vêm da sociedade portuguesa, mas também do modo como se tece uma sociedade em geral.

J. Godinho: Portanto há uma matriz fortíssima da predação que já formatou a sexualidade historicamente,   a sexualidade portuguesa, a sexualidade mediterrânica e que resiste a todas as possibilidades de equilibrar essa relação?  Ou seja resiste ao abrir a relação sexual a outras possibilidades diferentes?

J. Gil: Matriz ou modelos vários que se tem que conhecer. Nós próprios não sabemos quais são eles porque o campo está fechado para os explorar. Está fechado juridicamente, está fechado socialmente, está fechado por aquilo que se chama as mentalidades, está fechado pelas instituições, etc. etc.

J. Godinho: Isso, de alguma forma, está de acordo com um facto, que eu próprio presenciei em algumas reportagens que fiz. Ou seja a pedofilia e o incesto não são invulgares na sociedade portuguesa. Existem historica e subterraneamente mas de forma silenciada. Talves seja até o silêncio mais bem guardado. Não é portanto novidade que o fenomeno exista. O que é novidade é o silencio ter-se quebrado.

J. Gil: Se me permite, vou alargar a geografia de que falou. Não é a sociedade mediterrânica em especial. Ainda ontem estive com alguém que me falou do incesto na Holanda. Em todas as grandes cidades da Europa, nos seus subúrbios, sobretudo, e eu conhecia, por exemplo, Paris, o incesto é uma prática corrente. Como você diz, silenciada, mas a pedofilia também, etc. etc.. E porque é que isso se admite? Repare, nós falámos da relação de poder, só queria dizer uma coisa, o que é que está em jogo aqui nesta questão da pedofilia?  Mil coisas! Mas também uma relação de poder, uma relação de poder tal que nunca será desvendada porque, como se diz, e para empregar uma expressão dos políticos, não se irá nunca até às “últimas consequências da verdade”. Repare como este discurso: “Temos que ir às ultimas consequências!” é um discurso hipócrita, é um discurso que é de muito boas intenções, mas sabe-se que não se concretizará, que não se fará nunca isso. Não se falou, na televisão, num barco? Repare, não são os camponeses, os pobres, não são esses que andam nesse barco, que apanham miúdos na Madeira, que andam por aí, não é, com práticas pedófilas, criminosas, em que se matam crianças também, etc. etc.. Isto também tem a ver com uma relação de poder.

J. Godinho: Exactamente por essa relação de poder ser uma relação desequilibrada, porque  normalmente é a criança que silencia, neste escândalo da pedofilia surge como novidade  o facto das crianças terem começado a falar. Tudo acontece aliás em volta da proteção da sua fala e das pressões para as voltar a silenciar. O discurso das crianças não será uma possibilidade para abrir esse campo do poder, da normalização? Não será essencial proteger o discurso das crianças?

J. Gil: É preciso dar-lhes a palavra. Dar a palavra às crianças. Simplesmente quem é que escuta seriamente essa fala, quem a interpreta e quem abre o campo dessa fala? Repare nos nossos programas para as crianças da televisão. Mas é uma pura miséria! Pura miséria! Não é só Portugal. Eu posso dizer isto porque tenho como termo de comparação um programa absolutamente extraordinário para crianças, um  programa brasileiro muito conhecido. Mas quem é que pensa nas crianças? Agora fala-se muito nas vítimas, pois claro, diz-se que as vítimas agora vão ser tratadas... Mas antes, quem é que pensou na possibilidade de uma relação formadora? Numa relação, ponhamos esta palavra já tão pouco utilizada, livre? Uma livre expressão da sexualidade que tem de ser formada e portanto tem de sofrer as inibições necessárias para... etc. etc., mas que pode ser muito melhor do que formar crianças que vão interiorizar um medo, um medo as instituições, um medo da sua própria sexualidade, etc.

J. Godinho: Philipe Solers, em França foi um dos subscritores nos anos setenta de uma petição para a alteração da lei da sexualidade que proibia as relações com menores até aos quinze anos de idade. Essa posição foi agora at ac ada nesta onda de polémica que surgiu em França sobretudo depois do caso de Cohn Bendit. Sollers diz agora que efectivamente tinha cometido, na altura, uma certa ingenuidade. Em principio não renega agora nada do que afirmou sobre a  necessidade de um discurso mais aberto sobre a sexualidade da criança mas que o problema estaria em quem decide na relação. Quem equilibra essa relação criança/adulto?

J. Gil: Isso é um problema de uma complexidade e de uma dificuldade enormes. Tudo o que eu peço é que se abram campos em que isso possa ser pensado, discutido pelas educadoras, pelos pais. Que se abra esse campo. Que se pense na sexualidade da criança como um elemento vital para a sociedade e para vida da sociedade e para o seu futuro. Isto é importantíssimo. Parece muito utópico mas não é. É tudo o que eu peço. Bom, resta saber o que se pede. Não peço nenhum equilíbrio. Não sei o que é um equilíbrio possível. Porque é que o desequilíbrio tem de ser necessariamente mau. Porque é que não pode haver desequilíbrios dentro de um certo limite, que podem gerar equilíbrios maiores? Porque é que a instabilidade não pode ser uma fonte permanente de estabilidade criadora? Eu não sei. Sei que quando eu vejo uma criança de quatro anos, cinco anos, seis anos, sete anos, etc. penso sempre: “Nós não estamos à altura das crianças!”: não estamos, porque este miúdo de quatro anos que é absolutamente extraordinário ou esta rapariguinha, aos dezoito anos vai parecer, como se diz hoje, formatado. É uma pena, porque são gerações e gerações queimadas. 

J. Godinho: É esse espanto, esse toque no mundo que as crianças têm. Como dizia o Jacques Brel, temos que desaprender para voltar a apreender a infância.

J. Gil: Claro, como dizia o Fernando Pessoa, já agora. Toda a gente acha o Fernando Pessoa extraordinário quando fala da criança, o oitavo poema do guardador de rebanhos. Todo o aspecto do devir-criança que não existe só no Caeiro mas... ninguém toma a sério. Aquilo é poesia... não é a sério e o Pessoa vivia-a. Vivia-o como qualquer coisa que se passava no seu corpo, no seu espírito.

J. Godinho: Queria concluir mas sem deixar um certo aspecto da questão das sexualidades por tratar. Há  pouco estivemos a falar do retraimento. Pode ser essa a palavra em questão na intimidade. Ou seja, a intimidade que tem servido como equilibrador, o ponto  fundamental para equilibrar a sexualidade pessoal, está na sua opinião em retraimento não é? Pelo menos é o que vemos hoje na televisão, onde as pessoas, muitas  delas, deixaram de proteger a sua privacidade e têm até prazer em expô-la. Há também um fenómeno na Internet onde as pessoas fazem tudo em frente às câmaras pessoais. Despem-se, têm relações sexuais, põem as câmaras nas casas de banho, na sanita, etc, etc   Nestes fenómenos ainda estamos a falar de sexualidades, de erotismo, ou já de outra coisa completamente diferente? Que pistas podemos ter para entender este sujeito que assim se apresenta e assim se expõe?

J. Gil: Pois, eu tenho a impressão que aí se sobrepõem várias linhas. Várias linhas, umas de fuga, outras de sedentarização, se assim se pode dizer, mas não sei, ainda, pensar bem isso. Por um lado, há qualquer coisa na exposição, nessa exposição, que implica uma tal focalização, uma tal amplificação do grau da escala de exposição que acaba por rebentar com o sujeito. Quer dizer aquilo, o que possivelmente levou a tal pessoa a expor-se na casa de banho a fazer as necessidades ou a expor o seu corpo mais íntimo, pode ter sido ao princípio qualquer coisa em que a relevância era dada a um ego narcísico que se queria mostrar. Através de estratégias oportunistas, claro. Simplesmente, a exposição é de tal ordem amplificada, de tal ordem multiplicada na net que eu tenho a impressão que o sujeito ac aba por desaparecer aí, ou ficar na ameaça de desaparecer. A partir daí, talvez se possa fazer outra coisa. Porquê ? Tenho a impressão sempre que nós não estamos à procura  do prazer, estamos à procura é do desejo. Uma das ameaças maiores que pesa sobre nós, sobre aquilo que se chama a nossa identidade enquanto self, não enquanto eu, é a perda do desejo. Há uma perda generalizada do desejo e daí a genitalização da sexualidade quando o desejo não é unicamente genital, nem erógeno, de um corpo erógeno, é muito mais do que isso. É uma noção sobredeterminada, imensamente sobredeterminada, semanticamente, e pergunto se não haverá também aí uma procura de prazer. Procura de prazer é reapropriarmo-nos daquilo que é  da ordem do mais singular em nós, que é o desejo. É da ordem do mais forte porque o desejo é vital. Quer dizer, você não faz nada no pensamento sem desejo e há um erotismo do pensamento porque há um desejo no pensamento etc. Para voltar à sua questão, é evidente que o sujeito desses reality shows é captado numa rede que é o contrário de tudo isto, e que ele desejou ser captado! Produz-se aí o esmagamento do desejo, do erotismo, para a satisfação máxima do pior tipo de prazer! Bom, isto dava outra conversa. O desejo…

J. Godinho: E é preciso haver o outro também.

J. Gil: E é preciso haver o outro.

J. Godinho: E a questão parece-me ser também a perca do outro nos jovens que vivem fechados nos computadores em suas casas. Jovens que  recorrem a uma economia do choque para tentar revitalizar a ligação já que aparentemente perderam a cap ac idade, o domínio, a experiência de pelas vias tradicionais a conseguirem gerar.

J. Gil: Com certeza. Eu acho que nós não sabemos ainda o que vai produzir a tal sociedade das novas tecnologias, a dita sociedade do conhecimento, que é uma extraordinária expressão, porque esse conhecimento, se é uma sociedade do conhecimento, deixa de ser uma sociedade de prática. Vai ser uma sociedade tecnológica, o que é completamente diferente de uma sociedade de prática, onde  não haverá lugar, possivelmente, para um corpo vivo. Quero lembrar, e possivelmente serão as minhas últimas palavras, que assisti a uma apresentação de uma coreografia de Cunninghan pelo Cunninghan, no museu Guggenheim de Nova Iorque há três anos. Ele apresentava as suas coreografias virtuais que creio que mostrou aqui também no Porto, em Serralves, e uma rapariga perguntou no fim: “Mas então haverá dança, no futuro? Essa  dança não tem corpos, nós vamos deixar de ter corpos para dançar?”, e o Cunninghan deu uma daquelas gargalhadas célebres que ele dá e disse: “De maneira nenhuma, eu faço isso mas eu não posso imaginar uma dança sem corpos!”. Quer dizer, o desaparecimento do corpo vai encontrar resistências terríveis, precisamente naquilo que se chama vida.

Entrevista de Jacinto Godinho, Lisboa, 14 de Agosto de 2003 (fonte)