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Fernando Lopes (2009)

Michelle Sales: Eu gostaria de começar esta conversa com a sua formação e a sua vontade de fazer cinema.
Fernando Lopes: Bom, eu fui pra Londres no final de 1959 e voltei quase em finais de 1961. E fui para London Film School e tive sorte de apanhar uma série de pessoas que estavam também eles próprios a fazer uma revolução no cinema inglês. Lindsay Anderson foi meu professor, Tony Richardson, Karel Reisz foi meu professor de montagem, gente assim... e mesmo no teatro, na parte dos atores. Isso foi importantíssimo para o movimento intelectual que existia nessa altura, Left Review e coisas assim, mais à esquerda. E para além disso, Londres foi importante porque eu consegui ver filmes, todos os grandes clássicos que não conseguíamos ver na altura...
MS: O quê, por exemplo?
FL: Filmes que vinham desde Eisenstein ao Pudovkin, tudo, e acompanhar, por exemplo, o início do Bergman, do Ozu. E isso evidentemente marcou-me muito e, sobretudo, o movimento do free cinema, com Tony Richardson, Karel Reisz, Lindsay Anderson, e eu como aluno da escola pude participar em documentários como estagiário em algum desses filmes. Portanto era todo um movimento que simultaneamente coincidia com o que estava a ser o movimento da nouvelle vague na França. Isto tudo juntou-se, eu estava entre Londres e Paris frequentemente. E por outro lado também podia ver em Londres filmes que aqui nunca podia ter visto, porque havia a censura e essas coisas todas, como o Shadows do Cassavetes, que me marcou imenso e outros que eram os pré-cineastas independentes americanos, e isso era uma nova idéia do cinema, uma nova imagem, novas idéias de imagens e de sons... a relação do cinema e da vida era muito forte nessa altura. Portanto, eu lembro-me perfeitamente de ter assistido a estréia do A Bout de Soufle do Godard, Os Quatrocentos Golpes do Truffaut, com quem depois fiz uma entrevista em Londres. Com isso tudo, deu-nos a idéia que o cinema não era uma coisa puramente técnica à americana com os gêneros... Era uma coisa que tinha a ver com nossa própria vida, digamos que a relação entre o cinema e a vida era muito forte nesse grupo de cineastas. E eu tive a possibilidade de ter ficado em Londres, porque eu tive convites para ficar quer na BBC, quer na Shell Film Unit e decidi que tinha que vir para Portugal, com tudo que isso significava em 1961, 1962... Que era vir para um país cinzento, com uma ditadura, mas que era possível com outros amigos meus fazer qualquer coisa juntos, dar uma outra imagem, outros sons sobre este país, e foi um bocado assim que começou o cinema novo. Tivemos a sorte de apanhar um produtor que também tinha estado em Paris com Paulo Rocha, o Antônio de Cunha Teles, que tinha alguma fortuna pessoal e, portanto, pudemos fazer quer Os Verdes Anos, quer o Belarmino, e o próprio Domingo à Tarde do António Macedo, sem subsídios. Até porque não podíamos concorrer porque tínhamos uma ficha na PIDE e não podíamos concorrer...
MS: O senhor tinha uma ficha na PIDE?
FL: Tínhamos todos. Eu tinha um bocadinho mais porque como eu tinha começado na televisão em 1957 e, particularmente, porque em 1962 houve uma grande crise acadêmica aqui, grandes manifestações de estudantes e, naquela altura, eu assinei um papel e dei apoio aos estudantes na televisão em 1963. Foi aí que eu fiz o Belarmino.
MS: E esse papel que o senhor assinou era para quê?
FL: De apoio aos estudantes.
MS: Entendi.
FL: E isso foi parar na PIDE.
MS: Entendi.
FL: Bom... E, portanto tive que sair. Saí em 1963. Foi muito bom porque acabei por fazer o Belarmino. Porque encontrei o Cunha Teles que decidiu fazer o filme com o dinheiro dele. Eu não podia concorrer nem ao Fundo de Cinema, nem o Paulo Rocha, nem o Macedo. Portanto, era uma forma de resistência cultural e política. E isso vinha de um movimento do qual, de certo modo, todos tínhamos participado, quer eu, quer o Paulo Rocha, quer o Macedo... que era o movimento cineclubista, que era um movimento muito forte, muito importante, e que obviamente tinha uma grande conotação política, de resistência política e de resistência cultural. E isso fazia com que nós pudéssemos ver alguns filmes que não passavam nas salas: o Rosi, Alan Renais, e outros e outros e outros que eram só vistos em cineclubes. É isso... o cinema novo é feito como uma forma de resistência mais cultural, mas obviamente que o cultural implica o político. Digamos que a questão estética não era a única, havia também uma questão ética e ideológica. Isso é marca dos filmes quer do Paulo Rocha, quer meus. Particularmente, Paulo Rocha com Os Verdes Anos e o Mudar de Vida e eu com Belarmino e Uma Abelha na Chuva.
MS: E como surgiu a idéia para o Belarmino?
FL: Eu conhecia o Belarmino da noite, da má vida. Ele era um boxer, um boxer falhado e parecia que era uma bela metáfora de Portugal. Eu conhecia-o dos cabarés da noite, e decidi que seria interessante fazer um filme com ele. E aí lembrei-me muito do Shadows do Cassavetes... E acabei por fazer o Belarmino contra todas as regras do cinema português daquela altura que era quase inexistente. Fazia-se muitos filmes, mas a questão estética era inexistente. Era um cinema de regime, pequenas comédias populares... O Belarmino nesse sentido era uma aventura pessoal fortíssima. Eu tive uma equipe reduzida, que estava toda a começar, éramos todos fora do sistema, desde o diretor de fotografia até o realizador. E nesse aspecto foi uma pequena revolução. O que é curioso é que, simultaneamente, assim como aconteceu aos Cassavetes e ao Godard e ao Truffaut, ao Chabrol e toda essa gente... Isso coincidiu com o conhecimento que eu tive aqui em Portugal, na altura... é curioso... A primeira pessoa, uma das primeiras pessoas que assistiu a montagem do Belarmino foi o Cacá Diegues e depois o Glauber Rocha. O Belarmino chegou a passar no Festival de Pésaro clandestinamente. O primeiro festival de cinema novo... O mesmo festival que deu ao Glauber Rocha o prêmio pelo Barravento, deu o prêmio de crítica para mim pelo Belarmino. E aí ficamos muito amigos, tivemos imensas relações, eu e o Glauber, sobretudo em Paris, e depois aqui em Lisboa já na fase final do Glauber, quando eu era diretor de co-produções do serviço público, já muito depois do 25 de Abril. Naquela época, tivemos a idéia de fazer um filme que se chamava Uma Cidade Qualquer. Depois que ele morreu, eu dei o roteiro para a mãe dele... A relação com o cinema novo brasileiro foi sempre muito forte. Não só minha, mas o Paulo Rocha que também era muito amigo dele. E há, de resto, um livro sobre o Glauber Rocha onde estamos todos durante o último ano da vida dele aqui em Lisboa com o Cunha Telles, na casa do Cunha Teles... Foi publicado na França esse livro. E estou eu, o Paulo Rocha, o Glauber. Nesse sentido, a idéia do cinema novo, “câmera na mão e pé no chão”, foi seguida à letra para o Belarmino.
MS: E o senhor acha então que para além de uma coincidência de língua e uma proximidade cultural, há uma proximidade ética e estética também entre os movimentos, aquilo que aconteceu no Brasil...
FL: Não sabíamos muito bem o que é que cada um estava a fazer. Mas depois, na medida em que íamos vendo as imagens que cada um de nós fazíamos, achávamos que fazíamos parte da mesma família. Família estética, cinematográfica e política.
MS: E o senhor acha que o Gláuber teve uma influência no meio cinematográfico português da altura?
FL: Ele até teve, teve uma grande influência. Não tanto sobre mim, mas particularmente sobre o Paulo Rocha. O Mudar de Vida, por exemplo, é um filme que é muito marcado pelo Glauber. Eles eram muito amigos, o Glauber e o Paulo. E mesmo quando chegou o 25 de Abril nós fizemos um filme coletivo, e talvez o melhor momento do filme coletivo que fizemos, As Armas e o Povo, é do Glauber. As armas e o povo foi feito no 1º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril. Eu fiz o comício aqui perto da minha casa enquanto o Glauber andava aí pela rua. Foi muito boa a intervençaõ dele no filme... convivemos muito nessa altura, ele participou imenso na organização do sindicato dos cineastas portugueses. Depois, voltou para Paris, mais tarde voltou aqui em Lisboa, mas já na fase final quando ele acabou, praticamente, por morrer aqui... Foi muito acompanhado por nós todos, por mim, por Paulo, por José Fonseca e Costa...
MS: E a sua relação com o grupo do neo-realismo literário? Percebi que o senhor adaptou, além do Abelha na chuva, o Delfim, do Cardoso Pires que são escritores com uma atuação política muito forte, uma postura ideológica totalmente contrária ao regime.
FL: Não adaptei só o Carlos de Oliveira e o Cardoso Pires, adaptei também o Tabucchi, o António Tabucchi, O Fio do Horizonte. São pessoas politicamente muito fortes. Fizeram parte da minha vida.
MS: E qual era a sua relação política com essas pessoas?
FL: Era forte, era muito forte. É difícil tentar explicar isso, mas era muito forte. Tínhamos uma posição política de absoluta oposição ao regime, à ditadura. Depois havia nuances. Uns podiam ser do partido comunista, outros poderiam não ser, o que era o meu caso. Eu, por acaso, nunca fui membro do partido comunista, mas sei que alguns eram. O Carlos do Oliveira e o Cardoso Pires, por exemplo, foram. E isto dava também discussões muito interessantes.
MS: Que sentido? Do tipo: “você devia ser também do partido comunista?”
FL: Eles achavam que eu devia e eu tentava explicar porque eu não queria ser.
MS: E por que o senhor não era?
FL: Porque eu tinha vivido na Inglaterra, e depois tinha feito um grande estágio nos Estados Unidos de seis meses, fui até estagiário do Nicholas Ray que é outra das minhas referências. E ali tinha visto democracias a funcionar e, portanto, passei a nutrir uma espécie de profunda dúvida sobre o que era o socialismo real, o chamado socialismo da União Soviética. Depois de viver em Inglaterra e nos Estados Unidos percebi que preferia de facto esse lado, o confronto que há aberto na democracia. Eu não gostava dos "dictators". Mas isso nunca desfez a nossa amizade, entre mim e o Carlos de Oliveira ou entre mim e o Cardoso Pires, porque tínhamos uma coisa em comum: era preciso deitar abaixo o fascismo em Portugal.
MS: E o senhor acha que esse foi o propósito do grupo do cinema novo?
FL: Na pequena e modesta medida que o cinema pode influenciar na sociedade: foi.
MS: Porque o Belarmino, apesar de ser um personagem que quer mudar de vida, porque ele quer ascender socialmente, ele não é um personagem revolucionário, porque ele não quer transformar.
FL: Não, não, ele era revolucionário por si mesmo, para a vida que ele fazia. Ele era o oposto do sufoco que era Portugal nessa altura. Ele era... ele mexia-se bem, era vivo, porque era pugilista, tinha um corpo que se mexia, que era uma coisa já em si revolucionária. E depois no fundo, ele acreditava que alguma coisa podia mudar. Havia sempre essa esperança. E nesse sentido, Belarmino é um personagem, digamos, quase emblemático do que viria acontecer.
MS: De mudança...
FL: De mudança, sim. O Belarmino tinha sempre a esperança de que tudo podia mudar, e que de um dia para o outro ele podia chegar a ser campeão. Isto era uma coisa rara no cinema português daquela altura. Para não dizer de hoje, que estamos em democracia. Mas naquela época era fantástico, e ele acreditava, de resto, no final do filme, com aquelas grades, há uma voz em off, que diz: “e agora, o que vais fazer?”, e ele diz: "Vou fazer campeões". Era a nossa palavra de ordem.O free cinema...
MS: É um filme muito forte... E por que o senhor escolheu o Abelha na Chuva, do Carlos de Oliveira?
FL: O Carlos de Oliveira é, sobretudo, um grandíssimo poeta, talvez um dos maiores poetas do século XX português. Como o Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre ONeill... E foi mais por esse lado poeta que eu peguei o Abelha na Chuva. O lado material daquela terra pobre, muito mais que a história, digamos, quase neo-realista que existe no livro. Eu nunca quis seguir os ditames do neo-realismo que vinham do realismo socialista. Nesta época tinha até muitos escritores portugueses, o Alves Redol e outros. O Carlos de Oliveira era muito mais sofisticado que isso, muito mais sensível, embora sempre membro do partido comunista. Mas ele era muito heterodoxo esteticamente e culturalmente em relação ao partido comunista. E heterodoxo, sobretudo, em relação à teoria do realismo socialista. Ele é sobretudo um grande, grande poeta. E foi a partir da poesia dele que eu fiz o Abelha na Chuva que é um filme que faz mais ruptura com o cinema que se fazia na altura do que o Belarmino, pois eu fiz o Abelha na Chuva como se tivesse dois filmes lá dentro. Um está na banda sonora e outro está na imagem. Portanto, era a destruição da narrativa clássica.
MS: E o Delfim é um romance também bastante heterodoxo em relação à linguagem do neo-realismo.
FL: Sim, mas é o mais clássico dos meus filmes. Não é por acaso também que foi o que correu melhor com o público e com a crítica, porque as pessoas querem a "narrativazinha". Mas é muito bem produzido, é um filme bem produzido, que eu gosto, do ponto de vista da produção foi o filme que eu tive mais meios para produzir, com atores muito bons, mas é o mais clássico dos meus filmes.
MS: E a sua relação com o Cardoso Pires na altura, ele te deu algum direcionamento para o filme, ele interferiu? Como foi a relação com ele?
FL: Não, não. Nós tinhamos uma grande confiança, éramos grandes amigos. Minha relação com o Cardoso Pires era um bocado parecida com a relação com o Belarmino, era noturna, portanto, era uma relação de copos e de má vida. Encontrávamos por Lisboa à noite... Parávamos sempre às sete da manhã, por todos os cabarés e cafezinhos, e tascas que abriam nesta cidade. E íamos falando, falando, falando... O Zé sempre foi muito amigo. A adaptação foi feita pelo Vasco Pulido Valente que também era um grande amigo dele e que é hoje um grande colunista e historiador. E, portanto, ele tinha uma absoluta confiança no que íamos fazer. E ainda por cima tive a sorte de fazer o filme numa altura em que eu já tinha saído da televisão, estava absolutamente livre, e com bons meios de produção, com os atores que eu quis, com tudo muito bem trabalhado: décor, guarda-roupa. Neste aspecto é um filme que funcionou muito bem, quer junto à crítica, quer junto ao público. Mas é o mais clássico de todos... Eu sou por natureza mais experimental, gosto de experimentar mais. Neste aspecto tem mais a ver com... como é que eu diria... Este era um dos lados que me ligava um bocadinho ao Gláuber.
MS: O senhor acha que havia uma coincidência com o movimento literário neorealista na altura? Em propostas, em estética... Ou havia uma coincidência de grupos, entre o grupo que se convencionou chamar de novo cinema português e o neo-realismo literário? Porque muitos livros foram nesta altura adaptados, muitos romances.
FL: Sim, mas nunca chegou a haver verdadeiramente um neo-realismo no cinema português.
MS: O senhor acha que não?
FL: Não, o Manuel Guimarães é o único que andou por lá perto, que fez o Alves Redol e coisas assim e que seguiu esta regra, era um dos que estavam de fato muito mais ligados ao realismo comunista. No meu caso, no caso do Paulo Rocha, mesmo no Macedo... Nós pegávamos nos livros, porque eram autores que nós admirávamos, gostávamos do que eles escreviam, mas de certo modo nunca aceitamos o princípio no neo-realismo passado ao cinema tout-court, literalmente. Nós achávamos que uma obra cinematográfica tinha que ir para além disso. E do modo geral tínhamos em comum o fato de detestarmos as teorias do realismo socialista, do herói positivo... A vida é mais complexa que isso, e isso nós sabíamos. E os sentimentos são mais complexos que isso. E eram os sentimentos que nos interessavam.(. . . ) Os grandes escritores neo-realistas, para ser franco, eram quase todos membros do partido comunista. Só que havia alguns que eram heterodoxos. Carlos de Oliveira era um caso desse. Ele foi sempre alguém muito ligado ao partido comunista, mas era simultaneamente um grande poeta, e os poetas fogem à regra. É difícil... Se pensar bem, mesmo em termos de União Soviética, o Maiakóvski acabou como acabou. Não é? O Boris Pasternak acabou como acabou. Os poetas fogem disso. E eu sou muito sensível a isso. Eu costumo dizer que eu não consigo fazer um filme sem previamente ter um poeta na cabeça. Em todos. Mesmo no caso do Delfim que é uma narrativa. Portanto é sempre assim. E acho que os meus colegas também eram assim, particularmente o Paulo Rocha. E Paulo Rocha é até o que tem menos a ver com o movimento neo-realista e com os escritores neo-realistas. Ele vinha de outra área, até mais católica, católica progressista...
MS: O senhor nunca teve relação com a Igreja?
FL: Não.
MS: E com nenhum partido?
FL: E com nenhum partido. Mas, como disse, compartilhava com eles a minha rejeição absoluta do Estado em que vivíamos, e isto unia-nos. O que é curioso, é que logo a seguir ao 25 de Abril, cada um foi para o seu lado. Uns ficaram agarrados ao partido, outros foram para a extrema esquerda, outros defenderam a idéia de uma democracia ocidental, européia, foi o meu caso. E outros não participaram porque, por exemplo, o Paulo Rocha neste aspecto é mais poeta, vive num outro universo. O Macedo é um pouco mais prático, estava aqui para fazer filmes, fazer filmes e ponto final. O Fonseca e Costa teve grandes relações com o partido comunista, mas é interesssante perceber que os filmes dele vêm mais da tradição do grande cinema clássico, e com alguma influência do Antonioni. O Zé Fonseca foi estagiário do Antonioni no Eclipse e, portanto, há um lado existencial nele, como há em mim também. Eu também tenho uma grande admiração pelo Antonioni, porque ele teve muita influência sobre mim, e não é por acaso que quando estou a dizer o Antonioni imagino que é alguém que dentro do neo-realismo italiano fugiu à regra.O free cinema...
MS: E o senhor acha que havia uma proximidade estética do grupo português com os neo-realistas italianos?
FL: Sim, sim...
MS: Para além do Fonseca e Costa?
FL: Sim, sim... Em mim isso havia, com Rossellini, com Antonioni... E eu próprio um bocadinho mais maluco pegava mesmo nos pequenos: Dino Risi, Mario Monicelli e gente assim. Mas isso havia... O cinema italiano teve de facto uma grande importância em Portugal, era muito visto aqui. Eu nunca teria feito o Belarmino se não tivesse visto Salvatore Giuliano, por exemplo. O cinema italiano teve uma importância enorme, enorme... Só muito mais tarde, depois do 25 de Abril é que passamos quase todos os filmes brasileiros no canal que eu era diretor: Diegues, Glauber Rocha, Hirszman, todos.
MS: Então a influência do cinema novo brasileiro que o senhor disse era mais pela presença do Glauber aqui, do que pelo visionamento dos filmes que nessa altura não passava...
FL: Não só a presença do Glauber aqui, mas depois nós conseguimos passar de facto aqui muitos filmes brasileiros. Por exemplo, eu acho que o Fonseca e Costa tem muito a ver com o Cacá Diegues, de quem ele gosta muito. Não é por acaso que ainda hoje Fonseca e Costa tem quase sempre co-produção com o Brasil, e com vários atores brasileiros nos filmes dele. Um dos filmes de maior êxito no cinema português Kilas, O Mau da Fita é com o Lima Duarte. Ele tem uma grande tendência para ir buscar atores brasileiros e ter alguma relação com certo tipo de cinema brasileiro, particularmente o do Cacá.
MS: E qual era a relação de vocês com a crítica cinematográfica que se fazia na altura?
FL: A crítica era muito mais criativa do que hoje é aqui em Portugal. Essa é outra questão... Porque os que faziam crítica acabaram por fazer filme. Fonseca fez crítica, o António Pedro Vasconcelos fez crítica, Seixas Santos fez crítica, eu tive uma revista de cinema... Eu fui diretor da Cinéfilo onde estava eu, João César Monteiro, e outros. Portanto, a nossa relação era simultaneamente uma relação da ação, fazendo filmes, e de reflexão. Isso hoje não é assim. Hoje vem tudo da internet, se fores ler a crítica nos jornais portugueses metade do que está lá eu sei que vem da internet. Acho uma desgraça. Não há reflexão. E depois já não há os grandes pensadores de cinema. Não há o Bazin, já não há o Aristarco e por aí adiante. O Kracauer, Siegfried Kracauer. Estou a reler aquilo que era o meu livro de curso, A teoria do filme do Siegfried Kracauer. Agora depois de tantos anos, estou a reler. A crítica que se faz hoje em dia, e não é só aqui, estou a lhe dizer porque eu olho muito a imprensa estrangeira, sou um leitor compulsivo de jornais, e portanto leio o português, francês, americano... A internet que é fantástica, tem muita informação. Mas hoje em dia todos os filmes têm os seus sites e, portanto, uma boa parte da crítica de cinema que se faz hoje, se você for ler bem, já está implícita no marketing do filme. Ou seja, deixou de se pensar sobre o que é o cinema. Por isso é que o cinema, particularmente o cinema americano, está tão banalizado como está. O ato de refletir sobre o cinema e de fazer cinema era comum. O Truffaut era um grande crítico de cinema, o Rohmer, o Alain Resnais, o Godard, para não falar de Michelle Sales, outro, o Godard... E a relação entre o pensamento sobre o cinema e pô-lo em prática era uma coisa, como poderia dizer, natural. E o que nós, hoje, temos nas revistas e nos jornais, mesmo nas revistas mais prestigiadas, é uma espécie de marketing, o próprio Cahiers Du Cinèma não é mais o que era... Hoje em dia já não é mais o que era. E isso faz com que o cinema seja menos inquietante do ponto de vista estético e do ponto de vista ético. É o que eu penso.
MS: E a sua revista não sofreu nenhum impedimento da censura?
FL: Sofreu muitos, e acabou-se no 25 de Abril, em Junho de 74. Mas teve imensos problemas com a censura.
MS: De que tipo?
FL: Processos... muitos.
MS: Foi preso?
FL: Não.
MS: Mas o senhor era perseguido, politicamente?
FL: Sim, tinha este problema.
MS: Mas aconteceu alguma situação que o senhor se lembre, que tipo de perseguição havia na altura?
FL: Às vezes ia ao tribunal.
MS: Para falar sobre a revista?
FL: Sobre a revista e não só sobre a revista. Sobre amigos, sobre pessoas que iam presas e eu tinha que ir como testemunha. (. . . )
MS: E qual é a sua formação, a sua origem? O senhor nasceu aqui em Lisboa?
FL: Não. A minha origem é absolutamente rural, em princípio eu não viria a ser cineasta. Por isto é que este documentário que lhe ofereci chama-se Fernando Lopes Provavelmente.
MS: O senhor acha que deveria ter sido o quê? Se não fosse cineasta.
FL: Rural... Eu nasci numa pequena aldeia no centro de Portugal, paupérrima, muito pobre. E se eu seguisse tudo o que estava pré-determinado na minha vida, ia plantarbatatas, cuidar do campo.
MS: E como surgiu esta sua vontade de transformar?
FL: Porque a minha mãe teve que fugir da aldeia. Mas eu conto tudo aí... Teve que fugir da aldeia e me trouxe quando eu tinha três anos e meio.
MS: Para Lisboa?
FL: Para Lisboa e, depois, ainda fui para a casa de uns tios meus. Aos doze anos é que voltei para Lisboa e a partir daí comecei a ir ao cinema, ir ao cinema, e disse. O meu pai era uma figura ausente. Eu fiz os cursos que podia ter feito, e tive os empregos que podia ter tido. Mas sempre com aquela idéia de que o que eu queria era fazer filmes. E por isto é que isso se chama Provavelmente.
MS: O senhor achava como Belarmino que o cinema português ia vencer um dia?
FL: Achava, absolutamente. Por isso fiz o Belarmino, e o Paulo Rocha fez Os Verdes Anos. Nós achávamos mesmo que iríamos mudar o mundo. Mas o Glauber também achava, o Cacá também achava, o Joaquim Pedro, o Hirszman, sei lá, o Truffaut, o Godard também achava. Cada um a sua escala, e França, Brasil, e não sei mais... Nesse aspecto o Glauber teve uma importância muito grande para nós. Glauber acreditava mesmo nisso. O free cinema...
MS: E o senhor queria transformar o mundo em quê? Transformar para quê?
FL: Para que fosse um mundo mais solidário, mais aberto. Em que cada um tivesse suas oportunidades, qualquer que fosse a classe social de onde viesse. Tão simples quanto isso. Foi como aconteceu a mim, eu tive sorte. Eu costumo dizer que eu tive os sorrisos do destino, por isso estou aqui a falar consigo.
MS: Obrigada!
FL: Quer um café? (. . . )

Entrevista de Michelle Sales para o Doc On-line, n.07, Dezembro 2009, pp. 141-151.142 
Fonte: http://www.doc.ubi.pt/index07.html

Federico Fellini (1983)

Em algum lugar da escrivaninha, há uma pasta: “Filmes por fazer”.
Dentro dela, a desordem: cartas, rabiscos, recortes de jornal, fotos, páginas arrancadas de livros, retalhos de pano...
Durante o volúvel início do verão de 1914, alguns representantes da alta-sociedade embarcam num estranho cruzeiro: trata-se de ir espalhar as cinzas de uma cantora de ópera ao largo da ilha onde ela nascera. Ao cabo da viagem: o naufrágio, é claro. Sobre esse tema, Federico Fellini construiu um filme precioso. E la nave va. E consentiu em explicar, ele próprio, os segredos dessa armadilha imaginária.

Aldo Tassone – O mar aparece frequentemente em seus filmes, como se vê em La Strada, La dolce vita ou na aparição de Rex dentro de Amarcord, e não somente como pano de fundo. Em E la nave va você trata de toda uma viagem no mar. Como você chegou à idéia desta travessia insólita pelo destino da viagem, pelo tipo de passageiros e pela data escolhida?

Federico Fellini – (suspirando) As coincidência que presidem o nascimento de um filme são insondáveis. Você me obriga a repetir que o nascimento de um filme, ao menos para mim, se reduz à assinatura de um contrato e ao recebimento de um adiantamento: momentos mágicos! É difícil fingir indiferença quando o produtor tira uma suntuosa pasta de couro que contém, bem-organizados, todos os cheques em seu nome! O roteirista Mangione, com o qual eu trabalho há já muitos anos, não consegui conter sua emoção naquele momento: ele tinha lágrimas nos olhos e tinha seu cheque bem preso entre as mãos, como se acreditasse que este não fosse perder o valor na poltrona de lona!
Quando em ponho a fazer verdadeiramente o filme, é por que não tenho vontade de devolver o adiantamento. Eu pertenço àquela categoria de pessoas que, para ter êxito em qualquer coisa, precisa de um financiador. A liberdade total, a independência, que invocam tantos de meus colegas, significaria para mim o fim de todo o ato possível de vontade, porque eu não encontro as condições para uma rebelião necessária, e essa (liberdade) não catalisa a energia necessária. Eu quero me sentir controlado, sentir raiva, antipatia e rancor por quem me obriga a respeitar o contrato: o produtor. Como no Renascimento, quando Sexto Quinto ou Inocêncio II jogou na prisão o artista que não havia executado os afrescos do arco da igreja ou o madrigal para a princesa. Sem limites, sem fronteiras e, se posso ousar, sem pressão psicológica, não há mais do vazio, indiferença, esboços.
Em algum lugar de minha escrivaninha há uma pasta onde está escrito: “Filmes a fazer”. Dentro dela, a desordem: cartas, rabiscos, recortes de jornal, fotografias, páginas de livros arrancadas, retalhos de pano, que podem suscitar relações comum filme que ainda não existe a não ser como possibilidade. A idéia de um filme pode muito bem nascer, justamente, bem antes de todo o resto, de um detalhe minúsculo aparentemente insignificante, como um pedaço de retalho de trapo...

Aldo – O retalho de trapo, no caso de E la nave va, consistia no quê?

Fellini – Era um recorte de jornal que eu guardava naquela famosa escrivaninha. Dizia que um cantora lírica desejara, em seu testamento, ser incinerada: suas cinzas deveriam ser espalhadas ao largo da ilha onde ela nascera. A imagem suscitada por esse incidente inquietou-me profundamente: eu imaginei o navio imóvel ao largo da ilha, os membros da comitiva perfilados, os amigos, a família, e o vento que levava as cinzas dispostas sobre uma almofada de cetim preto; ao longe, tremulando como uma miragem, a ilha. De cima, alguém colocara em movimento um fonógrafo com um disco da cantora e se entende que, acariciadas pelo vento, sua voz e ao mesmo tempo suas cinzas esvoaçavam pouco a pouco...Foi dessa imagem que o filme nasceu.
Como Toninho Guerra, passei dois ou três dias a discutir essa imagem, livremente, sem uma idéia precisa. Depois nós chegamos a um rascunho da história e, enfim, no espaço de três semanas, a um roteiro.
Era meados de agosto, no imóvel a frente alguns locatários criminosos haviam abandonado um cão que não parava de latir com desespero. Eu chamei os bombeiros e nós libertamos o pequeno cocker, que, todo traquinas e feliz, participou ele também da segunda parte do roteiro.
Se três semanas parecem pouco para fazer um bom roteiro, eu o convido a considerar o seguinte fato: entre as primeiras sugestões do enredo e começo da filmagem, passarem-se três anos. Isso é tempo demais para fazer nascer a confiança num filme que não é totalmente indigno.

Aldo – O título do filme é quase intraduzível. O francês Et vogue le navire não me parece dar conta da significação exata da expressão italiana. No Brasil, nem traduziram: foi mantido o título italiano original. O italiano põe maior destaque no movimento do navio do que no próprio navio. De onde veio este título que poderia muito bem ser uma frase de uma ária de ópera?

Fellini – Foi somente no fim da redação do roteiro que eu propus E la nave va, sem grande convicção. Eu pensei em mudá-lo, mas um título tem sempre qualquer coisa de emblemático, de esotérico e, portanto, de predestinação: por isso eu não o troquei. O que quer dizer? Eu também não sei: resignação, talvez, ou esperança, inelutabilidade, vagas promessas de um dia chegar ao porto.

Aldo – O próprio nome do navio é misterioso: Gloria N., um nome de mulher. É uma metáfora?

Fellini – Qualquer que fosse o nome escolhido, você me faria a mesma pergunta. O que eu gostei foi o “N ponto”: uma espécie de aviso, um nome anunciando um evento desconhecido iminente. Quanto ao resto, eu gostaria que você contivesse a sua curiosidade e passasse às questões mais pertinentes.

Aldo – Eu gostaria mesmo de saber se Glória pode ser interpretado – nós o faremos infalivelmente – como um sinônimo de “glória”.  Eu posso lembrá-lo que há alguns anos, ao ver a tenda do circo elevar-se no começo de Clowns, um crítico francês falou de “ereção simbólica do pênis”.

Fellini – (rindo) Seus colegas franceses são ainda mais febris que nós neste tipo de policiamento espasmódico de perseguir o sentido do menor detalhe. Mas não escreva isso! Ou, talvez, sim. Eu deixo a seu critério.

Aldo – A escolha do ano de 1914 para a viagem ritual do Gloria N. não é certamente um acaso. Ou isso não muda nada?

Fellini – No começo, recordo que eu tinha em mente as silhuetas às vezes charmosas e lancinantes, como são por vezes essas fotografias do desconhecido. Eu queria voltar ao estilo dos primeiros filmes: uma película toda em preto e branco, estriada, com manchas de luminosidade, como uma peça de museu, um pouco como uma peça falsa. Eu estava muito seduzido por essa idéia, por que eu acho que o verdadeiro cinema deveria ser assim.
Talvez eu também quisesse evocar a “nostalgia” com uma veracidade hoje desaparecida, e, com ela, o rito pelo qual nós comemoramos esse sentimento também lancinante; igualmente mostrar que esse rito comemorativo da nostalgia é vivido de fora de toda a nostalgia autêntica. Eu acho que hoje em dia nós não somos mais capazes de saborear a nostalgia: é um sentimento que, pelo fato de ser aviltado pela televisão, terminou por ser consumido por ela.

Aldo – Em que sentido nós somos devorados pela nostalgia?

Fellini – Nós somos procurados, acossados e perseguidos pela moda dos revivals. Nós comemoramos os anos 20, depois os anos 30, e depois os 40: você verá que brevemente nós comemoraremos o domingo que recém passou, e até mesmo, por que não, as datas a vir... O presente desmorona sob nossos passos, tudo não é mais do que um caos vertiginoso sem pé nem cabeça.

Aldo – Eu achei que a personagem do jornalista que supostamente faz a crônica da viagem, Orlando, lhe tenha sido inspirado por esse sentimento de náusea que você tem, justamente da televisão.

Fellini – A viagem é de fato relatada por um jornalista. Sua presença, o que ele diz, ou melhor, o que ele se cansa de dizer, pretendendo dessa maneira substituir a realidade verídica, tudo aquilo nos priva do contato direto com o acontecimento que ele retransmite o despojar de toda a emoção, de todo o senso de responsabilidade. Nós vivemos hoje em dia cercados de televisores, de rádios, de jornais, que nos “narram” os eventos de tal modo que desenvolvemos, em nós e ao nosso redor, como uma espécie de placenta, uma bolsa amniótica, uma película de amianto que nos protege da realidade. A realidade, nós não a percebemos a não ser através de uma membrana, de um diafragma, e nós não acreditamos mais o que nos vende a televisão. E, como a televisão nos vende (a realidade) dentro de uma linguagem de espetáculo cinematográfico, produz-se uma “desrealização” contínua, excessivamente perigosa, de modo que as mais graves catástrofes terminam por não causar maior impacto do que se as vivêssemos numa ficção, numa comédia ou num filme. Qualquer futurólogo, qualquer sociólogo ou psicólogo não está mais em condições de diagnosticar ou prever os danos, ou muito menos, as conseqüências que a televisão traz a nossa compreensão do real e ao nosso modo de afrontar a existência. Talvez isso não venha a ser também catastrófico, como nossa geração está inclinada a pensar: resta que existe uma mutação, na qual não se chega a avaliar as formas neuróticas que ela assumirá no futuro.
Você me perguntou há pouco por que eu fixei a data em 1914: achei que ficava bem assim. Os temas que abordei – o desaparecimento da nostalgia, a hiperinformação desrealizantee desresponsabilizante – são fenômenos adequados aos dias de hoje. Isso pode causar confusões: agredido, intoxicado como é por toda essa alienação, o espectador arrisca não obter sucesso na apreensão do sentido com o qual eu quis inventar a história.
Pareceu-me mais eficaz e mais eloqüente abordar os componentes neuróticos de nossa época deslocados para trás dentro do tempo. A tensão que vivemos há mais de vinte anos, o horror do amanhã, esta insegurança que nos sufoca e nos estrangula ao ponto de nos forçar a crer que não podemos mais viver de outro modo, tudo isso, eu pensei, seria percebido e vivido com um impacto mais dramático se minha narrativa se situasse em uma data fatídica: a véspera da Primeira Guerra Mundial.

Aldo – Fala-se, a propósito desse filme, de apocalipse. Para parafrasear o titulo de um de seus últimos filmes, pode-se intitula-lo Prova di apolisse (Ensaio para um apocalipse). Portanto, ele não é inteiramente terrível, há também uma alegria nele.

Fellini – Um de meus amigos me disse que ele achou o filme terrível. Compreenda bem: não creio que ele falasse da qualidade, mas sem dúvida ele quis dizer que havia ficado muito impressionado. Comumente um autor enche-se de arrogância quando ouve dizer que aquilo que realizou amedronta. Ele sente-se importante, mais eu não compartilho desse tipo de opinião. Se é possível arriscar um comentário sobre meu filme, é que ele é alegre, Para mim é um filme que dá vontade de fazer outro logo em seguida.
Assistir, bem sentado em minha poltrona, ai desenrolar de uma catástrofe que receamos há muito tempo já produz um inegável sentimento de liberação. De fato, quando o espectador começa a pressentir que o desfecho do filme será, inevitavelmente, a catástrofe, ele aplaude: notadamente no mesmo momento do naufrágio. Isso parece insensato: como podemos aplaudir a imagem de um cruzador aprontando-se, com todos os canhões para fora, como um pólipo com seus tentáculos, para pôr o navio a pique com todos seus passageiros, aqueles mesmos cuja história acompanhamos durante todo o filme? Um medo contido por longo tempo transfere-se para uma emoção, a partir daí, desenfreada: o aplauso é a manifestação de um alívio e de uma gratidão. Nesse sentido, o final do filme pode ser interpretado como um final feliz: provoca-se uma distância, dissipa-se o temor e a angústia. O filme nos dá esperança, energia e confiança.

Aldo – Duas “pessoas” escapam ao naufrágio coletivo: o jornalista e. um rinoceronte. Todo mundo perguntou a você o porquê. O que representa este misterioso rinoceronte que viaja no porão do Gloria N.?

Fellini – Quando me perguntam sobre o sentido simbólico de meus filmes, isso me faz berra de desespero. Mas o que é essa necessidade neurótica de traduzir continuamente uma coisa pela outra? Como o que rima isso de procurar o sentido escondido atrás, acima ou abaixo, sobre ou sob uma imagem, um personagem, uma situação ou um objeto? Tornou-se um hábito. Nós não temos mais confiança em nós mesmos: seminários, mesas-redondas, debates e entrevistas televisivas terminam por nos tornar completamente desconfiados de nossa própria capacidade intelectual. Nós estamos todo o tempo desejando que alguém nos diga algo diferente do que vemos: “Sim, é o aparecimento do cruzador, mas, em realidade, é também a interrupção agressiva do recalque.”; “Sim, isso se parece com uma gaivota, mas, em termos psicanalíticos, é o prenúncio de um novo conceito de coisas...” Uma criança de dois anos, ela que emerge de uma dimensão completamente diferente, tem o direito de perguntar quando vê um ovo: “Que é isto?” Mas não é um pouco anacrônico e desprovido de sentido que nós, na nossa idade, continuemos a perguntar ao autor de um filme o que quer dizer um rinoceronte?

Aldo – Os rinocerontes não representam o inconsciente? Não foi por acaso que você instalou-o bem no fundo do porão do barco, para depois fazê-lo içado para o tombadilho. Ou então será que digo bobagens?

Fellini – Veja bem: se eu disser a você que coloquei um rinoceronte por que todos os especialistas na questão me afirmaram que, na época, em 1914, os navios tinham a obrigação de embarcar um deles, vocês da imprensa pensariam, e com razão, que estou sendo espirituoso. Se, como revanche, eu digo que o ventre do navio, nas profundezas mais abissais, abriga a “coisa”, isto é, parte que em nós, animal e inconsciente, vive fora do tempo e do espaço e, portanto, ajuda nossa existência a viver com ela... Eis aí umas respostas que vai contentar mais de um, mais eu... me sinto ridículo.
Alguns dos meus colegas têm satisfação com este gênero de questões: eles sentem-se lisonjeados, dir-se-ia que eles fazem filmes sobretudo com o objetivo de dar explicações. Eu não quero e nem sei faze-lo; em todo o caso, eu não tenho nada mais a fazer. Ou bem o filme é uma criação viva, vital que fala por si mesma e, portanto, instaura em cada espectador uma relação secreta, íntima; ou então, se isso não acontece, não se pode desejar que o autor o glose, multiplicando explicações e interpretações. Isso me parece inoportuno e mesmo ofensivo. A ambos: ao público, porque é tratado como um povo ignorante que deseja que lhe expliquem tudo, e ao filme.

Aldo – A breve cena do pré-final, na qual você mostra a equipe do filme rodando sobre o tablado com um balanço que produz o movimento do mar, se parece com um extrato de reportagem sobre o próprio filme. Por que, naquele exato momento, você sentiu o desejo de deixar cair seu jogo? Somente para lembrar ao espectador que o que ele vê não é nada mais do que cinema?

Fellini – Se “eu deixo cair meu jogo”, como você diz, não é somente para agradar, dizer que tudo está sendo “representado” não é mais do que a pura imaginação, que o autor não quer aterrorizar pessoas. Pelo contrário: não nos resta mais do que um só dever frente ai desastre. Frente ao caráter inelutável de uma catástrofe que nós não estamos mais em condições de parar, o único dever é o de “testemunhar”. Tudo isso é sugerido pelo último travelling: à medida que descobrimos o estúdio, o balanço artificial do mar, a equipe e a câmara, que, para o cineasta, é o instrumento do testemunho (não somente sobre sua eventual mensagem, mais também sobre o meio de expressão que lhe é mais natural, o cinema).

Aldo – Podemos ver esse naufrágio, situado ao fim de uma época, como uma espécie de funeral do cinema?

Fellini – Sim, coma condição de aceitar que esse funeral deve ser recontado pelo próprio cinema.

Aldo – Eu gostaria também de falar de estilo: você nunca esteve tão seco, conciso, imóvel como neste filme.

Fellini – Não fui eu que “mudei de estilo”: o filme exigia aquele estilo. Como eu imaginei uma história que se passava há 70 anos, para manter-se fiel ao que se havia formado em minha imaginação, eu procurei instintivamente, um pouco como artesão, um estilo que pudesse dar ao expectador a sensação de que aquilo que ele vê é um documentário sobre o que realmente aconteceu naquela época. Eu tentei criar esta sugestividade por todos os meios possíveis. Inconscientemente, o espectador que tem que retroceder no tempo, ao começo do cinema. Ele se lembrará das películas amareladas, essas fotografias de gente hoje desaparecida: é então que nasce nele, quase de forma subliminar, um sentimento fúnebre de aniquilamento, um gosto de pós, de extinção, que o predispõe ao receio e à angústia de um acontecimento doloroso. Eu poderia falar sobre horas da construção de cada seqüência, mas é inútil: eu prefiro deixar o prazer da descoberta ao espectador.

Aldo – É verdade que inicialmente você queria transformar o filme em preto e branco?

Fellini – Em preto e branco não, mas em cor sépia, e pela razão que acabei de falar. Mas pareceu-me que, como o tempo, o filme seria cansativo e também que seria percebido o truque, o artifício, a citação complacente. Esta é a razão pela qual os vinte primeiros minutos estão em tom sépia: para sugerir a idéia de um documentário, de um pedaço de antologia, assim como em toda a banda sonora há um zumbido do velho projetor. Depois, praticamente sem prevenir, eu falo intervir o ranger de uma roldana, o bramido grave e abafado de uma sirene, algumas notas de música e, pouco a pouco, mas sem que nos demos realmente conta – porque percebemos quando já estamos dentro começa a narração, o filme, exatamente como o público está acostumado a ver.

Aldo – E la nave va é também um filme sobre a ópera. Sua atitude, em relação à ópera, parece-me dúbia: por um lado, você admira o gênio de Verdi ou de Rossini, a própria música; por outro lado, há uma certa ironia frente aos cantores. Eu penso na maneira como você mostra a rivalidade entre eles, seus ares pretensiosos. Você não tem maior simpatia por eles do que pelos clowns.

Fellini – É uma mistura de simpatia e de ironia, de caricatura e de solidariedade. Quando vejo ou quando descrevo as personagens de minhas histórias, sinto-me naturalmente mais zombador do que afetado. Mas eu não acho que este filme tenha intenções claramente satíricas como você diz. Os cantores são aquelas pessoas que se concentram por inteiro não somente na representação deles mesmos, de suas atitudes vaidosas, narcisistas, mas também sobre o caráter particular de seu próprio talento: os dons deles são em parte psicológicos, é um sistema que anda com os pulmões, o diafragma... Esta robotização do corpo pode deixá-los um pouco cômicos, mas a partir do momento em que se especializam em alguma coisa ao ponto de não viver passionalmente a não ser para ela, os outros sempre os acham grotescos. Nós, os cineastas, nós somos um pouco grotescos.

Aldo – A julgar pela sua utilização da música de Verdi e de Rossini, você parece conhecer bem ópera. Você jamais foi tentado a pôr em cena uma obra lírica, ou de transportar para a tela uma ópera? Propuseram tantas vezes! Por quê?

Fellini – Eu sei, a ópera faz parte de meu “italianismo” da mesma forma que bersaglieri, Garibaldi, ou os imperadores romanos. Algumas árias me são familiares há algum tempo. Nós todos vimos nossas tias e primas chorar em Chamo-me Mimi¹ e nossos tios se porem a cantar furiosamente Se eu fosse guerreiro². Há também os bêbados que, na noite, sozinhos numa praça, põem-se em bandos a cantar aos brados árias de óperas! Tudo isso é de tal modo interiorizado que termina por nos deixar como estrangeiros, como o inconsciente. A ópera tem um lado ardente que me fascina, mas eu experimento esse gênero musical como uma espécie de estrangeiro familiar, do mesmo modo que experimento tudo o que diz respeito a uma casta, a um cerimonial, e que tem sempre me devolvido a esse sentimento de estranhamento, de solitude. É por isso que eu não quis jamais – não sem me sentir um pouco em falta – participar desse rito italiano, e até itálico, com tudo que isso comporta de caloroso, de envolvimento passional, coletivo.
Propuseram Lulu, de Berg e Ainda, de Verdi. Um dia, um maestro perguntou-me: “Por quê você não presta homenagem à ópera, como você fez ao circo com I clowns? A ópera não deseja publicidade Fazer Ainda: Eu não saberia por onde começar: que fazer? A abertura de Barbeiro de Sevilha, desde as primeiras notas, parece-me muito mais metafísica do que a Quinta Sinfonia, de Beethoven. É uma peça que me faz tremer de emoção. Rossini é um gênio absoluto...Nos meus filmes, a música de Nino Rota assume uma função epidermicamente ligada à imagem, por criar quer os suportes, quer as passagens. Atualmente, como fazer para dar à música uma tal eficácia visual e à imagem uma tal transcendência sonora? Na ópera, isso tudo já está pronto. Eu não compreendo muito essas dispendiosas tentativas que se fazem hoje em dia e que utilizam a história da pintura, ou recuperam a literatura...Isto é sempre da cozinha! A ópera é um rito, uma missa, uma pastoral. E, acima de seus erros, ela é respeitável naquilo em que sempre exprime com perfeição. Por que querer dar rigor e expressão suplementar a qualquer coisa que encontre sua vitalidade, justamente, no simples fato de a harmonia se engendrar por si só, como corre algumas vezes numa procissão, e funerais, numa corrida ciclística ou ainda em um baile?
Uma noite, na televisão, eu assisti a uma montagem de La Traviata completamente delirante. O metteur en scène (ou os câmera) iam e vinham à cena como um pai que faz os cem passos na maternidade. Ele fazia o zoom sobre tudo e não importava o que fosse: os tapetes, os sapatos, os pregos do soalho, as próteses de ouro dos cantores...Ele não esqueceu nem os pacotes de detergentes! E, malgrado tudo isso, malgrado o massacre da representação, a fisionomia dos cantores, a lâmpada acessa e, lá fora, as sirenes da polícia que eu ouvia da peça onde estava, fui tomado de tal emoção que eu tinha dos olhos lágrimas de reconhecimento e de felicidade. Talvez La Traviata seja uma absoluta perfeição: o bobo, com sua câmera, não conseguiu destruí-la. Como você quer que, nessas condições, eu pretendesse fazer melhor que Verdi?

1 A boêmia (Puccini).
2 Aida (Verdi).


Entrevista de Aldo Tassone, tradução de Fabienne Roche e publicada no Brasil pela revista literária Oitenta (fonte)