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Jean Paul Sartre (1966)

“Cahiers de Philosophie”: Admitindo que possa haver uma antropologia verdadeira que não seja filosofia: a antropologia esgotaria todo o campo filosófico?

Jean-Paul Sartre: Considero que o campo filosófico é o homem, ou seja, que qualquer problema deve ser concebido em relação ao homem. Que se trate da metafísica ou de fenomenologia, em nenhum caso podemos colocar a questão senão em relação ao homem, em relação ao homem no mundo. Tudo o que concerne filosoficamente ao mundo, é o mundo no qual está o homem, e necessariamente o mundo no qual está o homem em relação com outro homem que está no mundo.

O campo filosófico está limitado pelo homem. Isto que dizer que a antropologia pode ser por si mesma filosófica? O objetivo que as ciências humanas querem alcançar: é aquele mesmo que a filosofia quer alcançar? Está aqui o problema tal como eu o colocaria. Tentaria mostrar que são, sobre tudo, os métodos que provocam uma mudança na realidade estudada, ou, se vocês preferem, o homem da antropologia é objeto, ao passo que, o homem da filosofia é objeto-sujeito. A antropologia toma o homem como objeto, isto é, que os homens que são sujeitos, etnólogos, historiadores, analistas, tomam o homem como objeto de estudo. O homem é o objeto para o homem, não pode deixar de ser. Não é assim? O problema é saber se esgotamos a sua realidade na objetividade.

No número de Esprit consagrado à infância retardada, há um acordo completo entre os médicos, analistas ou não, sobre o fato de que o erro nestes últimos vinte e cinco anos, tem sido tomar a criança retardada como objeto, e considerar que ela teria uma língua. Determinavam-se estruturas que pareciam fixas, e a partir disso, começava-se a terapia clínica. A única maneira é, agora, tratar a criança como sujeito – o que nos leva a tangenciar a filosofia -, não como um objeto que se insere na sociedade, mas como processo em curso de desenvolvimento, que muda historicamente, que se encontra inserido num projeto geral e que, ao mesmo tempo, é uma subjetividade. Ainda no domínio prático, ético, a noção de sujeito aparece sobre o objeto. Desde o momento em que, como disse claramente Merleau-Ponty, o homem é objeto para certos homens, etnólogos, sociólogos, estamos diante de uma coisa que não pode ser senão tangenciada. Sem impugnar o conjunto desses conhecimentos, estamos obrigados a dizer que se trata de uma relação de homem para homem; o homem entra a título de antropólogo numa certa relação com o outro, não está frente ao outro senão em situação com relação a este outro. Filosoficamente, a noção de homem não se encerra jamais sobre si mesma.

Na medida em que a antropologia apresenta objetos, deve estudar algo no homem que não é o homem total e que, de certo modo, é um reflexo puramente objetivo do homem. É o que eu chamei na Crítica da Razão Dialética, o prático-inerte, isto é, as atividades humanas enquanto que são mediadas por um material rigorosamente objetivo, que lhes remete à objetividade. Em economia, por exemplo, não temos um conhecimento do homem tal como a filosofia o pode definir, mas um conhecimento da atividade do homem enquanto que esta é refletida pelo prático-inerte, atividade do homem retornada.

Nessas condições, o conjunto de conhecimentos sociológicos e etnológicos, remete a questões que não são questões da antropologia, mas que vão além do nível da antropologia. Temos por exemplo a noção de estrutura, e das relações entre a estrutura e a história.

Os trabalhos de Jean Pouillon sobre os Korbos, mostram-nos a constituição interna de pequenos grupos sociais nos quais as relações políticas, religiosas, são determinadas de certas maneiras. Os grupos são distintos e, contudo, compreendem-se muito bem entre si. E quando os comparamos constata-se que o conjunto dessas práticas, representa exemplos diferenciados de uma estrutura mais geral, que concerne à relação do político e o religioso. Do estudo de sociedades que se dão à observação, passa-se ao estudo reconstrutivo de uma sociedade estruturada, que não pode realizar-se senão através de uma pluralidade de casos concretos e, por isso mesmo, diferenciados – aqueles, precisamente, a partir dos quais nos temos remontado à estrutura-objeto -. O papel que uma certa antropologia estruturalista dá à história é muito particular: a partir da estrutura reconstruída se pode, abstratamente, recorrer a todas as possibilidades diferenciadas que procederam dela; de outra maneira, resulta que um certo número dessas possibilidades é dados no campo da experiência. O papel da História seria, por conseguinte, dá conta de que esse conjunto determinado (todas as possibilidades ou algumas delas) seja realizado. Dizendo de outro modo: reduzindo-a à pura contingência e à exterioridade. A estrutura torna-se constituinte.

Ora bem, nós constatamos que as estruturas se as expomos em si como fazem certos estruturalistas, são sínteses falsas: de facto, nada pode dar a unidade estrutural, senão a práxis unitária que as mantém. Não é duvidoso que a estrutura produza comportamentos. Mas o que irrita no estruturalismo radical – onde a História tem aspectos de exterioridade e de contingência em relação a tal conjunto estruturado; puro desenvolvimento da ordem enquanto se considera como uma estrutura que se dá a si mesma a regra do seu desenvolvimento temporal -, é que o reverso dialético ficou em silêncio e não se mostra jamais à História produzindo as estruturas. Portanto, a estrutura faz o homem na medida em que a História – isto é: a práxis-processo – faz a História. Se consideramos o homem como objeto do estruturalismo radical, falta-nos uma dimensão da práxis; não se vê que o ator social conduz o seu destino sobre a base de circunstâncias exteriores e que, como ser histórico, exerce uma dupla acção sobre as estruturas: por sua vez não cessa de mantê-las por suas condutas e, por estas mesmas condutas, não cessa de destruí-las. Todo o movimento se reduz a um trabalho da História sobre a estrutura, que encontra nesta sua inteligibilidade dialética e que, sem referência a esta, permanecerá no terreno da exterioridade analítica, oferecendo a sua unidade sem acção unificadora como uma mistificação. Se nos perguntarmos, ao contrário, como essas estruturas inertes têm sido preservadas, mantidas e modificadas pela prática, voltamos a encontrar a História como disciplina antropológica: a estrutura é mediação; deve-se buscar – quando os materiais e documentos existem, o que nem sempre acontece ao nível de trabalhos de etnografia – como a práxis abisma-se no prático-inerte e não deixa de corroe-lo. Este problema remete-nos, por outro lado, para a investigação puramente filosófica: o historiador é histórico, isto é, que está situado em relação ao grupo social do qual faz o estudo histórico. A filosofia – ela mesma situada – faz o estudo dessas situações a partir de um ponto de vista dialético.

Podemos distinguir três momentos: a acção do homem sobre a matéria modifica a relação entre os homens, enquanto que a materialidade trabalhada é a mediação entre eles. Quando um conjunto prático-inerte é assim constituído, se o seu desenvolvimento se faz mais lentamente, pode – este é o segundo momento – ser o objeto de análise estrutural. Mas esses movimentos mais lentos não deixam de ser evoluções: pode-se estudar as instituições da república romana, mas – este é o terceiro momento - esse estudo em si mesmo remete ao das forças profundas e desequilíbrios que as fazem deslizar lentamente até as instituições do império. Assim o estudo estrutural é um momento de uma antropologia, que deve ser por sua vez histórica e estrutural. A esse nível, coloca-se a questão filosófica, aquela da totalização: o agente volta a ser sujeito-objeto, posto que se perde nesse feito. A filosofia começa no momento em que o vínculo dialético história-estrutura nos revela que, em todos os casos, o homem – enquanto que membro real de uma sociedade dada, e não enquanto que abstrata natureza humana – é um quase-objeto para o homem. Não se trata de um conhecimento do objeto nem de um conhecimento do sujeito por ele mesmo, mas de um conhecimento que, enquanto temos que ver com sujeitos, determina o que pode ser alcançado considerando que o homem é por sua vez objeto, quase objeto e sujeito, e que por conseguinte o filósofo está sempre situado com relação a ele. Neste sentido, pode-se conceber um fundamento da antropologia que delimitaria limites e possibilidades do homem para alcançar a si mesmo. O campo antropológico vai do objeto ao quase objeto, e determina os caracteres reais do objeto.

A questão filosófica é, primeiro: como passar do quase-objeto ao objeto-sujeito e ao sujeito-objeto; esta questão pode ser formulada assim: como um objeto deve ser para que possa apreender-se como sujeito (o filósofo forma parte da interrogação), e como um sujeito deve ser para que nós o apreendamos como quase-objeto (e no limite como objeto). Em outros termos: o conjunto dos processos de interiorização e reexteriorização, define o domínio da filosofia enquanto esta busca o fundamento das suas possibilidades. O desenvolvimento da antropologia, mesmo que ela venha a integrar todas as disciplinas, não suprimirá jamais a filosofia enquanto esta questiona o homo sapiens mesmo e por esse lado o põe em alerta contra a tentação de o objetivar. Mostra-lhe que se o homem é, no limite, objeto para o homem, é também aquele pelo qual os homens realizam objetos. A este nível coloca-se novamente a questão: É possível a totalização?

P.: Existem ciências humanas autónomas, ou antes existe uma ciência do homem e diversas antropologias para tratar as mediações que intervém na relação do homem com o mundo? Pode estabelecer-se de dentro uma unidade?

R.: Se a unidade não está no princípio, não será dada no final, aparecerá uma coleção. A partir de uma certa intenção comum há uma diversificação, mas que não tem sentido senão na medida em que se expressa dentro de uma mesma preocupação. No fundo existem duas preocupações: uma é tratar o homem em exterioridade, por isso é indispensável tomá-lo como um ser natural no mundo e estudá-lo como objeto, a esse nível da diversificação não vem da intenção, que é a mesma, tanto quanto não se pode estudar tudo de uma vez. A outra tendência é retomar sempre o homem em interioridade. Há um momento de diversificação que vem do homem objeto e que deveria supor o momento dialético de totalização. Existem muitas disciplinas separadas, mas nenhuma disciplina tem inteligibilidade por si mesma.

Todo o estudo fragmentário remete a outra coisa, por detrás de cada conhecimento fragmentário está a idéia de uma totalização dos conhecimentos. Todo o estudo é um momento analítico de racionalização, mas supõe uma totalização dialética. Considero o marxismo, tal como deveria desenvolver-se, como esse esforço para reintroduzir a totalização. Certos marxistas de hoje, arrastando-se ao estruturalismo, roubam ao marxismo as suas possibilidades totalizadoras.

P.: O modelo linguístico: pode ser o modelo de inteligibilidade de todos os fenómenos humanos?

R.: O modelo linguístico em si mesmo é ininteligível, se você não o remeter ao homem falante. Ininteligível a menos que não o apreendamos através de um informe histórico de comunicação. Mas há que falar. A verdadeira inteligibilidade da linguística remete-nos necessariamente à práxis. O modelo linguístico é o modelo de estrutura mais claro, mas remete necessariamente a outra coisa, à totalização que é a palavra. Eu faço a língua e ela faz-me. Há um momento de independência que é propriamente linguístico, mas esse momento deve ser considerado como provisório, como um esquema abstrato, um estancamento. Enquanto não é superado pela comunicação, a linguagem pertence ao prático-inerte. Nele reencontramos uma imagem invertida do homem, o inerte que está dentro, mas é uma falsa síntese.

O modelo sustenta-se no inerte. Todo o modelo estruturalista é um modelo inerte. O homem perde-se na linguagem porque ele mesmo mergulha dentro dela. Em linguística estamos ao nível da síntese inerte.

P.: Qual é a significação antropológica de seu conceito de totalidade-destotalizada?

R.: A noção de totalidade-destotalizada tem, por sua vez, pluralidade de sujeitos e ação dialética do sujeito e dos sujeitos sobre uma matéria, que é mediação entre estes. Chamo totalidade-destotalizada ao momento da estrutura, precisamente. Nesse momento, é a intelecção quem deve intervir primeiro. São as diversas disciplinas, economia, linguística... Que devem inteligir, que devem aproximar-se ao modelo científico das ciências da natureza, porque não há na natureza sínteses inertes. A passagem da intelecção à compreensão é a passagem do estancamento de onde se trata de analisar os dados ou de descreve-los, estancamento analítico e também fenomenológico, da dialética. É necessário voltar a colocar o objeto estudado na atividade humana; não existe compreensão senão da práxis e não se compreende senão pela práxis. A compreensão torna a colocar no interior dela mesma, a título de totalização prática, o momento analítico do estudo estrutural. Aparece o momento da intelecção, que é o do estudo linguístico, momento analítico que é a razão dialética do grau zero. A compreensão é, depois do estudo do modelo, vê o modelo em marcha através da História. O momento da compreensão total, será o momento em que se compreenderá o grupo histórico pela sua linguagem, e a linguagem pelo seu grupo histórico.

P.: No plano de sua crítica das tentativas positivas e gestaltistas (Kardiner e Lewin) de constituir disciplinas antropológicas: Você pensa que uma antropologia compreensiva retomará os dados descobertos por essas disciplinas sem mais, ou melhor, que a adição do fundamento humano às disciplinas antropológicas, transformará aquelas? Em outros termos: Não é verdade que uma antropologia verdadeira nos permitirá compreender os discursos e a gestão do positivismo em sua significação social e humana?

R.: Se tivermos que retomar o positivismo, é necessário transformá-lo. Contra o positivismo que queria dividir o conhecimento, o verdadeiro problema é que não há verdade parcial, campo separado; que a única vinculação entre elementos diversos de um conjunto em vias de totalização deve ser aquele das partes às partes, das partes ao todo. Devemos sempre tomar o todo desde o ponto de vista da parte, e a parte desde o ponto de vista do todo. Isto supõe que a verdade humana é total, isto é, que há uma possibilidade, através de destotalizações constantes, de apreender a História como totalização em curso. Todo o fenómeno estudado não encontra a sua inteligibilidade a não ser na totalização de outros fenómenos do mundo histórico. Somos, cada um de nós, um produto desse mundo e expressa-mo-lo de maneiras diversas, mas expressa-mo-los totalmente enquanto estamos ligados à totalidade. Em cada grupo, eu vejo um certo tipo de relação da parte com o todo. Na medida em que expressamos aqui a realidade da guerra do Vietnam, pode dizer-se que as pessoas do Vietnam expressam-nos. O objeto da História é testemunha do sujeito, tanto quanto o sujeito é testemunha do objeto. Assim mesmo, podemos dizer que o proletariado e o patrão definem-se reciprocamente pela sua luta. Há um certo tipo de relação própria de Sant-Nazaire, em outra parte, outra tática, outra luta. Podemos dizer que um patrão de Saint-Nazaire expressa os seus operários, da mesma maneira que o operário expressa o seu patrão.

P.: Tem feito uma distinção entre o principio metodológico e o princípio antropológico. O princípio antropológico define o homem pela sua materialidade, Marx tinha definido a materialidade do homem mediante duas características, a saber a necessidade e o nível de sensibilidade. Você pode explicar o sentido que dá à materialidade do homem?

R.: A materialidade é o facto de que o ponto de partida é o homem como organismo animal criando conjuntos materiais a partir de suas necessidades. Quando não se parte disso, nunca se terá um conceito justo daquilo em que o homem é um ser material. Não estou totalmente de acordo com um certo marxismo sobre as superestruturas, a distinção entre infra e superestrutura não existe no sentido em que penso que as significações profundas estão dadas desde o princípio. O trabalho é uma postura diante do mundo, e esta varia segundo um utensílio. Não se tem que fazer ideologia de uma coisa morta, desde que a ideologia se situa no nível do trabalhador que apreende o mundo de certa maneira. Se considerarmos a ideia ao nível filosófico – Lachelier ou Kant – é a morte da ideia. O trabalho já aparece como ideológico, e o trabalhador cria-se através do uso de utensílios. A verdadeira ideia está no nível do operário, do útil, do instrumento, das relações de produção.

P.: I. A questão da relação do campo psicanalítico e da experiência instaurada por esse campo, da dimensão de existência que ele instaura e dos fundamentos de sua reflexão, constituirá o objeto de uma pergunta, de uma interrogação. Eu considero que a teoria dos conjuntos práticos como uma ontologia da consciência, que se prossegue e se determina melhor. O problema da relação de sua ontologia da consciência e da psicanálise, coloca-se a partir da “negação”, que é o centro de sua existência comprometida. Dessa negação você tem feito o recurso de seus protestos e do reconhecimento humano – uma negação humanizada -. Ela está vinculada a uma interpretação da consciência intencional, do para-si como negação de si e do todo revelado como de todo dado que revela; do para-si como nada de ser que se sustenta ao preço de uma perpétua aniquilação de si, ao preço de uma transcendência, incessante facticidade. Você tem mostrado ao para-si, essa liberdade prática, determinada por sua objetividade histórica – tendendo a superar por uma “praxis” revolucionária do trabalho alienado -, essa “práxis” original.

II. Mas o problema da negação, que é o para-si, existe e recoloca o problema da alteridade ao ponto em que a psicanálise descobre sua ascensão – a partir de um lugar que é o lugar de um discurso -, o discurso do outro. Gostaria então que você precisa-se exatamente a relação que estabelece com Lacan, e que nenhum de seus textos que eu conheço precisa. Qual é a relação entre a consciência e o outro simbólico? A consciência como negação desse outro – como negação do discurso desse outro -, não está condenada a engendrar toda a linguagem, ou melhor, a substituir a reflexão à palavra? Não é a negação do outro simbólico, o não da ausência desejada que se volta contra o sujeito para deixá-lo com uma consciência vazia, aniquilante, negação de si obrigada a impugnar sem cessar para reconhecer?

Assim, a consciência prática está ligada à necessidade cuja satisfação supõe um corpo indiferenciado. O trabalho ainda desalienado, dá ao corpo uma diferença sexual – não supõe o trabalho, a “práxis”, uma desaparição do mundo, uma neutralidade do corpo?

R.: Na sua pergunta há, para começar, uma confusão entre negação e aniquilação. A aniquilação constitui a existência mesma da consciência, enquanto que a negação se faz ao nível da práxis histórica; é acompanhada sempre de uma afirmação, um se afirma negando e se nega afirmando.

Você faz-me uma objeção não dialética, a saber: a negação não vai conduzir à negação do outro? Você toma a negação como se não houvesse o seu contrário. Eu reprovaria na psicanálise a sua insistência em ficar no plano não dialético. Você pode considerar que todo o projeto é uma fuga, mas você deveria também considerar que toda a fuga é um projeto. Sempre que há fuga, é necessário ver se não há afirmação pelo outro lado. Flaubert, fugindo, pinta-se. Na luta de Flaubert contra uma situação invertida, existe um primeiro momento negativo. Essa negação condu-lo a confusões de linguagem, solipsismos e lirismos; contudo, não é Madame Bovary, mas realiza-se como signo de um grande talento futuro. Nós não explicamos as obras de juventude, se não admitimos que essa negação não pode fazer-se salvo sob a forma de uma afirmação. Acreditando repelir a sua condição, ele entregava-a. A Peste em Florença, obra escrita na idade de quatorze anos, dá muitas mais informações sobre ele que os seus escritos desde os dezassete aos dezanove anos, onde pinta a adolescência em geral. Na medida em que fugia de si mesmo, se pintava. Começa a ler as suas obras para os seus amigos e instaurar um certo tipo de comunicação. Levando o caso de Flaubert à dialética como método, eu diria que a dialética deu voltas.

O terceiro termo é forçosamente uma pessoa, “o outro simbólico” pode ser público. A relação com o público não é uma relação com um terceiro simbólico, existe realmente sem que tenha necessidade de proximidade imediata. Flaubert tinha uma visão muito clara do seu público, uma certa maneira de vê-lo. Mas esse terceiro não era simbólico posto que era real. A relação com o público é uma realidade, e não a inserção de um terceiro que não existiria. Flaubert escreve para negar o seu estado de criança atrasada, para afirmar-se, para recuperar a linguagem; ele apoderou-se da linguagem porque o negaram. Escreve para fazer-se reconhecer pelo doutor Flaubert. O reconhecimento do pai passa pelo reconhecimento da família, pelo público – terceiro diminuído – o elemento a convencer é o pai.

Flaubert estava condenado por essa negação a ver escapar-lhe a linguagem? Penso que a linguagem tinha escapado de Flaubert aos três anos, com isso quero dizer que era um filho não desejado, sobreprotegido, passivo. Não tinha um tipo de comunicação original, a linguagem era algo mágico, o outro em si mesmo e não o reconhecimento. Flaubert não começou a ler precocemente, havia uma espécie de ruptura de comunicação que fazia dele uma criança atrasada. Escreve para recuperar a linguagem, a negação tinha vindo de fora, a negação da negação é uma afirmação; escreve porque a linguagem é para ele um reconhecimento mágico.

Estou de acordo com as análises dos psicanalistas, sobre o fato de que há um conjunto de elementos estruturais dos quais não dá conta a filosofia; mas Madame Bovary não é uma série de compensações, mas também um objeto positivo, uma certa relação de comunicação com cada um de nós.

A imagem é uma ausência, mas isso não significa que o único vínculo entre os homens seja a ausência-presença, existem esquemas intermediários. No que concerne à estrutura inconsciente da linguagem, devemos ver que a presença de certas estruturas de linguagem dão conta do inconsciente. Para mim, Lacan tem clarificado o inconsciente enquanto que contra-finalidade da palavra: conjuntos verbais se estruturam como conjunto prático-inerte através do acto da fala. Esses conjuntos expressam ou constituem – e na mesma medida em que estou de acordo com Lacan -, há que conceber a intencionalidade como fundamental. Não há processo mental que não seja intencional; não há, portanto, nenhum que não seja tragado, desviado, traído pela linguagem; mas reciprocamente, nós somos cúmplices dessas traições que constituem a nossa profundidade.

Estou longe de impugnar a existência de um corpo sexual, nem a da sexualidade como necessidade fundamental que implica no seu desenvolvimento uma certa vinculação com o outro. Constato apenas que essa necessidade depende da totalidade individual: o estudo de factos de subalimentação crónica mostra que a ausência de proteínas na alimentação leva ao desaparecimento da sexualidade como necessidade. Por outro lado, as condições de trabalho – a brusca migração de camponeses para a cidade e as novas atividades, que entram em contradição com o seu antigo ritmo de vida -, podem trazer a impotência desde os vinte e cinco aos vinte e oitos anos. A necessidade sexual não pode superar-se até o outro sob forma de desejo, se não acontecem certas condições históricas e sociais. Noutros termos: a verdadeira função da análise é a de uma mediação.


Entrevista de Jean-Paul Sartre à "Cahiers de Philosophie", Paris: Institut d'Art Contemporain, nº 2, fevereiro de 1966. Trad. Walter Matias Lima. Edição deste blog.

Ian Buruma (2014)

Valor: Em seu mais novo livro, 1945 é apresentado como o ano zero da era contemporânea. Por que não 1914, com o começo do fim dos velhos impérios europeus, ou 1918, com o fardo imposto à Europa Central pelo Tratado de Versalhes?

Ian Buruma: São dois marcos importantes e podemos pensar em paralelos históricos, mas precisamos considerar diferenças importantes. A primeira delas é a ideia, clara entre os Aliados, de que a Segunda Guerra, ao contrário da Primeira, era, de fato, “justa”. Acreditava-se profundamente que era preciso lutar. Entre 1914 e 1918, as razões de enfrentamento foram diversas e muito mais nebulosas. Outra diferença fundamental é o fato de que algumas lições da Primeira Guerra haviam sido aprendidas em 1939 e houve, com o fim das hostilidades, seis anos depois, uma tentativa real de não se repetir certos erros. Os julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg e no Japão, são o exemplo mais claro, mas podemos ir além: a ONU é uma instituição mais ambiciosa do que a Liga das Nações e até mesmo as terríveis limpezas étnicas na Europa Central e Oriental no pós-Segunda Guerra, que relato no livro, têm um caráter diferente do da vingança orquestrada e institucionalizada em Versalhes.

Valor: Esse não é seu primeiro livro sobre a Segunda Guerra. O senhor lançou, há 20 anos, “Wages of Guilt: Memories of War in Germany and Japan”. O que o estimulou a voltar ao tema?

Buruma: Em “Wages” tratei especificamente da maneira como o conflito é lembrado no Japão e na Alemanha. O fio da meada para “Ano Zero” foi a história recuperada de meu pai, quando ele retornou da Alemanha para sua cidade na Holanda e viu como a necessidade da população local de voltar à normalidade incluía, por exemplo, trotes violentos em sua universidade. O que se aprendeu, afinal, com o conflito? Que tipo de mundo se criou a partir de tamanha destruição, e o que mantivemos do passado, se é que havia essa possibilidade em meio a tanta ruína? Ao mesmo tempo, reflito sobre esse novo mundo, iniciado em 1945, que parece estar gradualmente se acabando, chegando, agora mesmo, enquanto conversamos, próximo de seu fim.

Valor: O senhor também trata do esquecimento recente das lições de 1945...

Buruma: Sim, a quantidade de pequenas guerras comandadas nas últimas décadas pelos EUA, culminadas em invasões cujas consequências não foram levadas em consideração, também me instigaram a escrever “Ano Zero”. Foram guerras comandadas nos EUA e Europa por líderes inexperientes, comandantes civis e militares que nunca haviam tido a experiência real de guerra, nem mesmo no Vietnã. Talvez por isso tenham sido ingênuos o suficiente para acreditar na fórmula de enviar tropas, derrubar o ditador da hora e pronto. Obviamente, essas ocupações, como podemos observar agora no Iraque e no Afeganistão, criam novos problemas, incitam rebeliões, semeiam o caos. Humildemente, achei que era um bom momento para lembrar as pessoas das reais e duradouras consequências das ocupações civil-militares. Voltei, pois, à Segunda Guerra.

Valor: Um dos aspectos mais definidores de “Ano Zero” é sua decisão de contar a história a partir de personagens mais ou menos comuns, ignorando teorias históricas sobre o período abordado.

Buruma: Sim, foi algo que decidi logo no início das minhas pesquisas: estão proibidas nesse livro declarações de acadêmicos ou historiadores. Somente contaria com depoimentos de testemunhas, de gente que viveu o conflito, incluindo diários, relatos, reportagens. A experiência pessoal e a capacidade de descrever o mundo em transformação à sua volta usando seus olhos foi um pré-requisito para determinado trecho, fato ou relato entrar no livro. Não queria escrever mais um livro oferecendo alguma teoria histórica inovadora sobre as causas e efeitos da Segunda Guerra. Meu objetivo foi o de criar, tal qual um romancista, um quadro da vida cotidiana naquele momento e locais específicos. A ideia era levar a vida daquela gente, em 1945, para o livro.

Valor: Um de seus personagens é Nobusuke Kishi, importante na terrível campanha da Manchúria. Ele jamais é julgado e sai da prisão para se tornar, no fim dos anos 50, primeiro-ministro do Japão. Para o senhor, a ocupação aliada do Japão e da Alemanha nazista, mesmo com a permanência no palco público de atores importantes no teatro de guerra, foi muito mais inteligente do que a do Iraque e do Afeganistão na primeira década deste século, não?

Buruma: Nesse aspecto, 1945 oferece uma lição política para as atuais gerações. Quando a invasão do Iraque começou, falava-se da necessidade de destruir o Partido Baath, de Saddam Hussein, da “desbaathificação” do país. O modelo usado pelos neoconservadores era o que eles imaginavam ter sido a “desnazificação” da Alemanha. Mas eles não perceberam que o Iraque ficaria ingovernável se toda a elite sunita fosse marginalizada. Obviamente, era preciso fazer algo em relação aos mandachuvas da ditadura, mas é de uma ingenuidade ímpar desmantelar toda a burocracia estatal e querer governar o país ocupado a partir do zero. O resultado foi a anarquia a médio prazo e o risco de uma guerra civil de longa duração. Esse foi um caso terrível de falta de conhecimento cultural dos que estavam no comando.

Valor: Com o fim da Guerra Fria, o senhor diria que a integração econômica, desde o “ano zero”, em formas diversas, serviu de nova barreira para evitar a eclosão de um conflito de proporções globais?

Buruma: Antes de mais nada, precisamos lembrar que a economia europeia, em 1914, era muitíssimo integrada. E já havia a Liga das Nações. Então, não se trata de uma barreira tão forte assim. Mas interdependência econômica sempre ajuda. Como imaginar os EUA em guerra com a China? Seria economicamente terrível para os dois países. O federalismo, por sua vez, tem seus limites. Veja a Comunidade Europeia. Como classificar essa instituição federalista? Não é uma democracia liberal. Não é um império. Não é uma monarquia. É um híbrido que ninguém de fato deseja. O idealismo de 1945 ofereceu à Europa a possibilidade de criação de uma série de instituições fabulosas, mas as melhores intenções às vezes mascaram graves problemas para o futuro.

Valor: Para o senhor, três das heranças mais importantes de 1945, especificamente no mundo ocidental, mas não só, foram a consolidação da democracia liberal, a defesa do Estado de bem-estar social e o combate moral das desigualdades sociais. O que observamos desde os anos 1980, no entanto, é o questionamento desses três pilares incrementados no “ano zero”, não?

Buruma: Sim. O fim da Segunda Guerra trouxe, como um de seus efeitos principais, uma “explosão de idealismo”, em que a construção de um mundo mais justo, mais igual, se tornou imperativa. Mas esse idealismo não pode durar para sempre. Ele ficou mais caro com o passar do tempo. Os interesses da burocracia e dos sindicatos ganharam poder com a rigidez desse idealismo e se tornam alvos de outros setores, críticos dos limites da social-democracia e da solidificação do Estado de bem-estar social. O que se vê, hoje, no Hemisfério Norte, são os últimos suspiros desse momento histórico.

Valor: O senhor vê alguma “explosão de idealismo” no momento, o aparecimento de pensadores interessados em criar alternativas ao capitalismo de Estado chinês ou ao neoliberalismo euro-americano?

Buruma: Decididamente, não. A esquerda parou no tempo. Os ideais clássicos de esquerda se revelaram, na prática, ou muito caros, ou muito rígidos, ou acabaram cooptados por interesses corporativos. O colapso do império soviético no fim dos anos 80 e começo dos 90 ainda nutre, duas décadas depois, terríveis sequelas, de certa forma subtraindo o crédito de tudo o que esteja relacionado ao marxismo. A base ideológica da esquerda foi varrida do mapa. E nada ocupou de fato o espaço da velha esquerda do século XX na era do materialismo individualista em que vivemos.

Valor: As políticas de redistribuição de renda no Brasil não dariam a pista de um caminho possível para as esquerdas neste milênio, como, por exemplo, na denúncia da desigualdade social que se vê hoje nos Estados Unidos?

Buruma: Sim, mas especificamente para a esquerda latino-americana ou, quiçá, a de parcela significativa do Hemisfério Sul. Os caminhos da América Latina, desde o “ano zero”, foram bem diferentes dos da Europa Ocidental, por exemplo, que experimentou a social-democracia a partir de 1945. As seguidas ditaduras e governos de direita ao sul do Rio Grande ofereceram uma reação natural na figura, por exemplo, de um Lula. Uma encarnação de esquerda que classifico de moderada e, ouso dizer, provavelmente saudável para o Brasil. Mas não vejo como os dois principais modelos de social-democracia oferecidos à sociedade brasileira poderiam ser aplicados fora da América Latina.

Valor: O senhor ocupa a cadeira de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo da Universidade Bard. E há de considerar que esses três importantes pilares da vida social mudaram muito desde 1945, não?

Buruma: Enormemente. E o jornalismo, provavelmente, foi o que se transformou de forma mais radical, por causa da emergência da era digital. A maior preocupação que tenho é com a qualidade do chamado jornalismo internacional, vital para a aproximação e compreensão de culturas, função exercida pelos correspondentes durante todo o século XX. Mas as empresas não conseguem mais bancar esses profissionais, o que é uma tremenda perda. E se o acesso via internet aumentou a sensação de conexão com o estrangeiro, a autoridade da imprensa diminuiu decididamente. A internet, com as redes sociais, não reconhece mais a autoridade do jornalista. Ela se tornou o reino das opiniões, dos desabafos, dos diários disfarçados de notícia. Os filtros se foram, há de tudo no mesmo saco: reportagens de alta qualidade, opiniões de todos os naipes e importância, polêmica gratuita, tudo dividindo o mesmo espaço. Espaço que, talvez, até seja mesmo muito mais democrático, no entanto carente da importância e da capacidade de interferência de antes.

Valor: Por outro lado, a era digital ofereceu a possibilidade do desmascaramento de delitos oficiais, dos vazamentos de informação sigilosa, em uma proporção jamais vista.

Buruma: Sem dúvida, mas então precisamos deixar algo muito claro: isso não é jornalismo, é uma outra coisa, algo completamente diferente. Revelar dados não é jornalismo. Jornalismo é quando o “Guardian” ou o “New York Times” exercem sua capacidade de edição, de decidir o que é mais ou menos vital, o que deve ser publicado, e como esses documentos serão explicados, seu contexto, sua importância. Edward Snowden precisou de um jornalista e dos velhos dinossauros da imprensa escrita para divulgar seus achados.

Valor: Passemos aos direitos humanos. Houve, nas últimas sete décadas, uma avanço inegável nessa área, não?

Buruma: Sim, mas talvez tenhamos ido longe demais. A defesa dos direitos humanos se tornou quase uma religião, uma versão laica das missões cristãs. A ideia de guerras modernas em outros países, justificadas pelo ideário dos direitos humanos, é um equívoco prático, com a inevitável transformação do que era ruim em algo muito pior. Veja a Líbia. O resultado da deposição de Muamar Gadafi, em um primeiro momento fato histórico difícil de não considerar positivo, foi a produção de uma sociedade civil ainda mais violenta. Os direitos humanos só podem ser de fato universais se você os estreita a pontos racionalmente globais, como, por exemplo, o direito de não ser torturado. Quanto mais você os alarga, mais difícil se torna a tarefa de aplicá-los universalmente, ao menos de forma honesta.

Valor: O senhor mencionou a crença dos aliados de que 1945 foi uma “guerra justa”. Onde o senhor estabeleceria o limite do uso da força com a justificativa da defesa dos direitos humanos?

Buruma: Direitos humanos e dogmatismo não podem caminhar juntos. Há casos em que é preciso usar força militar para impedir, por exemplo, genocídios ou limpezas étnicas, mas não pode ser nunca a norma. Chegamos ao limite da ideia de que temos de intervir sempre que se detectar abuso de direitos humanos. Essa pode ser até, paradoxalmente, a semente para a criação de um novo Hitler.

Valor: Ao mesmo tempo, a justificativa de ações militares em “guerras justas”, guiadas pela necessidade de proteger a população de povos estrangeiros de seus governantes, tem força moral diminuída quando se enfrenta a crítica do desrespeito aos direitos humanos em casa.

Buruma: Sim, e imagino que você esteja se referindo à prisão de Guantánamo. Uma crítica honesta à administração Obama é justamente a timidez em relação às violações de direitos humanos praticadas pelos EUA. Não houve uma mudança política significativa de rompimento com as diretrizes da era Bush. A principal diferença é que Bush usava de forma cínica a noção de intervenção humanitária para justificar ações militares. Os “neo-cons”, curiosamente, usaram esse viés missionário cristão e se apropriaram, de certa forma, do ideário da velha esquerda, ocupando, nos EUA, o posto de internacionalistas da hora, acreditando de fato que tinham o dever moral de intervir e estabelecer democracias mundo afora. Alguns dos principais colaboradores de Obama, como a chefe da missão dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power, comungam, pelo viés liberal, do mesmo ideário, mas trata-se, em geral, de uma administração mais cautelosa, como se viu recentemente na Síria.

Valor: E a democracia? Há de fato uma crise do modelo das democracias liberais?

Buruma: Os governos nacionais, desde o “ano zero”, foram gradualmente perdendo sua importância, submetidos ao interesse de corporações globais poderosíssimas, que ultrapassam os limites históricos da nação. Consequentemente, as pessoas que elegemos são cada vez menos efetivas para lidar com o mundo à sua volta. Cria-se uma crise de confiança: mais e mais pessoas acreditam que a democracia liberal e a classe política não são mais aptas a nos governar. O resultado é a emergência de magnatas como Berlusconi, na Itália, ou, em países com economia em desenvolvimento, como Egito, Tailândia, Turquia e Ucrânia, uma crescente oposição de interesses entre a elite urbana e as populações interioranas. Há um consenso democrático de que todos os egípcios, turcos e tailandeses devem ter o direito ao voto. Mas também há uma enorme dificuldade de entender que o eleitor nos grotões desses países elegerá candidatos de acordo com seu interesse regional, quase sempre diverso do das elites urbanas e, muitas vezes, desrespeitando uma das fundações da democracia: a garantia dos direitos das minorias, outra herança importante do “ano zero”.


Entrevista de Eduardo Graça para a revista Valor Económico em janeiro de 2014 (fonte)

Tom Holland (2012)

ÉPOCA – Como surgiram as dúvidas em relação à história do islamismo?

Tom Holland – Nos anos 1950 e 1960, historiadores começaram a estudar os hadiths, as citações de Maomé, e a questionar se eram realmente do tempo do profeta. Quando ficou claro que, nesse caso, as “provas” que a tradição islâmica oferecia eram fracas, a estrutura toda começou a ruir. As biografias do profeta, os comentários ao Corão, as informações sobre o surgimento do islamismo, tudo ficou sob suspeita. Recentemente, os historiadores começaram a se perguntar se aquilo que os historiadores islâmicos dos séculos IX e X escreveram sobre o começo de sua fé era historicamente verdadeiro. A conclusão tem sido que, para entender o islamismo, as fontes islâmicas não são suficientes. Assim como se questiona se as narrativas sobre a vida de Cristo, escritas dois ou três séculos depois que as coisas aconteceram, correspondem aos fatos, o mesmo começa a ser feito com o islã.

ÉPOCA – Como surgiu a história do islã que conhecemos hoje?

Holland – Os bispos que triunfaram no Concílio de Niceia, no século IV, reescreveram a história do cristianismo para assegurar que houvesse uma única narrativa, linear, desde os tempos de Cristo. Provavelmente ocorreu o mesmo no islamismo. Existem diferentes interpretações dentro do islã, que parecem recuar no tempo até o século VII. Aquilo que conhecemos hoje como islamismo demorou pelo menos tanto tempo quanto o cristianismo para se consolidar. A história mostra que religiões e grandes civilizações não emergem formadas. Elas surgem pela confluência de circunstâncias e influências. Evoluem lentamente.

ÉPOCA – O senhor diz que o Corão é composto de várias influências – inclusive mitologia grega –, mas afirma que como documento histórico ele é sólido. Como é isso?

Holland – Quando se estudam as citações atribuídas a Maomé (os hadiths), percebe-se nitidamente que foram moldadas pelo período em que foram escritas. Elas contêm alusões claras a eventos históricos que tiveram lugar décadas e mesmo séculos depois da morte do profeta. Com o Corão, não é assim. Tanto quanto podemos perceber pelas cópias mais antigas, parece que todos aqueles que o copiaram agiram como se estivessem lidando com algo extremamente sagrado. Eles tentavam não mudar nada. Mesmo quando havia problemas entre o texto do Corão e rituais e leis islâmicas correntes, o texto foi preservado. Por exemplo, os muçulmanos rezam cinco vezes ao dia, e isso parece ter origem nas práticas do zoroastrismo, a religião dos persas. Mas o Corão diz que se deve rezar três vezes. Não se tentou alterar o texto do Corão para adequá-lo à realidade, embora isso pudesse facilmente ter sido feito. Ao que tudo indica, o Corão foi tratado como o livro mais sagrado, com que não se podia brincar. Portanto, o texto que temos hoje parece ser algo original, que veio de um período remoto e foi preservado através dos séculos.

ÉPOCA – O Corão foi escrito quando se diz que ele foi escrito?

Holland – Um de nossos desafios é descobrir precisamente de que período veio esse documento. A tradição islâmica diz que esse texto emergiu pronto da boca de alguém chamado Maomé, que viveu num certo período (570-632 d.C.). O peso das evidências dá apoio à tradição. O Corão parece aludir a episódios que tiveram lugar no início do século VII, um dos quais é uma derrota romana para os persas, que ocorreu na Palestina, exatamente no período em que a tradição diz que o profeta viveu. Há também uma passagem referente a Alexandre, o Grande. Ela ecoa, quase palavra por palavra, um texto escrito no Irã em 630 por um sírio ligado ao Império Romano. Essa é a data mais antiga em que podemos identificar uma fonte no Corão, e ela corresponde ao que nos informa a tradição. Uma vez que você aceita isso, pode aceitar o Corão como uma fonte de informação legítima, primária, capaz de nos dar pistas sobre onde, como e por que Maomé agia.

ÉPOCA – O senhor diz que Meca talvez não tenha sido o lugar onde Maomé nasceu e deu origem ao islamismo. Por quê?

Holland – Meca é um problema. De acordo com a tradição islâmica, ela era uma cidade pagã, sem traços de comunidades cristãs ou judaicas, e estava localizada num deserto. Maomé, vivendo ali, era analfabeto, porque não poderia ter aprendido a ler. Entretanto, no Corão há centenas de referências a profecias judaicas e cristãs. A Virgem Maria aparece no Corão mais que no Novo Testamento. Não só o profeta parece familiarizado com essas citações, como parece contar com uma audiência igualmente familiarizada com as tradições bíblicas – embora a tradição afirme que em Meca havia apenas pagãos. Algo ainda mais problemático é Meca ser mencionada uma única vez no Corão, de uma forma ambígua. Pode ser uma referência a um vale tanto como a uma vila. Não está claro. E nenhuma outra fonte do período menciona a cidade. De nenhuma forma. A primeira vez que o nome da cidade aparece é em 741. Quase um século depois da morte de Maomé. Mesmo assim, a cidade é localizada num deserto no interior do atual Iraque, não na Arábia. Não acho que Maomé seja originário de Meca. Ele provavelmente veio mais do norte. As evidências do Corão sugerem isso.

ÉPOCA – Por que a tradição islâmica situa o nascimento da religião em Meca?

Holland – Justamente porque ela é tão remota, tão isolada. Se você acredita que o Corão veio direto de Deus, você tem de deixar claro que não poderia ter vindo de nenhuma fonte mortal. O paralelo é com a virgindade de Maria, na tradição cristã. Se os cristãos acreditam que Jesus é o filho de Deus, divino, eles não podem tolerar que Jesus seja filho de um pai terreno. Logo, Maria tem de ser virgem. Então, se o Corão é divino, se vem diretamente de Deus, os muçulmanos não podem tolerar nenhuma menção de que ele possa ter vindo de influências judaicas ou cristãs. Eles precisavam situar sua origem num lugar o mais remoto possível. Esse lugar é Meca.

ÉPOCA – Qual sua conclusão sobre Maomé? Ele existiu ou é apenas uma lenda?

Holland – Tenho certeza de que existiu. A dificuldade está em saber quanto mais do que isso podemos dizer. Sabemos que ele existiu porque há um texto de propaganda cristã, em 634, que descreve os árabes num ataque à Palestina sob a liderança de um “profeta dos sarracenos”. Quem poderia ser senão Maomé? Isso parece demonstrar, no mínimo, que alguém muito parecido com Maomé estava ativo na Palestina durante aquele período. Mas Maomé, de acordo com a tradição islâmica, morreu em 632. O mesmo texto que confirma a existência do profeta contradiz a tradição sobre a data de sua morte.

ÉPOCA – O que os muçulmanos acham de seu livro e de suas conclusões?

Holland – Isso depende. Alguns estão furiosos. Outros reconhecem que o debate é parte do processo de que emergirá uma forma ocidental de islamismo. Na tradição ocidental, é natural que a religião seja alvo de investigação intelectual e acadêmica. Agora que o islã está se tornando uma religião europeia, ele será alvo do mesmo tipo de abordagem histórica que foi feita em relação ao cristianismo e ao judaísmo. Quase todos os muçulmanos com quem conversei foram muito generosos e abertos a respeito de minhas ideias.

ÉPOCA – O senhor não tem medo de sofrer perseguições por causa de seus pontos de vista?

Holland – Acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém que não é muçulmano duvidar que o Corão tenha vindo de Deus. A presunção muito difundida de que questionar a origem do islamismo significa receber automaticamente uma sentença de morte e que barbudos furiosos atacarão quem fizer isso está muito distante da verdade. A islamofobia assume que os muçulmanos são tão violentos e irracionais que, se você apenas questionar sua religião, eles virão matá-lo. Não acredito nisso. Essa imagem não corresponde a nenhum muçulmano que conheço.

ÉPOCAO escritor Salmam Rushdie talvez discordasse dessa afirmação.

Holland – Bem, Salmam Rushdie era originalmente muçulmano. No caso dele, havia uma acusação de apostasia (trocar uma religião por outra). Mas ele também estava fazendo um esforço deliberado de provocar. Defendo seu direito de fazer isso como artista, mas insultar propositalmente a figura do profeta é muito diferente de questionar as bases históricas do que sabemos a respeito dele.


Entrevista de Ivan Martins para a revista brasileira Época (fonte)

João Bénard da Costa (1994)


Público - Teve a noção, no dia 25 de Abril de 1974, que estava ali a queda do regime ou sentiu que era mais uma "tentativa"?
João Bénard da Costa - Tinha-me deitado tardíssimo na véspera, jantara com o Vasco Pulido Valente, que ficou até de madrugada a tentar convencer-me, numa imensa discussão, que o Marcelo tinha o poder garantido por mais 20 anos... E na manhã do 25 de Abril, sem saber ainda de nada - a não ser estranhar não haver trânsito nas ruas -, encontro o Villaverde Cabral à porta do Conservatório que me disse: "É agora!" "O quê?", perguntei. "É agora o fim do regime!" Bem, eu estava vacinado de fazer profecias que nunca se verificavam... E não sabendo rigorosamente nada sobre o MFA, com aquilo que estava a acontecer no Carmo percebi que era imparável. Embora hoje esteja menos convencido disso do que nesse dia. Se tem havido uma resistência militar a sério e com o que hoje se sabe sobre a preparação militar do 25 de Abril, se calhar ele teria abortado! A verdade é que ninguém esteve para arriscar. Só não foi tão excessivo como o 5 de Outubro, em que meia dúzia de oficiais mudaram o regime... Tudo isto para lhe dizer que na noite de 25 para 26 percebi que era irreversível.
P. - Para perceber alguns passos da história do 25 de Abril temos de voltar a trás. A história da sua geração, de que você é um dos emblemas, começa no fim dos anos 50. A política começou para si e para alguns dos seus amigos pela Acção Católica e pela JUC?
R. - Foi. A minha família era católica e ferrenhamente salazarista, com excepção do meu pai, que era democrata e tinha Churchill e a democracia inglesa por modelo. Mas a minha primeira grande influência veio de um cunhado meu, católico, que me tocou num ponto sensível - uma certa consciência moral, a ideia de que era impossível aos católicos, que eu era, conviver com o que chamávamos a "desordem estabelecida": um regime social injustíssimo, em que os pobres quase não tinham direitos, onde havia a censura, a PIDE e a tortura e onde se perpetuava o poder de uma minoria. Usando uma linguagem da altura, "um cristão não poderia aceitar aquilo"! Ninguém fazia nada para alterar as coisas e quem fazia era preso ou marginalizado. Cheguei assim à política por razões religiosas e morais.
P. - Depois, a faculdade cimentou tudo isso...
R. - Na universidade conheci gente cultural e politicamente inconformista e, sobretudo, encontrei uma geração a pensar como eu, mais precisamente na JUC, em 56-57, quando começa o jornal "Encontro", com um conteúdo completamente diferente de outra qualquer publicação católica. Havia muitos não católicos, à esquerda, que nos felicitavam pelo jornal. Entrei para a JUC no 2º ano, como militante de base, e com surpresa minha sou convidado pelo assistente, o cónego António Reis Rodrigues, para presidente-geral da organização. Tinha 21 anos, havia uma hierarquia, eu não esperava aquilo. Resolvi transformar a JUC, convicto de que - sendo ele embora mais moderado que eu - o conseguiria, porque estava convencido de que a Igreja também estava a mudar. Havia o bispo do Porto e as suas homilias, havia a carta pastoral "A miséria imerecida do povo português" e eu próprio cheguei a defender o cardeal patriarca dizendo que a sua visão era diferente da do Governo...
P. - Logo a seguir há as eleições de Delgado, em 58...
R. - O padre Rodrigues falou-me, na altura, pedindo-me que me abstivesse publicamente de tomar posições políticas, que se vivia um momento difícil para a Igreja, etc. Surge então um editorial no "Novidades" onde se fazia a apologia ao voto em Américo Thomaz, mas ingenuamente pensámos que se tratava apenas duma posição do director, monsenhor Moreira das Neves, sem repercussão na hierarquia. Escrevemos então uma carta - que foi o primeiro documento de fundo político elaborado por católicos -, assinada por João Salgueiro, Xavier Pintado, Rogério Martins, Pereira de Moura, entre outros, pedindo que o "Novidades" mantivesse a isenção que convinha à Igreja durante uma campanha eleitoral. Essa carta assumiu uma clara contestação à hierarquia e o padre Rodrigues lembra-me a minha promessa de não tomar posições. Ao que respondo que ela ia justamente no sentido de pedir que não se fizesse política... em nenhum dos lados. O desentendimento era irreversível, saí de presidente da JUC.
P. - Desiludindo o padre Rodrigues?
R. - Ele dizia que tinha preparado uma geração de rebeldes, que não tínhamos o sentido da Igreja, que afinal havíamos todos enveredado por uma via política. Acho que ele também vivia um momento de crise interior. No fundo, via-nos porventura como as pessoas que podiam continuar a aguentar o prestígio e o poder da Igreja numa futura sociedade civil. Enfim, como os sucessores de Salazar, com outras ideias e outra mentalidade...
P. - O que os norteava nesse caminho entre a Igreja, Deus e a política era já Emmanuel Mounier?
R. - Nesses anos foi mais o "Témoignage Chrétien", um jornal católico com um conteúdo bastante à esquerda que gostávamos de ler. A "Esprit" surge um pouco mais tarde, mas foi uma revista que me interessou de tal modo que fiz a tese de licenciatura sobre o personalismo e o pensamento de Mounier. Foi portanto a minha grande referência doutrinária e ideológica.
P. - Era aí que eu queria chegar: Mounier consubstanciava, para si, uma espécie de terceira via?
R. - Exacto, era a terceira via. Havia, nesse tempo, o existencialismo, por um lado, o marxismo, por outro; nós não tínhamos nada a ver nem com uns nem com os outros. Aquela terceira via afirmava uma série de valores cristãos, baseados no primado da pessoa, ao mesmo tempo que afirmava valores hostis ao regime.
P. - Quem estava consigo nessa altura?
R. - Muita gente: Nuno Bragança, Manuel de Lucena, Pedro Tamen, Manuel Lourenço, Luís Sousa Costa, Alberto Vaz da Silva, José Escada, Cristóvão Pavia - um espantoso poeta que morreu muito novo -, Nuno Portas... Era um grupo muito amigo e muito sólido. Identificávamo-nos numa linha que era simultaneamente política - nessa afirmação do personalismo contra o regime - e cultural - na recusa da literatura conformista do regime, mas também do neo-realismo defendido pelos comunistas e marxistas e que era o movimento literário vigente na esquerda portuguesa.
P. - É por aí, ou também por aí, que se chega a "O Tempo e o Modo"?
R. - Claro, queríamos fazer uma "Esprit" em Portugal, alguns de nós tinham experiência de jornalismo, por causa do "Encontro"; "O Tempo e o Modo" é uma consequência directa e imediata.
P. - Já se chamavam "católicos progressistas"?
R. - Já, embora recusássemos a expressão, porque ela tinha ao tempo uma carga pejorativa. Fora um movimento católico que no princípio dos anos 50, em França, se aliara aos comunistas e fora condenado pelo Papa. Aliás, Mounier dizia o mesmo na "Esprit": o grande erro deles foi pensar que era possível separar uma doutrina política de uma filosofia geral sobre a vida. E nós recusámo-nos inteiramente a isso e escrevemos diversas vezes que rejeitávamos um movimento que fora posto fora da Igreja. Pelo contrário: defendíamos uma total adesão à Igreja, já muito fortalecida quando, após a morte de Pio XII, veio o pontificado de João XXIII. Achámos que aquele Papa nos iria dar razão todos os dias com o concílio, a "Pacem in Terris"...
P. - "O Tempo e o Modo" é então a etapa seguinte e o terreno essencial desse combate?
R. - É. Decidimos fazer uma revista, mas faltavam-nos o dinheiro e os meios. Conhecemos o Alçada Baptista, que era mais velho, já estava formado e tinha a editora Morais. Foi o "coup de foudre": encontrámos nele a identificação total e os meios de andar para a frente. Ele seria o director, eu o chefe de redacção.
P. - Muito depressa "abriram" as páginas a não católicos... A revista foi, por isso, a semente de grande parte da oposição ao regime?
R. - Indiscutivelmente. Mas houve grandes discussões sobre se devíamos permanecer como um grupo católico ou abrirmo-nos a outras correntes, como o Mário Soares e o Francisco Salgado Zenha - que o Alçada dizia que seriam as duas pessoas que fora do círculo católico mais futuro teriam numa oposição política. Tanto o pensava que defendeu logo que eles entrassem para o conselho consultivo. Nós éramos seis e decidimos votar. Mas antes rezámos uma ave-maria para que a decisão fosse inspirada divinamente, e dessa ave-maria saíram o Soares e o Zenha - que eu nem sequer conhecia. Mas depois vieram outros, da geração de 62...
P. - Como olhava essa geração?
R. - Também não se situava nem no PC nem naquilo que foi o embrião do Partido Socialista, estavam mais à esquerda. E juntaram-se então a este movimento...
P. - Quem fez a ponte?
R. - O Manuel de Lucena, porque tinha sido católico, embora já o não fosse. Como tivera um papel muito importante na crise académica de 62, conhecia-os bem: o Jorge Sampaio, que fora o grande líder estudantil, o José Manuel Galvão Teles, o Vítor Wengorovious, etc. E o Vasco Pulido Valente, que era muito mais novo mas veio recomendado por eles para subchefe de redacção.
Houve também um facto curioso, que foi, através do Alçada Baptista, a entrada de Sotto Mayor Cardia, que nesse tempo era do PC - sem a gente saber, como é óbvio. Mas logo a partir do terceiro ou quarto número da revista ele saiu para a "Seara Nova", dizendo que "O Tempo e o Modo" era o veículo do reformismo português.
P. - Isto é?
R. - Era a aliança da democracia cristã, personificada por nós, com o PS, personificado por Mário Soares! O que era, portanto, uma arma ideológica perigosíssima... Coisa que nos causou o maior espanto, ninguém entendia estas jogadas nem sobretudo o que ali se estava a jogar. Começou por nos parecer um delírio, mas depois inclinámo-nos para uma manobra do PC, com o objectivo de nos isolar e limitar a nossa influência.
P. - Isso afligiu-os?
R. - Achámos que era ultrapassável. Houve um sobressalto com a saída de Cardia, porque receámos ficar rotulados à direita, mas procurámos sempre compensar à esquerda estes "desgastes". E acabou por ser só ele a sair...
P. - Entretanto, 1968 é um ano determinante.
R. - Há três acontecimentos fundamentais para o nosso grupo, que entretanto ia mudando com a entrada e saída de pessoas por motivos meramente pessoais. No plano interno, a morte política de Salazar e o início do marcelismo, o que originou uma divisão entre os que defendiam que tudo iria permanecer na mesma e os que olhavam Marcelo Caetano como uma via de alteração ou saída do regime. Era o caso da Ala Liberal, por exemplo, onde estava José Pedro Pinto Leite, que colaborava connosco e era um grande amigo meu, e o próprio Alçada, que quando Marcelo toma posse tem uma posição de simpatia para com ele.
O segundo factor foi o Maio de 68, com uma estrondosa repercussão em todos nós. Achámos logo que se iria cumprir o nosso sonho de mudança da vida e do homem e, sobretudo, achámos formidável que nada daquilo tivesse que ver com os aparelhos tradicionais dos partidos políticos. Era um movimento espontâneo que se propunha transformar tudo...
P. - Hoje, quando olha para isso, vê o quê - ingenuidade, ternura, utopia? Com que sentimento se vê envolvido em tudo isso?
R. - Ternura, com certeza, mas muito mais do que isso. Houve uma profunda emoção minha perante algumas daquelas coisas. E se havia utopia, ela era generosa e enérgica, não renego nada. Voltando ao terceiro elemento que foi fundamental em 68, a invasão de Praga e aprovação do PC português, ele gerou polémicas terríveis. Lembro-me que tive de escrever à pressa um artigo a dizer que não podia haver meias-tintas, tanto mais que havia dois textos que eram ultracríticos para Dubcek e quase desculpavam a invasão... E tudo isto com a censura sempre em cima de nós.
P. - O facto é que se acentua a ruptura à direita, por causa do marcelismo, e regista-se a saída de Alçada Baptista de "O Tempo e o Modo"... Vocês tornam-se mais críticos ou mais irreverentes perante os aparelhos tradicionais e, sobretudo, Mário Soares, abrem a revista a gente diferente...
R. - A transição de António Alçada Baptista foi pacífica; eu fiquei director, estava lá desde o início, conhecia as pessoas. Mas essa ruptura foi um facto: tínhamos uma posição ultracrítica em relação ao que era ainda o embrião do PS por considerarmos que se tratava da via para a abominável social-democracia. Mas sobretudo porque havia a ideia da necessidade de inventar uma nova esquerda, com novos valores a conquistar, na linha do Maio de 68. Em 68 e 69 entram, por causa disto, muitas pessoas ligadas ao maoísmo, gente que depois, em 69-70, formou o MRPP: Arnaldo de Matos, Amadeu Sabino, Martins Soares, Sebastião Lima Rego...
P. - E tudo só se clarifica em 69, com a formação da CEUD e da CDE?
R. - Exactamente. Em 69 põe-se de novo a questão da participação eleitoral. Já em 65 ela se pusera, mas optou-se maioritariamente por não intervir. Recordo que é nessa altura, em 65, que se faz a primeira grande discussão sobre o problema colonial. Quem a fez foi Mário Soares, candidato a deputado, o que suscitou um clamor imenso, abaixo-assinados, manifestações de rua... Entendemos, pelo nosso lado, que deveríamos dizer que também nós estávamos contra a guerra e a política do Governo em África, o que fizemos.
P. - Consideravam, na época, que o grosso do país os acompanhava nesse sentimento contra a guerra colonial?
R. - Achávamos que o grosso do país estava connosco. E não duvidávamos que as elites pensantes estariam maioritariamente ao nosso lado. Foi de resto isso que levou à redacção do célebre Manifesto Católico dos 101 - assinaram 101 pessoas -, em Outubro de 65. Foi, pela primeira vez, uma afirmação clara de ruptura na questão colonial. Baseámo-nos na encíclica do Papa para defender o direito de autodeterminação dos povos e dizer que Portugal o deveria respeitar.
P. - E depois, o que pensavam que se seguiria? A independência...
R. - Era preciso dialogar com os movimentos de libertação. De resto, no MAR - Movimento de Acção Revolucionário, de que faziam parte Jorge Sampaio, Vasco Pulido Valente, Nuno Bragança e muitos outros, havia grande admiração por esses movimentos de libertação terceiro-mundistas, desde Cuba aos africanos.
P. - Porquê?
R. - Era uma via nova para a revolução, que se tinha de distinguir cuidadosamente do comunismo e das vias neocoloniais. Pensava-se que quanto mais Cuba fosse apoiada, mais se evitaria que acontecesse em África o mesmo que nesse país... Isto é, que dirigentes africanos se precipitassem nos braços do Partido Comunista. Havia sobretudo referências ditirâmbicas de todas essas pessoas que citei sobre Amílcar Cabral, olhado como o grande líder negro e o homem que procurava uma via dessas em ligação a Portugal. E havia ainda a ideia, corporizada pelo MAR e por Manuel de Lucena em diversos artigos que escreveu, que, se em Portugal se estabelecesse um movimento capaz de dialogar com os movimentos de libertação em África, se criaria uma terceira frente no mundo e que, por isso, Portugal voltaria a ter um lugar-chave, preparando uma linha que escaparia aos dilemas clássicos da política mundial.
P. - Não alinhada, portanto...
R. - Uma linha de países terceiro-mundistas, de países não alinhados, onde houvesse cooperação e que pudesse dar de novo um sentido à afirmação exterior de Portugal. Pretendia-se que em Portugal e nos futuros países africanos pudessem vir a estabelecer-se regimes políticos que se entendessem claramente nesse ponto. Digamos, visto com o olhar de hoje e com aquilo que já conhecemos, que foi o que Melo Antunes veio a tentar recuperar quando procurou conseguir uma política africana fora dos blocos.
P. - É então no rescaldo de tudo isso que se chega à formação das listas para as eleições de 69?
R. - Iríamos ou não ter uma lista unitária? A nossa ideia era que, a haver, ela dissolveria todas essas novas movimentações de esquerda, essa nova energia, que iríamos cair numa posição tradicional e rotineira, no estilo da oposição verbalista que não levava a nada. Eram precisas caras novas, gente diferente, um discurso político diferente para Portugal. É claro que o PC se colou rapidamente a esta segunda posição - a que se concretizou na CDE -, que teve ramificações em todo o país, mas que em Lisboa assumiu características especiais. Houve até ao último momento tentativas para que as listas se unissem, mas a maior oposição a isso veio precisamente das pessoas que apostavam nesta terceira via onde eu me encontrava.
P. - E o PC?
R. - Não me custa admitir que houve da nossa parte um erro colossal de apreciação, mas estávamos ainda sob a euforia de Maio de 68... Tinha havido os maoísmos, houve, enfim, a ilusão de que comeríamos o PC ao pequeno-almoço... E de facto essa foi a imagem que se tornou pública em 69.
P. - O que, de resto, talvez explique os resultados...
R. - O que explica - com todas as reservas da altura - que a CDE tenha tido 19 ou 20 por cento e a CEUD oito por cento. Houve a adesão de toda uma geração à CDE, por causa desse ar do tempo. A CEUD eram uns senhores bem-comportados, à antiga, mas tão mal-comportados para o regime que normalmente pagavam isso nas cadeias.
P. - Isso mostra alguma lucidez e visão do dr. Mário Soares...
R. - Mostra, indiscutivelmente. Por um lado, ele percebe já que o grande obstáculo é o Partido Comunista, por outro, que aquela gente da CDE era uma cambada de irresponsáveis e que dali não iria sair nada! Fartou-se de nos dizer que acabaríamos todos no PS, coisa que nos punha possessos... Mas isso foi verdade a 99 por cento. Ele percebeu antes que, não sendo nós comunistas, não tínhamos outra via à esquerda que não fosse o PS. Nesse tempo estávamos todos num daqueles cíclicos movimentos de geração... E o curioso é que os resultados que Mário Soares obteve pareciam o primeiro fim dele.
P. - Como é que ele estava no dia seguinte?
R. - Bem, ele usava de um tom paternalista, dizia-nos que tínhamos de voltar a trabalhar, mas estava extremamente abalado, sobretudo por causa dos perigos que se anunciavam de uma radicalização de esquerda para o futuro. E enquanto, por exemplo, no dia seguinte toda a gente que dizia e queria coisas mil vezes mais à esquerda do que ele continuou a sua vida pessoal e política, ele foi logo parar à cadeia, tendo sido expulso de Portugal pouco tempo depois. O Jaime Gama também foi preso... Há, portanto, uma repressão que se exerce muito mais sobre a CEUD do que sobre a CDE.
P. - E quando é que vocês percebem que o aparelho da CDE - que de resto não se desfaz - estava a ser dominado pelo PC?
R. - Em 70 compreendemos que, na prática, aquilo era uma organização comunista encapotada. Saí nessa altura em ruptura violenta...
P. - Para se defrontar com outra: a tomada de poder dos maoístas em "O Tempo e o Modo"...
R. - Essa linha maoísta afirma-se maioritária, e eu saio da revista. Foi uma imensa desilusão, eu estava extremamente ligado a "O Tempo e o Modo".
P. - Foi uma derrota?
R. - Foi uma derrota. Tinha apostado naquilo, apostara que era possível dar à revista uma volta noutra direcção. E de repente encontrei-me com uma gente tão fanática e facciosa como o PC - alguns ainda piores -, numa linha ideológica com a qual não tinha a ver e numa revista cujo conteúdo se ia degradando dia após dia. A questão foi muito democraticamente votada em plenário, perdi por esmagadora maioria, vim-me embora.
P. - Já estava na Fundação Gulbenkian?
R. - Já, desde 69. Depois, entre 71 e 74, tenho uma intervenção política escassa. De resto, o ambiente era muito cinzento em 73 em Portugal. Tinha havido o desfazer da Ala Liberal, a oposição parecia muito mais diluída; na oposição havia, por outro lado, um tipo de acções cada vez mais perigosas e capazes de a conduzir a um grande isolamento, as Brigadas Revolucionárias, etc. Via muita gente com pouca preparação política metida em acções perigosíssimas, arriscando-se a levar 15 ou 16 anos de prisão... Tinha sempre a noção, por um lado, de que a situação não tinha saída e, por outro, que teria de acontecer qualquer coisa... Daí aquelas conversas intermináveis como a que referi no princípio. Mas nunca pensei que a situação caísse por via militar.
P. - E aí voltou-se uma vez mais para os seus amigos de sempre, e de algum modo há como que uma continuação das vossas teses de 69 na CDE...
R. - Havia a ideia de reformular, com toda aquela euforia esquerdizante que se seguiu ao 25 de Abril, o tal projecto de terceira via de esquerda... Mas no 28 de Setembro apercebo-me que o PC estava a tomar um papel de tal modo preponderante no país que daí advinham, de facto, perigos muito reais. E apercebo-me muito bem disso porque havia no MES - ao qual eu aderira como uma espécie de continuação do que queríamos em 69 com a CDE -, um cada vez maior alinhamento pelas posições do PC. Em Dezembro de 74 saímos todos - Sampaio, Galvão Teles, eu... - do MES, numa altura, já ninguém se lembra, muito preocupante: foi quando os comunistas tentaram conquistar o PS por dentro, na célebre luta entre Mário Soares e Manuel Serra. Mário Soares ganhou o congresso, mas por uma pequena margem. Por tudo isto, pela luta da unicidade sindical, pensei que estava diante de uma luta clássica pelo poder que encarnava todas as formas conhecidas das tomadas de poder nos países de Leste. Embora me custasse a crer que houvesse aqui, no extremo ocidental da Europa, condições para isso... Mas os sinais lá estavam.
P. - Ficou, após a saída do MES, numa espécie de orfandade política. Preocupou-o o fracasso dessa experiência?
R. - No MES criara-se depois uma coisa que me deu muita satisfação: desde o início que havia lá gente muito diferente de mim, com quem não me entendia de todo, que não pensava como eu, não queria o que eu queria... Mas após a cisão, quando se passou para o GIS - Grupo de Intervenção Socialista - começou a haver uma identidade muito maior, uma sintonia e uma coesão. Isso veio ao encontro do que eu queria: ter um tipo de intervenção mais virada para a escrita, a reflexão sobre certas questões...
P. - Por exemplo?
R. - Para onde se encaminhava Portugal, de que maneira, qual seria a evolução... Ela teria forçosamente que escapar a qualquer hegemonia dos comunistas, mas por outro lado teria, a meu ver, que manter os valores de uma esquerda independente, numa via original. Era nisso que acreditava profundamente e não me importo nada que me chame ingénuo. Era nisso que eu apostava seriamente.
P. - Não o chamo ingénuo, penso é que o dr. Soares deveria rir-se imenso...
R. - É que justamente era necessário não nos metermos num sistema clássico e sermos capazes de combinar várias fontes de inspiração da própria revolução.
P. - Por isso olhavam sempre de longe para o PS...
R. - Ainda vinha longe, embora começasse a fazer cada vez mais sentido que só dentro do PS se poderia actuar politicamente. Lembro-me, por exemplo, de ter tido uma conversa muito longa com Nuno Bragança, em pleno período da nossa contestação ao PS, em que ele me diz que não temos outra saída... porque aqueles movimentos todos não só não iriam dar a parte nenhuma, como iria ser impossível alterar os esquemas tradicionais da política.
P. - E o que se passa consigo em 78, data em que quase todos os ex-MES e ex-GIS entram para o PS?
R. - Nessa altura, com tudo o que se passou depois, e uma leitura diferente que fui fazendo - sobretudo a partir de 75, 76 - de tudo o que ocorrera no país, dos falhanços das várias linhas e de cada uma das nossas tentativas, resolvi afastar-me da política. Aliás, eu dissera várias vezes que no dia em que houvesse uma democracia estável, e dado que nem tenho jeito especial para a política nem ela me estimula particularmente, me afastaria. A minha última luta política foi dentro do grupo da Intervenção Socialista para uma entrada no PS, a tal que se faz em 78. Mas nunca cheguei a aderir formalmente ao PS.
P. - Entretanto ia escrevendo. Lembro-me de textos seus muito críticos, arrasadores alguns, sobre o PS e o academismo do seu discurso...
R. - Houve um texto no PS, chamado "Dez anos para mudar Portugal", que eram os anos oitenta. Escrevi dizendo que quem ia mudar Portugal nesses anos seria a direita, conquistando de novo o poder, não tendo o PS sequer dez meses para mudar Portugal. Foi um enorme escândalo, mas se a minha clarividência política nunca foi grande, aí não me enganei muito. Não tinha a menor ilusão sobre como tudo iria ocorrer.
P. - Atribuía essa sua antevisão aos erros do PS ou ao facto de ter surgido em cena Sá Carneiro?
R. - Aos erros cometidos pela esquerda em geral. Do PC não vale a pena falar, porque não se trata de erros mas de uma estratégia, que era conseguir as colónias para o seu bloco. O dr. Cunhal actuou aqui de forma a criar em Portugal um ambiente que lhe permitisse qualquer coisa de muito mais importante para a União Soviética, em termos de política mundial. Ganhou nos anos setenta.
P. - Os militares foram instrumentalizados?
R. - Não tenho dúvida nenhuma.
P. - Todos os que "mexeram" na descolonização?
R. - Melo Antunes não. É o homem que faz frente ao PC - aliás, uma das ironias de Portugal é as pessoas terem-no sempre conotado com posições ultra-esquerdistas, quando Melo Antunes, tal como Mário Soares, é o protagonista civil - é o militar que impede o triunfo do poder comunista em Portugal.
P. - Melo Antunes não impediu o comunismo em Angola ou Moçambique... Pelo menos como o logrou com êxito em Portugal.
R. - Mas esteve contra, foi o homem que tentou outras vias. Só que nessa altura a corrente militar estava demasiado absorvida com o que se passava cá para ter uma presença activa em África. Em África quem manda é Rosa Coutinho. Em Angola é ele. Rosa Coutinho era o expoente máximo, porque era governador ou alto-comissário, e as suas posições alinham pelo PC, como aliás alinhou Vasco Gonçalves. É contra esses homens que Melo Antunes e o Grupo dos Nove se opõem.
P. - Passaram-se vinte anos sobre o 25 de Abril. O que diz a si próprio? Como caracteriza estes anos, vistos da sua geração?
R. - Em relação ao sonho da minha geração, ele nada tem que ver com esta realidade. Só que o mundo modificou-se de tal maneira, tudo se alterou tanto que me é difícil projectar para hoje aquilo que pensávamos nos anos 60-70. Como eu diria nessa altura, isto hoje é uma democracia burguesa. Mas deram-se passos fundamentais: não só as pessoas estão muito mais livres e conscientes - pronunciam-se e afirmam-se -, como é preciso ser-se cego para não ver que o país sofreu uma evolução profundíssima. É outro país, mas não é um país com que se possa sonhar. Continua a ser atrasado e a sofrer de problemas gravíssimos, embora se tenha transformado substancialmente. Por outro lado, nenhum país do mundo concretizou, no quadro de uma revolução, aquilo que a minha geração pensava nessa altura. Não há modelos nesse aspecto. Ou tudo acabou, como no Leste, apesar de ele nunca ter sido para nós uma referência, ou continua aí - como Fidel, em Cuba: um dinossauro. Um dia pode olhar-se para este final do século XX do mesmo modo que a metade deste século olhou para o século XIX, isto é, como um falso momento de repouso histórico que preparava outras e diferentes questões e tensões. Ora, isso faz parte de toda uma dinâmica na qual continuo a acreditar profundamente.
P. - Que idade tem?
R. - Tenho 59 anos.
P. - E acredita em quê?
R. - Substancialmente, nas mesmas coisas. Mudei pouco de crenças e mantenho os mesmos amigos. Acredito na espantosa importância da cultura; penso que a arte tem um papel fundamental para o conhecimento e a transformação dos homens, acredito que isso é mais importante do que qualquer família política. Ao longo da minha vida sempre tive amigos com ideias políticas totalmente diferentes e isso nunca influiu na amizade, mesmo quando nos situávamos em campos opostos. Mas é-me difícil ter a mesma relação com alguém que não comungue dos mesmos valores culturais.
P. - Isso sempre se sobrepôs a tudo o resto?
R. - O valor cultural foi sempre dominante. Aliás, todos os meus disparates políticos vêm de uma leitura romântica e estética da sociedade e da política...


Entrevista de Maria João Avillez, jornal Público, 1994 (fonte) (outra entrevista a Bénard de Costa)

Manuel António Pina (2009)


Tem uma fixação no Winnie The Pooh...

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser... Ao [ Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: "Quem é afinal Borges?"; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, "Borges não existe" [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: "Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei." É verdade - agora digo eu.

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionoume imenso. Foi A Vida Sexual, do Egas Moniz.

Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta...

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade - que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado - que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O ursinho não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra "criar", pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O'Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra natal".E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro..., onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo... Vou dizer-lhe um poema: "Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha." Começa assim. "Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas." Continua por aí abaixo.

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo... E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: "Como é jornalista, viaja muito?" "Não gosto nada de viajar!" E ela: "Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno..." Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto.

Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

Há um poema seu que diz assim: "A alegria da viagem é o regresso a casa."

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas.

Sabe o que é isto aqui?

São coisas importantes para tratar.

Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias... Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

Está.

"Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?" Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. "Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva..."

Vai insistentemente aos poemas... A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: "O que virei eu a ser?" O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária - a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de explicar isto...

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães... Tem filhos?

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. "Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel." O "que queres ser quando fores grande?", fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, "ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos"; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora leia aquilo como um romance.

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. "Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô...", "Não escrevi nada", "Escreveste, escreveste, encontrei-os ali". Queria convencer-me de que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. "Não escrevi nada, é mentira, foste tu." Esses versos terminavam assim: "Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor"! [gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: "Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres." Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.

E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que "a má poesia normalmente é sincera". Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

Como naquele seu verso: "A palavra sangue não sangra"?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto... A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. "De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?" Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: "Quem somos" ou "o que somos". É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: "Que o escritor é que quis ser eu." E é verdade.

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal... Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: "Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro." E na minha Bíblia tinha uma nota de rodapé: "Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina." Eu dizia à minha namorada: "Hoje tens mais Doutrina que Moral" [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.

O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.

Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da Bíblia. "Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor..." Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria."

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas.

A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender..., isto é insegurança.

Por que é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata - não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O'Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela está a fazer?

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão. As minhas amigas psicanalistas - são duas ou três - diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não - são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes..., a psicanalisar! Os psicanalistas contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito "forex", como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático - é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: "Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração." Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração como o Manuel Ferraz.

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: "Sou um sacana." Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, "olha o padre Januário!".

Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é que não a comprei? Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l'air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas para o Ar.

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

Por fim, os gatos. Por que é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque "quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela" - como escreve Pessoa.

(Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)



Entrevista de Anabela Mota Ribeiro publicada a 26 Abril de 2009, na revista Pública. Foto de Alfredo Cunha (fonte)