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Alexandre O’Neill (1982)

«Portugal / meu remorso» – é ele a falar do País. «Eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá» – é também ele. Alexandre O’Neill, 57 anos, diante do seu fantasma, o tempo. Trinta anos de versos estão reunidos em volume e o «JL» quis ouvir este lisboeta com nome de aristocrata irlandês, recuperado de uma «panne» onde todas estas coisas mais doem, que é no coração.

«Sempre ‘sofri’ Portugal», diz Alexandre O’Neill ao «JL» nesta breve – porém laboriosa: já lá vamos – entrevista com o pretexto na publicação das suas Poesias Completas. O sofrimento deve entender-se, acrescenta o autor de Feira Cabisbaixa, «tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança», fórmula onde se descobriria, arrisca o poeta ecoando velhos versos parnasianos, um intenso, verdadeiro amor.

Foi Vasco Graça Moura que o convenceu a reunir a obra poética. Trinta anos de escrita, do Tempo de Fantasmas a As horas já de número vestidas, com exclusão apenas daquilo que O’Neill arruma formalmente sob a designação de ‘crónicas’. Mas dá-se o caso de as Poesias Completas incluírem precisamente alguns textos elaborados de raiz para jornais e que ao entrevistador pareciam resolver-se como prosa. Também sobre isso fala Alexandre O’Neill. Que entretanto, anfitrião simpático, irá buscar ao frigorífico uma garrafa de água mineral sem gás – ele não bebe bebidas alcoólicas – e pedirá a Laurinda, na hora de esta chegar a casa, «ora arranja lá um chá para nós três».

A casa é na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, a curta distância desse Jardim do Príncipe Real que entrou por direito próprio na poesia de O’Neill. Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso de livros: a poesia em força, mas também artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever «HCESAR». Cinzeiros. Luz sem excesso. Entro às 10 da noite e saio quatro horas depois. A última hora, porém, gastamo-la a ouvir Laurinda contar como foi um ‘show’ de José Afonso em Oeiras e a comentar a ‘gaffe’ de dois jornais brasileiros que aqui há semanas deram Octávio Paz por morto.

A entrevista fez-se com duas máquinas de escrever: o repórter do «JL» batia a pergunta, tirava a folha, estendia-a ao entrevistado, este batia a resposta, perguntava «está bem?», o repórter respondia «está, claro», e assim por diante.

Para a ficha do poeta: 57 anos de idade, lisboeta, redivorciado, dois filhos, um matulão, Alexandre, outro pequeno, Afonso; trabalha na Lápis – Estudos Promocionais, Lda., à Travessa da Condessa do Rio; andou pela TV como ‘pivot’ de vários programas e jurado da infausta Prata da Casa, que deu mosquitos por cordas; é tão bom conversador como sovina nas respostas dactilografadas, o que se perceberá lendo a continuação; sempre ‘sofreu’ Portugal, e sempre se gastou à velocidade de um fósforo, e sempre foi vítima de nervosos miudinhos; tudo junto, (en)fartou-se e poisou o canastro na UTIC de Santa Maria, a reparar avarias cardíacas; recuperado, ri com os dentes todos.

Começámos assim:

«JL» – reunir trinta anos de poesia tem algum significado especial para si? Digamos, sente-se etiquetado, arrumado, com um bilhetinho por cima a dizer «trinta anos»?

Alexandre O’Neill – De modo nenhum! Trinta anos é apenas para passar para outra coisa. Para dizer a verdade, estava farto de tudo o que tinha escrito até à publicação destas Poesias Completas. Você sabe o que é conviver demasiado com o que se vai fazendo, não sabe?

P – Calculo o que seja. Agora falando de biografia: você é de Lisboa, é um O’Neill Vahia de Bulhões (cheira-me a Santo António, desculpará) e no dizer do Cesariny em 1945, «no Café ‘A Cubana’, da Avenida da República», travou conhecimento com ele ou ele consigo. Essas aventuras surrealistas ainda têm alguma coisa que valha a pena contar? Dá-me a impressão de que vários surrealistas portugueses quiseram rasurar, a partir de certa altura, o nome «Alexandre O’Neill». Responde a esta longa pergunta?

R – Houve um especialista em hagiografia e, particularmente em Santo António, que me disse, para grande desgosto meu, que essa de o Santo se chamar Fernando de Bulhões era uma grande lenda. Claro que não me revelou o verdadeiro nome, de modo que eu continuo a aguentar a lenda e a dizer que sou… parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático!) milagreiro… Quanto às aventuras surrealistas está tudo contado, precisamente pelo Cesariny, que deve ter um baú quase tão grande como o do Pessoa. A rasura deveu-se à circunstância de eu ter abandonado a actividade grupal do surrealismo para me dedicar à política, calcule você! À política, mas naquele sentido estrito da militância nos movimentos juvenis por onde já o Cesariny tinha andado. Depois, ao publicar o primeiro livro, introduzi-lhe uma nota proeminal que demonstrava o fervor ridículo de todos os neoconvertidos e que dava pancada nos surrealistas ficantes chamando-lhes aventureiros, o que era perfeitamente desnecessário…

P – Exacto, e os que você apelida de «ficantes» mandaram cá para fora um papel basto feroz intitulado Do Capítulo da Probidade. Parecia tudo, pois, uma família com as partilhas feitas. Mas em 1961 na Antologia surrealista do cadáver esquisito, para espanto dos observadores, o Cesariny não esteve com mais aquelas e antologiou-o mesmo. Dá para entender?

R – Dá, dá! O Cesariny não me cita uma única vez no Surreal-Abjeccionismo, que é de 1963, mas já me inclui na Antologia, que você refere porque eu ajudei muito (e com muita honra!) a fazer cadáver.

P – Passemos a outra família, a sua. Nos Poemas com endereço o O’Neill escreve: «Estou no murmúrio de desgosto da minha família / da minha família imóvel diante de mim / (…) / da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos / pronta a saltar-me em cima a reduzir-me / a mais um da família.» O jovem poeta foi mal aceite? Ou foi aceite, mas em transe pejorativo?

R – A minha mãe (que já lá está, coitada!), quando apanhava um poema meu – melhor seria dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa (casa onde estive só até aos 16 anos). No fim da vida, já sentia um certo prazer em ser a mãe do poeta O’Neill, mas eu fingia que não a percebia, quando a questão era abordada…

P – Profissionalmente você está – para mim, que o conheço há uma dúzia de anos, sempre esteve – metido nas publicidades, sendo considerado inclusive um óptimo «copy-writer». Passe por cima do adjectivo «óptimo» e diga-me rapidamente o que é isso do «copy-writer», pode ser?

R – Pode. Ser «copy-writer» é uma actividade engraçada pelo lado da invenção de «slogans», por exemplo. Só é chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal. O jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc., vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho. Eu descobri a publicidade através do cinema publicitário. Propus uma vez a alguém (por brincadeira, claro) que oferecesse um «slogan» ao Metropolitano de Lisboa. O «slogan» era: «Vá de metro, Satanás!» Esta brincadeira ia-me custando o emprego. Mas também fiz um, a sério, que foi muito conhecido e ainda hoje é usado (que pena não o ter registado!): «Há mar e mar / há ir e voltar.» Os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração: «Há bar e bar / Há ir e voltar…»

P – De vez em quando o O’Neill aparece a colaborar em jornais. Para mim é uma complicação, porque eu tendo, numa primeira leitura, a ler «crónicas» onde não havia nada disso, mas poemas. Por outras palavras, dessas pretensas crónicas há algumas lançadas nas próprias Poesias Completas, como poemas em prosa. Ajuda-me a descalçar este escarpim?

R – Dê cá o pé! O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para os jornais que, depois, reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que não ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que lhe podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar ou apressar, e tomar por poema o que não é…

P – Eu diria, socorrendo-me aliás de leitores mais atentos do que eu, que você tem um tema dominante, Portugal (a Feira cabisbaixa aparece em italiano, na versão de Joyce Lussu, como Portogallo, mio rimorso, e muito bem), e um fantasma omnipresente, o tempo (cá vai uma de O’Neill entre aspas «Quandonde foi? / quandonde será? / / eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá»). Concorda?

R – É verdade. Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.

P – Quando se começa com o jogo do acerta é fatal: O’Neill herdeiro de Nicolau Tolentino e do abade de Jazente (quando não de Junqueiro, mas essa já eu não levo a sério). Em 1982, repetido o dito até à exaustão, que pensa você? Um tolentinista, um jazentista?

R – Nem herdeiro de um, nem de outro. A minha excelente prefaciadora diz que tanto o Tolentino como eu temos em comum fazermos uma poesia do feio. Mas se tudo é feio à nossa volta, por que havia precisamente de ser o Tolentino a inculcar-me o feio? Quanto ao Jazente, há uma coisa que pouca gente sabe: eu conheço perfeitamente Padornelo, o Marão (o do lado de cá) e aquela paisagem é-me bem familiar. Familiar no sentido exacto: a minha família materna é de Amarante, o concelho de que Padornelo é freguesia (ou era).

P – Eu por acaso, ao ler agora as Poesias Completas, fui outrossim sensível à insistência com que você refere os espanhóis, do Século de Ouro (Lope, Góngora) ou contemporâneos (António Machado). E também vi claramente visto como o O’Neill se entusiasma – exagero meu? – com brasileiros com o Manuel Bandeira ou o João Cabral de Mello Neto. Resultado: a sua família poética é um bocado mais complexa do que se tem escrito. Estou a sair dos carris?

R – De modo algum. Lope e Góngora sempre gostaram um do outro através de mim… Machado é um poeta que releio constantemente, tanto na poesia como na prosa. É um universo. E gosto dele em boa parte pelo que tem de «velho» (isto demoraria muito tempo a explicar, mas um dia sempre explicarei). Bandeira só é grande poeta menor, como disse a minha amiga Luciana Stegagno Picchio, para quem estiver distraído. Mello Neto é um velho amigo e um altíssimo poeta (sem saída aparente, diga-se). Não se esqueça que eu fui o curador da edição da «Quaderna» em Portugal, que se não foi a 1ª foi a 2ª do livro.

P – Morreu agora um dos seus «amigos pensados», o Belarmino Fragoso. Boxeou com ele? Hm… Conheceu-o bem, suponho. Como era?

R – Não conheci. Foi o Fernando Lopes que me pediu um poema para o programa de lançamento do filme «Belarmino». Sei que o Belarmino leu o poema e achou que eu era maluco…

P – E eu à espera de um perfil com luvas! Essa, O’Neill, é um «uppercut» na barbela! Bom, não o maçando mais, sempre queria saber como reagiu você quando o levaram, faz anos (poucos, creio), à UTIC do Hospital de Santa Maria com uma «panne» cardíaca. «É trivial a morte»? (in Abandono vigiado)

R – Quando se está com «panne» cardíaca o universo mingua e um sujeito «desliga». Passa para a categoria de «bom doente» para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta a casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…


Entrevista de Fernando Assis Pacheco para o Jornal de Letras, nº 36, 06-07-1982 (fonte)

David Landes (2000)

Para o historiador americano David Landes, a humanidade se divide em duas classes: a dos que vivem para trabalhar e a dos que apenas trabalham para sobreviver. "Quanto mais pessoas do primeiro tipo houver, mais chances uma nação terá de sair ganhando no jogo da globalização", diz ele. Landes tem 75 anos. Em décadas de trabalho como professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele se dedicou a desenvolver a idéia lançada pelo pensador alemão Max Weber de que a cultura e os valores de um povo são tão ou mais importantes para o seu crescimento econômico do que os fatores materiais. Suas teses ganharam forma de livro em 1998 e deram notoriedade ao autor. Escrito com verve e lidando com uma vasta quantidade de informações, A Riqueza e a Pobreza das Nações alcançou a lista de mais vendidos em diversos países, inclusive o Brasil, onde foi lançado pela Editora Campus. Na semana passada Landes visitou São Paulo para uma série de palestras, a convite da Fundação Armando Álvares Penteado e do Instituto Fernand Braudel, e deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Quais são as causas da riqueza e da pobreza das nações?

Landes – Não há dúvida de que fatores "clássicos", como o acesso a recursos naturais ou mão-de-obra, são importantes. Também estou certo de que a geografia e o clima podem ser determinantes, embora muita gente não concorde com isso. Mas eu gostaria de insistir em uma variável pouco lembrada: a cultura. Ela é preponderante no sucesso material de algumas nações e no insucesso de outras. Falo de cultura em sentido amplo. Não me refiro a obras de arte, mas aos valores e atitudes vigentes numa sociedade. Foi por prezar a liberdade individual, a curiosidade e a criatividade, e por assumir uma atitude positiva com relação ao trabalho, que a Europa Ocidental tomou a dianteira na corrida pelo desenvolvimento, 500 anos atrás. Fora da Europa, os países que assimilaram esses valores, como os da América anglo-saxônica, ou dispunham de tradições semelhantes em sua própria cultura, caso dos asiáticos, entraram para o clube dos vitoriosos.

Veja – Assim como o pensador alemão Max Weber, o senhor diria que o espírito protestante está diretamente ligado à ascensão do capitalismo? 

Landes – Certamente. As outras religiões monoteístas, incluindo o judaísmo, ao qual pertenço, fazem da pobreza uma virtude. Quase toda a história da cristandade inclui uma louvação da pobreza: os pobres vão para o céu, enquanto a riqueza é uma forma de corrupção. Nos países islâmicos, a pobreza é considerada um antídoto para os modos, o luxo, a auto-indulgência do Ocidente. O protestantismo foi importante por causa de sua atitude positiva com relação ao trabalho e ao enriquecimento. Também foi importante porque desde o começo os protestantes discordaram e discutiram entre si. O protestantismo era na origem pluralista, enquanto o catolicismo sempre foi centralizador.

Veja – E no que esse aspecto centralizador atrapalhou o desenvolvimento? 

Landes – O catolicismo não apenas tinha uma atitude ambivalente com relação aos empreendedores como também segregava os que pensavam diferente. Na sociedade colonial, comandada por espanhóis e portugueses, a imigração de europeus do norte era evitada a todo o custo. Imperava o fechamento. Além disso, o homem que vencia nos negócios era incentivado a retirar-se para uma vida aristocrática e não esperava que seus filhos repetissem seu itinerário de trabalho. Empreendimentos são realizados por pessoas que vivem para trabalhar, e não por aquelas que trabalham para viver. É preciso ter prazer no trabalho para tornar-se um empresário bem-sucedido.

Veja – O Brasil é mesmo "o país do futuro"? 

Landes – Acho que o Brasil vai conseguir diminuir suas taxas de pobreza. Quanto a tornar-se um dos países mais desenvolvidos, isso é outra história. Isoladamente, a Região Sul do país teria boas chances.

Veja – O senhor está sugerindo que o país se divida em dois?

Landes – Estou dizendo que se o Sul se separasse do Norte teria boas chances de alcançar os países mais avançados. Sei que as pessoas logo vão pensar em coisas do tipo: mas como assim, abrir mão dos infindáveis recursos da Amazônia? Pois eu lhe digo que, se vivesse em São Paulo, não me preocuparia muito com o destino do Amazonas. Minerais? Madeira? Tudo isso pode ser comprado. Não é preciso ser dono desses recursos. É mais fácil comprar e vender do que ser proprietário. Em nossa época, não existe nenhuma virtude intrínseca, política ou econômica, em manter um grande território e ser uma grande unidade.

Veja – Os Estados Unidos deveriam, então, abrir mão do Estado associado de Porto Rico, por exemplo? 

Landes – Não tenho a menor dúvida que sim. Se a população de Porto Rico votasse pela independência com relação aos Estados Unidos, não haveria nenhum bom motivo para que nós, americanos, permanecêssemos no país. Acho também que os russos estão loucos em fazer o que fizeram na Chechênia. O imperialismo e o expansionismo foram constantes na história do século XIX. Mas, na passagem do século XX para o XXI, numa era de comércio global livre, não há nada que nos obrigue a pensar que maior é melhor. Europeus e japoneses aprenderam essa lição e se deram muito bem.

Veja – Ao longo da década de 90, falou-se muito em "consenso de Washington" ou "consenso neoliberal". O senhor acha que existe realmente consenso no campo da economia? 

Landes – Creio que o único consenso existente é no que diz respeito à utilidade do livre comércio. É notável observar nos Estados Unidos, por exemplo, a concordância cada vez maior em torno da idéia de que o comércio com a China é desejável. Mesmo os republicanos, mesmo os visceralmente anticomunistas, têm defendido essa idéia. O que mostra que empreendimentos econômicos não são uma questão de ideologia. Tudo que os empreendedores querem é fazer dinheiro. Quando vêem um país onde é lucrativo investir, eles investirão, não importa quem esteja comandando o show.

Veja – Os Estados Unidos, no entanto, mantêm barreiras tarifárias contra vários produtos brasileiros. 

Landes – Pois deveriam derrubá-las. O único argumento protecionista que faz algum sentido é o da indústria incipiente. Para desenvolver internamente uma indústria nova, você precisa protegê-la de alguma forma, para que não seja esmagada pela concorrência. Foi o que os brasileiros fizeram nos anos 80 com relação à informática. Mesmo assim o argumento é perigoso, porque o protecionismo é um péssimo hábito, que tende a criar raízes. Muito tempo depois de uma indústria ter crescido, as pessoas querem manter as tarifas de proteção.

Veja – Recentemente, o Fundo Monetário Internacional passou a mostrar preocupação com causas sociais. Qual será o impacto disso? 

Landes – Talvez me chamem de cínico, mas creio que a razão por trás de muitas ações e palavras desses organismos internacionais é a simples gratificação de se sentir virtuosos doando fundos e recursos aos países pobres. Ações desse tipo podem aliviar a miséria e melhorar um pouco a expectativa de vida em alguns lugares. Mas existe uma diferença entre diminuição da miséria e desenvolvimento. A lacuna de desenvolvimento entre ricos e pobres continua a crescer. Não sei quantas gerações mais terão de passar sobre a Terra para que isso mude.

Veja – Em seu livro, o senhor fez altas apostas no Sudeste Asiático. Mas, nos últimos anos, essa região atravessou uma séria crise e os sinais de recuperação são incertos. O senhor mantém a sua aposta? 

Landes – Sim, mantenho. A Ásia vai continuar sendo um dos maiores centros de crescimento do mundo, pois as bases culturais do crescimento estão presentes lá. Os asiáticos têm um profundo senso de responsabilidade, são trabalhadores dedicados. Nesse período, foram vítimas da conjuntura global.

Veja – Fala-se muito que, com a globalização, os Estados nacionais perderam poder. Quando o senhor diz que países asiáticos foram vítimas da conjuntura global, está corroborando essa idéia? 

Landes – Não. Eu não acredito que os Estados nacionais perderam toda a importância com a globalização, nem que as comunidades locais estejam indefesas diante do que vem de fora. Veja o caso da Malásia. Eles adotaram uma atitude bastante inflexível diante de organismos internacionais como o FMI, recusando-se a adotar as regras dos gerentes do dinheiro internacional. Nem por isso afundaram. Hoje, há muitas pessoas prontas a emprestar novamente para a Malásia.

Veja – E a China? 

Landes – A China é uma região de risco. Se você quer investir seu dinheiro com segurança, deve fazê-lo em um país governado por leis, não por homens. A China é governada por homens, que ficam muito nervosos vendo toda a movimentação ocasionada pelo crescimento do comércio livre em algumas regiões do país.

Veja – Em muitos países da Ásia, o desenvolvimento econômico se deu graças à utilização de métodos autoritários pelos governantes. O que acha disso? 

Landes – Podemos voltar ao caso da Malásia. Lá, boa parte da economia é operada por uma classe empreendedora formada sobretudo por expatriados chineses, enquanto o governo, de fato autoritário, é comandado por uma elite local. Há precedentes históricos consideráveis para esse tipo de arranjo. Pense, por exemplo, na Alemanha do III Reich. Naquele tempo, a burguesia deixou de lado qualquer ambição de influir no governo ou de usufruir de um comando mais democrático, em troca da liberdade na condução da economia e oportunidade de criar cartéis, impor barreiras protecionistas e outras medidas desse tipo. Eu creio que esse tipo de arranjo só é sustentável durante algum tempo. Não pode haver capitalismo verdadeiro sem democracia real. E creio que, felizmente, o capitalismo tende a promover as liberdades individuais e instituições democráticas.

Veja – A esquerda diria o contrário. 

Landes – O capitalismo supõe desigualdades de riqueza e estas, por sua vez, podem se traduzir em desigualdades de poder. Até aí, concordamos. Mas, no que diz respeito à promoção de liberdades e oportunidades para todos, acredito firmemente que o capitalismo está muito à frente de todas as outras formas de organização já experimentadas.

Veja – A corrupção governamental sempre foi mencionada como uma das causas da pobreza em países como o Brasil. O que dizer então do escândalo que acaba de estourar na Alemanha envolvendo uma das figuras mais proeminentes da política européia, o ex-chanceler Helmut Kohl? 

Landes – Confesso que o caso de Kohl me surpreendeu. Mas a moral é simples: em todos os lugares e em todas as épocas, sempre houve quem achasse mais fácil tomar dinheiro do que fazer dinheiro. A política favorece aqueles que conseguem parecer bons, mesmo que não sejam. Às vezes, a falta de moral aparece em questões de dinheiro. Noutras vezes, em questões de sexo. Definitivamente, a política não é uma esfera da vida onde deveríamos procurar pela virtude.

Veja – Fala-se muito em liberdade de comércio, mas quando o assunto é liberdade na circulação de pessoas o discurso é outro. Basta ver os movimentos de direita na Europa contra os imigrantes. Qual é sua opinião? 

Landes – Meus avós chegaram aos Estados Unidos como imigrantes. Eu creio que as portas nunca deveriam ser fechadas. É claro que algum controle é necessário. Mas não fechamento. Os imigrantes são uma fonte potencial de energia. Nos Estados Unidos, um dos grupos mais efetivos em assimilar as técnicas e o conhecimento necessários para ter sucesso na nova economia é o dos imigrantes asiáticos. Na América Latina, os imigrantes protestantes teriam feito toda a diferença. Dito isso, gostaria de ressaltar que a atitude de desconfiança com relação aos estrangeiros não se limita aos países ricos. Veja a África Ocidental: há casos de expulsão maciça na região. É um problema da natureza humana. Isso é algo que aprendi em minha profissão: coisas ruins estão espalhadas por todas as épocas e lugares.

Veja – Como especialista na história da Revolução Industrial, o senhor acha que hoje estamos mesmo diante de uma nova revolução, baseada na informática e nas tecnologias de ponta?

Landes – Sim, acho que podemos utilizar essa palavra. Estamos assistindo a uma mudança profunda. Os países que tiverem a oportunidade de não apenas utilizar mas também de melhorar as novas tecnologias estarão em posição de vantagem na nova economia. Foi essa capacidade que salvou os Estados Unidos depois de anos de estagnação. Os Estados Unidos apostaram na importância do que chamamos de software. O hardware é muito importante. Mas eu creio que a longo prazo é o software que vai dominar. Qualquer um pode aprender como fazer um computador. Ou você pode importar uma fábrica de hardware – correndo o risco de que ela se mude para o vizinho se ele oferecer trabalho mais barato. Mas hoje já temos hardware melhor do que precisamos para muitas tarefas. Por isso, é na área do software que os novos países devem fazer suas apostas atualmente. E isso significa que precisam ter um sistema educacional eficiente e universal. Singapura conta com uma estrutura universitária muito forte. Talvez a China também possa ser citada como exemplo. A América Latina é uma interrogação – mas, se o continente tem de apostar em algo, é nos investimentos culturais e sociais capazes de criar pessoas aptas a ser inventivas na nova economia. Infelizmente, é o contrário do que países como o México, por exemplo, têm feito. Lá as universidades se encontram em péssimas condições. Se você não tiver cérebros, está acabado.


Entrevista à Revista Veja, nº 1641, 22/03/2000 (link)