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Alexandre O’Neill (1982)

«Portugal / meu remorso» – é ele a falar do País. «Eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá» – é também ele. Alexandre O’Neill, 57 anos, diante do seu fantasma, o tempo. Trinta anos de versos estão reunidos em volume e o «JL» quis ouvir este lisboeta com nome de aristocrata irlandês, recuperado de uma «panne» onde todas estas coisas mais doem, que é no coração.

«Sempre ‘sofri’ Portugal», diz Alexandre O’Neill ao «JL» nesta breve – porém laboriosa: já lá vamos – entrevista com o pretexto na publicação das suas Poesias Completas. O sofrimento deve entender-se, acrescenta o autor de Feira Cabisbaixa, «tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança», fórmula onde se descobriria, arrisca o poeta ecoando velhos versos parnasianos, um intenso, verdadeiro amor.

Foi Vasco Graça Moura que o convenceu a reunir a obra poética. Trinta anos de escrita, do Tempo de Fantasmas a As horas já de número vestidas, com exclusão apenas daquilo que O’Neill arruma formalmente sob a designação de ‘crónicas’. Mas dá-se o caso de as Poesias Completas incluírem precisamente alguns textos elaborados de raiz para jornais e que ao entrevistador pareciam resolver-se como prosa. Também sobre isso fala Alexandre O’Neill. Que entretanto, anfitrião simpático, irá buscar ao frigorífico uma garrafa de água mineral sem gás – ele não bebe bebidas alcoólicas – e pedirá a Laurinda, na hora de esta chegar a casa, «ora arranja lá um chá para nós três».

A casa é na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, a curta distância desse Jardim do Príncipe Real que entrou por direito próprio na poesia de O’Neill. Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso de livros: a poesia em força, mas também artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever «HCESAR». Cinzeiros. Luz sem excesso. Entro às 10 da noite e saio quatro horas depois. A última hora, porém, gastamo-la a ouvir Laurinda contar como foi um ‘show’ de José Afonso em Oeiras e a comentar a ‘gaffe’ de dois jornais brasileiros que aqui há semanas deram Octávio Paz por morto.

A entrevista fez-se com duas máquinas de escrever: o repórter do «JL» batia a pergunta, tirava a folha, estendia-a ao entrevistado, este batia a resposta, perguntava «está bem?», o repórter respondia «está, claro», e assim por diante.

Para a ficha do poeta: 57 anos de idade, lisboeta, redivorciado, dois filhos, um matulão, Alexandre, outro pequeno, Afonso; trabalha na Lápis – Estudos Promocionais, Lda., à Travessa da Condessa do Rio; andou pela TV como ‘pivot’ de vários programas e jurado da infausta Prata da Casa, que deu mosquitos por cordas; é tão bom conversador como sovina nas respostas dactilografadas, o que se perceberá lendo a continuação; sempre ‘sofreu’ Portugal, e sempre se gastou à velocidade de um fósforo, e sempre foi vítima de nervosos miudinhos; tudo junto, (en)fartou-se e poisou o canastro na UTIC de Santa Maria, a reparar avarias cardíacas; recuperado, ri com os dentes todos.

Começámos assim:

«JL» – reunir trinta anos de poesia tem algum significado especial para si? Digamos, sente-se etiquetado, arrumado, com um bilhetinho por cima a dizer «trinta anos»?

Alexandre O’Neill – De modo nenhum! Trinta anos é apenas para passar para outra coisa. Para dizer a verdade, estava farto de tudo o que tinha escrito até à publicação destas Poesias Completas. Você sabe o que é conviver demasiado com o que se vai fazendo, não sabe?

P – Calculo o que seja. Agora falando de biografia: você é de Lisboa, é um O’Neill Vahia de Bulhões (cheira-me a Santo António, desculpará) e no dizer do Cesariny em 1945, «no Café ‘A Cubana’, da Avenida da República», travou conhecimento com ele ou ele consigo. Essas aventuras surrealistas ainda têm alguma coisa que valha a pena contar? Dá-me a impressão de que vários surrealistas portugueses quiseram rasurar, a partir de certa altura, o nome «Alexandre O’Neill». Responde a esta longa pergunta?

R – Houve um especialista em hagiografia e, particularmente em Santo António, que me disse, para grande desgosto meu, que essa de o Santo se chamar Fernando de Bulhões era uma grande lenda. Claro que não me revelou o verdadeiro nome, de modo que eu continuo a aguentar a lenda e a dizer que sou… parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático!) milagreiro… Quanto às aventuras surrealistas está tudo contado, precisamente pelo Cesariny, que deve ter um baú quase tão grande como o do Pessoa. A rasura deveu-se à circunstância de eu ter abandonado a actividade grupal do surrealismo para me dedicar à política, calcule você! À política, mas naquele sentido estrito da militância nos movimentos juvenis por onde já o Cesariny tinha andado. Depois, ao publicar o primeiro livro, introduzi-lhe uma nota proeminal que demonstrava o fervor ridículo de todos os neoconvertidos e que dava pancada nos surrealistas ficantes chamando-lhes aventureiros, o que era perfeitamente desnecessário…

P – Exacto, e os que você apelida de «ficantes» mandaram cá para fora um papel basto feroz intitulado Do Capítulo da Probidade. Parecia tudo, pois, uma família com as partilhas feitas. Mas em 1961 na Antologia surrealista do cadáver esquisito, para espanto dos observadores, o Cesariny não esteve com mais aquelas e antologiou-o mesmo. Dá para entender?

R – Dá, dá! O Cesariny não me cita uma única vez no Surreal-Abjeccionismo, que é de 1963, mas já me inclui na Antologia, que você refere porque eu ajudei muito (e com muita honra!) a fazer cadáver.

P – Passemos a outra família, a sua. Nos Poemas com endereço o O’Neill escreve: «Estou no murmúrio de desgosto da minha família / da minha família imóvel diante de mim / (…) / da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos / pronta a saltar-me em cima a reduzir-me / a mais um da família.» O jovem poeta foi mal aceite? Ou foi aceite, mas em transe pejorativo?

R – A minha mãe (que já lá está, coitada!), quando apanhava um poema meu – melhor seria dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa (casa onde estive só até aos 16 anos). No fim da vida, já sentia um certo prazer em ser a mãe do poeta O’Neill, mas eu fingia que não a percebia, quando a questão era abordada…

P – Profissionalmente você está – para mim, que o conheço há uma dúzia de anos, sempre esteve – metido nas publicidades, sendo considerado inclusive um óptimo «copy-writer». Passe por cima do adjectivo «óptimo» e diga-me rapidamente o que é isso do «copy-writer», pode ser?

R – Pode. Ser «copy-writer» é uma actividade engraçada pelo lado da invenção de «slogans», por exemplo. Só é chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal. O jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc., vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho. Eu descobri a publicidade através do cinema publicitário. Propus uma vez a alguém (por brincadeira, claro) que oferecesse um «slogan» ao Metropolitano de Lisboa. O «slogan» era: «Vá de metro, Satanás!» Esta brincadeira ia-me custando o emprego. Mas também fiz um, a sério, que foi muito conhecido e ainda hoje é usado (que pena não o ter registado!): «Há mar e mar / há ir e voltar.» Os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração: «Há bar e bar / Há ir e voltar…»

P – De vez em quando o O’Neill aparece a colaborar em jornais. Para mim é uma complicação, porque eu tendo, numa primeira leitura, a ler «crónicas» onde não havia nada disso, mas poemas. Por outras palavras, dessas pretensas crónicas há algumas lançadas nas próprias Poesias Completas, como poemas em prosa. Ajuda-me a descalçar este escarpim?

R – Dê cá o pé! O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para os jornais que, depois, reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que não ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que lhe podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar ou apressar, e tomar por poema o que não é…

P – Eu diria, socorrendo-me aliás de leitores mais atentos do que eu, que você tem um tema dominante, Portugal (a Feira cabisbaixa aparece em italiano, na versão de Joyce Lussu, como Portogallo, mio rimorso, e muito bem), e um fantasma omnipresente, o tempo (cá vai uma de O’Neill entre aspas «Quandonde foi? / quandonde será? / / eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá»). Concorda?

R – É verdade. Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.

P – Quando se começa com o jogo do acerta é fatal: O’Neill herdeiro de Nicolau Tolentino e do abade de Jazente (quando não de Junqueiro, mas essa já eu não levo a sério). Em 1982, repetido o dito até à exaustão, que pensa você? Um tolentinista, um jazentista?

R – Nem herdeiro de um, nem de outro. A minha excelente prefaciadora diz que tanto o Tolentino como eu temos em comum fazermos uma poesia do feio. Mas se tudo é feio à nossa volta, por que havia precisamente de ser o Tolentino a inculcar-me o feio? Quanto ao Jazente, há uma coisa que pouca gente sabe: eu conheço perfeitamente Padornelo, o Marão (o do lado de cá) e aquela paisagem é-me bem familiar. Familiar no sentido exacto: a minha família materna é de Amarante, o concelho de que Padornelo é freguesia (ou era).

P – Eu por acaso, ao ler agora as Poesias Completas, fui outrossim sensível à insistência com que você refere os espanhóis, do Século de Ouro (Lope, Góngora) ou contemporâneos (António Machado). E também vi claramente visto como o O’Neill se entusiasma – exagero meu? – com brasileiros com o Manuel Bandeira ou o João Cabral de Mello Neto. Resultado: a sua família poética é um bocado mais complexa do que se tem escrito. Estou a sair dos carris?

R – De modo algum. Lope e Góngora sempre gostaram um do outro através de mim… Machado é um poeta que releio constantemente, tanto na poesia como na prosa. É um universo. E gosto dele em boa parte pelo que tem de «velho» (isto demoraria muito tempo a explicar, mas um dia sempre explicarei). Bandeira só é grande poeta menor, como disse a minha amiga Luciana Stegagno Picchio, para quem estiver distraído. Mello Neto é um velho amigo e um altíssimo poeta (sem saída aparente, diga-se). Não se esqueça que eu fui o curador da edição da «Quaderna» em Portugal, que se não foi a 1ª foi a 2ª do livro.

P – Morreu agora um dos seus «amigos pensados», o Belarmino Fragoso. Boxeou com ele? Hm… Conheceu-o bem, suponho. Como era?

R – Não conheci. Foi o Fernando Lopes que me pediu um poema para o programa de lançamento do filme «Belarmino». Sei que o Belarmino leu o poema e achou que eu era maluco…

P – E eu à espera de um perfil com luvas! Essa, O’Neill, é um «uppercut» na barbela! Bom, não o maçando mais, sempre queria saber como reagiu você quando o levaram, faz anos (poucos, creio), à UTIC do Hospital de Santa Maria com uma «panne» cardíaca. «É trivial a morte»? (in Abandono vigiado)

R – Quando se está com «panne» cardíaca o universo mingua e um sujeito «desliga». Passa para a categoria de «bom doente» para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta a casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…


Entrevista de Fernando Assis Pacheco para o Jornal de Letras, nº 36, 06-07-1982 (fonte)

Vinícius de Moraes (1979)

Vinicius, você andou meio desaparecido, ultimamente, viajando muito. Como você está agora?

Eu estou bem, de um modo geral. Tenho uns problemas de dieta, para regularizar o metabolismo do meu açucar, que é um pouco alto. Agora vou tirar umas férias e passar um mês em Punta del Este, dar uma descansada e terminar meus livros de poesia, que estão parados há quatro anos por causa desse negócio de shows. Foram quatro anos de pauleira o tempo todo, muita viagem, principalmente no Brasil e na Argentina, mas também na Europa. No ano retrasado estivemos na Itália e de novo no Olympia, em Paris. Agora fizemos mais ou menos o mesmo roteiro e incluímos Londres, onde eu não havia trabalhado ainda. Para mim foi uma surpresa muito boa, porque o show teve bastante sucesso. Do ponto de vista profissional, o ano foi ótimo, ainda que tenha me deixado um pouco de língua de fora... Mas tudo bem.

E agora você entra em férias para trabalhar?

É, férias para ver se escrevo um pouco. Esses livros estão realmente muito atrasados.

Quais os livros?

São dois livros. Um deles é o que venho escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25 anos que trabalho nesse livro. O outro são os poemas escritos de 1960 para cá, porque nesse tempo todo eu não publiquei nada de poesia, a não ser algumas edições especiais que fiz na Bahia, na editora do Calazans Neto. Uma delas é a História natural de Pablo Neruda, que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir esses poemas escritos a partir de 1960 e completar o livro, que tem um título meio contabilístico - O dever e o haver. É uma prestação geral de contas,  do que foi feito, do que deixou de ser feito.

Esses dois livros que você vai publicar serão, em termos de poesia, a sua palavra final?

Eu considero esses dois livros uma espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se ainda tiver alguma coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do contrário, eu paro de escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que foi dito foi dito, e é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo de importante a dizer. E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por escrever, simplesmente, é um coisa que não farei em hipótese alguma.

Você tem algum método de trabalho permanente, periódico, ou escreve somente quando baixa a inspiração?

É, eu escrevo somente quando a coisa vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30 anos, em que eu escrevia muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o papel e sentar para escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois começou a escassear, a rarear. E veio o período de música popular, que foi muito importante para mim.

Você ficou famoso como poeta muito cedo,  antes dos 20 anos, não foi?

Muito cedo. Meu primeiro livro, O caminho para a distância, teve uma ótima crítica. Eu tinha 19 anos quando o publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de Poesia - chamava-se Felipe de Oliveira e premiava todas as artes literárias. Ganhei uma disputa com o Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente.

O fato de ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para você?

Para mim não foi muito legal, não, sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um poeta genial, essas coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no meu lugar, direitinho. Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro livro. Ele fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz: "Olha, menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito bons". Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa. Finalmente, quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa escreveu também um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O Mário de Andrade, igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me ajudou muito.

Na época você recebeu bem essas críticas?

Não recebi muito bem, não. Recebi mal, sabe. Porque, além do mais, havia todo o grupo do Otávio de Farias que me incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o poeta que todo mundo esperava. Era o grupo da Faculdade de Direito. Essas coisas me subiram um pouco à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida, a experiência com o conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me situar. Processou-se também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido formado para ser um intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa muito importante em minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano Waldo Frank. O José Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores compareceram. Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que achava coquetel de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não podíamos sair por aí. Saímos, era dia de São Jorge e eu levei o Waldo para ver as putas do Mangue. Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a origem da minha Balada do Mangue foi esse dia. Depois eu o levei à favela do Pinto, aquela que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não há condições. Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas para os crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo era ver esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a Argentina, acabou se envolvendo em política lá - era um socialista, mas com uma grande dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e pediu ao Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do Itamarati, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem foi maravilhosa, escutei histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinha vindo matá-lo no Brasil.

Até essa época você era bastante católico e místico, não?

Não era tão católico, não, mas era um cara muito mistificado, não só pela formação, mas também pelo grupo que orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos caras de direita, muitos haviam aderido ao integralismo. Não sei como consegui me safar disso. Acho que foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa. Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada de 360 graus. Sai um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.

Essa virada se manifestou em sua obra?

Logo em seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa. No Brasil, pouca gente havia tido essa experiênica com excessão de Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no sentido de um certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo.

E quando você começou a fazer música?

A música começou mesmo na década de 50, quando voltei de meu primeiro posto diplomático no exterior, em Los Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas, antes, mesmo sozinho, mas sem nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15 anos tive uma experiência interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que havia aqui, chamada Irmãos Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias músicas, das quais duas tiveram muito sucesso. Uma era um fox trote brasileiro, chamado Loura ou Morena (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma "berceuse", Canção da amante. Foi o primeiro dinheiro que ganhei em minha vida, produzido por essas músicas.

Quando você foi exonerado do Itamarati, em 1968, houve alguma alegação específica?

O Otto (Lara Resende) sabe de uma história muito engraçada que aconteceu: Quando o decreto veio de Brasília, assinado pelo Costa e Silva, o despacho dizia: "Ponha-se esse vagabundo para trabalhar". Aí, dizem que o Magalhães Pinto botou a mão na cabeça e chamou o Otto imediatamente, comentando: "Ih, isso vai dar um barulho dos diabos. Escreve um arrazoado aí para mandarmos para Brasília". O Otto escreveu e, por isso, o despacho não se tornou público. Mas a exoneração veio de qualquer maneira. O que para mim foi ótimo, porque eu já não aguentava mais aquilo, mas tinha um problema moral devido aos filhos, pois com 24 anos de carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha um certo medo de jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral, fiquei muito satisfeito.

Voltando à música: você teve parcerias históricas. Por que lá pelas tantas, a parceria acaba?

É como um casamento, sabe. É parecido. Acho que há um desgaste. Além disso, no tempo da bossa-nova, por exemplo, havia milhares de compositores fazendo música, e apenas uns poucos letristas. De maneira que eu não chegava para as encomendas: era o Tom, o Baden Powell, o Carlinhos Lira. Depois, na geração 63, pintaram o Edu Lobo, o Francis Hime. Tanto assim que eu sou um dos pouquíssimos compositores brasileiros que atravessou essas gerações todas. Eu fiz música com o Pixinguinha, o Ary Barroso, com o pessoal da geração do Antonio Maria, o Paulinho Soledade; depois peguei o Tom, o Baden, o Carlos Lyra, o Edu, o Francis e, em 69, o Toquinho. E mesmo com caras mais jovens que o Toquinho eu já fiz música, como o Eduardo Souto Neto, o João Bosco.

Com quais parceiros você acha que houve mais criatividade?

Com o Tom, sobretudo, mas também como o Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção muito boa, e foi ele quem me introduziu o elemento africano, o que não havia antes na bossa-nova - eram todos brancos, arianos.

O que você acha das críticas que o Tinhorâo faz à bossa-nova.?

Aquilo é burrice total do Tinhorão. É o negócio dos guardas-costas do samba. Como existe também, aliás nos Estados Unidos, com relação ao jazz. Lá tem cara que acha que a música só é jazz se for tocada com aquelas cornetas dos confederados. Se não for, não é puro. E tem que ter também a tábua de lavar roupas (washboard) verdadeiras, para marcar o ritmo. É muito sectarismo. Embora seja um excelente pesquisador, o Tinhorão tem esse lado insuportável.

Você acha que a influência do jazz foi boa para a bossa-nova?

Acho que foi uma influência muito boa. No samba tradicional, os instrumentistas não improvisavam, em geral as harmonias eram rígidas, as formações eram standard. Com a influência do jazz, abriu tudo isso, você podia introduzir qualquer instrumento num conjunto de samba, os instrumentistas improvisavam, as harmonias melhoraram muito e se enriqueceram, os instrumentistas tornaram-se excelentes e conheciam profundamente seus instumentos, como é o caso de Baden e Tom. A influência foi benéfica porque houve uma descaracterização de nossa música. O samba estava sempre presente na bossa-nova. Além disso, a bossa-nova trouxe mais alegria e bom humor à nossa música, que andava muito voltada para a tristeza, a dor-de-corno, a fossa, naquela época do Antonio Maria. Eram músicas muito bonitas, o chamado samba de boate. com a bossa-nova a coisa ficou mais sadia, mais otimista, os sentimentos eram mais de comunicação, mais legais.

Depois da bossa-nova, o que houve de mais importante na música popular brasileira, em sua opinião?

Da chamada geração de 63, tivemos dois nomes importantes, que são o Francis e o Edu, o primeiro mais urbano, o segundo pesquisando coisas de Pernambuco. Depois veio o Milton Nascimento, pesquisando a toada mineira. O que se perdeu foi aquela organicidade que havia no movimento da bossa-nova.

E os baianos, Caetano e Gil?

Os baianos já são outro esquema, um negócio mais próximo da geração dos Beatles. Eles quiseram misturar esse troço todo, fizeram o tropicalismo, rock e samba. Acho que os dois são compositores muito bons. Talvez eu goste mais das coisas iniciais deles, embora ache que até hoje eles continuam a fazer bons trabalhos.

E o Chico Buarque?

O Chico eu acho fora-de-série, realmente. Esse tem aquela estrela, um talento que não pode ter mais tamanho. E o Chico é bom de letra, é bom de música, sabe cantar. Tem tudo, o cara. São uns poucos casos isolados que existem na música brasileira - um Noel, um Caymmi, um Chico, que se distinguem muito.

O que você acha desse debate que tem havido atualmente nos meios artísticos brasileiros, com a cobrança de definições políticas por parte de artistas pela chamadas patrulhas ideológicas?

São pequenas desavenças ideológicas para as quais eu não dou a menor importância. Acho uma burrice o artista ser engajado politicamente e fazer uma música ruim - isso não tem o menor valor. O que adianta você ser o maior comuna e fazer sambas ruins? Aí eu acho que seria preferível ser alienado e fazer música boa. Acho que o engajamento político o cara só deve ter quando aquilo é tão importante para ele que passa a ser sua própria razão de existir, ele não pode viver fora daquilo. É um compromisso que assume consigo mesmo e com a sociedade, e ponto. Agora, o cara sentir a obrigação de expressar isso na arte dele, só quando pinta bem. Eu tenho um envolvimento político bastante grande, mas nunca o expressei em minha poesia, exceto quando surgiu como uma coisa válida, como em Operário em construção, Os barões da terra, Mensagem à poesia. Mas são bons poemas. Eu fiz também muita coisa política que era uma merda e joguei fora.

Já falamos de seus casamentos com parceiros musicais. E com os seus casamentos de verdade, quantos foram?

Estou agora no meu nono casamento.

Há quanto tempo?

Há três meses. A Gilda vivia na Europa, era estudante lá. É uma moça ótima, maravilhosa. Eu tinha saido de um casamento também muito bom, muito feliz, com aquela moça argentina, a Martinha. Mas ela estudava na Argentina, o que nos obrigava a viver numa verdadeira ponte aérea. Não deu para continuar.

Você diria que suas mulheres influenciaram sua obra?

Bom, todas foram premiadas, né. Todas ganharam poemas, canções, uma coisa ou outra.

Houve alguma que tivesse exercido uma influência maior sobre o nível de seu trabalho?

Nesse sentido, acho que a influência maior foi a Tati , minha primeira mulher. Quando me casei com ela, eu estava começando a me desgrudar de minhas influências direitistas. Havia ainda muita confusão mental em mim, muita influência da minha formação, muito colégio. E a Tati já era uma pessoa bastante progressista. Mas, no começo, ainda quebrávamos um pau firme em discussões políticas. Depois, o relacionamento melhorou em todos os sentidos, inclusive no político, porque houve também aquela minha viagem pelo Brasil.

Seu casamento mais longo durou quanto tempo?

Onze anos. Foi exatamente esse, o primeiro, com a Tati.

E o mais curto?

O mais curto durou um ano.

Você mantém boas relações de amizade com as ex-mulheres, ou é do gênero que rompe relações?

Com a maioria, mantenho boas relações; mas não com todas. O relacionamento foi pior com as que engrossaram durante a separação, especialmente com duas que engroassaram mesmo, para valer.

Com sua experiência, o que acha mais fácil: conquistar e casar-se com uma mulher, ou separar dela?

O difícil é separar. Casar é facílimo. Separar é sempre uma experiência dolorosa, porque são duas pessoas que vivem juntas, amam juntas, têm aquele contato diário. Isso tudo forma uma espécie de hábito, uma coisa que não é mecânica - quando existe amor, é claro. E, se há amor, é sempre muito dolorosa a separação.

Como foi sua iniciação sexual? Poética, traumática, normal?

Foi o normal de menino da minha idade, de seus 13 anos. Foi na rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte. Tudo providenciado por um tio meu. Foi com uma putinha, né, uma menina de 14 anos ou 15.

E correspondeu às suas expectativas?

Ah, correspondeu plenamente. Foi uma experiência muito boa. Depois o filho da puta inventou que eu tinha deixado a menina grávida. Eu tinha aquela ingenuidade de garoto e acreditei piamente; fiquei apavorado. Ele era um homem de muito mais idade, andava com um grupo de boêmios, era um seresteiro. E me dizia que eu ia ser obrigado a me casar. E eu com o cê assim não é.

E como foi aquela história de um amor fulminante que nasceu numa sala de museu, entre você e uma jovem loura que se viam pela primeira vez?

Era uma exposição de Portinari. A menina era muito interessante, uma graça. Eu dava uma olhada num Portinari e outra nela. E ela também. Eu sei que viemos de lados opostos e, quando a gente se encontrou, foi até um troço emocionante. Eu falei assim: "Eu te amo sabe?" Ela começou a chorar. Aí, pronto. Ela estava noiva, mas acabamos tendo um romance que durou um ano mais ou menos.

Como foi seu encontro com Deus e depois seu desencontro, seu desencanto?

Bom, o encontro foi normal: família católica, colégio de padres, aquele negócio de confessar aos domingos, de comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era maior. As confissões eram sempre as mesmas: "Bati três esta semana, bati quatro". Os castigos também eram os mesmos, de modo que aquilo acabou me cansando, me aporrinhando. Mas eu me meti a católico porque toda aquela fase de direita era muito ligada ao problema de Deus, principalmente por causa da influência do Otávio de Faria. Ele era aquele cristão dramático, lia muito Pascal, Claudel, os filósofos sofredores, me deu os primeiros livros para ler. Até hoje eu tenho uma grande admiração e estima por ele, embora as divergências ocorridas fossem graves demais para permitir que mantivéssemos um relacionamento estável. Mas gosto muito dele, quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em frente, me liguei muito a Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham uma consciência cristã, mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns eram francamente agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um desinteresse que acabou sendo total, não é?, com o problema religioso. Eu não acreditava mais.

Hoje você não tem mais qualquer preocupação com o problema de Deus ou de religião?

Num plano assim de vida, não. Restou talvez uma certa religiosidade, própria de meu temperamento. Por exemplo, eu me interesso por candomblé, certas superstições. Isso é sinal de que tem algum fogo na cinza. Mas aqui, na cuca, não tenho mais grandes indagações. Ao mesmo tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso mais por coisas que não sei explicar.

Você andou muito metido com candomblé na Bahia. Você acredita mesmo nisso?

Eu prefiro acreditar do que não acreditar, mas realmente não acredito. Quando penso de modo puramente cerebral, não acredito. Deixei também de fazer aquele gênero de indagações, olhar para o céu e perguntar: "Onde está Deus? Afinal alguém fez esta merda toda, não foi?" Mas jamais vou ter respostas a essas perguntas, a não ser talvez depois da morte. Mas também não sei o que há do outro lado, de modo que não penso mais nessas coisas. Além disso, à medida que fui perdendo a religiosidade e o misticismo, o ser humano cresceu muito em mim, tomou conta de tudo. O que me interessa hoje é gente.

E a morte?

Bem, a morte sempre me preocupou, e ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais simples, como uma espécie de saudade da vida, uma pena de deixar isso aqui com todas as cagadas e confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande plenitude. Sobretudo por causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei que a velhice pode ser uma coisa legal, mas não gosto da idéia de envelhecer porque perderia tudo o que as mulheres ainda podem me dar.

Você nunca conseguiu, ou quis, viver sozinho, não?

Não. Eu aceito a solidão bem, mas não por muito tempo. Realmente, para mim, a mulher é um ser indispensável. Não posso viver sem mulher. Houve uma época de minha vida que achei que esse negócio havia terminado, que as coisas não estavam dando certo, que talvez fosse melhor eu me isolar e parar de brincar com esse bicho tão perigoso. Mas não deu. Não deu mesmo. Eu sou um namorador inverterado.

Você vê muita diferença entre o Vinicius dos 18 anos e o Vinicius de hoje?

Não vejo muita diferença entre os meus sonhos de ontem e de hoje, entre uma certa parte lúdica que sempre tive, sempre em fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do que sonhava antigamente. Quer dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de um dia ou um momento, com paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de descrença.

Você está satisfeito consigo mesmo?

Bem, eu gostaria de mudar algumas coisas de mim, mas de um modo geral não sou um sujeito de se jogar fora. Tenho uma estima por mim bastante grande, sabe. Uma estima que vem da constatação das coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos amigos que tive e tenho. Considero tudo conquistas consideráveis, no cômputo geral. Às vezes tenho a imodéstia de dizer a mim mesmo: "Você vale a pena." Isso sem nenhum sentimento de vaidade. Não tenho qualquer preocupação com a glória literária. Se tivesse essa preocupação, eu trataria muito melhor das minhas coisas. A publicação de antologia dos meus poemas pela Aguilar foi um dos partos mais difíceis e demorados que já houve, tudo por despreocupação minha. Hoje em dia tenho uma preguiça enorme de trabalhar, escrever.

Você se tornou mais exigente?

Muitíssimo mais exigente. Hoje eu leio muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas me parece ruim. Atualmente, quando encontro um escritor que me  interessa, para mim é uma festa. Mas, em geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou cinco páginas.

Qual era a visão que você tinha do Brasil quando começou a fazer poesia?

Eu achava o Brasil um país ideal, realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos. O primeiro choque que o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados Unidos, em 1951, e vi aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o bar Vermelhinho desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a penetração do estilo de vida americano.

E hoje, como você vê o Brasil?

Eu digo sempre uma coisa: tenho uma grande fé no Brasil. Uma fé meio estúpida, meio instintiva, por causa do povo. Realmente, a minha fé no Brasil não vem das instituições, nada disso. Pelo contrário, acho que elas têm sido extremamente negativas para os país. Agora, eu acredito neste povo. E cada vez que eu volto ao Brasil, de alguma viagem ao exterior, essa crença aumenta, compreende. E como essa crença é um bem gratuito, eu prefiro tê-la a não tê-la.

Quais os principais planos para o futuro que você tem?

Meu plano principal, no momento, é fazer essa moça feliz, a Gilda. Quero aprimorar esse relacionamento conjugal até ele se tornar uma coisa muito sólida. Para mim, seria um terrível desgaste ter de me separar novamente e procurar outra mulher. Inclusive estou chegando a uma idade em que isso fica cada vez mais difícil. Então, gostaria que a Gilda fosse realmente a última. E quando falo última, falo: "Que ela fosse a primeira". A Gilda tem as qualidades para isso. Naturalmente, vai chegar um dia em que teremos de nos separar por problemas de idade. Mas quanto a esse problema, não posso fazer nada. É um problema da vida, sou mito mais velho que ela, uma moça bastante jovem. Mas como sou um sujeito muito dialético, procuro resolver os problemas na hora. Não penso muito neles antes que pintem.

Além desse plano principal, você tem outros?

Bem, estou um pouco saturado de shows, excursões, música. Vou terminar esses dois livros de poesia e procurar viver minha vida dentro de uma felicidade possível. Se você me perguntar se sou um homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou porque não sei ser feliz dentro de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse é um problema que me afeta diretamente, me afeta não só como homem de esquerda, mas também como homem, simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu vou carregar pelo resto de minha vida, não há saída, porque não tenho a menor esperança de ver as coisas se normalizarem e se equilibrarem ainda no meu tempo.

Que tipo de sociedade você gostaria que houvesse no Brasil?

Acho que uma volta a uma democracia relativa já seria muito bom sabe! E sobretudo o povo ter liberdade - isso me parece fundamental. Quer dizer, ver as pessoas felizes, contentes, com as caras alegres, sem angústia. E, sobretudo, haver a realização, ou pelo menos um arremedo de realização, de uma organização social mais justa, com uma melhor distribuição da riqueza, uma reforma agrária legal. Isso eu gostaria de ver: os problemas sociais mais graves resolvidos ou, no mínimo, colocados num bom caminho. Isso já me daria um pouco de paz, de calma, de uma tranquilidade bastante maior do que aquela que eu tenho hoje. Eu não consigo me destacar do problema humano.


Entrevista de Narceu de Almeida Filho, publicada na revista Ele&Ela, em março de 1979 (fonte e outra entrevista, de Clarisse Lispector a Vinícius)

Carlos Drummond de Andrade (1963)

Carlos Drummond de Andrade ("o maior poeta que o Brasil já teve", na opinião de Manuel Bandeira) recebe aquele estudantezinho atrevido que, de saída, lhe pergunta, sem a menor cerimônia, já amigo de tu:

- Onde nasceste?

A vontade de Drummond seria responder: "Em Itabiriste." Mas contém e fica à espera. O menino, decididamente da extrema esquerda, quer que todos assumam posição no mundo de hoje. E pergunta:

- Drummond, qual é a posição de escritor nos dias que vivemos?     

Este não hesita e dispara:

- A posição do escritor pode ser de pé, sentada ou deitada, conforme lhe resulte mais cômodo.

E, diante do espanto do mocinho, aconselha:

- Menino, se você não é comunista, vá sendo logo, que é para deixar de ser depressa. Eu também já fui e deixei.

Não sei quem pôs na cabeça do Drummond que ele é gauche . ("Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: vai, Carlos, ser gauche na vida.") Foi ele mesmo que inventou que é insociável. ("Mas se tento comunicar-me, o que há é apenas a noite e uma espantosa solidão.") Um homem que desperta ternura coletiva como ele, que tem um papo que faz a delícia de seus amigos ("Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício. "), meteu na cabeça que existe uma barreira entre ele e o mundo. O homem do sentimento do mundo se protege com um verniz isolante que é fino e penetrável a qualquer calor humano. ("Eu sei quanto me custa manter esse gelo digno.")

Muita gente acha que Drummond fugiu de algum quadro de Modigliani. Pra mim ele esteve, mas foi metido em alguma obra de El Grecco e não quer dizer. Bom pai, extravasa, constantemente, a ternura que vota a Maria Julieta, casada com o advogado Manuel Grana Etcheverry (autor de uma curiosa utopia e que já lhe deu três netos).

Falar de mim, Bloch? Pra isso eu preciso de preparo espiritual. Minha filha, sim. Ela lhe diria tanta coisa! Calcule a falta que me faz: ela em Buenos Aires e eu aqui. Já recebi o Prêmio F. Chinaglia, outro dia. Agora, vem você. Já fica muito holofote em cima de mim. Eu não sei falar de mim. Criei carapaça de tartaruga. Não pense que todo mundo é como você. Ainda existe gente que diz mal de minha poesia. Aquela história da "pedra no caminho" ... Até hoje.

         Relembro quase sem querer:

         "João amava Teresa que amava Raimundo

         que amava Maria que amava Joaquim

         que amava Lili que não amava ninguém.

         João foi pros Estados Unidos. Teresa para oconvento.

         Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia.

         Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes.

        Que não tinha entrado na história."

Muita gente não compreendia razões, raízes, motivos. Não compreendia e, como como todos os que não compreendem, emitia opiniões definitivas.

A modéstia de prummond não anda, se esgueira. Não fosse seu ar de asceta, se diria conspirador. É sombra dele mesmo. Luís Jardim me conta que, um dia, ao ser apresentado a Drummond, se dirigiu para ele de mão espalmada, disposto a um daqueles apertões bem nossos, mas a mão "saiu como um suspiro". "Não pude nem tocar. Drummond é intocável." ("Toda essa mão para fazer um gesto que de intocável nunca se modela.")

Nasceu em Itabira de Mato Dentro, Minas, em outubro de 1902. ("Alguns anos vivi em Itabira./Principalmente nasci em Itabira./Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro./Na cidade toda de ferro,/as ferraduras batem como sinos.") Filho de Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Drummond de Andrade. ("Meu pai montava a cavalo e ia para o campo/minha mãe ficava sentada cosendo." "De Itabira touxe/este orgulho, esta cabeça baixa.") E Carlos Drummond de Andrade quieto e só, lia Robinson Crusoé, outro solitário. Fez belas descrições no grupo escolar. Em 1916 foi pro Colégio Arnaldo de Belo Horizonte. Lá conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos. Em 1925 casou. E farmacêutico, mas nunca exerceu a profissão. Em 1925 entrou para a burocracia. ("Tive ouro, tive gados, tive fazendas./lHoje sou funcionário público./ltabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói") Está aposentado.

Em 1930 surge seu primeiro livro: Alguma Poesia. Com a obra se avolumando, com o correr do tempo, surgiu, certo ano, um movimento para dar a Drummond o Prêmio Nobel de Literatura. ("O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa o transforma em notícia.") A certa altura, começou a tomar vulto, mas foi o próprio escritor que desencorajou a idéia.

- O homem que propôs isto é um estudioso e tradutor americano, mas sem credenciais. Em Portugal o movimento partiu de um ex-aluno de Literatura Brasileira, de Thiers Moreira. Em Minas fui alvo de tanta manchete, que me senti assim uma espécie de Miss Brasil. Não tenho condições para tal prêmio. Sou pouco traduzido e difundido no estrangeiro, minhas ambições não chegam lá.

Todos sabemos, porém, que elas poderiam chegar. Garanto a Drummond que ele é um Fernando Pessoa nosso. E, em certas coisas, com vantagem. Drummond sorri:

- Quem dera! Fernando Pessoa era muitos poetas. Quem sou eu? Acho que poetas poucos conseguem sê-lo, e eu gostaria de ser um. O poeta verdadeiro precisa de aprendizado, de uma adequação da própria vida. A poesia, para mim, resulta de um desabafo, da inconformidade com o mundo. Ela contém, também (e muito), coisas irônicas, não poéticas. O poeta verdadeiro não é como eu, de formação irregular. É como um Dante, que tem uma mensagem imensa a viver.

Lembro a Drummond o que, um dia, me dissera Cecília Meireles:

"Poesia, para mim, é uma tentativa constante de dizer algo. A gente vai tentando dizer, torna a dizer de outra maneira e jamais alcança dizer o que realmente gostaria de ter dito."

Drummond concorda:

- Se eu me sentisse bem integrado na vida, não sentiria necessidade de dizer mais nada. A poesia anda espalhada em todos. Minha empregada, outro dia, quando viu a televisão começar a cair, pegou-a na queda e explicou:

- Eu peguei ela na flor do ar.

Posso dizer o mesmo na minha técnica. Mas ela tem isso inato.

O verdadeiro poeta não é o que tem o dom. Dom todo mundo tem. O dom mais a experiência, mais o gosto dessa expressão é que fazem o poeta. ("Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não olhes no chão o poema que se perdeu.")

É atrás dessas explicações que Drummond esconde sua grandeza verdadeira. Não é somente grande no verso. Na prosa, também, faz milagres. Tem maneira de dizer muito sua.

Ainda está convalescendo da gripe que o atacou e fala do vírus da gripe "esta porcariinha tão mais sutil que o micróbio, o ambíguo vírus que não é carne nem peixe, e que chega a cristalizar no organismo, como os inquilinos de apartamentos vendidos; o que se sabe de positivo a seu respeito é que é um refinado calhorda". Viu alguém melhor definição?

Falando do Rio de hoje, diz: "Compadre: escrevo-lhe sob a lanterna de pilha, pois não há certeza de que amanhã possa fazê-lo à luz do sol. Haverá sol?"

Chega a prodígios quando fala do pão de hoje, o antipão: "O pão de pau, contudo, ainda é pré-pão. Dele sairemos para o pão plástico ou pankex. E com as cores fascinantes que têm hoje os plásticos, os parquês vinílicos e os materiais de construção em geral, o pão eternil policromo e arrebatador."

- Somos casados há trinta e oito anos, me diz dona Dolores. - Carlos ainda era estudante.

O olhar que dirige ao marido revela a harmonia em que vivem. O poeta corrige:

- Quarenta e três. As mulheres têm sempre a mania de diminuir a idade em tudo. E, com ternura, para a esposa:

- Você não contou os cinco de namoro.

- Nós nos conhecemos num cinema. Naquele tempo, em Belo Horizonte, não havia outro lugar pra gente se conhecer. Aliás, minto: havia a igreja. Mas naquele tempo eu era anarquista. Anarquista não podia ir à igreja, podia? ("Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe bondes, ônibus, rio de áço do tráfego.")

- Nunca atropelei ninguém, nem nunca fui pisado. Não havia pedra alguma em meu caminho. Todas as coisas na vida me vêm sem eu pedir. Tenho muitos amigos e gosto de falar deles.

Olho Drummond (e ... curioso!) Augusto Frederico Schmidt, de corpo todo matéria ... é espiritualista. Carlos Drummond de Andrade que é só alma e sombra ... é materialista.

- Sou materialista com algumas nebulosas. Vivo perguntando-me coisas. ("Tudo é possível, só eu impossível. Sinto que nós somos noite, que palpita­mos no escuro e em noite nos dissolvemos. Começo a ver no escuro um novo tom de escuro. Sou apenas um homem. O essencial é viver!")

Materialista que vive perguntando a José Olímpio: "Será que existe o lado de lá?"

- Eu não fui o menino quieto que muitos supõem. Pelo menos em Belo Horizonte e depois. Quando ali cheguei, havia um grupo de transviados da e dedicavam às coisas mais estranhas: a gente vivia arrancando placa de médicos e fazendo entrerro de delegado. Uma noite fiquei danado porque a turmanão me convidou. Reclamei, desapontado: "Vocês todos saíram no jornal e meu nome nem apareceu!" Era uma desmoralização.
Prossegue, enquanto, para surpresa minha, me serve conhaque. Nunca imaginei Drummond, que não fuma, tomando conhaque.

- Naquele tempo, no Restaurante Colosso, de Belo Horizonte, a refeição custava dois mil-réis. Papai era seco por fora, mas doce por dentro. Pra ter dinheiro pros meus gastos particulares comecei a achar que a comida de casa não prestava e pedi dinheiro pra comer no Colosso. Papai me dava dinheiro pro almoço e pro jantar, mas eu só jantava. Um dia ele explodiu. Eu me fizera tão magro que parecia personagem de Josué de Castro.

- Eu era um adolescente anarcóide. Hoje ninguém diz, me vendo já com esta idade e com este jeito. (Do lado esquerdo carrego meus mortos / Por isso caminho um pouco de banda.) Vou envelhecendo. Os meus vivem sessenta e poucos. Estou velho (Há muito suspeitei o velho em mim / Ainda criança já me atormentava; Vai-se-me a vista assim baixando / ou a terra perde o lume?).

Mílton Campos (que não é escritor mas produziu um belíssimo soneto sobre Camões), Abgar Renault, Gustavo Capanema, Alberto Campos, João Alphonsus, Rodrigo MeIo Filho, depois Ciro dos Anjos, me ajudaram muito. Nos reuníamos no Café Estrela, pro choque e pra média. Cada um fazia a crítica honesta do outro. Abgar escrevia versos que ele mesmo recitava nos salões e que faziam as moças se apaixonarem incessantemente.

Um dia cometi um soneto. Cada um deles leu e me olhou com uma cara muito desconsolada. Nunca mais fiz soneto. Marchei para o modernismo.

Muito modernista deve ter nascido assim. Eu, por exemplo, tinha um terrível sentimento de infelicidade porque não sabia fazer versos como todo mundo.

- Ao Mílton Campos devo o conhecimento de Anatole France. Pra nós, na intimidade, era o Anatole, pra cá e pra lá. Nosso quartel-general era a Livraria Alves, de Belo Horizonte, com seus caixotes de livros de novidades francesas. O Capanema comprava logo os melhores. Depois descobri que dava aulas particulares a vinte mil-réis. Mário Casassanta, Pedro Nava, Emílio Moura eram outros amigos, todos tolerantes com minhas besteiras.

Uma pausa:

- Eu sou do tempo em que professor era mestre. Cantava mal. Não ousava abrir a boca nem para o Hino Nacional. Minhas preferências musicais são modestas: me encanta a música de realejo. (Uma coisa triste no fundo da sala / Me disseram que era Chopin.) Mas como eu ia dizendo ... (ou não disse ainda ?) ... Havia poucos colégios em Minas. Papai achou que o Anchieta, de Friburgo, seria bom para mim. No primeiro dia, logo de saída, pra não perder tempo e chamar atenção sobre mim, me declarei, nada mais nada menos, anarquista. Eu nem sabia direito o que isso era. Naqueles dias se jogava muita bomba na Catalunha. Eu achava lindo esse negócio de jogar bomba. Enfrentei a caçoada dos colegas. Me deram logo o apelido de Anarquista. Eu era tratado por esta alcunha ou então por 74. Esse negócio de ser número me horrorizava. Na correspondência pra casa sempre censurada, falava do ambiente. Tive um incidente com um professor de português, Guedes, que me mandou sair da sala. Naquele tempo o importante não era a instrução. Era o comportamento. Diante de toda a classe, o aluno era desmoralizado. O 74 teve quatro em comportamento ... por comiseração. Eu reagi. Queria a nota justa ... sem comiseração alguma.

Fui expulso, perceberam em mim o germe do anarquista. Você não calcula, seu Bloch, o que sofri de pesadelos por causa dessa expulsão

Homem de rara agudeza e de imensa cultura, Drummond despista: - Eu, desde menino, gostava muito de ler. Em 1913, papai mandou buscar e chegou a Itabira, em lombo de burro, a famosa Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Com sua leitura me considerei o cidadão mais culto da cidade. Meu irmão José, dono da metade da biblioteca, então a perdeu para mim, porque o venci numa discussão. Até hoje a conservo. Meu acervo de cultura era essa biblioteca. Dava pro rapazote brilhar. Sabia um pouco de tudo. Aquilo me abriu a janela para o mundo. Um irmão meu ainda me mandava revistas e jornais do Rio, além das formigas e abelhas de Maeterlinck.

Drummond nunca viajou. (Preciso fazer um poema sobre a Bahia / Mas eu nunca fui lá.) Para ele o mundo acaba em Buenos Aires. Três netos e três viagens. Pronto.

- Só mesmo minha filha e meus netos me levariam a viajar. Nunca fui à Europa.

Conta-me histórias de seus netos:

- Carlos Manuel, muito preocupado com a vida, que ele imagina se estender até os cem anos, diz, um dia, filosoficamente. "A vida é curta mesmo! Tenho sete anos ... dentro de noventa e três anos me metem no caixão e fim!" Num domingo foram ver aviões rompendo a barreira do som. No domingo seguinte os netos souberam que a prova ia ser repetida e um deles se espantou: "Vão romper de novo? Já a consertaram?"

Drummond recorda Buenos Aires:

- Tive a ventura de viver, ali, um momento de glória. Entrei na Calle Florida, pra fazer a barba. O barbeiro me olha e diz: "O senhor é um poeta brasileiro, não é?" Fiquei feliz. Que celebridade! Conhecido até pelos barbeiros de Buenos Aires! O meu ego começou a inflar de orgulho, quando o homenzinho pica o balão com alfinete: "Eu reconheci logo o senhor. Vi um retrato seu pintado por aquele Portinari, em casa de seu genro, na Calle Arroyo. Eu faço a barba dele, também."

- Pouco depois (ironia do destino), entre intelectuais que homenageavam, numa livraria, o poeta espanhol Rafael Alberti, antifranquista exilado em Buenos Aires, ninguém me reconheceu.

Viagem se associa a poema do avião. Pergunto: - Drummond, você tem medo de avião?

Ele me olha, com aquela chaminha mansa escondida por detrás dos aros de tartaruga, e explica:

- Não, Bloch. Tenho medo de todos os meios de transporte, inclusive o avião. Há muita coisa que eu admiro muito. E gosto de admirar. Você sabe? Em geral a literatura não conduz à boa conduta moral. Escritor se junta pra falar mal dos outros. Entretanto, nem padeiro fala mal de padeiro.

Drummond me fala de suas admirações e alergias:

- Leio e releio Machado de Assis desde adolescente. Mas com medo. Ele me impregna tanto que tenho medo de plagiá-lo involuntariamente. Realiza a literatura que eu gostaria de ter feito. É discreto e profundo. Minha admiração por Machado é tremenda. Já o Euclides da Cunha tem o tipo de estilo que me desagrada, cheio de riquezas verbais que, para meu gosto, não funciona. Admiro-o, mas não me aproximo dele. Admiro com raiva. E antípoda do meu gosto. Gonçalves Dias me satisfaz mais, muito mais, que Castro Alves. Gonçalves Dias é mais próximo de mim. A gente julga o valor das coisas pelo gosto que tem. As condições sociais de Castro Alves desapareceram. Quando ele é lírico me agrada muito, mas não é meu poeta de cabeceira.

Recordo, neste instante, o que Drummond havia escrito em carta: "A melhor maneira de admirar Castro Alves é não imitá-Io. Castro Alves é fascinante como mau exemplo. Ele resiste até os amigos. Há poetas que se impõem à nossa admiração, especialmente quando não queremos admirá-los."

- Prossegue:

- Guimarães Rosa, para mim, continua admirável. Por mais que ele tenha em boa conta a originalidade de seus processos literários, vai muito além do seu próprio julgamento. Acho que "ele é um louco que pensa que é Guimarães Rosa".

Quando vim para o Rio, trouxe uma admiração infinita por Alvaro Moreira. Achava bonito como ele escrevia e me encantavam, principalmente, suas reticências. Aquelas reticências ... pareciam penumbra ... coisa esmaecendo ... surdina ... Quando aqui cheguei, em 23, a primeira coisa que fiz foi procurar o Alvinho em "O Malho". Me deu um livro, com uma dedicatória em tinta roxa. Eu achei aquela tinta roxa o máximo! Depois começaram a sair coisas minhas no "Para Todos". Quando eu era publicado, ficava andando, com a revista debaixo do braço, com a esperança de que os transeuntes, através de um raio X especial pudessem ver. Tinha a impressão de que era um grande escritor.

Quando se toca em Manuel Bandeira, Drummond é todo enlevo:

-Bandeira é mais velho do que eu. Aprendi a fazer versos através dos versos dele. E um homem excepcional. Os poetas, em geral, ou morrem aos vinte e poucos anos ou atingem os cinqüenta e deixam de escrever. Um homem de setenta e sete anos, escrevendo com a graça do Bandeira, é algo de assombroso. Ele é uma espécie de arco-íris na poesia brasileira. Abrange todas as experiências ... até mesmo o concretismo! Mário de Andrade fez bons poemas, mas era revolucionário. O Bandeira é esclarecedor. (Lembra-me o João Condé que o Drummond, que também é caricaturista, já desenhou capa de livro de Bandeira.)

Diz-me Manuel Bandeira:

- O Drummond é o maior poeta que o Brasil já deu e reconheço sua superioridade sobre mim. De nós dois, o poeta moderno, o que captou a complexidade do momento presente e a transmite como ninguém é o Carlos.

- Bandeira, por que é que o Drummond não entra para a Academia?

- Por várias razões. Em primeiro lugar, não está no feitio dele visitar acadêmicos. Depois ... ele nunca fez um discurso de verdade em toda sua vida. Além disso ... temos a tragédia do fardão! Ele tem é susto de fardão. Você já imaginou o Carlos vestindo aquilo? Eu mesmo passei por este problema. Não sei se você sabe que eu não tenho fardão: não queria comprar porque só o usaria no dia da posse e não queria que os meus amigos me oferecessem. O Otávio TarquÍnio me arranjou emprestado com a viúva de João Luís Alves. Nunca mais o vesti. Aliás, o Macedo Soares me ofereceu um belíssimo colar. Nunca usei.

E concluiu sorrindo:

- Se eu tenho medo do fardão ... calcule o Drummond!

A palavra genial pode ser usada em seu sentido mais amplo, com todo seu peso específico, quando se trata de Drummond. Banalizaram-se tanto os adjetivos que genial passou a ser qualquer pingente da glória. E o próprio quem aconselha.

- Se hesitar entre dois adjetivos, jogue ambos fora e use o substantivo.

Outro conselho revelador !

- Não responda a ataques de quem não tem categoria literária; seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria ... não ataca, pois tem mais o que fazer. (Recordo o poema-orelha: "Esta é a orelha do livro por onde o poeta escuta/se dele falam mal/ou se o amam./lNão me leias se buscas/flamantes novidades/ou sopro de Camões ... "..."a poesia mais rica é um sinal de menos".)

Drummond diz, com seu falar precipitado, taquifêmico:

- Pedro, se se parar de fabricar automóvel e produzir alimentos... o mundo acaba. Mas se parar de produzir sonata ou poema... o estoque dá para alimentar a humanidade para o resto da vida. Atrás dela já estão Goethe e Beethoven, compreende? O homem já se realizou na arte. O homem já disse tudo o que podia dizer. Onde outros colocam Deus eu coloco a obra de arte. Quem não acredita em Deus ainda pode acreditar em Mozart.

Aquele homem diz que não crê em Deus; entretanto, insiste com José Olímpio: "Será que existe o outro lado? Será que existe o lado de lá?" Suas conversas com o editor são infinitas. "Sua poesia se vende, Drummond" - lhe diz este. E Drummond: "Eu não quero a minha poesia mercenária."

Drummond renunciou a muita coisa na vida, por modéstia, humildade, timidez. Muita coisa pra ele foi como o seu verso: "boneca partida antes de brincada". O resultado das vivências e das frustrações nos dão esse homem singular, de uma grandeza humilde, que escapa ao nosso alcance. Envergonha-se como um colegial, quando colegiais, sem a menor vergonha, dele se aproximam e expressam sua infinita admiração. Aí Drummond não sabe como desaparecer. O mestre das palavras não encontra palavras. Reage de maneira peculiar. Ele e José Olímpio são dois críticos de cinema frustrados. Um dia, Drummond, tendo visto Morangos Silvestres, ficou tão empolgado, mas tão empolgado... que foi até o. Leblon e voltou... a pé. Outro teria feito comício ("Já me quiseram fazer deputado, mas eu não saberia falar aos eleitores... e não teria mais de três votos"), gritado, se embriagado. Drummond, não. Andou.

- Gosto tanto de cinema - me explica ele - que quase não vou. Fico indignado quando assisto a um mau filme.

Há poucos dias estavam Drummond e José Olímpio num bate-papo, quando o editor lhe diz:

- Drummond, eu acho que estou ficando burro:

O poeta se alarma.

- Sim, Drummond. Eu estou ficando burro.

- Burro por quê? - quer saber o outro.

José Olímpio baixa os olhos e confessa sua imensa vergonha, meio gaguejante: - Sabe, Drummond? ... Eu fui ver ... sabe? ... Ano Passado em Marienbad ... e não gostei.

Drummond o analisa com piedoso olhar e consola:

- Não, José Olímpio. Você não é tão burro assim. E confessa, sem o menor pudor:

- Eu também não gostei.


Entrevista de Pedro Bloch, publicada originalmente na revista Manchete, nº 582 de 15/06/1963 e republicada no livro "Pedro Bloch entrevista". Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989 (fonte: Tiro de Letra)