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Jürgen Habermas (2003)

Eduardo Mendieta – Professor Habermas, deixe-me iniciar congratulando-o pelo Prêmio espanhol Príncipe das Asturias e também pela Medalha de Ouro da Fundação Madrilenha de Belas Artes. O senhor deve ter pegado muitos espanhóis de surpresa, os quais, assim como eu, não conheciam sua admiração por Miguel de Unamuno e Miguel de Cervantes, autores espanhóis apaixonadamente existencialistas.

Jürgen Habermas – Essa admiração vem desde a minha época de escola e de universidade. Naquele momento, logo após a Segunda Guerra Mundial, o que dominava nosso ambiente eram as peças literárias de franceses como Sartre, Mauriac e Claudel, executadas nos teatros de porão – o existencialismo permitiu a expressão de nosso sentimento de vida. Um livro do filósofo de Tübingen, Friedrich Bollnow (que, aliás, também completaria 100 anos de idade em 2003, assim como Adorno), me chamou atenção, naquele momento, para o “Don Quixote” de Unamuno. De modo semelhante, também fui levado na direção de Kierkegaard, do Schelling tardio e do Heidegger à época de Ser e Tempo. O fato de eu logo haver me distanciado da perspectiva do Ser e me voltado, de modo mais enfático, para questões relativas às teorias sociais, políticas e jurídicas tem uma razão simples: em um país, a República Federal da Alemanha, que se encontrava mental e moralmente desacreditado e tratava de lidar com o que Jaspers denominou situações-limite [Grenzsituationen], era mais pertinente valer-se e discutir nos termos da linguagem de Marx e Dewey do que ter de se debater com o jargão da autenticidade.

 Mendieta – Para voltar à oportunidade do Prêmio recebido recentemente, poderia nos dizer algo sobre o fato de que, entre os demais homenageados, também estavam Susan Sontag, Gustavo Gutierrez e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva – ou seja, figuras inequivocamente da esquerda e que se expressaram em alto e bom tom contra a Guerra no Iraque?

 Habermas – Esse prêmio desfruta de uma publicidade surpreendente no âmbito de fala hispânica. Quando se reflete um pouco, essa coincidência pode ser mais do que um acaso. Na Espanha, de qualquer maneira, os protestos nas ruas contra a política de Aznar e seu apoio à Guerra no Iraque foram ainda mais imponentes do que nos demais países europeus.

 Mendieta – O senhor também foi muito crítico das guerras conduzidas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque. Mas durante a crise no Kosovo, apoiou o mesmo unilateralismo e justificou uma forma de humanismo militar, para usar a expressão de Chomsky. Como se pode diferenciar esses casos – o Iraque e Afeganistão, de um lado, e Kosovo, de outro? 

Habermas – Sobre a intervenção no Afeganistão, expressei-me de modo bastante reservado, em uma entrevista com Giovanna Borradori. Depois de 11 de setembro, o governo Taliban se recusou veementemente a retirar o seu apoio ao terrorismo da Al Qaeda. Até então, o direito internacional não havia perpassado tais situações. As objeções que levantei naquele momento não eram, porém, de natureza legal, como o foram no caso da campanha no Iraque. Independentemente das manobras e mentiras utilizadas pelo governo atual dos Estados Unidos a partir de setembro de 2002, reveladas nesse meio tempo, essa última Guerra no Golfo era uma óbvia oposição de Bush às Nações Unidas, bem como uma ameaça pública e um desrespeito ao direito internacional. Nenhum dos dois possíveis fatos justificáveis, os quais legitimariam uma intervenção, poderia ser observado naquele momento: nem uma correspondente resolução do Conselho de Segurança da ONU, nem um ataque ou invasão iminente por parte do Iraque. E isso tem sua validade, independentemente do fato de se encontrar ou não armas de destruição em massa – atômicas, biológicas e químicas – no Iraque. Não existe nenhuma justificação para algo como um ataque preventivo: ninguém pode iniciar guerras com base em suspeitas. Aqui se vê o contraste com a situação no Kosovo, quando o Ocidente se viu forçado a decidir, sobretudo depois das experiências acumuladas na Guerra da Bósnia – pensemos aqui no desastre de Sebrenica! –, se assistiria mais uma vez a outro processo de limpeza étnica por parte de Milosevic ou se faria uma intervenção – sem que tivesse, nesse caso, ao menos aparentemente, interesses particulares para tanto. De fato, o Conselho de Segurança ficou bloqueado. Ainda assim, havia duas razões legitimando a intervenção, uma formal e outra informal, mesmo que elas não pudessem necessariamente substituir o consentimento do Conselho de Segurança, como estabelecido na Carta da ONU. Por um lado, poder-se-ia apelar ao erga omnes – direcionado a todos os Estados – como ordem de apoio de emergência, no caso de um genocídio ameaçador, princípio esse que representa um sólido componente do direito internacional consuetudinário. Por outro, pode-se também pesar na balança a circunstância de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) representa uma aliança de Estados liberais, cuja construção interna se apóia nos princípios da Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela ONU. Basta comparar isso com a coalizão dos dispostos (Coalition of Willing), que levou à divisão do Ocidente e envolveu Estados que desrespeitam os direitos humanos, como o Uzbekistão e a Libéria de Taylor. Tão importante quanto esses fatos é a perspectiva de que os países da Europa continental, como França, Itália e Alemanha, justificaram sua participação na intervenção em Kosovo naquele momento. Na esperança de aprovação adicional pelo Conselho de Segurança, entenderam tal ação como antecipação de um direito cosmopolita efetivo, um passo partindo do direito internacional clássico em direção ao que Kant definira como condição cosmopolita, a qual concederia também aos cidadãos de um Estado o direito de proteção com relação aos crimes de seu próprio governo. Já naquela época, em 29 de abril de 1999, em um artigo para o jornal Die Zeit, estabeleci uma diferença característica entre as duas iniciativas, a européia continental e a anglo-saxã: “Uma coisa é quando os EUA seguem os rastros de sua admirável tradição política e assumem, instrumentalizados nos direitos humanos, o papel de fiador hegemônico da ordem. Outra coisa é quando nós fazemos a transição ainda precária de uma clássica política de poder para uma condição cosmopolita (...) entendo-a como comum processo de aprendizagem a ser a administrado mutuamente. A perspectiva mais abrangente também requer uma precaução maior. A auto-autorização da NATO não pode se transformar em regra”.1

 Mendieta – Em 31 de maio de 2003, o senhor e Jacques Derrida publicaram um tipo de manifesto com o título “O 15 de fevereiro ou: o que une os europeus – defesa de uma política internacional comum – primeiro no Núcleo-Europa”. No prefácio, Derrida explica que assinou o artigo escrito pelo senhor. Como é que dois dos mais importantes pensadores atuais – que se olharam com suspeita durante as duas últimas décadas, consideraram de forma cautelosa o que um ou o outro fazia mais além da outra margem do Reno, e têm sido vistos por muitos como totalmente distintos e não compreendidos um pelo outro –, de repente, se entendem e decidem publicar juntos um documento tão importante? Isso é simplesmente uma questão política ou o texto assinado em conjunto é também um gesto filosófico? Uma suspensão, um cessarfogo, uma reconciliação, um presente filosófico?

 Habermas – Não tenho qualquer idéia sobre como Derrida responderia a essa pergunta. Para o meu gosto, você exagera um pouco na importância do assunto com tais formulações. Primeiro, é claro que se trata de um posicionamento político, com o qual Derrida e eu concordamos, o que, aliás, tem ocorrido freqüentemente nos últimos anos. Depois do encerramento formal da Guerra no Iraque, quando muitos temiam que os governos pouco dispostos a colaborar com Bush se ajoelhariam perante ele, eu e Derrida – assim como Eco, Muschg, Rorty, Savater e Vattimo – fomos convidados por carta a nos envolver em uma iniciativa relativa ao tema (Paul Ricoeur foi o único que não participou, apoiado em considerações políticas, ao passo que Eric Hobsbawm e Harry Mulisch não puderam fazê-lo por razões pessoais). Derrida não estava em condições de escrever seu próprio artigo, pelo fato de estar passando por uma série de exames médicos, um tanto desconfortáveis, naquele momento. Mas gostaria de estar envolvido com a idéia e me propôs o procedimento, que colocamos em prática. Eu fiquei bastante contente com isso. Havíamos nos encontrado, pela última vez, em 11 de setembro de 2002, em Nova York. Já tínhamos retomado nosso diálogo filosófico havia alguns anos e nos encontrado em Evanston, Paris e Frankfurt. Portanto, não há necessidade de nenhum grande gesto agora. Na ocasião em que recebeu o Prêmio Adorno, Derrida fez um discurso altamente sensível na Paulskirche, em Frankfurt, manifestando de modo bastante impressionante a relação de similaridade, no que diz respeito à mentalidade, entre ele e Adorno. Algo assim não deixa ninguém intato. Mais além de aspectos políticos, é a referência filosófica a um autor como Kant que me conecta com Derrida. O que nos separa, porém, é o Heidegger tardio – já que temos aproximadamente a mesma idade, mas histórias de vida bem distintas como pano de fundo. Derrida se apropria do pensamento de Heidegger inspirado na visão judaica de um Levinas. Eu me deparei com Heidegger como um filósofo que falhou e silenciou como cidadão – em 1933 e, acima de tudo, depois de 1945 –, mas também como filósofo que se tornou suspeito a mim, já que, nos anos 30, absorveu o pensamento de Nietzsche exatamente como os novos gentios (Neuheiden) que, como ele, estavam em voga na época. Diferentemente de Derrida, que empresta à memória (Andenken) um caráter afeito ao espírito da tradição monoteísta, considero a forma pervertida com que Heidegger pensou o Ser (Heideggers vermurkstes “Seinsdenken”) como nivelamento daquele limiar epocal da história da consciência humana, denominado por Jaspers de tempo axial (Achsenzeit). Segundo minha compreensão, Heidegger comete uma traição àquele momento de cesura, expresso de modo distinto tanto pelas palavras profético-despertadoras no Monte Sinai quanto pelo esclarecimento filosófico de Sócrates. Na medida em que Derrida e eu conseguimos entender mutuamente essas distintas motivações como pano de fundo, nossa diferença no que diz respeito às versões não significa, necessariamente, nenhuma divergência quanto aos fatos. De qualquer forma, cessar-fogo ou reconciliação provavelmente não são as expressões adequadas para caracterizar o contato amigável e aberto que mantemos.

Mendieta – Por que o senhor deu o título “15 de fevereiro” ao texto, e não, como proporiam alguns americanos, “9 de setembro” ou “9 abril”? O 15 de fevereiro foi uma resposta histórica ao 9 de setembro – em vez das campanhas contra o Taliban e Saddam Hussein?

Habermas – Esse é um número grande demais. A redação do jornal Frankfurt Allgemeinze Zeitung, aliás, publicou o artigo com a seguinte manchete: “Nossa renovação. Depois da guerra: o renascimento da Europa”, talvez querendo demonstrar e jogar com o significado das demonstrações ocorridas em 15 de fevereiro. A indicação dessa data deveria fazer lembrar as demonstrações maiores ocorridas em cidades como Londres, Madri e Barcelona, Roma, Berlim e Paris, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Tais demonstrações não eram nenhuma resposta ao ataque de 11 de setembro, as quais levaram imediatamente a uma impressionante reação de solidariedade por parte dos europeus. Mas, pelo contrário, trouxeram a expressão da revolta furiosa e impotente de uma grande variedade de cidadãos, muitos dos quais nunca, até então, haviam participado de demonstrações nas ruas. O apelo dos que se opuseram à guerra voltava-se inequivocamente contra as políticas mentirosas e inaceitáveis perante as leis internacionais, colocadas em prática por seus próprios governos ou por governos aliados. Não considero esse enorme protesto uma pequena amostra de antiamericanismo, do mesmo modo que, em outro momento, as manifestações contra a Guerra no Vietnã não o foram – somente com a triste diferença de que não pudemos nos aliar aos impressionantes protestos ocorridos, entre 1965 e 1970, nos Estados Unidos. Por isso, fiquei muito feliz quando meu amigo Richard Rorty espontaneamente tomou a iniciativa intelectual, de 31 de maio, de participar desse processo, ao escrever um artigo que, política e intelectualmente, foi o mais preciso entre todos os publicados sobre o tema.

Mendieta – Continuando a questão referente ao título original do artigo, que conclama a uma política externa européia comum, incorporada primeiramente no Núcleo-Europa, ele sugere a existência de um centro e de uma periferia – algo que é insubstituível e algo que não é. Para alguns, essa expressão soou como um tímido eco da diferenciação feita por Rumsfeld entre a Europa velha e a Europa nova. Estou seguro de que, tanto para Derrida quanto para o senhor, a atribuição de tal semelhança e afinidade pode trazer dores de cabeça. Vocês lutaram vigorosamente em favor da constituição da União Européia, na qual tais gradações geopolíticas não têm lugar algum. O que o senhor quer dizer com Núcleo-Europa?

Habermas – Núcleo-Europa é, em primeiro lugar, uma expressão técnica, introduzida pelos peritos em políticas internacionais do partido alemão União Democrática Cristã (Christiche Demokratische Union-CDU) Schäuble e Lamers nas discussões durante os anos 90, quando o processo de unificação européia tornou-se moroso, para fazer lembrar aquele momento em que seis dos iniciadores da Comunidade Européia haviam adquirido um papel pioneiro. Tanto naquela época como hoje em dia, tratava-se de realçar a França, os Estados do Benelux, a Itália e a Alemanha como a força motriz na fundação das instituições da União Européia. Enquanto isso, a decisão ofig Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003 123 cial tomada na cimeira dos chefes de Estado da União Européia, reunida em Nizza, optou até mesmo pela cooperação reforçada entre os membros individuais quanto a questões políticas específicas. Esse mecanismo é agora conhecido pelo nome de cooperação estruturada e foi adotado no esboço da Constituição Européia. Alemanha, França, Luxemburgo, Bélgica e, mais recentemente, a própria Grã-Bretanha fizeram uso dessa opção no plano comum para o estabelecimento das forças armadas européias. O governo dos EUA se utiliza admitidamente de considerável pressão sobre a Grã-Bretanha para tentar evitar a construção de quartel-general europeu, que seria apenas associado da NATO e nada mais. Nesse aspecto, o Núcleo-Europa já é uma realidade. Por outro lado, é claro que, nos dias de hoje, existem muitas associações com o que Rumsfeld e seus consortes propositadamente definem como uma Europa dividida e debilitada. A idéia de uma política internacional e de segurança desenvolvendo- se de modo comum no Núcleo-Europa, e ampliando-se para além dele, desperta medos, especialmente numa situação em que a União Européia torna-se dificilmente controlável, após a sua ampliação em direção ao Leste europeu – acima de tudo, quando se trata de países que, por razões históricas compreensíveis, lutam contra uma integração continuada. Muitos dos Estados-membros querem se agarrar a seus campos de ação política no âmbito nacional. Estão mais interessados no modo já existente de decisões intergovernamentais do que na consolidação de instituições supranacionais com decisões da maioria sobre campos políticos cada vez mais amplos. Assim, os países coligados, oriundos do Centro e do Leste europeu, estão mais preocupados com soberania nacional há pouco alcançada, ao passo que a Grã-Bretanha teme danificar a sua relação especial com os EUA. A política estadunidense de divisão encontrou dois ajudantes dispostos em Aznar e Blair. Essa afronta completa deparou-se com o que ficou conhecido na Europa como a linha de fratura, latente havia muito tempo, entre os integracionistas e seus oponentes. O Núcleo-Europa é uma resposta a ambos – à desgastante disputa internoeuropéia relativa à finalidade do processo de unificação, totalmente independente da Guerra no Iraque, como também à corrente motivação externa que leva a esse contraste. As reações na palavra- chave Núcleo-Europa são ainda mais nervosas quanto mais se considera a pressão externa e a interna sobre essa questão. O unilateralismo hegemônico do governo dos EUA demanda virtualmente que a Europa finalmente aprenda a falar de política internacional a uma só voz. Mas em virtude do aprofundamento bloqueador representado pela União Européia, somente poderemos aprender a fazer isso quando dermos um passo inicial a partir do centro. França e Alemanha já adotaram freqüentemente esse papel no curso das últimas décadas. Dar continuidade, nesse caso, não significa necessariamente excluir. As portas estão francamente abertas a todos. A crítica severa, expressa acima de tudo pela Grã-Bretanha e pelos países do Centro e do Leste europeu à nossa iniciativa, pode também ser explicada por uma circunstância provocante, ou seja, de que o impulso para a tomada de posição em favor de uma política internacional e de segurança comum ao núcleo europeu deu-se num momento oportuno, quando, em toda a Europa, a grande maioria da população recusou uma participação européia nas aventuras de Bush no Iraque. Esse elemento provocante me ocorreu com a nossa iniciativa de 31 de maio. Infelizmente, não se desenvolveu nenhuma discussão fértil desde então.

Mendieta – Nós sabemos claramente que os Estados Unidos também utilizaram o jogo entre a nova e a velha Europa para denotar a influência deles sobre a NATO. O futuro da União Européia está conectado mais a uma redução ou a um aumento do poder desse organismo internacional? A NATO pode ou deve ser substituída por alguma outra coisa?

Habermas – Ela desempenhou um papel positivo durante a Guerra Fria e também posteriormente – mesmo quando se trata de evitar que uma saída unilateral, como a ocorrida no caso da 124 Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003 intervenção em Kosovo, não se repita periodicamente. Porém, a NATO não terá nenhum futuro, se for considerada não tanto como uma aliança com funções consultivas, mas, cada vez mais, o instrumento de uma política de poder internacional unilateral, voltada a interesses nacionais próprios. A força particular da NATO poderia consistir justamente no fato de ela não se esvaziar na função de um poderoso exército aliado, mas de seu poder e efetividade militar estarem conectados ao valor agregado (Mehrwert) de uma dupla legitimação. Vislumbro uma justificativa de sua existência somente como uma aliança de Estados indubitavelmente liberais, podendo atuar apenas se estiver declaradamente de acordo com a política de direitos humanos das Nações Unidas.

Mendieta – “Os americanos são de Marte e os europeus, de Vênus”, afirma Robert Kagan, num ensaio que recebeu muita atenção por parte dos discípulos neoconservadores de Strauss e de membros do governo Bush. Pode-se entender esse ensaio, que originalmente deveria ser intitulado “Poder e fraqueza”, até mesmo como o manifesto então trabalhado por Bush para desenvolver sua doutrina da segurança. Kagan distingue os americanos dos europeus, caracterizando os primeiros como hobbesianos e os segundos como kantianos. Os europeus entraram realmente no paraíso pós-moderno kantiano de uma paz perpétua, ao passo que os americanos permanecem do lado de fora no mundo do poder político, de cunho hobbesiano, para poder atuar como guardas das muralhas que não podem ser defendidas por europeus, os quais somente se aproveitam das benesses disponíveis?

Habermas – A comparação filosófica não leva muito longe. Kant foi, em certo sentido, um discípulo leal de Hobbes; de qualquer modo, descreveu o modo compulsório como o direito moderno se impõe e o caráter de dominação do Estado de forma tão sombria quanto o fez Hobbes. No que se refere à maneira de um curto-circuito exagerado como Kagan tenta conectar esses dois pólos, ao relacionar tradições filosóficas, de um lado, e mentalidades nacionais e políticas, de outro, é melhor que a deixemos de lado. As diferenças de mentalidade, que alguém estaria tentado a determinar valendo-se de uma tomada de distância entre anglo-saxões e europeus continentais, refletem experiências históricas de longo prazo, mas não vejo nenhuma relação entre elas e as mudanças político-estratégicas de curto prazo ocorridas atualmente. Na tentativa de separar os lobos das ovelhas, Kagan recorre, porém, a alguns fatos: o reinado de terror dos nazis apenas foi superado pelo uso de força militar e, enfim, pela intervenção dos EUA. Durante a Guerra Fria, os europeus somente conseguiram garantir o desenvolvimento e a reforma do Estado de bem-estar social por conta da proteção atômica dos EUA. Na Europa, e especialmente nas populações das classes médias mais abastadas, espalharam-se as convicções de caráter pacifista. Enquanto isso, os países europeus apenas poderiam se opor ao poderio militar estadunidense por meio de palavras vazias, já que dispunham de um orçamento comparativamente pequeno e de forças armadas mal equipadas para qualquer confronto. Por tudo isso, a interpretação caricaturesca, feita por Kagan, desses fatos leva-me ao seguinte comentário: a vitória por sobre a Alemanha nazista também se deu em razão das lutas e grandes perdas do Exército Vermelho; constituição social e peso econômico são fatores relativos a um poder brando e não-militar, que dão aos europeus uma influência no equilíbrio de forças globais, o qual não deve ser subestimado; hoje em dia, na Alemanha, também como conseqüência de uma reeducação promovida pelos Estados Unidos, domina um pacifismo sempre bem-vindo, que, entretanto, não impediu a República Federal da Alemanha de participar de intervenções lideradas pela ONU em regiões como Bósnia, Kosovo, Macedônia, Afeganistão e, finalmente, de se envolver no oeste da África; e são os próprios EUA que pretendem se contrapor aos planos de construção de uma força européia independente da NATO. Com essa troca de acusações, porém, não nos colocamos no nível correto de um debate. O que considero incorreto é a forma unilateral um tanto estilizada da qual Kagan caracteriza a política dos EUA no século passado. A luta entre o realismo e o idealismo em políticas internacionais e de segurança não se dá necessariamente entre os continentes, mas no interior da própria política estadunidense. Sem dúvida, a divisão bipolar da estrutura do poder mundial, entre 1945 e 1989, levou a uma política de equilíbrio fundada no poder de aterrorizar. Durante a Guerra Fria, a competição entre os dois sistemas de armas nucleares constituiu o pano de fundo para Washington impor uma crescente influência da escola realista nas relações internacionais. Mas não podemos esquecer nem o impulso dado pelo presidente Wilson, após a Primeira Guerra Mundial, à fundação da Liga das Nações, nem a influência dos advogados e políticos americanos depois da retirada do governo estadunidense da Liga das Nações, em Paris. Sem os EUA, não se chegaria ao Pacto Briand- Kellog, ou seja, à primeira iniciativa de direito internacional proscrevendo as guerras por razões unilaterais. Acima de tudo, porém, as políticas do vencedor introduzidas por Franklin D. Roosevelt, em 1945, atrapalham o quadro beligerante que Kagan deseja pintar como o único papel dos EUA. Em seu discurso não realizado, o Undelivered Jefferson Day Address, de 11 de abril de 1945, Roosevelt exigiu que o mundo deve buscar não somente o fim da guerra, mas o fim do começo de toda e qualquer guerra. Nesse período, o governo estadunidense havia se assentado no topo do novo internacionalismo e tomado a iniciativa de fundar as Nações Unidas, em São Francisco. Os EUA foram a força motriz por trás da ONU, que, não por mera casualidade, tem sua sede em Nova York. Eles foram responsáveis por trazer à vida as primeiras convenções internacionais em defesa dos direitos humanos, lutaram para garantir a supervisão global, e também a prossecução judicial e militar dos que desrespeitassem tais direitos, e levaram os europeus, primeiro contra a resistência dos franceses, a aceitar a idéia de uma unificação política da Europa. Esse período de um internacionalismo sem precedentes causou uma onda de inovações no direito internacional nas décadas seguintes, iniciativas admitidamente bloqueadas durante a Guerra Fria, mas, ainda assim, parcialmente realizadas após 1989. Naquele momento, a única superpotência que restara ainda não tinha se decidido entre duas possibilidades: se voltaria a exercer seu papel de liderança, no sentido de levar ao caminho de uma ordem mundial cosmopolita, ou se assumiria o papel de um poder hegemônico imperial, que se pretende mais além do direito internacional. George Bush, pai do presidente atual, teve outra visão da ordem mundial, embora de forma vaga, que as esboçadas por seu filho. A ação unilateral do governo atual e a reputação de seus influentes membros e conselheiros neoconservadores têm, certamente, alguns precedentes, como a recusa em assinar o Protocolo de Kyoto, o acordo para a não proliferação de armas atômicas, biológicas e químicas, a Convenção das Minas Explosivas e o protocolo relativo às chamadas crianças- soldado, entre outros. Mas Kagan sugere uma falsa continuidade. A negação definitiva do internacionalismo permaneceu sob reservas para o recém- eleito governo de Bush: a recusa em aceitar a Corte Criminal Internacional já não poderia ser mais vista como uma ofensa de cavaleiro. No entanto, a marginalização ofensiva das Nações Unidas, assim como o desprezo indelicado ao direito internacional, do modo com que esse governo deixa transcorrer, não devem ser considerados como expressões consistentes de algo que valha como constante na política internacional estadunidense. Esse governo, que perdeu obviamente de vista a sua meta declarada de dar maior atenção aos interesses nacionais internos, pode ser reeleito ou não. Por que, então, não separar essa administração já em 2004 daquela visão de governo que Kagan penaliza com mentiras?

Mendieta – Nos Estados Unidos, a guerra contra o terrorismo transformou-se em uma guerra contra liberdades civis e a infra-estrutura jurídica que torna possível uma cultura democrática viva foi contaminada. O Ato Patriótico, de Orwell, é uma autodestrutiva vitória pirrônica, na qual nós somos os perdedores junto com nossa democracia. Essa guerra contra o terrorismo chegou a afetar a Europa de maneira semelhante? Ou a experiência com o terrorismo dos anos 70 fez com que os europeus se tornassem imunes a uma desvalorização de liberdades civis, em favor de um Estado de segurança nacional?

Habermas – Não creio que isso ocorra. Na República Federal da Alemanha, as reações ocorridas no outono de 1977 foram suficientemente histéricas. Além disso, nós conhecemos outro tipo de terrorismo nos dias de hoje. Eu não sei o que teria acontecido se as Torres Gêmeas tivessem desmoronado em Berlim ou em Frankfurt. É claro que, após as experiências de 11 de setembro, também fomos submetidos a pacotes de segurança, mas não na extensão estranguladora e de tamanha inconstitucionalidade como se vê nas regras surpreendentes impostas nos EUA, analisadas e atacadas pelo meu amigo Ronald Dworkin de modo inequívoco. Se há, nesse sentido, diferenças de mentalidade e práticas entre um lado e outro do Atlântico, eu as veria muito mais com relação ao pano de fundo de suas respectivas experiências históricas. Talvez o choque bastante compreensível resultante dos atentados de 11 de setembro por lá seja realmente maior do que poderia ocorrer em um país europeu acostumado com guerras – mas como ter certeza disso? Certamente, os êxtases patrióticos que se seguiram ao choque tiveram um caráter bem estadunidense. Mas eu buscaria a chave para entender as razões à restrição de direitos, por você mencionada – desrespeito à Convenção de Genebra, em Guantânamo, à criação do Ministério de Segurança Nacional (Department of Homeland Security) etc. –, em outras considerações. De fato, se vê a militarização da vida dentro e fora do país, a política belicista deixando-se contaminar pelos métodos dos presumidos oponentes e, com isso, a evidência do Estado hobbesiano no palco mundial, em que a globalização dos mercados parece forçar o elemento político completamente para a periferia. A população dos EUA politicamente esclarecida não teria respondido e aceitado nada disso com o aval da grande maioria, se o governo não houvesse reagido ao choque de 11 de setembro com pressão, propaganda inescrupulosa e exploração das incertezas de modo manipulador. Para um observador europeu e um gato escaldado como eu, a intimidação sistematicamente dirigida e a indoutrinação impressa nos meses de outubro e novembro de 2002, quando eu me encontrava em Chicago, incomodaram bastante. Essa não era mais a minha América. Meu pensamento político se alimenta dos ideais estadunidenses do final do século XVIII desde quando eu tinha 16 anos de idade, graças a à perspectiva de uma razoável política de reeducação (reeducation policy), implementada pela ocupação da Alemanha no pós-Guerra.

Mendieta – Em sua conferência para a seção plenária do Congresso Mundial de Filosofia, ocorrido em 2003, em Istambul, o senhor disse que a segurança internacional é ameaçada atualmente de maneira nova, sob as condições da constelação pósnacional, por três lados: o terrorismo internacional, os Estados que desrespeitam as leis internacionais, e as novas guerras civis que originam Estados desintegrados. O terrorismo é algo contra o qual os Estados democráticos podem declarar uma guerra?

Habermas – Democrático ou não, normalmente um Estado pode declarar guerra somente contra outros Estados, entendendo-se essa palavra num sentido preciso. Quando, por exemplo, um governo aplica sua força militar contra rebeldes, esse método nos faz lembrar uma guerra, mas tal iniciativa possui outra função – o Estado tem a prerrogativa de zelar pela ordem e pela paz, dentro de seus limites territoriais, quando os órgãos da polícia não estiverem em condições suficientes de fazê-lo. Apenas quando a tentativa de uma pacificação forçosa falha, e o próprio governo sucumbe à luta interna entre várias partes em conflito, é que se deve falar de guerra civil. Essa analogia lingüística com relação à guerra entre Estados é correta, porém, somente num sentido – ao se tratar da dissolução da autoridade estatal e da desintegração do executivo, a simetria entre adversários políticos em disputa é similar ao caso normal de conflito bélico entre Estados. Não obstante, falta aqui o sujeito próprio das ações e negociações: a organização coercitiva do poder estatal. Perdoe-me por essa conceitualização pedante. Entretanto, no caso do terrorismo internacional, que atua mundialmente e se espalha por meio de células operacionais em grande parte descentralizadas e conectadas unicamente de modo solto, deparamo-nos com um novo fenômeno, que não devemos tentar assimilar apressadamente como algo simples e conhecido. Sharon e Putin podem se sentir encorajados por Bush, porque ele considera tais diferenças como farinha do mesmo saco. Como se Al Qaeda não fosse algo distinto da luta partidária por determinados territórios, como a levada a cabo por movimentos terroristas de independência ou de resistência na Irlanda do Norte, na Palestina, na Tchechenia etc. A Al Qaeda também difere do que se entende por grupos terroristas e grupos tribais mantidos por corruptos senhores da guerra, que atuam sobre as ruínas de processos frustrados de descolonização, além de ser algo diverso do governo criminoso de Estados que conduzem à guerra, a fim de promover limpezas étnicas e genocídios contra sua própria população ou, ainda, como no caso do regime Taliban, que apoiou o terrorismo mundial. Com a Guerra no Iraque, o governo dos EUA não apenas empreendeu uma tentativa ilegal, mas também incompetente de substituir a concepção de uma guerra assimétrica entre Estados pela assimetria entre um Estado de tecnologia altamente sofisticada e uma rede terrorista intangível, que, até então, atuava à base de facas e explosivos caseiros. As guerras entre Estados são assimétricas, quando um agressor objetiva não a vitória de forma convencional, mas a destruição de um regime, com base na presunção a priori do equilíbrio transparente de forças. Pensemos na movimentação de tropas ocorrida durante meses, ao longo das fronteiras do Iraque: não é preciso ser nenhum especialista em terrorismo para reconhecer que isso não destrói a infra- estrutura de uma rede, as logísticas da Al Qaeda e as suas bases escondidas, nem afeta o ambiente no qual um grupo com essas características vive.

Mendieta – Juristas defendem, com base no direito internacional clássico, a opinião de que o jus ad bellum traz consigo uma limitação inerente ao jus in bello. Já nos ordenamentos sobre as guerras entre países, elaborados de modo detalhado pela Corte Internacional de Haia, busca-se limitar a violência exercida sobre a sociedade civil e contra soldados prisioneiros de guerra, o meio-ambiente e a infra-estrutura da sociedade em questão. As regras da guerra também têm o objetivo de tornar possível um acordo de paz aceitável por todas as partes. Mas a disparidade monstruosa no equilíbrio da força tecnológica e militar entre os Estados Unidos e seus respectivos oponentes – no Afeganistão ou no Iraque – torna quase impossível aderir ao jus in bello. Os EUA não deveriam ser acusados e julgados pelos crimes de guerra que têm cometido de modo óbvio no Iraque, mesmo que em seu próprio território essas questões estejam sendo totalmente ignoradas pela população?

Habermas – O Ministério de Defesa dos Estados Unidos estava, exatamente com relação a essa questão, orgulhosamente entusiasmado pela utilização de armas de precisão, que – presumidamente – iriam fazer com que as perdas na população civil fossem mantidas no menor nível possível. Porém, quando, em 10 de abril de 2003, se lê uma reportagem, na edição vespertina do New York Times, sobre as vítimas civis no Iraque, e nela o relato de uma regra segundo a qual Rumsfeld assume as mortes da população civil como meras casualidades, a alegação de que a população estaria protegida pela precisão das armas já não oferece nenhum consolo: “Os comandantes da aeronáutica deveriam se reportar ao secretário de Defesa, Donald L. Rumsfeld, e obter sua aprovação, caso qualquer ataque pudesse resultar em mortes de mais de 30 civis. Foram feitas mais de 50 propostas para operações desse tipo e todas elas foram aprovadas”.2 Não sei o que a Corte Internacional de Haia diria sobre esse acontecimento. Mas considerando as circunstâncias de que esse tribunal não é reconhecido pelos EUA, e de que o Conselho de Segurança da ONU não pode tomar nenhuma decisão contra um de seus membros com direito a veto, toda essa pergunta provavelmente deve ser feita de modo diferente. Estimativas conservadoras assumem já haver cerca de 20 mil iraquianos mortos. Esse número monstruoso, comparado com perdas ocorridas nas próprias frentes, jorra luz sobre a verdadeira obscenidade moral que experimentamos por meio das telas de televisão, com imagens selecionadas e até mesmo controladas tão cuidadosamente, revelando-nos essa guerra como um evento militar assimétrico. Essa assimetria das forças militares teria outro significado se refletisse não tanto a relação entre força superior e a impotência entre dois oponentes em uma guerra, e sim o poder de polícia de uma organização mundial. Às Nações Unidas é dada atualmente, segundo sua Carta, a função de garantir a manutenção da paz e da segurança internacional, bem como a implementação da proteção aos direitos humanos individuais. Se considerarmos de modo contrafactual a possibilidade de essa organização ter assumido mesmo tal função na situação atual, ela teria de cumpri-la unicamente sob a condição de dispor do poder de sanção não-seletiva contra os atores e Estados que desrespeitassem as regras, aplicando a intimidação por meio de sua superioridade. Nesse caso, a assimetria das forças teria tido outro caráter. A transformação infinitamente árdua e ainda improvável, levando a possíveis ações de caráter policial autorizadas pelo direito internacional, ao invés de guerras criminosas e seletivas, exige mais do que uma corte imparcial para decidir sobre as penas adequadas, necessárias a determinadas ofensas. Nós também precisamos aprimorar o jus in bello para transformá-lo num direito de intervenção, fazendo o direito penal no âmbito interno dos Estados nacionais funcionar de modo semelhante à ordenação da Corte de Haia, que, todavia, trata as ações de guerra, e não as formas civis de adscrição de penas ou do sistema penal. Graças ao fato de a vida de outros inocentes também estar em jogo, sempre no caso das intervenções humanitárias, a força necessária deveria ser regulada de maneira estreita para que ações ostensivas de uma polícia mundial percam o caráter de pretexto e, assim, ganhem aceitação mundial. Um bom teste são os sentimentos morais dos observadores globais – não para ver se formas de lamentos ou piedade tendem a desaparecer, e sim como testemunha da revolta espontânea perante algo obsceno, que muitos de nós sentimos ao assistir, durante semanas, os ataques de mísseis sob o céu iluminado em Bagdá.

Mendieta – John Rawls vê a possibilidade de as democracias realizarem guerras justas contra estados criminosos (unlawful states). Mas o senhor vai ainda mais longe em seu argumento, afirmando que mesmo os Estados indubitavelmente democráticos não teriam o direito de decidir por suas próprias medidas e arbítrio sobre o início de uma guerra contra um Estado que fosse, presumidamente, déspota, ameaçador da paz ou criminoso. Em sua conferência, em Istambul, o senhor diz que os julgamentos imparciais nunca podem chegar a agradar um só lado. Por essa razão cognitiva, deve-se abandonar o unilateralismo de alguma parte que se afirme como a hegemonia da legitimidade, mesmo a mais bem-intencionada: “Essa falta não pode ser resolvida com a constituição democrática baseada no intento de uma hegemonia bondosa”. O jus ad bellum, que caracteriza o núcleo do direito internacional clássico, não se torna obsoleto também no caso de uma guerra justa?

Habermas – O último livro de Rawls, Law of Peoples, já foi bastante criticado, e com razão, porque, em certo sentido, afrouxa os rígidos princípios da justiça, a serem satisfeitos pelos Estados democráticos constitucionais para que haja uma relação e um trânsito com Estados autoritários ou meio-autoritários, e põe a proteção desses preceitos reduzidos nas mãos de Estados democráticos específicos. Nesse contexto, Rawls cita, com aprovação, a doutrina de guerra justa proposta por Michael Walzer. Ambos consideram a justiça entre nações desejável e possível, mas se contentam em deixar a execução e implementação da justiça internacional ao julgamento e à decisão de certos Estados soberanos. Com isso, Rawls parece pensar, assim como Kant, em uma vanguarda liberal da comunidade de Estados (Staatengemeinschaft), ao passo que Walzer considera que isso remete às nações envolvidas em cada caso, independentemente de suas respectivas constituições internas. Diferentemente do proposto por Rawls, a desconfiança de Walzer com relação aos procedimentos e às organizações supranacionais tem motivação em suas considerações comunitaristas. A proteção da integridade das formas de vida e do ethos de uma comunidade organizada de modo estatal deve ter prioridade por sobre a implementação global de abstratos princípios de justiça, contanto que isso não leve a genocídios e a crimes contra a humanidade. É mais fácil refletir e esclarecer a questão subjacente à concepção de Walzer do que considerar a defesa indiferente que Rawls fez do direito internacional. Desde o Pacto de Briand-Kellog, de 1928, as guerras de invasão estão proscritas do direito internacional. A aplicação de força militar só deveria ser permitida quando se trata da autodefesa. Assim, o jus ad bellum foi abolido, em sua compreensão segundo o direito internacional clássico. Mas como as instituições estabelecidas pela Liga das Nações, após a Primeira Guerra Mundial, foram consideradas muito débeis, depois da Segunda Guerra Mundial as Nações Unidas passaram a ser implementadas com a autoridade para realizar operações destinadas à manutenção da paz e para executar sanções, tendo pagado o preço de dar o direito a veto às grandes potências mundiais de então, de modo a obter a cooperação por parte delas. A Carta da ONU fixa a prioridade do direito internacional por sobre os sistemas jurídicos nacionais. A articulação da Carta com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com a autoridade ampla desfrutada pelo Conselho de Segurança, segundo o capítulo VII, causou uma onda de inovações jurídicas, que, embora não utilizadas de modo efetivo até 1989, foram compreendidas corretamente como um processo de constitucionalização do direito internacional (Konstitutionalisierung des Völkerrechts). A organização mundial, incluindo, nesse meio tempo, 192 Estados- membros, tem uma verdadeira constituição que fixa os procedimentos segundo os quais as infrações internacionais são determinadas e penalizadas. Desde então, não há mais nenhuma guerra justa ou injusta, apenas guerras legais ou ilegais, ou seja, guerras justificadas no direito internacional ou guerras sem justificação. É necessário ter em mente esse impulso da evolução do direito para poder reconhecer a ruptura radical impressa pelo governo Bush – tanto por meio de sua doutrina da segurança nacional, ignorando as condições prévias legais atuais para o propósito de qualquer intervenção com o uso de força militar, como também mediante seu ultimato ao Conselho de Segurança, para que abençoasse a política agressiva dos Estados Unidos com relação ao Iraque ou se tornasse inútil e sem sentido. No nível retórico da legitimação, não se tratava, de maneira alguma, de uma redenção realista das idéias idealistas. Ainda que Bush tivesse o interesse de alijar um sistema injusto e democratizar a região do Oriente Médio, os objetivos normativos ou prescritivos não estariam em desacordo com o programa das Nações Unidas. O que torna a sua iniciativa discutível não é a possibilidade de justiça entre nações, mas a maneira de implementá-la. De modo ad acta, e com apelos morais, o governo Bush descartou o velho projeto de regulamentação jurídica das relações internacionais (Verrechtlichung der internationalen Beziehungen), proposto há mais de 220 anos por Kant. O comportamento do governo estadunidense somente admite a conclusão de que, na sua concepção, o direito internacional, como meio para a solução de conflitos internacionais e para a implementação da democracia e dos direitos humanos, foi manipulado. Esses objetivos fazem com que a potência mundial afirme, pública e declaradamente, o conteúdo de uma política fundada não mais no direito, e sim em seus valores éticos e convicções morais particulares, impondo, assim, suas próprias justificativas normativas, ao invés de seguir os procedimentos jurídicos. Porém, uma coisa não substitui a outra. A renúncia à utilização de argumentos jurídicos sempre significa uma desconsideração das normas gerais reconhecidas previamente. Partindo-se da visão limitada da própria cultura política e do próprio entendimento do mundo, mesmo o poder hegemônico bem-intencionado não pode sempre ter a certeza de que entende e leva em conta a situação e os interesses das demais partes do processo. Isso vale tanto para os cidadãos de uma superpotência fundada democraticamente quanto para os políticos que a governam. Sem a inclusão de ações legais contemplando todas as partes envolvidas e considerando as suas respectivas tomadas de posição, não se constrange a parte superior a deixar a perspectiva central de um grande império para se envolver pela descentralização de suas perspectivas de interpretação, como exige o ponto de vista cognitivo da apreciação de todos os interesses. Mesmo um poder ultramoderno como o dos EUA acaba caindo novamente no falso universalismo dos velhos impérios, quando substitui o direito positivo por moralidades e éticas, em questões relativas à justiça internacional. Na perspectiva de Bush, os “nossos” valores valem tanto quanto os universais, devendo ser aceitos da melhor maneira possível por todas as demais nações. O falso universalismo nada mais é do que uma ampliação do etnocentrismo. Não há nenhuma relação entre ele e uma teoria da guerra justa, derivada de tradições teológicas ou do direito natural, mesmo quando assume hoje o vestuário comunitarista. Não digo que as razões oficiais do governo estadunidense com a Guerra no Iraque ou as convicções religiosas expressas oficialmente pelo seu presidente sobre o bem e o mal cumpram os critérios estabelecidos por Walzer para justificar uma guerra justa. Como jornalista, Walzer não deixou nenhuma dúvida quanto à sua própria oposição. Mas como filósofo, ele define seus critérios, independentemente do fato de serem racionais ou não, com base unicamente em princípios morais e considerações éticas, e, portanto, não no marco de uma teoria do direito, que relaciona o julgamento sobre guerra e paz com procedimentos imparciais de produção e aplicação de normas aceitáveis. Nesse contexto, interessa-me apenas uma conseqüência de tal posição: os critérios de julgamento sobre uma guerra justa não foram traduzidos no âmbito jurídico. Somente assim pode-se tratar de uma sempre controversa justiça material e verificar como as guerras podem ser julgadas em sua legalidade. Os critérios de Walzer para uma guerra justa são, mesmo quando encontrados no direito internacional habitual, de natureza essencialmente ético-política. Sua utilização em casos específicos escapa à verificação por tribunais internacionais de justiça, já que tais situações ficam sob a jurisdição da esperteza (Klugheit) e do senso comum de justiça de cada Estado nacional. Mas por que o julgamento imparcial de conflitos deveria ser salvaguardado apenas num Estado valendo-se dos meios legais? Por que sua validez não deveria ser aplicada também às disputas internacionais? Trata-se de algo trivial: quem deveria determinar, no plano supranacional, se os nossos valores realmente merecem o reconhecimento universal ou se nós verdadeiramente empregamos, de modo imparcial, os princípios reconhecidos universalmente? Isto é: se nós, de fato, não atuamos de modo seletivo numa situação discutível, ao invés de meramente considerar o que nos é relevante. Esse é o grande sentido dos procedimentos jurídicos inclusivos, os quais articulam as decisões supranacionais à condição da tomada de perspectiva envolvendo as distintas partes e seus interesses.

Mendieta – Mas, para honrar o seu projeto kantiano, o senhor assume o papel de advogado de um humanismo militar?

Habermas – Não sei o contexto exato dessa expressão, mas suspeito que ela aluda ao perigo de se tentar um reducionismo das oposições ao processo de moralização cultural (Moralisierung). Exatamente quando se trata do plano internacional, a demonização do lado oposto – pensemos no eixo do mal – não contribui em nada para a solução de conflitos. Hoje em dia, o fundamentalismo cresce por todos os lados, tornando os conflitos insolúveis – no Iraque, em Israel e em outros lugares. Com esse argumento, incidentemente, Carl Schmitt também defendeu um conceito de guerra não-discriminatório durante toda a sua vida. O direito internacional clássico, de acordo com o argumento de Schmitt, considerava a guerra sem maiores necessidades de justificação como método legítimo para a solução de conflitos entre Estados, mas, com isso, servia, ao mesmo tempo, de importante precondição para a civilização de confrontações bélicas. Por sua vez, a criminalização dos ataques bélicos, que se dá a partir do Tratado de Versalhes, fez com que a própria guerra fosse vista como crime, causando uma dinâmica de desfronteirização de limites (Entgrenzung). Isso porque, assim, o oponente sentenciado moralmente transformava-se num inimigo a quem se devia aversão e se buscava destruir. Quando, nesse processo de moralização, as partes contrárias não se consideram mais merecedoras de respeito – justus hostis –, as guerras, até então restritas, se degeneram em guerras totais. Até mesmo quando a guerra total se volta logo para uma mobilização nacionalista em massa e para o desenvolvimento de armas atômicas, biológicas e químicas, de destruição em massa, não se pode dizer que tal argumento seja falso. Porém, isso referenda a minha tese de que a justiça entre as nações não pode ocorrer por meio de uma moralização, e sim pela regulamentação jurídica (Verrechtlichung) das relações internacionais. O julgamento discriminatório é contrário à paz somente quando uma das partes reivindica, com base em seus próprios padrões morais, o julgamento da outra como tendo cometido um crime. Não podemos confundir tal julgamento subjetivo com a condenação legal de um governo comprovadamente criminoso, por meio de um processo jurídico ocorrido diante dos foros e de uma comunidade supranacional constituída por Estados (Staatengemeinschaft). Tal procedimento amplia a proteção legal também para uma parte que, embora acusada, tem sua inocência validada até que se prove o contrário. A diferenciação entre moralização cultural e regulamentação jurídica das relações internacionais não teria, de forma alguma, agradado a Carl Schmitt, pois, para ele e seus contemporâneos fascistas, a luta existencial fundamental sobre a vida e a morte possuía uma aura decididamente vitalista. Por isso, Schmitt considera que a substância do político ou a auto-afirmação da identidade de um povo ou de um movimento não podem ser domesticadas normativamente, além de afirmar que cada tentativa de se domar algo juridicamente deve ser reagida de maneira selvagem, valendo-se da cultura moral. Se o pacifismo legal pudesse ter sucesso, ele nos roubaria o meio essencial para a renovação da autêntica existência. De qualquer modo, não precisamos nos deter mais sobre esse confuso conceito. O que devemos tratar, nesse ponto, é o emprego de uma suposta premissa realista, defendida por hobbesianos de esquerda e de direita: o direito, mesmo na forma moderna do Estado constitucional democrático, sempre é unicamente o reflexo e a máscara do poder econômico ou político. Sob essa condição prévia, o pacifismo legal, que quer estender o direito ao estado natural como condição para a relação entre os Estados, aparece como pura ilusão. De fato, o projeto de Kant objetivando uma constitucionalização (Konstitutionalisierung) do direito internacional se ressente de um idealismo sem ilusões. A forma do direito moderno tem, como tal, um núcleo moral que não dá margem a dúvidas, afirmandose e se fazendo notar a longo prazo como civilizador gentil (gentle civilizer, de Koskenniemi) – uma força suavemente civilizatória –, em que o meio jurídico é aplicado como um poder amoldado à constituição (eine verfassungsgestaltende Macht). De qualquer modo, o universalismo igualitário, inerente ao direito e a seus procedimentos, deixou rastos empiricamente verificáveis na realidade política e social do Ocidente. A idéia do tratamento igualitário, investido pelo direito tanto às pessoas quando aos Estados, somente pode ser vista como cumprindo uma função ideológica, quando entra em jogo, ao mesmo tempo, como um padrão para a crítica da ideologia. Por isso, os movimentos de oposição e de emancipação, no mundo inteiro, utilizam atualmente o vocabulário dos direitos humanos. Mesmo quando a retórica dos direitos humanos se presta aos fins da opressão e da exclusão, tal abuso pode ter o seu antídoto ao se lançar mão dessas mesmas palavras.

Mendieta – Justamente como um defensor incorrigível do projeto kantiano, o senhor deve ter ficado profundamente desapontado com as maquinações maquiavélicas que freqüentemente dominam a prática das Nações Unidas. O senhor mesmo já percebeu e discutiu a seletividade monstruosa com a qual se tratam casos que chegam ao Conselho de Segurança para que ele tome alguma iniciativa prática. O senhor fala da prioridade sem vergonha desfrutada pelos interesses nacionais diante das obrigações globais. Como as instituições das Nações Unidas devem ser alteradas e reformadas para que essa organização não seja mais vista como uma defensora dos interesses e objetivos unilaterais pró-ocidentais, e sim como uma ferramenta efetiva para a busca e a garantia da paz?

Habermas – Esse é um tema amplo. Não se conclui tudo com as reformas institucionais. São importantes as ações como a composição do Conselho de Segurança proporcional à mudança nas circunstâncias e relações de poder atuais, discutida nos dias hoje, e a restrição ao direito de veto por parte dos grandes poderes. No entanto, elas não são suficientes. Deixe-me selecionar alguns pontos de vista sobre esse complexo, em que o todo não é muito transparente. A organização mundial apóia-se corretamente na inclusão completa. Ela é aberta a todos os Estados comprometidos com as formulações do texto da Carta e as declarações relativas ao direito internacional propostas pela ONU – independentemente da correspondente extensão da aplicação prática, de fato, desses princípios no âmbito doméstico. Considerada em relação às suas próprias bases prescritivas, existe – apesar da igualdade formal entre os membros – uma tendência comum quanto à legitimação, que une os liberais, os quase-autoritários e, às vezes, até mesmo os Estados despóticos membros da organização. Isso chama a atenção, por exemplo, quando um Estado como a Líbia assume a presidência do Comitê de Direitos Humanos. John Rawls teve o mérito de advertir sobre o problema fundamental da legitimação por níveis distintos. A vantagem na legitimação, a ser exercida pelos países democráticos, e no que Kant já havia colocado toda a sua esperança, não pode ser formalizada. Mas poderiam ser desenvolvidos hábitos e métodos que a levassem em conta. Desse mesmo ponto de vista, torna-se clara a necessidade de reforma do direito a veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança. O problema mais urgente é, certamente, a limitação da ação de uma organização mundial, que não dispõe de nenhum monopólio de poder e necessita do apoio ad hoc de seus membros mais poderosos, sobretudo em casos de intervenção e processos de construção de nações. O problema não se dá, porém, na ausência do monopólio de poder e de força – a diferenciação entre o poder constitucional e o Poder Executivo também pode ser observada em outras situações, como na União Européia, em que o direito dela rompe com os direitos nacionais, ainda que os Estados nacionais possuam os métodos alojados para o exercício legítimo da força militar. Além de sua condição financeira subdimensionada, as Nações Unidas sofrem, acima de tudo, com a sua dependência de governos, que não apenas buscam os seus interesses nacionais, mas também dependem do voto e do consentimento de suas respectivas populações. Até que venham a ocorrer mudanças no nível sociocognitivo, já que, em sua autopercepção, os Estados-membros se entendem, desde sempre, como protagonistas soberanos, devemos refletir sobre como alcançar um desacoplamento relativo (relative Entkoppelung) dos níveis de decisão. Os Estados-membros poderiam, por exemplo, manter certos contingentes militares à disposição permanente da ONU, sem, no entanto, restringir seus direitos nacionais de manter suas próprias forças armadas. De modo realista, contudo, a meta ambiciosa de uma política internacional integrada, sem governo mundial, apenas pode ser pensada, como projeto, sob a condição de que a organização mundial se limite a suas duas funções mais importantes – a manutenção da paz e a implementação global dos direitos humanos –, deixando a outros sistemas e instituições de negociação, de nível intermediário, a coordenação política nas áreas da economia, meio-ambiente, transporte, saúde e outras. Porém, no momento atual, esse nível de global players capazes de atuar politicamente e negociar entre si para chegar a acordos só pode ser ocupado por algumas instituições, como a Organização Mundial do Comércio. Uma simples reforma bem-sucedida das Nações Unidas não causaria nada se os Estados-nação não se unissem, em cada continente distinto, em regimes continentais segundo o modelo da União Européia. Para isso, existem atualmente algumas iniciativas modestas. É aqui, e não na reforma da ONU, que se dá o elemento utópico de uma condição cosmopolita. Sobre a base de uma divisão de trabalho no interior de um sistema global com seus vários níveis, poder-se-ia cobrir, de modo parcialmente democrático, a demanda por legitimação necessária a uma ONU decididamente capaz de ações eficientes. Em outras palavras, uma esfera pública global como essa que se deu, pelo menos até agora, apenas em ocasiões de grandes eventos históricos mundiais, como o 11 de setembro. Graças às mídias eletrônicas e aos sucessos surpreendentes de organizações não-governamentais com operações mundiais, entre elas, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, é possível, porém, constituir uma infra-estrutura mais sólida da esfera pública, que um dia poderá ganhar maior continuidade. Sob tais circunstâncias, não estaria tão longe o dia em que seja realidade a idéia de se estabelecer um Parlamento da Cidadania Global ao lado da segunda câmara da Assembléia Geral das Nações Unidas ou, ao menos, acrescentar uma representação dos cidadãos à já existente câmara de representantes dos Estados. Com iniciativas desse tipo, a evolução do direito internacional, que já vem ocorrendo há muito, teria sua expressão simbólica e uma correspondente amarração institucional. Porque nesse ínterim, não somente os Estados, mas também os próprios cidadãos transformaram-se em sujeitos do direito internacional: como cidadãos cosmopolitas, todos também podem clamar por seus direitos, fazendo- os valer, se necessário, até mesmo contra seus próprios governos. Decerto o pensamento sobre a idéia abstrata de um parlamento cosmopolita causará fraudes fáceis. Mas, considerando as funções limitadas das Nações Unidas, devemos ter em conta que os deputados desse parlamento representariam populações não necessariamente interconectadas por meio de densas tradições, como se dá com os cidadãos de uma comunidade política. Em vez da solidariedade cívica, bastaria um acordo negativo, isto é, a revolta comum contra iniciativas de guerra e o desrespeito aos direitos humanos por parte de grupos criminosos e governos, ou mesmo o horror comum com relação aos processos de limpeza étnica e genocídios. Porém, as resistências e recaídas a serem superadas no caminho de uma constitucionalização completa são tão grandes que o projeto só terá sucesso quando os EUA se colocarem novamente, como em 1945, na condição de locomotiva à frente desse movimento. Isso não é tão improvável como talvez pareça no atual momento. Por um lado, trata-se de um golpe de sorte da história mundial que a única superpotência seja, ao mesmo tempo, a democracia mais antiga na Terra e, por isso, diferentemente do que Kagan nos quer fazer crer, apresenta afinidades, de fato e desde sempre, com a idéia kantiana de regulamentação jurídica das relações internacionais. Por outro lado, é do próprio interesse dos Estados Unidos fazer com que a ONU se torne capaz e efetiva, antes que outra grande potência, menos democrática, transforme-se numa superpotência. Os impérios vêm e vão. Finalmente, a União Européia chegou há pouco a um acordo quanto aos princípios de uma política de segurança e defesa internacionais (Sicherheits- und Verteidigungspolitik) em oposição ao ataque antecipado (pre-emptive strike) e propôs o engajamento preventivo (preventive engagement), tornando-se, com isso, capaz de influenciar a formação da opinião na esfera pública política de seus aliados americanos.

Mendieta – O desprezo do governo dos EUA pelo direito internacional e pelos pactos internacionais, o seu uso brutal da força militar e sua política da mentira e da extorsão levaram a um antiamericanismo não injustificado, pelo menos quando aplicável ao presente governo dos Estados Unidos. Como a Europa deveria tratar esse sentimento generalizado e tentar prevenir que o antiamericanismo mundial se degenere em ódio contra o Ocidente?

Habermas – O antiamericanismo é um perigo na própria Europa. Na Alemanha, ele sempre se uniu com os movimentos mais reacionários. Então, é importante para nós, como na época da Guerra do Vietnã, poder fazer frente às políticas do governo americano lado a lado com uma oposição interna dos próprios americanos a seu governo. Se pudermos nos relacionar com um movimento de protesto dentro dos Estados Unidos, a acusação contraprodutiva de um antiamericanismo aqui encontrada seria nula. Outra coisa é a emoção antimodernista contra o mundo ocidental. Nesse sentido, carece implementar uma defesa autocrítica das realizações da era moderna ocidental, mas, ao mesmo tempo, sinalizando a franqueza e a abertura para aprender, dissolvendo, acima de tudo, a identificação idiota da ordem democrática e da sociedade liberal com o capitalismo selvagem. Devemos, por um lado, estabelecer um limite inequívoco com relação ao fundamentalismo, inclusive com o cristão e o judeu, e, por outro, reconhecê-lo também como fruto de uma modernização desarraigadora (einer entwurzelnden Morenisierung), em cujo desenvolvimento os disparates de nossa história colonial e a descolonização frustrada desempenharam papel crucial. Em oposição às estupidezes fundamentalistas, podemos sempre colocar claramente que, afinal de contas, a crítica justificável ao Ocidente se apóia nos padrões dos discursos desenvolvidos ao longo de dois séculos de autocrítica ocidental.

Mendieta – Recentemente, foram praticamente rasgados dois planos políticos desde os impulsos oriundos da guerra e do terrorismo: o chamado “roteiro de percurso” (roadmap), que levaria à paz entre israelenses e palestinos, e o cenário imperialista de Cheney, Rumsfeld, Rice e Bush. O script para o conflito em Israel deveria ter sido escrito junto com um programa para a reconstrução de todo o Oriente Médio. Mas as políticas dos Estados Unidos amalgamaram o antiamericanismo com o anti-semitismo. Nos dias de hoje, o antiamericanismo se aproxima de velhas formas de um anti-semitismo assassino. Como se pode desativar essa bomba com uma mistura explosiva?

Habermas – Esse é um problema especialmente na Alemanha, onde atualmente as eclusas se abrem para um contato narcisista com as suas próprias vítimas, depois de certa censura, imposta ao longo de décadas, tanto às conversas informais (Stammtische) quanto à opinião oficial sobre o assunto. Mas essa mistura, que você descreve corretamente, nós somente conseguiremos colocar em acordo, se tivermos sucesso em separar convincentemente a questão da crítica legítima à visão fatal de Bush sobre a ordem mundial dos exageros de ações antiamericanas. Assim que a outra América possa ser vista em contornos visíveis, a base que serve para acobertar o anti-semitismo também cederá.

1 HABERMAS, J. Die Zeit, 29/abr./99
2 New Yok Times, Nova York, 10/abr./03

*Entrevista traduzida do alemão por Amós Nascimento para a Impulso Revista de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Metodista de Piracicaba (fonte)

John Gray (2005)


ÉPOCA - Por que senhor afirma que o homem não é mais um habitante da Terra, mas um invasor do planeta?

John Gray - A espécie humana expandiu-se a tal ponto que ameaça a existência dos outros seres. Tornou-se uma praga que destrói e ameaça o equilíbrio do planeta. E a Terra reagiu. O processo de eliminação da humanidade já está em curso e, a meu ver, é inevitável. Vai se dar pela combinação do agravamento do efeito estufa com desastres climáticos e a escassez de recursos. A boa notícia é que, livre do homem, o planeta poderá se recuperar e seguir seu curso.

ÉPOCA - O senhor afirma que o ser humano não é tão diferente dos demais animais, e tampouco superior. Mas o desenvolvimento tecnológico, o avanço da ciência e da cultura não são provas de uma superioridade?

Gray - Os seres humanos diferem dos animais principalmente pela capacidade de acumular conhecimento. Mas não são capazes de controlar seu destino nem de utilizar a sabedoria acumulada para viver melhor. Nesses aspectos, somos como os demais seres. Através dos séculos, o ser humano não foi capaz de evoluir em termos de ética ou de uma lógica política. Não conseguiu eliminar seu instinto destruidor, predatório. No século XVIII, o Iluminismo imaginou que seria possível uma evolução através do conhecimento e da razão. Mas a alternância de períodos de avanços com declínios prosseguiu inalterada. Regimes tirânicos se sucederam. A história humana é como um ciclo que se repete, sem evoluir.

ÉPOCA - Pelo que se depreende de suas teses, o senhor não duvida da noção de progresso, apenas acredita que o homem é falho e incapaz de controlá-lo. É isso mesmo?

Gray - Não acredito que haja avanços em ética e política. Temos momentos melhores e piores, mas em geral a História humana é um ciclo intermitente de anarquia e tirania. Trazemos em nosso DNA a inclinação para a autodestruição e somos incapazes de mudar. Nesse sentido, não há progresso. A atual Guerra do Iraque mostra isso. Os Estados Unidos não eram a nação mais desenvolvida do mundo? No entanto, não puderam impedir a tortura de prisioneiros em Abu Graib. Se alcançamos estágios avançados por um lado, a todo momento perdemos essas conquistas.

ÉPOCA - Há esperanças de que esse quadro se modifique?

Gray - Pode haver progressos em alguns lugares do mundo, em certos momentos. Mas não haverá uma mudança efetiva, generalizada. Observe que mesmo as convenções de guerra existentes não são respeitadas. Em termos de desafios ambientais, a situação ainda é pior. As mudanças climáticas afetam o mundo inteiro, ameaçam toda a civilização.

ÉPOCA - Não há nada a ser feito?

Gray - O que temos a fazer é trabalhar com objetivos modestos, com expectativas mais baixas e realistas. Não esperar pela salvação do planeta, mas buscar uma qualidade de vida melhor, criar condições para retardar o declínio. Isso é possível.

ÉPOCA - O senhor não estaria sendo muito cético levando-se em conta os movimentos de defesa do meio ambiente, ações pacifistas e outros que tentam reveter esse quadro?

Gray - Duvido muito que consigam. Sou descrente de que será feito algo realmente eficaz para combater o aquecimento global. A demanda de combustível fóssil vem aumentando a um ritmo de 1,9% ao ano. A rápida industrialização da China só agrava esse problema. Não quero dizer com isso que não se deva fazer nada. Cada nação pode perfeitamente contribuir de alguma forma. Mas os esforços ainda seriam tímidos e há poucas razões para otimismo quanto a uma reversão radical do quadro.

ÉPOCA - E depois do homem, o que ficará? Em seu livro, o senhor prevê que, antes de desaparecer, a humanidade terá dado fim a muitas outras espécies, e também afirma que as máquinas vão continuar a existir, sendo capazes de tomar decisões.

Gray - Não acredito que a inteligência artificial chegará a ser mais avançada que a humana, nem que os robôs e as máquinas sucedam aos seres humanos no sentido evolutivo, ou cheguem ao ponto de se tornar uma ameaça a nossa espécie. Isso pertence mais ao terreno da ficção científica. Mas vislumbro que serão capazes de executar a maior parte das tarefas humanas, e reparar-se mutuamente em caso de falhas. As máquinas poderão continuar quando o homem não estiver mais aqui. Tudo isso, é claro, vai depender da disponibilidade de energia de então.

ÉPOCA - Em que o senhor se baseia para dizer que o homem não possui livre-arbítrio?

Gray - Não temos controle sobre nosso destino. Nem sequer somos co-autores de nossas vidas. Chegamos ao mundo sem escolher nossos pais, nosso lugar, a língua que vamos falar. O que fazemos é improvisar diante da realidade que encontramos.

ÉPOCA - Por que o senhor afirma que as idéias cristãs causaram grandes prejuízos à humanidade?

Gray - Minha maior crítica ao cristianismo é sua tentativa de salvar toda a humanidade. O Islã também se coloca numa missão salvacionista, e por isso traz consigo tantos desastres. Não sou contra as religiões, e até acredito que os piores regimes foram os de base ateísta, como os de Stlálin e Mao Tse-tung. O cristianismo é em grande medida benigno e devemos muito a ele. Mas é preciso buscar um certo grau de ceticismo, ter cautela para não buscar verdades absolutas. Desconfiar. O colapso do comunismo foi algo positivo, pois essa ideologia também havia se tornado uma crença. Em contrapartida liberou forças muito perigosas baseadas em religião. Acredito que as filosofias orientais, como o taoísmo, são mais benéficas ao ser humano, porque têm objetivos mais modestos, nada expansionistas.

ÉPOCA - Parte do mundo islâmico vive tempos de radicalismo, e a Igreja Católica dá uma guinada conservadora para afirmar seus valores. É uma volta ao fundamentalismo?

Gray - Hoje quase não temos mais movimentos revolucionários. Eles estão restritos ao Nepal e a um ponto ou outro do planeta. O comunismo e o fascismo também entraram em extinção. Mas estão voltando outras formas de fundamentalismo - étnico, religioso, nacionalista -, que haviam desaparecido. Os Estados Unidos vivem uma onda fundamentalista, parte religiosa, parte política. O nacionalismo na Europa está muito intenso. Todos os tipos são temerários, porque alimentam conflitos e impedem seres humanos de viver juntos.

ÉPOCA - Depois da Guerra Fria, o mundo pôde se tornar mais pluralista. Essa diversidade poderia contribuir para evitar uma tensão mundial como a daquele período?

Gray - A história da humanidade é uma sucessão de embates, e é ridículo pensar que a causa desses conflitos é o choque entre civilizações diferentes que não se entendem apenas por motivos ideológicos. As guerras sempre foram motivadas por outros fatores, como a busca por recursos. A Guerra do Iraque foi iniciada com o pretexto de ali estar se formando um Estado fascista. Falácia. Se hoje assistimos à contenda entre as nações islâmicas e o resto do mundo, isso se deve à crescente demanda por petróleo barato. As nações ricas precisam de uma quantidade cada vez maior de combustível, o que gera essa tensão. Mas o pior ainda pode ser evitado.

ÉPOCA - De que maneira?

Gray - Retirar as tropas do Iraque seria um grande passo. Mas as políticas energéticas são a fonte alimentadora do terror. Seria importante que as nações se tornassem menos dependentes de petróleo. Isso aliviaria as tensões entre o Ocidente e o mundo islâmico.

ÉPOCA - O modelo intervencionista da política americana se esgotou?
Gray - É evidente que Bush fracassou. Seu desafio agora é como sair dessa situação sem grandes prejuízos. A guerra teve um custo muito alto e seus efeitos serão sentidos por décadas. Em 20 ou 30 anos, a influência dos EUA sobre o mundo será bem mais limitada. Os americanos terão de ser mais cautelosos e vão depender ainda mais da ajuda de outras nações.

ÉPOCA - O senhor criou polêmica entre seus pares ao defender aspectos do regime de Fidel Castro.

Gray - Ele já teve pontos positivos. Nunca foi benéfico no que se refere às liberdades individuais. No entanto, obteve avanços ao reduzir as taxas de mortalidade e implantar um eficiente sistema de saúde. Mas mesmo esses benefícios se perderam. Agora, o regime cubano caminha para o colapso total, o que provavelmente ocorrerá com a morte de Fidel.

ÉPOCA - Que regime político seria ideal para responder às questões que se colocam no momento à maioria das nações ocidentais?

Gray - Não devemos procurar por um único sistema ideal. Ainda temos no mundo regimes péssimos, como o da Coréia do Norte, por exemplo. A democracia representativa geralmente é citada como a mais benéfica, mas também está sujeita a erros e não é uma garantia de respeito ao estado de direito, como o governo Bush demonstrou. Temos de utilizar um conjunto de experiências, tentar agregar aos regimes democráticos existentes mais garantias às liberdades individuais, mais mecanismos de vigilância e controle da administração pública, assistência social eficiente e proteção do cidadão pelo Estado.

ÉPOCA - O senhor já foi um apoiador do modelo liberal e hoje advoga fortes mecanismos de controle para o que chama de fundamentalismo do mercado...

Gray - Sim, mas nunca fui um fundamentalista do mercado. Os modelos econômicos e os projetos políticos precisam estar em permanente mutação. Não podemos nos agarrar a uma crença e ficar presos a ela para sempre. Os desafios mudam. Entre os riscos do mundo atual, por exemplo, está o de termos Estados fracos. E cada vez mais acredito que um Estado fraco é um mau Estado.

ÉPOCA - Tendo por base os dilemas contemporâneos, como vê o mundo daqui a 20, 30 anos? Quais serão as questões em pauta?

Gray - É difícil dizer. O terrorismo e o crime organizado já são problemas agudos hoje. Parece evidente que as questões ambientais vão se aprofundar, e que a explosão populacional vai se agravar. Teremos 1,2 bilhão de habitantes a mais no planeta em 2050. Mas tentar prever o futuro é algo traiçoeiro. Há fatores imponderáveis. Quem poderia imaginar, 20 anos antes, que o comunismo entraria em colapso no fim da década de 80? O importante é entendermos as questões contemporâneas e tratarmos delas adequadamente. Woody Allen disse certa vez que 'fazer previsões é muito difícil, especialmente sobre o futuro'. Eu digo que fazer previsões é fácil, entender o presente é bem mais complicado.

ÉPOCA - Seus críticos afirmam que o senhor se expressa por meio de afirmações apocalípticas e que suas teses pecam por um catastrofismo que não leva a conclusão alguma.

Gray - Não sou um missionário, um neocristão, um neoliberal, um neocomunista. Não tenho crenças a defender nem trago uma doutrina, um manual de salvação para determinado grupo. Eu só estou interessado em estimular as pessoas a pensar, levando a elas subsídios que lhes sirvam de alertas. Há questões desagradáveis a ser encaradas e meu intuito é ajudá-las nesse processo.

ÉPOCA - Alguma palavra de alento sobre o destino da humanidade?

Gray - Essa não é minha área (risos). Recomendo que as pessoas busquem a religião para isso.

Entrevista de Luiz Octávio de Lima para a revista Época (fonte)

Mario Vargas Llosa (2011)


- Em El sueño del Celta um personagem diz: “É possível ser um grande escritor e um medroso (“timorato”) em assuntos políticos”. O que você pensa sobre essa frase?

- O personagem a quem ela se refere é Joseph Conrad e não Roger Casement. Conrad era medroso politicamente por uma razão óbvia: era um recém chegado à nacionalidade britânica. Por outro lado, tinha essa espécie de lealdade canina que tem um imigrante de primeira geração com o país que o acolheu e ao qual se integrou. Ainda que fossem muito amigos, o fato de Casement optar pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial, um país que, por razões óbvias, os poloneses...

- Como Conrad.

- Claro. Os poloneses odiavam a Alemanha tanto quanto a Rússia porque ela fez com que desaparecessem como país. Isso fez com que Conrad tomasse distância de Casement e retirasse sua assinatura desse manifesto dos intelectuais que pediam a comutação da pena. Deve ter lhe doído muito, pois eram amigos. Casement tinha uma enorme admiração por Conrad, que havia apoiado a sua luta contra o governo belga pelas atrocidades cometidas no Congo. O diálogo é fictício, inventado.

- Mas Conrad retirou sua assinatura.

- Sim, existiu o fato de que Conrad retirou sua assinatura e, ainda que não haja testemunhas disso, é certo que para Casement deve ter sido muito doloroso que uma pessoa que tanto admirava e que, além disso, tinha prestígio, não quisesse assinar o manifesto.

- O que é um timorato em política? Porque timorato é uma palavra que se usa pouco.

- É alguém que teme se pronunciar com clareza sobre aquelas coisas nas quais acredita. Não é uma pessoa vacilante...

- Não está falando de um apolítico.

- Não, é uma pessoa que não tem a coragem de assumir publicamente suas opiniões políticas porque pensa que há riscos implicados nisso. É assim que eu definiria um timorato. Uma pessoa pode ser vacilante, pode ter dúvidas a respeito de certos temas, isso é perfeitamente legítimo.

- E é bom, não?

- Sim, é bom. Em muitos casos é bom. Ter muita segurança é perigoso (sorri).

- O que é o contrário de “timorato” para alguém que conhece a língua tão bem como você. Há um antônimo?

- (Pensa) Deixe-me ver...Eu creio que é um pouco exacerbado dizer “valente”. Não sei. Parece-me que se uma pessoa tem ideias políticas, sobretudo em circunstâncias em que essas ideias estão postas a prova (para não falar quando estão em perigo), deve defendê-las. Se acredita nelas, deve defendê-las. Sobretudo na América Latina nós sabemos para o­nde conduzem muitas vezes esses riscos. Então, me parece que uma pessoa deve defender suas ideias preferencialmente com razões e não com pedradas ou socos.

- Você fez um click em suas ideias políticas de um momento para outro?

- Não. Um click de um momento para outro nunca, creio. Foi um processo. Por exemplo, a passagem de convicções socialistas para convicções democráticas e liberais foi um processo que tem distintas etapas, mas acredito que se inicia em meados dos anos 60, em relação a Cuba, basicamente.

- Mas em algum momento faz um click entre dizer ou não dizer as coisas?

- Não, não. Digamos que eu creio que estava muito identificado com a esquerda, basicamente a partir da Revolução Cubana, e comecei a ter certas dúvidas, mas não me atrevia a torná-las públicas. A primeira dúvida séria que tenho com a Revolução Cubana é quanto à Umap, as unidades militares de apoio à produção, um eufemismo para campos de concentração.

- Por que diz isso?

- Eram campos de concentração o­nde meteram miseráveis, criminosos comuns e gays. Para mim essa foi uma experiência muito chocante, eu não esperava. Conheci vários dos jovens que foram para os campos de concentração.

- No ano passado, Fidel Castro disse ao jornal La Jornada, do México, que a perseguição aos homossexuais havia sido um dos grandes erros da Revolução Cubana.

- Um pouco tarde, não? Porque nessa experiência sofreram terrivelmente não somente rapazes e moças que eram identificados com a revolução, os do grupo A Ponte. Foi muito doloroso e traumático e para mim foi a primeira vez que tive dúvidas muito sérias sobre se a Revolução Cubana era o que eu acreditava e o que eu dizia que era. Esse fato foi me mudando muito, me criando muitas dúvidas e estimulando atitudes críticas relativamente à revolução. Outra experiência que acabou sendo confirmatória e muito mais importante para mim foi o apoio de Fidel à invasão da Tchecoslováquia.

- A de 1968.

- Sim, foi a primeira vez que já não me importou “dar armas ao inimigo”, e o digo entre aspas para falar da fórmula chantagista que mantinha sempre em silêncio os críticos de esquerda. Neste momento escrevi um artigo intitulado “O socialismo e os tanques”, fazendo claramente uma crítica à revolução. Mas ainda fui uma vez a Cuba depois disso – foi a última vez -, já não me recordo o ano, não sei se 1969 ou 1970, imediatamente antes do caso (do poeta Heberto) Padilla. Ele ainda não tinha sido preso, mas era evidente que iam prendê-lo a qualquer momento. Padilla estava enlouquecido pela tensão na qual vivia, e o clima era um clima... de uma... Uff, havia ansiedade, havia medo entre muitos escritores que conhecia muito bem. Eu saí completamente angustiado dessa viagem, e logo em seguida ocorreu o caso Padilla, que foi a gota d’água.

- Essa foi uma mudança de idéias socialistas para ideias liberais?

- Não, o liberalismo é posterior. Neste momento, o socialismo entusiasta passa a ser um socialismo muito crítico, passa a ser uma social-democracia. Eu me senti como sentem os padres que, em determinado momento, tornam-se ateus: muito desamparados, muito só, em um mundo muito confuso. Foi um processo lento de revalorização da ideia de democracia, a importância dessa democracia formal tão injuriada pela esquerda e comecei a ler Raymond Aron, George Orwell, (Arthur) Koestler e (Albert) Camus, a quem tinha lido e havia atacado quando eu era muito sartreano. Inclusive publiquei um livrinho que se chama “Entre Sartre e Camus”, contando essa evolução.

- E o liberalismo, quando começou em você?

- Primeiro foi uma espécie de resgate da ideia democrática, da importância desses valores formais, das formas no político. Em seguida, o liberalismo foi o descobrimento de Isaiah Berlin e (Karl) Popper. A leitura de Popper, a leitura de “A sociedade aberta e seus inimigos” para mim foi fundamental. É um dos livros que mais me marcou, mais me mudou, me enriqueceu extraordinariamente sobre o que é a visão do autoritarismo, do que é o totalitarismo, e como essa é uma ameaça que está sempre presentem inclusive nas sociedades mais livres, mais avançadas.

- Você acaba de participar de um seminário sobre populismo organizado em Buenos Aires pela Sociedade Mount Pelerin. Popper foi um de seus fundadores.

- Sim, claro. Popper participou em 1947...

- E (Milton) Friedman e (Friedrich von) Hayek também. Os dois terminaram sustentando a ditadura de Augusto Pinochet.

- Eles não têm culpa da ditadura de Pinochet.

- Eu disse apoiantes, não causadores. Pinochet aplicou políticas de mercado, mas jamais apoiou a política liberal, que parte da democracia política. Pinochet não apoiou o liberalismo político, mas Friedman e Von Hayek apoiaram a ditadura de Pinochet.

- Não, não. Apoiaram a política econômica, pensaram que a política econômica era boa, mas nunca apoiaram a ditadura de Pinochet, nunca apoiaram os crimes, nunca apoiaram a dissolução do Congresso, o fim das eleições livres. Nunca. Von Hayek defendeu...Vejam... Não sei se já leram “A Constituição da Liberdade”, um livro absolutamente fundamental em defesa da cultura democrática e da liberdade econômica a partir da liberdade política. É a base fundamental da ideia de Von Hayek.

- Mas não estamos falando das idéias, mas sim do apoio a uma política concreta.

- Pois eu não conheço nenhuma declaração de Von Hayek a favor de Pinochet, o­nde ele tenha defendido a ditadura de Pinochet. Todo o pacote, com os crimes, os desaparecimentos. E se a defendeu, se equivocou.

- Se quiser, passemos a Friedman. Esteve várias vezes como convidado no Chile de Pinochet.

- Mas foi dar conferências.

- Ele até escreveu cartas de agradecimento a Pinochet por ter aplicado suas recomendações econômicas.

- Não conheço essas cartas.

- São de 1975. Aqui estão, impressas. Podemos lê-las, mas isso prolongaria a entrevista.

- Se Friedman e Von Hayek fizeram isso se equivocaram. Cometeram um grave equívoco e é preciso criticá-los por isso, porque nenhum liberal deve apoiar uma ditadura militar. Se o faz, se equivoca, e é preciso criticá-lo. Eu sou um liberal e nunca apoiei uma ditadura.

- Isaiah Berlin é uma coisa, Popper, que foi co-fundador da Sociedade Mont Pelerin, é outra. E os outros dois fundadores, Friedman e Von Hayek, foram muito ativos politicamente, nos Estados Unidos e no Chile.

- A Sociedade Mont Pelerin é uma sociedade criada fundamentalmente para avaliar a situação da economia no mundo. É uma sociedade criada por especialistas em economia, a qual eu não pertenço. É a primeira vez em minha vida que participo de uma reunião da Mont Pelerin. Eu estou totalmente a favor da liberdade econômica como um correlato ou contrapartida da liberdade política. Essa é a minha visão do liberalismo. Essa é a visão de liberalismo dos liberais que admiro, que leio. De modo que, se há liberais que apoiaram uma ditadura, para mim não são liberais. Não tenho por que carregar a responsabilidade de senhores que defendem ditaduras.

- Uma sociedade de liberais políticos que reivindicam Friedman e Von Hayek é como fundar um centro de estudos social-democratas e dar a ele o nome de Sociedade Lavrenti Beria, em homenagem ao chefe da polícia secreta de Stalin.

- (risos) Mas é injusto! A Sociedade Mont Peelerin defende a liberdade econômica, está constituída fundamentalmente por economistas, mas que eu saiba, que eu me recorde, jamais se identificou com nenhuma ditadura por que essa ditadura fez políticas de mercado. Von Hayek e Friedman defenderam a liberdade econômica que foi introduzida no Chile, defenderam certas reformas.

- Essas reformas poderiam ter sido introduzidas em 1973 sem ditadura?

- Deveriam ter sido introduzidas numa democracia. Essa é a postura de um liberal. Um liberal é alguém que acredita na liberdade e acredita que ela é indivisível, que não se pode dividir a liberdade política da econômica. Esse é um princípio básico do liberalismo. Está em Adam Smith, o pai do liberalismo. Se há alguém que pretende dividir a liberdade política e econômica se equivoca: não tem o direito de ser chamado de liberal ou abraça uma visão completamente corrompida e condenável do liberalismo. Esse não é o liberalismo que defendo e com o qual me sinto identificado. Além disso, creio ter demonstrado que minha conduta é uma conduta de defesa claríssima da liberdade no campo político, no campo social e no campo econômico.

- Você acaba de participar de uma reunião sobre o populismo na América Latina. Alguém poderia dizer que Franklin Delano Roosevelt, presidente norteamericano que assumiu em 1933, foi um grande populista. Está de acordo?

- Tudo depende de definições. Por exemplo, aqui, no dia da inauguração da Mont Pelerin, o representante do presidente da Sociedade disse que havia um populismo “bom” e um populismo “mau”. O populismo bom era o de Ronald Reagan. O que é que este senhor queria dizer? Ele entendia por populismo a projeção, em nível popular, das reformas liberais por meio de um grande comunicador, como era Reagan.

- Esse é o momento em que começa o processo de maior desigualdade histórica dos Estados Unidos. Quem o diz é Paul Krugman, outro Nobel, mas de Economia, não de Literatura.

- Sim, mas...Se eu tiver que corrigir cada frase vamos perder muito tempo.

- Não se trata de corrigir, ou não corrigir. É uma entrevista.

- Nós, liberais, não somos a favor da desigualdade.

- O que querem?

- Que tudo nasça do êxito, do esforço, da produção de bens e serviços que beneficiem o conjunto da comunidade. Que haja pessoas que tenham maiores ou menores rendas em função de sua excelência, de seu talento, isso é legítimo para um liberal. O que não é legítimo é que essas diferenças se estabeleçam a partir do privilégio ou da desaparição da igualdade de oportunidades de base, que é um princípio liberal.

- E o que ocorre quando, por exemplo, como diz Krugman, Reagan modifica a política tributária e corta impostos dos mais ricos. Não muda o que você define como igualdade de oportunidades de base?

- Hummmm, é que aqui teríamos que discutir muitíssimo. Krugman não é precisamente um liberal. Krugman é um homem muito inteligente, mas é uma espécie de social-democrata com debilidades consideráveis na direção de fórmulas socialistas, coletivistas. Tem debilidades neste campo.

- Você está dizendo que Krugman, colunista do The New York Times, é um coletivista?

- Sim, tem debilidades coletivistas, como muitos socialdemocratas muito respeitáveis, democratas impecáveis que têm debilidades coletivistas. Por exemplo, os democratas cristãos são absolutamente democratas, mas eles acreditava que o Estado tinha que intervir massivamente na economia para corrigir o que chamavam de desigualdades de base. Nós, liberais, sempre criticamos essa ideia.

- Mas a intervenção do Estado não era defendida também por Adam Smith?

- Não, não. A intervenção do Estado na economia para suprir o que os democratas cristãos chamavam – porque isso mudou – de debilidades de base, é uma forma de intervencionismo que, ao final gera muito mais injustiça e muito mais privilégios. Mas enfim..., creio que isso nos aborreceria muitíssimo.

- Voltemos ao tema do populismo. Do populismo bom e do populismo mau.

- Mas é isso que dizia esse senhor e eu acredito que estava equivocado. Chamava de populismo uma forma de popularidade. Então, se isso é populismo toda forma de comunicação exitosa seria populismo. Eu creio que populismo é sacrificar o futuro em nome de uma atualidade passageira, efêmera, e fazer política com esta visão. Há um populismo de direita e um populismo de esquerda, sem dúvida alguma.

- As políticas de curto prazo seriam uma forma de populismo?

- Sim, sobretudo em medidas econômicas. Mas há um populismo político, não somente econômico.

- Voltemos a Roosevelt, caso não se oponha. Você não desconhece o que ele fazia. Com o rádio como ferramenta, falava diretamente ao povo sobre os efeitos da crise dos anos 30.

- Mas o que é que Roosevelt consegue? Consegue dar segurança em um momento de uma insegurança terrível. Então, com essa tranquilidade com a qual se dirige a sua sociedade, a seus eleitores, cria uma segurança que fazia uma falta extraordinária para que a crise econômica não se aprofundasse.

- Roosevelt dizia aos cidadãos que apelava diretamente a eles para explicar-lhes que o Senado e os bancos não deixavam que resolvesse a crise.

- Mas bom, está bem...O Senado e os bancos neste momento não o deixavam governar. Às vezes é bom não deixar os políticos governarem se eles fazem más políticas, não é verdade?

- E neste caso era bom?

- Não falo de fazer revoluções, mas sim de que existam uma democracia e algumas instituições que permitam frear as leis más. Por exemplo, no Peru, na época de Alan García, nós conseguimos parar uma medida, que para mim era o final da democracia: a nacionalização dos bancos. E a paramos com democracia, sem fazer nada de sedicioso, mediante manifestações e atos públicos. Ao final, conseguimos que essa lei, que era uma lei má que podia acabar com a democracia no Peru, não prosperasse, dessa marcha ré, sem que houvesse alguém morto ou preso.

- Nenhum liberal reivindica Roosevelt e John Maynard Keynes? O que um liberal como você diz sobre isso?

- Keynes, sim. Ambos foram grandes democratas. Keynes foi um gênio, um homem de uma cultura absolutamente prodigiosa, e as teses keynesianas, que a socialdemocracia abraçou, são teses geradas em um contexto muito especial de crise terrível, o­nde já não estava mais em jogo uma política econômica, mas sim a sobrevivência de um país e de uma cultura democrática. Esse é o contexto no qual nasce o keynesianismo, que não pode ser aplicado de uma maneira automática. Ninguém descreveu melhor que o próprio Friedman o que significa a inflação para um país, não é verdade? Eu tenho muito respeito por Keynes, creio que é um dos grandes pensadores modernos, sem nenhuma dúvida e, de certa forma, boa parte de seu legado pode ser reivindicado pelos liberais. Sem nenhuma dúvida.

- Em certa medida, e seguindo sua frase de que nada pode ser aplicado de maneira automática, os países mais importantes da América do Sul estavam em uma situação parecida com a que você descreve. E, nos últimos anos, resolveram sua tremenda crise com maior intervenção estatal.

- Há circunstâncias em que nenhum liberal vai rechaçar uma certa intervenção do Estado a partir de certos consensos democráticos, obviamente. Sem nenhuma dúvida, não é verdade? Nesta última crise terrível, por exemplo...

- A crise mundial que começou em 2008.

- Sim. Frente a ela, os liberais ficaram completamente divididos. Alguns diziam que se tratava de “salvar o morto”, pois estava morrendo. Então, era necessária a intervenção do Estado. Outros liberais diziam que o ia morrer não era o Estado, mas sim as políticas que nos levaram a esta crise absolutamente monstruosa.

- E você o que dizia?

- Eu estava na confusão total, e creio que ali se necessitava de um tipo de conhecimento técnico da magnitude da crise e das consequências para tomar uma decisão. Eu carecia disso e, simplesmente, como sobre muitas outras coisas, o que declarei foi minha perplexidade, Sobre isso não posso opinar porque não seu. Opinaria a partir do puro palpite e creio que isso é irresponsável, não na literatura, mas sim na política.

- Você tem algum palpite sobre o segundo turno peruano entre Ollanta Humala e Keiko Fujimori?

- Aí não há palpite, mas um conhecimento muito claro. Há um mal menor e um mal maior. O mal maior é Keiko Fujimori e então eu voto por Humala. Isso é claríssimo. Os problemas que Humala pode trazer, os enfrentaremos quando eles aparecerem. Mas tenho uma esperança que quero que fique registrada. Minha esperança é que Humala se afaste realmente de Chávez e se aproxime de gente como Lula, como Mujica, como Funes, e faça uma política semelhante no campo econômico.

- De qualquer modo, na América Latina, em cada país termina se desenrolando seu destino nacional, não há uma forma de copiar...

- Não há destinos nacionais...

- Ainda que alguém queira copiar, não poderá fazê-lo porque cada nação é única.

- Há formas de copiar a orientação, há formas de entender que a criação da riqueza passa pelo mercado, não passa pelo estatismo. As provas são tão absolutamente contundentes...O socialismo chileno, o uruguaio e o brasileiro entenderam isso. Há uma esquerda peruana que entende isso, ainda que seja muito pequena. Oxalá com Humala essa passe a ser a política adotada. Seria uma salvação.

- Você falou de Lula como modelo. Sua estratégia foi de intervenção forte do Estado.

- Não tão intervencionista graças ao fato de o presidente anterior ter sido Henriquez Cardoso. Lula aproveitou as grandes reformas feitas por Cardoso. Ele é o grande estadista.

- Fernando Henrique Cardoso?

- Sim.

- Mas Lula representou uma ruptura e não uma continuidade em relação a Cardoso.

- Não, não, não! Como? Que horror, que injustiça! O que está dizendo!

- O Brasil cresceu e se tornou mais justo com Lula.

- Mas isso foi por causa da grande reforma econômica, da grande reforma monetária feita por Henriquez Cardoso. Ela criou as bases de uma economia de mercado, abriu as fronteiras do Brasil. O que ocorre é que ele faz as coisas de modo discreto, com uma elegância britânica, porque não é um populista. Então Lula, que não sabia nada de economia, que não entendia absolutamente nada...

- Você diz que um homem que foi fundador do Partido dos Trabalhadores e secretário geral dos metalúrgicos não sabia nada de economia?

- Lula encontrou um país preparado graças à extraordinária habilidade e à imensa cultura de Henriquez Cardoso, que abriu o Brasil para a modernidade, que introduziu uma economia de mercado autêntica, que fez a esquerda brasileira entender que não há criação de riqueza sem mercado, sem empresa privada, sem investimentos, sem integração ao mundo. E Lula, em boa hora para o Brasil, seguiu esse caminho.

- Talvez Lula seja considerado “tribal” por Hayek, mas Lula é que fala de justiça social, não Cardoso.

- Falar de justiça social não quer dizer nada...

- Hayek dizia que buscar a justiça social é uma atitude que vinha das tribos ou hordas. Lula foi tribal ao colocar em prática esse princípio?

- Para fazê-lo é preciso criar riquezas. Um país tem que prosperar. Isso é o que a política de Henriquez Cardoso permitiu: que esse país prospere.

- Mas o país não cresceu com Cardoso, e não superou os 3%/ano de crescimento.

- Mas criou as condições e começou a crescer e ordenou a moeda. Encontrou uma estabilidade que, na história do Brasil, praticamente nunca tinha ocorrido. Essa estabilidade é fundamental para que haja uma economia de mercado. Como pode haver investimento, como um empresário pode planejar seu trabalho, seus investimentos, se a moeda está sujeita aos vai-e-vem permanentes que ocorriam quando ele assumiu o poder.

- Talvez a novidade de Lula seja que a justiça social não foi só um valor, mas sim uma condição de eficácia e possibilidade prática para conseguir o desenvolvimento econômico.

- Aí creio que já estamos nos aproximando (risos). Não falamos nada de literatura, só uma perguntinha. O ideólogo não o permitiu (risoso). Uma entrevista após outra...Que barbaridade, é um ritmo estajanovista (*).

- É uma palavra muito soviética.

- Agora que a União Soviética desapareceu pode-se usá-la.

- É retrô, um clássico?

- Vi em Nova York os retratos do realismo socialista e o que ocorre é que a frivolidade os colocou na moda. A frivolidade da vanguarda faz com que toda essa pintura comece a ser resgatada nas galerias nova-iorquinas.

- Que teria dito Milton Friedman?

- Friedman era um bom leitor de novelas. A única vez que conversei com ele não falamos nada de economia, só de literatura.

- O que vocês está lendo agora?

- O último livro de Jorge Edwards, “A morte de Montaigne”. Parece uma crônica histórica e depois começa a surgir a ficção.

- Se tivesse que escolher um livro, com qual ficaria?

- Guerra e Paz. Se tiver que ficar com um só, talvez fique com esse.

(*) O estajanovismo foi um movimento operário socialista que nasce una antiga União Soviética, criado pelo mineiro Alekséi Stajanov, que defendia o aumento da produtividade laboral, baseado na própria iniciativa dos trabalhadores.

Entrevista de Martín Granovsky e Silvina Freira para o jornal argentino Página/12 em 24-4-2011. Tradução de Marco Aurélio Weissheimer (fonte)