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Alexandre O’Neill (1982)
«Sempre ‘sofri’ Portugal», diz Alexandre O’Neill ao «JL» nesta breve – porém laboriosa: já lá vamos – entrevista com o pretexto na publicação das suas Poesias Completas. O sofrimento deve entender-se, acrescenta o autor de Feira Cabisbaixa, «tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança», fórmula onde se descobriria, arrisca o poeta ecoando velhos versos parnasianos, um intenso, verdadeiro amor.
Foi Vasco Graça Moura que o convenceu a reunir a obra poética. Trinta anos de escrita, do Tempo de Fantasmas a As horas já de número vestidas, com exclusão apenas daquilo que O’Neill arruma formalmente sob a designação de ‘crónicas’. Mas dá-se o caso de as Poesias Completas incluírem precisamente alguns textos elaborados de raiz para jornais e que ao entrevistador pareciam resolver-se como prosa. Também sobre isso fala Alexandre O’Neill. Que entretanto, anfitrião simpático, irá buscar ao frigorífico uma garrafa de água mineral sem gás – ele não bebe bebidas alcoólicas – e pedirá a Laurinda, na hora de esta chegar a casa, «ora arranja lá um chá para nós três».
A casa é na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, a curta distância desse Jardim do Príncipe Real que entrou por direito próprio na poesia de O’Neill. Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso de livros: a poesia em força, mas também artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever «HCESAR». Cinzeiros. Luz sem excesso. Entro às 10 da noite e saio quatro horas depois. A última hora, porém, gastamo-la a ouvir Laurinda contar como foi um ‘show’ de José Afonso em Oeiras e a comentar a ‘gaffe’ de dois jornais brasileiros que aqui há semanas deram Octávio Paz por morto.
A entrevista fez-se com duas máquinas de escrever: o repórter do «JL» batia a pergunta, tirava a folha, estendia-a ao entrevistado, este batia a resposta, perguntava «está bem?», o repórter respondia «está, claro», e assim por diante.
Para a ficha do poeta: 57 anos de idade, lisboeta, redivorciado, dois filhos, um matulão, Alexandre, outro pequeno, Afonso; trabalha na Lápis – Estudos Promocionais, Lda., à Travessa da Condessa do Rio; andou pela TV como ‘pivot’ de vários programas e jurado da infausta Prata da Casa, que deu mosquitos por cordas; é tão bom conversador como sovina nas respostas dactilografadas, o que se perceberá lendo a continuação; sempre ‘sofreu’ Portugal, e sempre se gastou à velocidade de um fósforo, e sempre foi vítima de nervosos miudinhos; tudo junto, (en)fartou-se e poisou o canastro na UTIC de Santa Maria, a reparar avarias cardíacas; recuperado, ri com os dentes todos.
Começámos assim:
«JL» – reunir trinta anos de poesia tem algum significado especial para si? Digamos, sente-se etiquetado, arrumado, com um bilhetinho por cima a dizer «trinta anos»?
Alexandre O’Neill – De modo nenhum! Trinta anos é apenas para passar para outra coisa. Para dizer a verdade, estava farto de tudo o que tinha escrito até à publicação destas Poesias Completas. Você sabe o que é conviver demasiado com o que se vai fazendo, não sabe?
P – Calculo o que seja. Agora falando de biografia: você é de Lisboa, é um O’Neill Vahia de Bulhões (cheira-me a Santo António, desculpará) e no dizer do Cesariny em 1945, «no Café ‘A Cubana’, da Avenida da República», travou conhecimento com ele ou ele consigo. Essas aventuras surrealistas ainda têm alguma coisa que valha a pena contar? Dá-me a impressão de que vários surrealistas portugueses quiseram rasurar, a partir de certa altura, o nome «Alexandre O’Neill». Responde a esta longa pergunta?
R – Houve um especialista em hagiografia e, particularmente em Santo António, que me disse, para grande desgosto meu, que essa de o Santo se chamar Fernando de Bulhões era uma grande lenda. Claro que não me revelou o verdadeiro nome, de modo que eu continuo a aguentar a lenda e a dizer que sou… parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático!) milagreiro… Quanto às aventuras surrealistas está tudo contado, precisamente pelo Cesariny, que deve ter um baú quase tão grande como o do Pessoa. A rasura deveu-se à circunstância de eu ter abandonado a actividade grupal do surrealismo para me dedicar à política, calcule você! À política, mas naquele sentido estrito da militância nos movimentos juvenis por onde já o Cesariny tinha andado. Depois, ao publicar o primeiro livro, introduzi-lhe uma nota proeminal que demonstrava o fervor ridículo de todos os neoconvertidos e que dava pancada nos surrealistas ficantes chamando-lhes aventureiros, o que era perfeitamente desnecessário…
P – Exacto, e os que você apelida de «ficantes» mandaram cá para fora um papel basto feroz intitulado Do Capítulo da Probidade. Parecia tudo, pois, uma família com as partilhas feitas. Mas em 1961 na Antologia surrealista do cadáver esquisito, para espanto dos observadores, o Cesariny não esteve com mais aquelas e antologiou-o mesmo. Dá para entender?
R – Dá, dá! O Cesariny não me cita uma única vez no Surreal-Abjeccionismo, que é de 1963, mas já me inclui na Antologia, que você refere porque eu ajudei muito (e com muita honra!) a fazer cadáver.
P – Passemos a outra família, a sua. Nos Poemas com endereço o O’Neill escreve: «Estou no murmúrio de desgosto da minha família / da minha família imóvel diante de mim / (…) / da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos / pronta a saltar-me em cima a reduzir-me / a mais um da família.» O jovem poeta foi mal aceite? Ou foi aceite, mas em transe pejorativo?
R – A minha mãe (que já lá está, coitada!), quando apanhava um poema meu – melhor seria dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa (casa onde estive só até aos 16 anos). No fim da vida, já sentia um certo prazer em ser a mãe do poeta O’Neill, mas eu fingia que não a percebia, quando a questão era abordada…
P – Profissionalmente você está – para mim, que o conheço há uma dúzia de anos, sempre esteve – metido nas publicidades, sendo considerado inclusive um óptimo «copy-writer». Passe por cima do adjectivo «óptimo» e diga-me rapidamente o que é isso do «copy-writer», pode ser?
R – Pode. Ser «copy-writer» é uma actividade engraçada pelo lado da invenção de «slogans», por exemplo. Só é chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal. O jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc., vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho. Eu descobri a publicidade através do cinema publicitário. Propus uma vez a alguém (por brincadeira, claro) que oferecesse um «slogan» ao Metropolitano de Lisboa. O «slogan» era: «Vá de metro, Satanás!» Esta brincadeira ia-me custando o emprego. Mas também fiz um, a sério, que foi muito conhecido e ainda hoje é usado (que pena não o ter registado!): «Há mar e mar / há ir e voltar.» Os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração: «Há bar e bar / Há ir e voltar…»
P – De vez em quando o O’Neill aparece a colaborar em jornais. Para mim é uma complicação, porque eu tendo, numa primeira leitura, a ler «crónicas» onde não havia nada disso, mas poemas. Por outras palavras, dessas pretensas crónicas há algumas lançadas nas próprias Poesias Completas, como poemas em prosa. Ajuda-me a descalçar este escarpim?
R – Dê cá o pé! O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para os jornais que, depois, reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que não ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que lhe podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar ou apressar, e tomar por poema o que não é…
P – Eu diria, socorrendo-me aliás de leitores mais atentos do que eu, que você tem um tema dominante, Portugal (a Feira cabisbaixa aparece em italiano, na versão de Joyce Lussu, como Portogallo, mio rimorso, e muito bem), e um fantasma omnipresente, o tempo (cá vai uma de O’Neill entre aspas «Quandonde foi? / quandonde será? / / eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá»). Concorda?
R – É verdade. Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.
P – Quando se começa com o jogo do acerta é fatal: O’Neill herdeiro de Nicolau Tolentino e do abade de Jazente (quando não de Junqueiro, mas essa já eu não levo a sério). Em 1982, repetido o dito até à exaustão, que pensa você? Um tolentinista, um jazentista?
R – Nem herdeiro de um, nem de outro. A minha excelente prefaciadora diz que tanto o Tolentino como eu temos em comum fazermos uma poesia do feio. Mas se tudo é feio à nossa volta, por que havia precisamente de ser o Tolentino a inculcar-me o feio? Quanto ao Jazente, há uma coisa que pouca gente sabe: eu conheço perfeitamente Padornelo, o Marão (o do lado de cá) e aquela paisagem é-me bem familiar. Familiar no sentido exacto: a minha família materna é de Amarante, o concelho de que Padornelo é freguesia (ou era).
P – Eu por acaso, ao ler agora as Poesias Completas, fui outrossim sensível à insistência com que você refere os espanhóis, do Século de Ouro (Lope, Góngora) ou contemporâneos (António Machado). E também vi claramente visto como o O’Neill se entusiasma – exagero meu? – com brasileiros com o Manuel Bandeira ou o João Cabral de Mello Neto. Resultado: a sua família poética é um bocado mais complexa do que se tem escrito. Estou a sair dos carris?
R – De modo algum. Lope e Góngora sempre gostaram um do outro através de mim… Machado é um poeta que releio constantemente, tanto na poesia como na prosa. É um universo. E gosto dele em boa parte pelo que tem de «velho» (isto demoraria muito tempo a explicar, mas um dia sempre explicarei). Bandeira só é grande poeta menor, como disse a minha amiga Luciana Stegagno Picchio, para quem estiver distraído. Mello Neto é um velho amigo e um altíssimo poeta (sem saída aparente, diga-se). Não se esqueça que eu fui o curador da edição da «Quaderna» em Portugal, que se não foi a 1ª foi a 2ª do livro.
P – Morreu agora um dos seus «amigos pensados», o Belarmino Fragoso. Boxeou com ele? Hm… Conheceu-o bem, suponho. Como era?
R – Não conheci. Foi o Fernando Lopes que me pediu um poema para o programa de lançamento do filme «Belarmino». Sei que o Belarmino leu o poema e achou que eu era maluco…
P – E eu à espera de um perfil com luvas! Essa, O’Neill, é um «uppercut» na barbela! Bom, não o maçando mais, sempre queria saber como reagiu você quando o levaram, faz anos (poucos, creio), à UTIC do Hospital de Santa Maria com uma «panne» cardíaca. «É trivial a morte»? (in Abandono vigiado)
R – Quando se está com «panne» cardíaca o universo mingua e um sujeito «desliga». Passa para a categoria de «bom doente» para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta a casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…
Entrevista de Fernando Assis Pacheco para o Jornal de Letras, nº 36, 06-07-1982 (fonte)
João Bénard da Costa (1994)
Público - Teve a noção, no dia 25 de Abril de 1974, que estava ali a queda do regime ou sentiu que era mais uma "tentativa"?
João Bénard da Costa - Tinha-me deitado tardíssimo na véspera, jantara com o Vasco Pulido Valente, que ficou até de madrugada a tentar convencer-me, numa imensa discussão, que o Marcelo tinha o poder garantido por mais 20 anos... E na manhã do 25 de Abril, sem saber ainda de nada - a não ser estranhar não haver trânsito nas ruas -, encontro o Villaverde Cabral à porta do Conservatório que me disse: "É agora!" "O quê?", perguntei. "É agora o fim do regime!" Bem, eu estava vacinado de fazer profecias que nunca se verificavam... E não sabendo rigorosamente nada sobre o MFA, com aquilo que estava a acontecer no Carmo percebi que era imparável. Embora hoje esteja menos convencido disso do que nesse dia. Se tem havido uma resistência militar a sério e com o que hoje se sabe sobre a preparação militar do 25 de Abril, se calhar ele teria abortado! A verdade é que ninguém esteve para arriscar. Só não foi tão excessivo como o 5 de Outubro, em que meia dúzia de oficiais mudaram o regime... Tudo isto para lhe dizer que na noite de 25 para 26 percebi que era irreversível.
P. - Para perceber alguns passos da história do 25 de Abril temos de voltar a trás. A história da sua geração, de que você é um dos emblemas, começa no fim dos anos 50. A política começou para si e para alguns dos seus amigos pela Acção Católica e pela JUC?
R. - Foi. A minha família era católica e ferrenhamente salazarista, com excepção do meu pai, que era democrata e tinha Churchill e a democracia inglesa por modelo. Mas a minha primeira grande influência veio de um cunhado meu, católico, que me tocou num ponto sensível - uma certa consciência moral, a ideia de que era impossível aos católicos, que eu era, conviver com o que chamávamos a "desordem estabelecida": um regime social injustíssimo, em que os pobres quase não tinham direitos, onde havia a censura, a PIDE e a tortura e onde se perpetuava o poder de uma minoria. Usando uma linguagem da altura, "um cristão não poderia aceitar aquilo"! Ninguém fazia nada para alterar as coisas e quem fazia era preso ou marginalizado. Cheguei assim à política por razões religiosas e morais.
P. - Depois, a faculdade cimentou tudo isso...
R. - Na universidade conheci gente cultural e politicamente inconformista e, sobretudo, encontrei uma geração a pensar como eu, mais precisamente na JUC, em 56-57, quando começa o jornal "Encontro", com um conteúdo completamente diferente de outra qualquer publicação católica. Havia muitos não católicos, à esquerda, que nos felicitavam pelo jornal. Entrei para a JUC no 2º ano, como militante de base, e com surpresa minha sou convidado pelo assistente, o cónego António Reis Rodrigues, para presidente-geral da organização. Tinha 21 anos, havia uma hierarquia, eu não esperava aquilo. Resolvi transformar a JUC, convicto de que - sendo ele embora mais moderado que eu - o conseguiria, porque estava convencido de que a Igreja também estava a mudar. Havia o bispo do Porto e as suas homilias, havia a carta pastoral "A miséria imerecida do povo português" e eu próprio cheguei a defender o cardeal patriarca dizendo que a sua visão era diferente da do Governo...
P. - Logo a seguir há as eleições de Delgado, em 58...
R. - O padre Rodrigues falou-me, na altura, pedindo-me que me abstivesse publicamente de tomar posições políticas, que se vivia um momento difícil para a Igreja, etc. Surge então um editorial no "Novidades" onde se fazia a apologia ao voto em Américo Thomaz, mas ingenuamente pensámos que se tratava apenas duma posição do director, monsenhor Moreira das Neves, sem repercussão na hierarquia. Escrevemos então uma carta - que foi o primeiro documento de fundo político elaborado por católicos -, assinada por João Salgueiro, Xavier Pintado, Rogério Martins, Pereira de Moura, entre outros, pedindo que o "Novidades" mantivesse a isenção que convinha à Igreja durante uma campanha eleitoral. Essa carta assumiu uma clara contestação à hierarquia e o padre Rodrigues lembra-me a minha promessa de não tomar posições. Ao que respondo que ela ia justamente no sentido de pedir que não se fizesse política... em nenhum dos lados. O desentendimento era irreversível, saí de presidente da JUC.
P. - Desiludindo o padre Rodrigues?
R. - Ele dizia que tinha preparado uma geração de rebeldes, que não tínhamos o sentido da Igreja, que afinal havíamos todos enveredado por uma via política. Acho que ele também vivia um momento de crise interior. No fundo, via-nos porventura como as pessoas que podiam continuar a aguentar o prestígio e o poder da Igreja numa futura sociedade civil. Enfim, como os sucessores de Salazar, com outras ideias e outra mentalidade...
P. - O que os norteava nesse caminho entre a Igreja, Deus e a política era já Emmanuel Mounier?
R. - Nesses anos foi mais o "Témoignage Chrétien", um jornal católico com um conteúdo bastante à esquerda que gostávamos de ler. A "Esprit" surge um pouco mais tarde, mas foi uma revista que me interessou de tal modo que fiz a tese de licenciatura sobre o personalismo e o pensamento de Mounier. Foi portanto a minha grande referência doutrinária e ideológica.
P. - Era aí que eu queria chegar: Mounier consubstanciava, para si, uma espécie de terceira via?
R. - Exacto, era a terceira via. Havia, nesse tempo, o existencialismo, por um lado, o marxismo, por outro; nós não tínhamos nada a ver nem com uns nem com os outros. Aquela terceira via afirmava uma série de valores cristãos, baseados no primado da pessoa, ao mesmo tempo que afirmava valores hostis ao regime.
P. - Quem estava consigo nessa altura?
R. - Muita gente: Nuno Bragança, Manuel de Lucena, Pedro Tamen, Manuel Lourenço, Luís Sousa Costa, Alberto Vaz da Silva, José Escada, Cristóvão Pavia - um espantoso poeta que morreu muito novo -, Nuno Portas... Era um grupo muito amigo e muito sólido. Identificávamo-nos numa linha que era simultaneamente política - nessa afirmação do personalismo contra o regime - e cultural - na recusa da literatura conformista do regime, mas também do neo-realismo defendido pelos comunistas e marxistas e que era o movimento literário vigente na esquerda portuguesa.
P. - É por aí, ou também por aí, que se chega a "O Tempo e o Modo"?
R. - Claro, queríamos fazer uma "Esprit" em Portugal, alguns de nós tinham experiência de jornalismo, por causa do "Encontro"; "O Tempo e o Modo" é uma consequência directa e imediata.
P. - Já se chamavam "católicos progressistas"?
R. - Já, embora recusássemos a expressão, porque ela tinha ao tempo uma carga pejorativa. Fora um movimento católico que no princípio dos anos 50, em França, se aliara aos comunistas e fora condenado pelo Papa. Aliás, Mounier dizia o mesmo na "Esprit": o grande erro deles foi pensar que era possível separar uma doutrina política de uma filosofia geral sobre a vida. E nós recusámo-nos inteiramente a isso e escrevemos diversas vezes que rejeitávamos um movimento que fora posto fora da Igreja. Pelo contrário: defendíamos uma total adesão à Igreja, já muito fortalecida quando, após a morte de Pio XII, veio o pontificado de João XXIII. Achámos que aquele Papa nos iria dar razão todos os dias com o concílio, a "Pacem in Terris"...
P. - "O Tempo e o Modo" é então a etapa seguinte e o terreno essencial desse combate?
R. - É. Decidimos fazer uma revista, mas faltavam-nos o dinheiro e os meios. Conhecemos o Alçada Baptista, que era mais velho, já estava formado e tinha a editora Morais. Foi o "coup de foudre": encontrámos nele a identificação total e os meios de andar para a frente. Ele seria o director, eu o chefe de redacção.
P. - Muito depressa "abriram" as páginas a não católicos... A revista foi, por isso, a semente de grande parte da oposição ao regime?
R. - Indiscutivelmente. Mas houve grandes discussões sobre se devíamos permanecer como um grupo católico ou abrirmo-nos a outras correntes, como o Mário Soares e o Francisco Salgado Zenha - que o Alçada dizia que seriam as duas pessoas que fora do círculo católico mais futuro teriam numa oposição política. Tanto o pensava que defendeu logo que eles entrassem para o conselho consultivo. Nós éramos seis e decidimos votar. Mas antes rezámos uma ave-maria para que a decisão fosse inspirada divinamente, e dessa ave-maria saíram o Soares e o Zenha - que eu nem sequer conhecia. Mas depois vieram outros, da geração de 62...
P. - Como olhava essa geração?
R. - Também não se situava nem no PC nem naquilo que foi o embrião do Partido Socialista, estavam mais à esquerda. E juntaram-se então a este movimento...
P. - Quem fez a ponte?
R. - O Manuel de Lucena, porque tinha sido católico, embora já o não fosse. Como tivera um papel muito importante na crise académica de 62, conhecia-os bem: o Jorge Sampaio, que fora o grande líder estudantil, o José Manuel Galvão Teles, o Vítor Wengorovious, etc. E o Vasco Pulido Valente, que era muito mais novo mas veio recomendado por eles para subchefe de redacção.
Houve também um facto curioso, que foi, através do Alçada Baptista, a entrada de Sotto Mayor Cardia, que nesse tempo era do PC - sem a gente saber, como é óbvio. Mas logo a partir do terceiro ou quarto número da revista ele saiu para a "Seara Nova", dizendo que "O Tempo e o Modo" era o veículo do reformismo português.
P. - Isto é?
R. - Era a aliança da democracia cristã, personificada por nós, com o PS, personificado por Mário Soares! O que era, portanto, uma arma ideológica perigosíssima... Coisa que nos causou o maior espanto, ninguém entendia estas jogadas nem sobretudo o que ali se estava a jogar. Começou por nos parecer um delírio, mas depois inclinámo-nos para uma manobra do PC, com o objectivo de nos isolar e limitar a nossa influência.
P. - Isso afligiu-os?
R. - Achámos que era ultrapassável. Houve um sobressalto com a saída de Cardia, porque receámos ficar rotulados à direita, mas procurámos sempre compensar à esquerda estes "desgastes". E acabou por ser só ele a sair...
P. - Entretanto, 1968 é um ano determinante.
R. - Há três acontecimentos fundamentais para o nosso grupo, que entretanto ia mudando com a entrada e saída de pessoas por motivos meramente pessoais. No plano interno, a morte política de Salazar e o início do marcelismo, o que originou uma divisão entre os que defendiam que tudo iria permanecer na mesma e os que olhavam Marcelo Caetano como uma via de alteração ou saída do regime. Era o caso da Ala Liberal, por exemplo, onde estava José Pedro Pinto Leite, que colaborava connosco e era um grande amigo meu, e o próprio Alçada, que quando Marcelo toma posse tem uma posição de simpatia para com ele.
O segundo factor foi o Maio de 68, com uma estrondosa repercussão em todos nós. Achámos logo que se iria cumprir o nosso sonho de mudança da vida e do homem e, sobretudo, achámos formidável que nada daquilo tivesse que ver com os aparelhos tradicionais dos partidos políticos. Era um movimento espontâneo que se propunha transformar tudo...
P. - Hoje, quando olha para isso, vê o quê - ingenuidade, ternura, utopia? Com que sentimento se vê envolvido em tudo isso?
R. - Ternura, com certeza, mas muito mais do que isso. Houve uma profunda emoção minha perante algumas daquelas coisas. E se havia utopia, ela era generosa e enérgica, não renego nada. Voltando ao terceiro elemento que foi fundamental em 68, a invasão de Praga e aprovação do PC português, ele gerou polémicas terríveis. Lembro-me que tive de escrever à pressa um artigo a dizer que não podia haver meias-tintas, tanto mais que havia dois textos que eram ultracríticos para Dubcek e quase desculpavam a invasão... E tudo isto com a censura sempre em cima de nós.
P. - O facto é que se acentua a ruptura à direita, por causa do marcelismo, e regista-se a saída de Alçada Baptista de "O Tempo e o Modo"... Vocês tornam-se mais críticos ou mais irreverentes perante os aparelhos tradicionais e, sobretudo, Mário Soares, abrem a revista a gente diferente...
R. - A transição de António Alçada Baptista foi pacífica; eu fiquei director, estava lá desde o início, conhecia as pessoas. Mas essa ruptura foi um facto: tínhamos uma posição ultracrítica em relação ao que era ainda o embrião do PS por considerarmos que se tratava da via para a abominável social-democracia. Mas sobretudo porque havia a ideia da necessidade de inventar uma nova esquerda, com novos valores a conquistar, na linha do Maio de 68. Em 68 e 69 entram, por causa disto, muitas pessoas ligadas ao maoísmo, gente que depois, em 69-70, formou o MRPP: Arnaldo de Matos, Amadeu Sabino, Martins Soares, Sebastião Lima Rego...
P. - E tudo só se clarifica em 69, com a formação da CEUD e da CDE?
R. - Exactamente. Em 69 põe-se de novo a questão da participação eleitoral. Já em 65 ela se pusera, mas optou-se maioritariamente por não intervir. Recordo que é nessa altura, em 65, que se faz a primeira grande discussão sobre o problema colonial. Quem a fez foi Mário Soares, candidato a deputado, o que suscitou um clamor imenso, abaixo-assinados, manifestações de rua... Entendemos, pelo nosso lado, que deveríamos dizer que também nós estávamos contra a guerra e a política do Governo em África, o que fizemos.
P. - Consideravam, na época, que o grosso do país os acompanhava nesse sentimento contra a guerra colonial?
R. - Achávamos que o grosso do país estava connosco. E não duvidávamos que as elites pensantes estariam maioritariamente ao nosso lado. Foi de resto isso que levou à redacção do célebre Manifesto Católico dos 101 - assinaram 101 pessoas -, em Outubro de 65. Foi, pela primeira vez, uma afirmação clara de ruptura na questão colonial. Baseámo-nos na encíclica do Papa para defender o direito de autodeterminação dos povos e dizer que Portugal o deveria respeitar.
P. - E depois, o que pensavam que se seguiria? A independência...
R. - Era preciso dialogar com os movimentos de libertação. De resto, no MAR - Movimento de Acção Revolucionário, de que faziam parte Jorge Sampaio, Vasco Pulido Valente, Nuno Bragança e muitos outros, havia grande admiração por esses movimentos de libertação terceiro-mundistas, desde Cuba aos africanos.
P. - Porquê?
R. - Era uma via nova para a revolução, que se tinha de distinguir cuidadosamente do comunismo e das vias neocoloniais. Pensava-se que quanto mais Cuba fosse apoiada, mais se evitaria que acontecesse em África o mesmo que nesse país... Isto é, que dirigentes africanos se precipitassem nos braços do Partido Comunista. Havia sobretudo referências ditirâmbicas de todas essas pessoas que citei sobre Amílcar Cabral, olhado como o grande líder negro e o homem que procurava uma via dessas em ligação a Portugal. E havia ainda a ideia, corporizada pelo MAR e por Manuel de Lucena em diversos artigos que escreveu, que, se em Portugal se estabelecesse um movimento capaz de dialogar com os movimentos de libertação em África, se criaria uma terceira frente no mundo e que, por isso, Portugal voltaria a ter um lugar-chave, preparando uma linha que escaparia aos dilemas clássicos da política mundial.
P. - Não alinhada, portanto...
R. - Uma linha de países terceiro-mundistas, de países não alinhados, onde houvesse cooperação e que pudesse dar de novo um sentido à afirmação exterior de Portugal. Pretendia-se que em Portugal e nos futuros países africanos pudessem vir a estabelecer-se regimes políticos que se entendessem claramente nesse ponto. Digamos, visto com o olhar de hoje e com aquilo que já conhecemos, que foi o que Melo Antunes veio a tentar recuperar quando procurou conseguir uma política africana fora dos blocos.
P. - É então no rescaldo de tudo isso que se chega à formação das listas para as eleições de 69?
R. - Iríamos ou não ter uma lista unitária? A nossa ideia era que, a haver, ela dissolveria todas essas novas movimentações de esquerda, essa nova energia, que iríamos cair numa posição tradicional e rotineira, no estilo da oposição verbalista que não levava a nada. Eram precisas caras novas, gente diferente, um discurso político diferente para Portugal. É claro que o PC se colou rapidamente a esta segunda posição - a que se concretizou na CDE -, que teve ramificações em todo o país, mas que em Lisboa assumiu características especiais. Houve até ao último momento tentativas para que as listas se unissem, mas a maior oposição a isso veio precisamente das pessoas que apostavam nesta terceira via onde eu me encontrava.
P. - E o PC?
R. - Não me custa admitir que houve da nossa parte um erro colossal de apreciação, mas estávamos ainda sob a euforia de Maio de 68... Tinha havido os maoísmos, houve, enfim, a ilusão de que comeríamos o PC ao pequeno-almoço... E de facto essa foi a imagem que se tornou pública em 69.
P. - O que, de resto, talvez explique os resultados...
R. - O que explica - com todas as reservas da altura - que a CDE tenha tido 19 ou 20 por cento e a CEUD oito por cento. Houve a adesão de toda uma geração à CDE, por causa desse ar do tempo. A CEUD eram uns senhores bem-comportados, à antiga, mas tão mal-comportados para o regime que normalmente pagavam isso nas cadeias.
P. - Isso mostra alguma lucidez e visão do dr. Mário Soares...
R. - Mostra, indiscutivelmente. Por um lado, ele percebe já que o grande obstáculo é o Partido Comunista, por outro, que aquela gente da CDE era uma cambada de irresponsáveis e que dali não iria sair nada! Fartou-se de nos dizer que acabaríamos todos no PS, coisa que nos punha possessos... Mas isso foi verdade a 99 por cento. Ele percebeu antes que, não sendo nós comunistas, não tínhamos outra via à esquerda que não fosse o PS. Nesse tempo estávamos todos num daqueles cíclicos movimentos de geração... E o curioso é que os resultados que Mário Soares obteve pareciam o primeiro fim dele.
P. - Como é que ele estava no dia seguinte?
R. - Bem, ele usava de um tom paternalista, dizia-nos que tínhamos de voltar a trabalhar, mas estava extremamente abalado, sobretudo por causa dos perigos que se anunciavam de uma radicalização de esquerda para o futuro. E enquanto, por exemplo, no dia seguinte toda a gente que dizia e queria coisas mil vezes mais à esquerda do que ele continuou a sua vida pessoal e política, ele foi logo parar à cadeia, tendo sido expulso de Portugal pouco tempo depois. O Jaime Gama também foi preso... Há, portanto, uma repressão que se exerce muito mais sobre a CEUD do que sobre a CDE.
P. - E quando é que vocês percebem que o aparelho da CDE - que de resto não se desfaz - estava a ser dominado pelo PC?
R. - Em 70 compreendemos que, na prática, aquilo era uma organização comunista encapotada. Saí nessa altura em ruptura violenta...
P. - Para se defrontar com outra: a tomada de poder dos maoístas em "O Tempo e o Modo"...
R. - Essa linha maoísta afirma-se maioritária, e eu saio da revista. Foi uma imensa desilusão, eu estava extremamente ligado a "O Tempo e o Modo".
P. - Foi uma derrota?
R. - Foi uma derrota. Tinha apostado naquilo, apostara que era possível dar à revista uma volta noutra direcção. E de repente encontrei-me com uma gente tão fanática e facciosa como o PC - alguns ainda piores -, numa linha ideológica com a qual não tinha a ver e numa revista cujo conteúdo se ia degradando dia após dia. A questão foi muito democraticamente votada em plenário, perdi por esmagadora maioria, vim-me embora.
P. - Já estava na Fundação Gulbenkian?
R. - Já, desde 69. Depois, entre 71 e 74, tenho uma intervenção política escassa. De resto, o ambiente era muito cinzento em 73 em Portugal. Tinha havido o desfazer da Ala Liberal, a oposição parecia muito mais diluída; na oposição havia, por outro lado, um tipo de acções cada vez mais perigosas e capazes de a conduzir a um grande isolamento, as Brigadas Revolucionárias, etc. Via muita gente com pouca preparação política metida em acções perigosíssimas, arriscando-se a levar 15 ou 16 anos de prisão... Tinha sempre a noção, por um lado, de que a situação não tinha saída e, por outro, que teria de acontecer qualquer coisa... Daí aquelas conversas intermináveis como a que referi no princípio. Mas nunca pensei que a situação caísse por via militar.
P. - E aí voltou-se uma vez mais para os seus amigos de sempre, e de algum modo há como que uma continuação das vossas teses de 69 na CDE...
R. - Havia a ideia de reformular, com toda aquela euforia esquerdizante que se seguiu ao 25 de Abril, o tal projecto de terceira via de esquerda... Mas no 28 de Setembro apercebo-me que o PC estava a tomar um papel de tal modo preponderante no país que daí advinham, de facto, perigos muito reais. E apercebo-me muito bem disso porque havia no MES - ao qual eu aderira como uma espécie de continuação do que queríamos em 69 com a CDE -, um cada vez maior alinhamento pelas posições do PC. Em Dezembro de 74 saímos todos - Sampaio, Galvão Teles, eu... - do MES, numa altura, já ninguém se lembra, muito preocupante: foi quando os comunistas tentaram conquistar o PS por dentro, na célebre luta entre Mário Soares e Manuel Serra. Mário Soares ganhou o congresso, mas por uma pequena margem. Por tudo isto, pela luta da unicidade sindical, pensei que estava diante de uma luta clássica pelo poder que encarnava todas as formas conhecidas das tomadas de poder nos países de Leste. Embora me custasse a crer que houvesse aqui, no extremo ocidental da Europa, condições para isso... Mas os sinais lá estavam.
P. - Ficou, após a saída do MES, numa espécie de orfandade política. Preocupou-o o fracasso dessa experiência?
R. - No MES criara-se depois uma coisa que me deu muita satisfação: desde o início que havia lá gente muito diferente de mim, com quem não me entendia de todo, que não pensava como eu, não queria o que eu queria... Mas após a cisão, quando se passou para o GIS - Grupo de Intervenção Socialista - começou a haver uma identidade muito maior, uma sintonia e uma coesão. Isso veio ao encontro do que eu queria: ter um tipo de intervenção mais virada para a escrita, a reflexão sobre certas questões...
P. - Por exemplo?
R. - Para onde se encaminhava Portugal, de que maneira, qual seria a evolução... Ela teria forçosamente que escapar a qualquer hegemonia dos comunistas, mas por outro lado teria, a meu ver, que manter os valores de uma esquerda independente, numa via original. Era nisso que acreditava profundamente e não me importo nada que me chame ingénuo. Era nisso que eu apostava seriamente.
P. - Não o chamo ingénuo, penso é que o dr. Soares deveria rir-se imenso...
R. - É que justamente era necessário não nos metermos num sistema clássico e sermos capazes de combinar várias fontes de inspiração da própria revolução.
P. - Por isso olhavam sempre de longe para o PS...
R. - Ainda vinha longe, embora começasse a fazer cada vez mais sentido que só dentro do PS se poderia actuar politicamente. Lembro-me, por exemplo, de ter tido uma conversa muito longa com Nuno Bragança, em pleno período da nossa contestação ao PS, em que ele me diz que não temos outra saída... porque aqueles movimentos todos não só não iriam dar a parte nenhuma, como iria ser impossível alterar os esquemas tradicionais da política.
P. - E o que se passa consigo em 78, data em que quase todos os ex-MES e ex-GIS entram para o PS?
R. - Nessa altura, com tudo o que se passou depois, e uma leitura diferente que fui fazendo - sobretudo a partir de 75, 76 - de tudo o que ocorrera no país, dos falhanços das várias linhas e de cada uma das nossas tentativas, resolvi afastar-me da política. Aliás, eu dissera várias vezes que no dia em que houvesse uma democracia estável, e dado que nem tenho jeito especial para a política nem ela me estimula particularmente, me afastaria. A minha última luta política foi dentro do grupo da Intervenção Socialista para uma entrada no PS, a tal que se faz em 78. Mas nunca cheguei a aderir formalmente ao PS.
P. - Entretanto ia escrevendo. Lembro-me de textos seus muito críticos, arrasadores alguns, sobre o PS e o academismo do seu discurso...
R. - Houve um texto no PS, chamado "Dez anos para mudar Portugal", que eram os anos oitenta. Escrevi dizendo que quem ia mudar Portugal nesses anos seria a direita, conquistando de novo o poder, não tendo o PS sequer dez meses para mudar Portugal. Foi um enorme escândalo, mas se a minha clarividência política nunca foi grande, aí não me enganei muito. Não tinha a menor ilusão sobre como tudo iria ocorrer.
P. - Atribuía essa sua antevisão aos erros do PS ou ao facto de ter surgido em cena Sá Carneiro?
R. - Aos erros cometidos pela esquerda em geral. Do PC não vale a pena falar, porque não se trata de erros mas de uma estratégia, que era conseguir as colónias para o seu bloco. O dr. Cunhal actuou aqui de forma a criar em Portugal um ambiente que lhe permitisse qualquer coisa de muito mais importante para a União Soviética, em termos de política mundial. Ganhou nos anos setenta.
P. - Os militares foram instrumentalizados?
R. - Não tenho dúvida nenhuma.
P. - Todos os que "mexeram" na descolonização?
R. - Melo Antunes não. É o homem que faz frente ao PC - aliás, uma das ironias de Portugal é as pessoas terem-no sempre conotado com posições ultra-esquerdistas, quando Melo Antunes, tal como Mário Soares, é o protagonista civil - é o militar que impede o triunfo do poder comunista em Portugal.
P. - Melo Antunes não impediu o comunismo em Angola ou Moçambique... Pelo menos como o logrou com êxito em Portugal.
R. - Mas esteve contra, foi o homem que tentou outras vias. Só que nessa altura a corrente militar estava demasiado absorvida com o que se passava cá para ter uma presença activa em África. Em África quem manda é Rosa Coutinho. Em Angola é ele. Rosa Coutinho era o expoente máximo, porque era governador ou alto-comissário, e as suas posições alinham pelo PC, como aliás alinhou Vasco Gonçalves. É contra esses homens que Melo Antunes e o Grupo dos Nove se opõem.
P. - Passaram-se vinte anos sobre o 25 de Abril. O que diz a si próprio? Como caracteriza estes anos, vistos da sua geração?
R. - Em relação ao sonho da minha geração, ele nada tem que ver com esta realidade. Só que o mundo modificou-se de tal maneira, tudo se alterou tanto que me é difícil projectar para hoje aquilo que pensávamos nos anos 60-70. Como eu diria nessa altura, isto hoje é uma democracia burguesa. Mas deram-se passos fundamentais: não só as pessoas estão muito mais livres e conscientes - pronunciam-se e afirmam-se -, como é preciso ser-se cego para não ver que o país sofreu uma evolução profundíssima. É outro país, mas não é um país com que se possa sonhar. Continua a ser atrasado e a sofrer de problemas gravíssimos, embora se tenha transformado substancialmente. Por outro lado, nenhum país do mundo concretizou, no quadro de uma revolução, aquilo que a minha geração pensava nessa altura. Não há modelos nesse aspecto. Ou tudo acabou, como no Leste, apesar de ele nunca ter sido para nós uma referência, ou continua aí - como Fidel, em Cuba: um dinossauro. Um dia pode olhar-se para este final do século XX do mesmo modo que a metade deste século olhou para o século XIX, isto é, como um falso momento de repouso histórico que preparava outras e diferentes questões e tensões. Ora, isso faz parte de toda uma dinâmica na qual continuo a acreditar profundamente.
P. - Que idade tem?
R. - Tenho 59 anos.
P. - E acredita em quê?
R. - Substancialmente, nas mesmas coisas. Mudei pouco de crenças e mantenho os mesmos amigos. Acredito na espantosa importância da cultura; penso que a arte tem um papel fundamental para o conhecimento e a transformação dos homens, acredito que isso é mais importante do que qualquer família política. Ao longo da minha vida sempre tive amigos com ideias políticas totalmente diferentes e isso nunca influiu na amizade, mesmo quando nos situávamos em campos opostos. Mas é-me difícil ter a mesma relação com alguém que não comungue dos mesmos valores culturais.
P. - Isso sempre se sobrepôs a tudo o resto?
R. - O valor cultural foi sempre dominante. Aliás, todos os meus disparates políticos vêm de uma leitura romântica e estética da sociedade e da política...
Entrevista de Maria João Avillez, jornal Público, 1994 (fonte) (outra entrevista a Bénard de Costa)
Vinícius de Moraes (1979)
Vinicius, você andou meio desaparecido, ultimamente, viajando muito. Como você está agora?
Eu estou bem, de um modo geral. Tenho uns problemas de dieta, para regularizar o metabolismo do meu açucar, que é um pouco alto. Agora vou tirar umas férias e passar um mês em Punta del Este, dar uma descansada e terminar meus livros de poesia, que estão parados há quatro anos por causa desse negócio de shows. Foram quatro anos de pauleira o tempo todo, muita viagem, principalmente no Brasil e na Argentina, mas também na Europa. No ano retrasado estivemos na Itália e de novo no Olympia, em Paris. Agora fizemos mais ou menos o mesmo roteiro e incluímos Londres, onde eu não havia trabalhado ainda. Para mim foi uma surpresa muito boa, porque o show teve bastante sucesso. Do ponto de vista profissional, o ano foi ótimo, ainda que tenha me deixado um pouco de língua de fora... Mas tudo bem.
E agora você entra em férias para trabalhar?
É, férias para ver se escrevo um pouco. Esses livros estão realmente muito atrasados.
Quais os livros?
São dois livros. Um deles é o que venho escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25 anos que trabalho nesse livro. O outro são os poemas escritos de 1960 para cá, porque nesse tempo todo eu não publiquei nada de poesia, a não ser algumas edições especiais que fiz na Bahia, na editora do Calazans Neto. Uma delas é a História natural de Pablo Neruda, que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir esses poemas escritos a partir de 1960 e completar o livro, que tem um título meio contabilístico - O dever e o haver. É uma prestação geral de contas, do que foi feito, do que deixou de ser feito.
Esses dois livros que você vai publicar serão, em termos de poesia, a sua palavra final?
Eu considero esses dois livros uma espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se ainda tiver alguma coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do contrário, eu paro de escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que foi dito foi dito, e é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo de importante a dizer. E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por escrever, simplesmente, é um coisa que não farei em hipótese alguma.
Você tem algum método de trabalho permanente, periódico, ou escreve somente quando baixa a inspiração?
É, eu escrevo somente quando a coisa vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30 anos, em que eu escrevia muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o papel e sentar para escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois começou a escassear, a rarear. E veio o período de música popular, que foi muito importante para mim.
Você ficou famoso como poeta muito cedo, antes dos 20 anos, não foi?
Muito cedo. Meu primeiro livro, O caminho para a distância, teve uma ótima crítica. Eu tinha 19 anos quando o publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de Poesia - chamava-se Felipe de Oliveira e premiava todas as artes literárias. Ganhei uma disputa com o Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente.
O fato de ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para você?
Para mim não foi muito legal, não, sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um poeta genial, essas coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no meu lugar, direitinho. Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro livro. Ele fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz: "Olha, menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito bons". Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa. Finalmente, quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa escreveu também um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O Mário de Andrade, igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me ajudou muito.
Na época você recebeu bem essas críticas?
Não recebi muito bem, não. Recebi mal, sabe. Porque, além do mais, havia todo o grupo do Otávio de Farias que me incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o poeta que todo mundo esperava. Era o grupo da Faculdade de Direito. Essas coisas me subiram um pouco à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida, a experiência com o conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me situar. Processou-se também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido formado para ser um intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa muito importante em minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano Waldo Frank. O José Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores compareceram. Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que achava coquetel de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não podíamos sair por aí. Saímos, era dia de São Jorge e eu levei o Waldo para ver as putas do Mangue. Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a origem da minha Balada do Mangue foi esse dia. Depois eu o levei à favela do Pinto, aquela que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não há condições. Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas para os crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo era ver esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a Argentina, acabou se envolvendo em política lá - era um socialista, mas com uma grande dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e pediu ao Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do Itamarati, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem foi maravilhosa, escutei histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinha vindo matá-lo no Brasil.
Até essa época você era bastante católico e místico, não?
Não era tão católico, não, mas era um cara muito mistificado, não só pela formação, mas também pelo grupo que orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos caras de direita, muitos haviam aderido ao integralismo. Não sei como consegui me safar disso. Acho que foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa. Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada de 360 graus. Sai um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.
Essa virada se manifestou em sua obra?
Logo em seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa. No Brasil, pouca gente havia tido essa experiênica com excessão de Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no sentido de um certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo.
E quando você começou a fazer música?
A música começou mesmo na década de 50, quando voltei de meu primeiro posto diplomático no exterior, em Los Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas, antes, mesmo sozinho, mas sem nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15 anos tive uma experiência interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que havia aqui, chamada Irmãos Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias músicas, das quais duas tiveram muito sucesso. Uma era um fox trote brasileiro, chamado Loura ou Morena (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma "berceuse", Canção da amante. Foi o primeiro dinheiro que ganhei em minha vida, produzido por essas músicas.
Quando você foi exonerado do Itamarati, em 1968, houve alguma alegação específica?
O Otto (Lara Resende) sabe de uma história muito engraçada que aconteceu: Quando o decreto veio de Brasília, assinado pelo Costa e Silva, o despacho dizia: "Ponha-se esse vagabundo para trabalhar". Aí, dizem que o Magalhães Pinto botou a mão na cabeça e chamou o Otto imediatamente, comentando: "Ih, isso vai dar um barulho dos diabos. Escreve um arrazoado aí para mandarmos para Brasília". O Otto escreveu e, por isso, o despacho não se tornou público. Mas a exoneração veio de qualquer maneira. O que para mim foi ótimo, porque eu já não aguentava mais aquilo, mas tinha um problema moral devido aos filhos, pois com 24 anos de carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha um certo medo de jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral, fiquei muito satisfeito.
Voltando à música: você teve parcerias históricas. Por que lá pelas tantas, a parceria acaba?
É como um casamento, sabe. É parecido. Acho que há um desgaste. Além disso, no tempo da bossa-nova, por exemplo, havia milhares de compositores fazendo música, e apenas uns poucos letristas. De maneira que eu não chegava para as encomendas: era o Tom, o Baden Powell, o Carlinhos Lira. Depois, na geração 63, pintaram o Edu Lobo, o Francis Hime. Tanto assim que eu sou um dos pouquíssimos compositores brasileiros que atravessou essas gerações todas. Eu fiz música com o Pixinguinha, o Ary Barroso, com o pessoal da geração do Antonio Maria, o Paulinho Soledade; depois peguei o Tom, o Baden, o Carlos Lyra, o Edu, o Francis e, em 69, o Toquinho. E mesmo com caras mais jovens que o Toquinho eu já fiz música, como o Eduardo Souto Neto, o João Bosco.
Com quais parceiros você acha que houve mais criatividade?
Com o Tom, sobretudo, mas também como o Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção muito boa, e foi ele quem me introduziu o elemento africano, o que não havia antes na bossa-nova - eram todos brancos, arianos.
O que você acha das críticas que o Tinhorâo faz à bossa-nova.?
Aquilo é burrice total do Tinhorão. É o negócio dos guardas-costas do samba. Como existe também, aliás nos Estados Unidos, com relação ao jazz. Lá tem cara que acha que a música só é jazz se for tocada com aquelas cornetas dos confederados. Se não for, não é puro. E tem que ter também a tábua de lavar roupas (washboard) verdadeiras, para marcar o ritmo. É muito sectarismo. Embora seja um excelente pesquisador, o Tinhorão tem esse lado insuportável.
Você acha que a influência do jazz foi boa para a bossa-nova?
Acho que foi uma influência muito boa. No samba tradicional, os instrumentistas não improvisavam, em geral as harmonias eram rígidas, as formações eram standard. Com a influência do jazz, abriu tudo isso, você podia introduzir qualquer instrumento num conjunto de samba, os instrumentistas improvisavam, as harmonias melhoraram muito e se enriqueceram, os instrumentistas tornaram-se excelentes e conheciam profundamente seus instumentos, como é o caso de Baden e Tom. A influência foi benéfica porque houve uma descaracterização de nossa música. O samba estava sempre presente na bossa-nova. Além disso, a bossa-nova trouxe mais alegria e bom humor à nossa música, que andava muito voltada para a tristeza, a dor-de-corno, a fossa, naquela época do Antonio Maria. Eram músicas muito bonitas, o chamado samba de boate. com a bossa-nova a coisa ficou mais sadia, mais otimista, os sentimentos eram mais de comunicação, mais legais.
Depois da bossa-nova, o que houve de mais importante na música popular brasileira, em sua opinião?
Da chamada geração de 63, tivemos dois nomes importantes, que são o Francis e o Edu, o primeiro mais urbano, o segundo pesquisando coisas de Pernambuco. Depois veio o Milton Nascimento, pesquisando a toada mineira. O que se perdeu foi aquela organicidade que havia no movimento da bossa-nova.
E os baianos, Caetano e Gil?
Os baianos já são outro esquema, um negócio mais próximo da geração dos Beatles. Eles quiseram misturar esse troço todo, fizeram o tropicalismo, rock e samba. Acho que os dois são compositores muito bons. Talvez eu goste mais das coisas iniciais deles, embora ache que até hoje eles continuam a fazer bons trabalhos.
E o Chico Buarque?
O Chico eu acho fora-de-série, realmente. Esse tem aquela estrela, um talento que não pode ter mais tamanho. E o Chico é bom de letra, é bom de música, sabe cantar. Tem tudo, o cara. São uns poucos casos isolados que existem na música brasileira - um Noel, um Caymmi, um Chico, que se distinguem muito.
O que você acha desse debate que tem havido atualmente nos meios artísticos brasileiros, com a cobrança de definições políticas por parte de artistas pela chamadas patrulhas ideológicas?
São pequenas desavenças ideológicas para as quais eu não dou a menor importância. Acho uma burrice o artista ser engajado politicamente e fazer uma música ruim - isso não tem o menor valor. O que adianta você ser o maior comuna e fazer sambas ruins? Aí eu acho que seria preferível ser alienado e fazer música boa. Acho que o engajamento político o cara só deve ter quando aquilo é tão importante para ele que passa a ser sua própria razão de existir, ele não pode viver fora daquilo. É um compromisso que assume consigo mesmo e com a sociedade, e ponto. Agora, o cara sentir a obrigação de expressar isso na arte dele, só quando pinta bem. Eu tenho um envolvimento político bastante grande, mas nunca o expressei em minha poesia, exceto quando surgiu como uma coisa válida, como em Operário em construção, Os barões da terra, Mensagem à poesia. Mas são bons poemas. Eu fiz também muita coisa política que era uma merda e joguei fora.
Já falamos de seus casamentos com parceiros musicais. E com os seus casamentos de verdade, quantos foram?
Estou agora no meu nono casamento.
Há quanto tempo?
Há três meses. A Gilda vivia na Europa, era estudante lá. É uma moça ótima, maravilhosa. Eu tinha saido de um casamento também muito bom, muito feliz, com aquela moça argentina, a Martinha. Mas ela estudava na Argentina, o que nos obrigava a viver numa verdadeira ponte aérea. Não deu para continuar.
Você diria que suas mulheres influenciaram sua obra?
Bom, todas foram premiadas, né. Todas ganharam poemas, canções, uma coisa ou outra.
Houve alguma que tivesse exercido uma influência maior sobre o nível de seu trabalho?
Nesse sentido, acho que a influência maior foi a Tati , minha primeira mulher. Quando me casei com ela, eu estava começando a me desgrudar de minhas influências direitistas. Havia ainda muita confusão mental em mim, muita influência da minha formação, muito colégio. E a Tati já era uma pessoa bastante progressista. Mas, no começo, ainda quebrávamos um pau firme em discussões políticas. Depois, o relacionamento melhorou em todos os sentidos, inclusive no político, porque houve também aquela minha viagem pelo Brasil.
Seu casamento mais longo durou quanto tempo?
Onze anos. Foi exatamente esse, o primeiro, com a Tati.
E o mais curto?
O mais curto durou um ano.
Você mantém boas relações de amizade com as ex-mulheres, ou é do gênero que rompe relações?
Com a maioria, mantenho boas relações; mas não com todas. O relacionamento foi pior com as que engrossaram durante a separação, especialmente com duas que engroassaram mesmo, para valer.
Com sua experiência, o que acha mais fácil: conquistar e casar-se com uma mulher, ou separar dela?
O difícil é separar. Casar é facílimo. Separar é sempre uma experiência dolorosa, porque são duas pessoas que vivem juntas, amam juntas, têm aquele contato diário. Isso tudo forma uma espécie de hábito, uma coisa que não é mecânica - quando existe amor, é claro. E, se há amor, é sempre muito dolorosa a separação.
Como foi sua iniciação sexual? Poética, traumática, normal?
Foi o normal de menino da minha idade, de seus 13 anos. Foi na rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte. Tudo providenciado por um tio meu. Foi com uma putinha, né, uma menina de 14 anos ou 15.
E correspondeu às suas expectativas?
Ah, correspondeu plenamente. Foi uma experiência muito boa. Depois o filho da puta inventou que eu tinha deixado a menina grávida. Eu tinha aquela ingenuidade de garoto e acreditei piamente; fiquei apavorado. Ele era um homem de muito mais idade, andava com um grupo de boêmios, era um seresteiro. E me dizia que eu ia ser obrigado a me casar. E eu com o cê assim não é.
E como foi aquela história de um amor fulminante que nasceu numa sala de museu, entre você e uma jovem loura que se viam pela primeira vez?
Era uma exposição de Portinari. A menina era muito interessante, uma graça. Eu dava uma olhada num Portinari e outra nela. E ela também. Eu sei que viemos de lados opostos e, quando a gente se encontrou, foi até um troço emocionante. Eu falei assim: "Eu te amo sabe?" Ela começou a chorar. Aí, pronto. Ela estava noiva, mas acabamos tendo um romance que durou um ano mais ou menos.
Como foi seu encontro com Deus e depois seu desencontro, seu desencanto?
Bom, o encontro foi normal: família católica, colégio de padres, aquele negócio de confessar aos domingos, de comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era maior. As confissões eram sempre as mesmas: "Bati três esta semana, bati quatro". Os castigos também eram os mesmos, de modo que aquilo acabou me cansando, me aporrinhando. Mas eu me meti a católico porque toda aquela fase de direita era muito ligada ao problema de Deus, principalmente por causa da influência do Otávio de Faria. Ele era aquele cristão dramático, lia muito Pascal, Claudel, os filósofos sofredores, me deu os primeiros livros para ler. Até hoje eu tenho uma grande admiração e estima por ele, embora as divergências ocorridas fossem graves demais para permitir que mantivéssemos um relacionamento estável. Mas gosto muito dele, quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em frente, me liguei muito a Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham uma consciência cristã, mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns eram francamente agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um desinteresse que acabou sendo total, não é?, com o problema religioso. Eu não acreditava mais.
Hoje você não tem mais qualquer preocupação com o problema de Deus ou de religião?
Num plano assim de vida, não. Restou talvez uma certa religiosidade, própria de meu temperamento. Por exemplo, eu me interesso por candomblé, certas superstições. Isso é sinal de que tem algum fogo na cinza. Mas aqui, na cuca, não tenho mais grandes indagações. Ao mesmo tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso mais por coisas que não sei explicar.
Você andou muito metido com candomblé na Bahia. Você acredita mesmo nisso?
Eu prefiro acreditar do que não acreditar, mas realmente não acredito. Quando penso de modo puramente cerebral, não acredito. Deixei também de fazer aquele gênero de indagações, olhar para o céu e perguntar: "Onde está Deus? Afinal alguém fez esta merda toda, não foi?" Mas jamais vou ter respostas a essas perguntas, a não ser talvez depois da morte. Mas também não sei o que há do outro lado, de modo que não penso mais nessas coisas. Além disso, à medida que fui perdendo a religiosidade e o misticismo, o ser humano cresceu muito em mim, tomou conta de tudo. O que me interessa hoje é gente.
E a morte?
Bem, a morte sempre me preocupou, e ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais simples, como uma espécie de saudade da vida, uma pena de deixar isso aqui com todas as cagadas e confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande plenitude. Sobretudo por causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei que a velhice pode ser uma coisa legal, mas não gosto da idéia de envelhecer porque perderia tudo o que as mulheres ainda podem me dar.
Você nunca conseguiu, ou quis, viver sozinho, não?
Não. Eu aceito a solidão bem, mas não por muito tempo. Realmente, para mim, a mulher é um ser indispensável. Não posso viver sem mulher. Houve uma época de minha vida que achei que esse negócio havia terminado, que as coisas não estavam dando certo, que talvez fosse melhor eu me isolar e parar de brincar com esse bicho tão perigoso. Mas não deu. Não deu mesmo. Eu sou um namorador inverterado.
Você vê muita diferença entre o Vinicius dos 18 anos e o Vinicius de hoje?
Não vejo muita diferença entre os meus sonhos de ontem e de hoje, entre uma certa parte lúdica que sempre tive, sempre em fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do que sonhava antigamente. Quer dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de um dia ou um momento, com paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de descrença.
Você está satisfeito consigo mesmo?
Bem, eu gostaria de mudar algumas coisas de mim, mas de um modo geral não sou um sujeito de se jogar fora. Tenho uma estima por mim bastante grande, sabe. Uma estima que vem da constatação das coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos amigos que tive e tenho. Considero tudo conquistas consideráveis, no cômputo geral. Às vezes tenho a imodéstia de dizer a mim mesmo: "Você vale a pena." Isso sem nenhum sentimento de vaidade. Não tenho qualquer preocupação com a glória literária. Se tivesse essa preocupação, eu trataria muito melhor das minhas coisas. A publicação de antologia dos meus poemas pela Aguilar foi um dos partos mais difíceis e demorados que já houve, tudo por despreocupação minha. Hoje em dia tenho uma preguiça enorme de trabalhar, escrever.
Você se tornou mais exigente?
Muitíssimo mais exigente. Hoje eu leio muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas me parece ruim. Atualmente, quando encontro um escritor que me interessa, para mim é uma festa. Mas, em geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou cinco páginas.
Qual era a visão que você tinha do Brasil quando começou a fazer poesia?
Eu achava o Brasil um país ideal, realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos. O primeiro choque que o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados Unidos, em 1951, e vi aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o bar Vermelhinho desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a penetração do estilo de vida americano.
E hoje, como você vê o Brasil?
Eu digo sempre uma coisa: tenho uma grande fé no Brasil. Uma fé meio estúpida, meio instintiva, por causa do povo. Realmente, a minha fé no Brasil não vem das instituições, nada disso. Pelo contrário, acho que elas têm sido extremamente negativas para os país. Agora, eu acredito neste povo. E cada vez que eu volto ao Brasil, de alguma viagem ao exterior, essa crença aumenta, compreende. E como essa crença é um bem gratuito, eu prefiro tê-la a não tê-la.
Quais os principais planos para o futuro que você tem?
Meu plano principal, no momento, é fazer essa moça feliz, a Gilda. Quero aprimorar esse relacionamento conjugal até ele se tornar uma coisa muito sólida. Para mim, seria um terrível desgaste ter de me separar novamente e procurar outra mulher. Inclusive estou chegando a uma idade em que isso fica cada vez mais difícil. Então, gostaria que a Gilda fosse realmente a última. E quando falo última, falo: "Que ela fosse a primeira". A Gilda tem as qualidades para isso. Naturalmente, vai chegar um dia em que teremos de nos separar por problemas de idade. Mas quanto a esse problema, não posso fazer nada. É um problema da vida, sou mito mais velho que ela, uma moça bastante jovem. Mas como sou um sujeito muito dialético, procuro resolver os problemas na hora. Não penso muito neles antes que pintem.
Além desse plano principal, você tem outros?
Bem, estou um pouco saturado de shows, excursões, música. Vou terminar esses dois livros de poesia e procurar viver minha vida dentro de uma felicidade possível. Se você me perguntar se sou um homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou porque não sei ser feliz dentro de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse é um problema que me afeta diretamente, me afeta não só como homem de esquerda, mas também como homem, simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu vou carregar pelo resto de minha vida, não há saída, porque não tenho a menor esperança de ver as coisas se normalizarem e se equilibrarem ainda no meu tempo.
Que tipo de sociedade você gostaria que houvesse no Brasil?
Acho que uma volta a uma democracia relativa já seria muito bom sabe! E sobretudo o povo ter liberdade - isso me parece fundamental. Quer dizer, ver as pessoas felizes, contentes, com as caras alegres, sem angústia. E, sobretudo, haver a realização, ou pelo menos um arremedo de realização, de uma organização social mais justa, com uma melhor distribuição da riqueza, uma reforma agrária legal. Isso eu gostaria de ver: os problemas sociais mais graves resolvidos ou, no mínimo, colocados num bom caminho. Isso já me daria um pouco de paz, de calma, de uma tranquilidade bastante maior do que aquela que eu tenho hoje. Eu não consigo me destacar do problema humano.
Entrevista de Narceu de Almeida Filho, publicada na revista Ele&Ela, em março de 1979 (fonte e outra entrevista, de Clarisse Lispector a Vinícius)
Eu estou bem, de um modo geral. Tenho uns problemas de dieta, para regularizar o metabolismo do meu açucar, que é um pouco alto. Agora vou tirar umas férias e passar um mês em Punta del Este, dar uma descansada e terminar meus livros de poesia, que estão parados há quatro anos por causa desse negócio de shows. Foram quatro anos de pauleira o tempo todo, muita viagem, principalmente no Brasil e na Argentina, mas também na Europa. No ano retrasado estivemos na Itália e de novo no Olympia, em Paris. Agora fizemos mais ou menos o mesmo roteiro e incluímos Londres, onde eu não havia trabalhado ainda. Para mim foi uma surpresa muito boa, porque o show teve bastante sucesso. Do ponto de vista profissional, o ano foi ótimo, ainda que tenha me deixado um pouco de língua de fora... Mas tudo bem.
E agora você entra em férias para trabalhar?
É, férias para ver se escrevo um pouco. Esses livros estão realmente muito atrasados.
Quais os livros?
São dois livros. Um deles é o que venho escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25 anos que trabalho nesse livro. O outro são os poemas escritos de 1960 para cá, porque nesse tempo todo eu não publiquei nada de poesia, a não ser algumas edições especiais que fiz na Bahia, na editora do Calazans Neto. Uma delas é a História natural de Pablo Neruda, que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir esses poemas escritos a partir de 1960 e completar o livro, que tem um título meio contabilístico - O dever e o haver. É uma prestação geral de contas, do que foi feito, do que deixou de ser feito.
Esses dois livros que você vai publicar serão, em termos de poesia, a sua palavra final?
Eu considero esses dois livros uma espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se ainda tiver alguma coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do contrário, eu paro de escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que foi dito foi dito, e é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo de importante a dizer. E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por escrever, simplesmente, é um coisa que não farei em hipótese alguma.
Você tem algum método de trabalho permanente, periódico, ou escreve somente quando baixa a inspiração?
É, eu escrevo somente quando a coisa vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30 anos, em que eu escrevia muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o papel e sentar para escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois começou a escassear, a rarear. E veio o período de música popular, que foi muito importante para mim.
Você ficou famoso como poeta muito cedo, antes dos 20 anos, não foi?
Muito cedo. Meu primeiro livro, O caminho para a distância, teve uma ótima crítica. Eu tinha 19 anos quando o publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de Poesia - chamava-se Felipe de Oliveira e premiava todas as artes literárias. Ganhei uma disputa com o Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente.
O fato de ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para você?
Para mim não foi muito legal, não, sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um poeta genial, essas coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no meu lugar, direitinho. Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro livro. Ele fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz: "Olha, menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito bons". Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa. Finalmente, quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa escreveu também um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O Mário de Andrade, igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me ajudou muito.
Na época você recebeu bem essas críticas?
Não recebi muito bem, não. Recebi mal, sabe. Porque, além do mais, havia todo o grupo do Otávio de Farias que me incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o poeta que todo mundo esperava. Era o grupo da Faculdade de Direito. Essas coisas me subiram um pouco à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida, a experiência com o conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me situar. Processou-se também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido formado para ser um intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa muito importante em minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano Waldo Frank. O José Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores compareceram. Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que achava coquetel de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não podíamos sair por aí. Saímos, era dia de São Jorge e eu levei o Waldo para ver as putas do Mangue. Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a origem da minha Balada do Mangue foi esse dia. Depois eu o levei à favela do Pinto, aquela que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não há condições. Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas para os crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo era ver esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a Argentina, acabou se envolvendo em política lá - era um socialista, mas com uma grande dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e pediu ao Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do Itamarati, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem foi maravilhosa, escutei histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinha vindo matá-lo no Brasil.
Até essa época você era bastante católico e místico, não?
Não era tão católico, não, mas era um cara muito mistificado, não só pela formação, mas também pelo grupo que orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos caras de direita, muitos haviam aderido ao integralismo. Não sei como consegui me safar disso. Acho que foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa. Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada de 360 graus. Sai um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.
Essa virada se manifestou em sua obra?
Logo em seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa. No Brasil, pouca gente havia tido essa experiênica com excessão de Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no sentido de um certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo.
E quando você começou a fazer música?
A música começou mesmo na década de 50, quando voltei de meu primeiro posto diplomático no exterior, em Los Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas, antes, mesmo sozinho, mas sem nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15 anos tive uma experiência interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que havia aqui, chamada Irmãos Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias músicas, das quais duas tiveram muito sucesso. Uma era um fox trote brasileiro, chamado Loura ou Morena (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma "berceuse", Canção da amante. Foi o primeiro dinheiro que ganhei em minha vida, produzido por essas músicas.
Quando você foi exonerado do Itamarati, em 1968, houve alguma alegação específica?
O Otto (Lara Resende) sabe de uma história muito engraçada que aconteceu: Quando o decreto veio de Brasília, assinado pelo Costa e Silva, o despacho dizia: "Ponha-se esse vagabundo para trabalhar". Aí, dizem que o Magalhães Pinto botou a mão na cabeça e chamou o Otto imediatamente, comentando: "Ih, isso vai dar um barulho dos diabos. Escreve um arrazoado aí para mandarmos para Brasília". O Otto escreveu e, por isso, o despacho não se tornou público. Mas a exoneração veio de qualquer maneira. O que para mim foi ótimo, porque eu já não aguentava mais aquilo, mas tinha um problema moral devido aos filhos, pois com 24 anos de carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha um certo medo de jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral, fiquei muito satisfeito.
Voltando à música: você teve parcerias históricas. Por que lá pelas tantas, a parceria acaba?
É como um casamento, sabe. É parecido. Acho que há um desgaste. Além disso, no tempo da bossa-nova, por exemplo, havia milhares de compositores fazendo música, e apenas uns poucos letristas. De maneira que eu não chegava para as encomendas: era o Tom, o Baden Powell, o Carlinhos Lira. Depois, na geração 63, pintaram o Edu Lobo, o Francis Hime. Tanto assim que eu sou um dos pouquíssimos compositores brasileiros que atravessou essas gerações todas. Eu fiz música com o Pixinguinha, o Ary Barroso, com o pessoal da geração do Antonio Maria, o Paulinho Soledade; depois peguei o Tom, o Baden, o Carlos Lyra, o Edu, o Francis e, em 69, o Toquinho. E mesmo com caras mais jovens que o Toquinho eu já fiz música, como o Eduardo Souto Neto, o João Bosco.
Com quais parceiros você acha que houve mais criatividade?
Com o Tom, sobretudo, mas também como o Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção muito boa, e foi ele quem me introduziu o elemento africano, o que não havia antes na bossa-nova - eram todos brancos, arianos.
O que você acha das críticas que o Tinhorâo faz à bossa-nova.?
Aquilo é burrice total do Tinhorão. É o negócio dos guardas-costas do samba. Como existe também, aliás nos Estados Unidos, com relação ao jazz. Lá tem cara que acha que a música só é jazz se for tocada com aquelas cornetas dos confederados. Se não for, não é puro. E tem que ter também a tábua de lavar roupas (washboard) verdadeiras, para marcar o ritmo. É muito sectarismo. Embora seja um excelente pesquisador, o Tinhorão tem esse lado insuportável.
Você acha que a influência do jazz foi boa para a bossa-nova?
Acho que foi uma influência muito boa. No samba tradicional, os instrumentistas não improvisavam, em geral as harmonias eram rígidas, as formações eram standard. Com a influência do jazz, abriu tudo isso, você podia introduzir qualquer instrumento num conjunto de samba, os instrumentistas improvisavam, as harmonias melhoraram muito e se enriqueceram, os instrumentistas tornaram-se excelentes e conheciam profundamente seus instumentos, como é o caso de Baden e Tom. A influência foi benéfica porque houve uma descaracterização de nossa música. O samba estava sempre presente na bossa-nova. Além disso, a bossa-nova trouxe mais alegria e bom humor à nossa música, que andava muito voltada para a tristeza, a dor-de-corno, a fossa, naquela época do Antonio Maria. Eram músicas muito bonitas, o chamado samba de boate. com a bossa-nova a coisa ficou mais sadia, mais otimista, os sentimentos eram mais de comunicação, mais legais.
Depois da bossa-nova, o que houve de mais importante na música popular brasileira, em sua opinião?
Da chamada geração de 63, tivemos dois nomes importantes, que são o Francis e o Edu, o primeiro mais urbano, o segundo pesquisando coisas de Pernambuco. Depois veio o Milton Nascimento, pesquisando a toada mineira. O que se perdeu foi aquela organicidade que havia no movimento da bossa-nova.
E os baianos, Caetano e Gil?
Os baianos já são outro esquema, um negócio mais próximo da geração dos Beatles. Eles quiseram misturar esse troço todo, fizeram o tropicalismo, rock e samba. Acho que os dois são compositores muito bons. Talvez eu goste mais das coisas iniciais deles, embora ache que até hoje eles continuam a fazer bons trabalhos.
E o Chico Buarque?
O Chico eu acho fora-de-série, realmente. Esse tem aquela estrela, um talento que não pode ter mais tamanho. E o Chico é bom de letra, é bom de música, sabe cantar. Tem tudo, o cara. São uns poucos casos isolados que existem na música brasileira - um Noel, um Caymmi, um Chico, que se distinguem muito.
O que você acha desse debate que tem havido atualmente nos meios artísticos brasileiros, com a cobrança de definições políticas por parte de artistas pela chamadas patrulhas ideológicas?
São pequenas desavenças ideológicas para as quais eu não dou a menor importância. Acho uma burrice o artista ser engajado politicamente e fazer uma música ruim - isso não tem o menor valor. O que adianta você ser o maior comuna e fazer sambas ruins? Aí eu acho que seria preferível ser alienado e fazer música boa. Acho que o engajamento político o cara só deve ter quando aquilo é tão importante para ele que passa a ser sua própria razão de existir, ele não pode viver fora daquilo. É um compromisso que assume consigo mesmo e com a sociedade, e ponto. Agora, o cara sentir a obrigação de expressar isso na arte dele, só quando pinta bem. Eu tenho um envolvimento político bastante grande, mas nunca o expressei em minha poesia, exceto quando surgiu como uma coisa válida, como em Operário em construção, Os barões da terra, Mensagem à poesia. Mas são bons poemas. Eu fiz também muita coisa política que era uma merda e joguei fora.
Já falamos de seus casamentos com parceiros musicais. E com os seus casamentos de verdade, quantos foram?
Estou agora no meu nono casamento.
Há quanto tempo?
Há três meses. A Gilda vivia na Europa, era estudante lá. É uma moça ótima, maravilhosa. Eu tinha saido de um casamento também muito bom, muito feliz, com aquela moça argentina, a Martinha. Mas ela estudava na Argentina, o que nos obrigava a viver numa verdadeira ponte aérea. Não deu para continuar.
Você diria que suas mulheres influenciaram sua obra?
Bom, todas foram premiadas, né. Todas ganharam poemas, canções, uma coisa ou outra.
Houve alguma que tivesse exercido uma influência maior sobre o nível de seu trabalho?
Nesse sentido, acho que a influência maior foi a Tati , minha primeira mulher. Quando me casei com ela, eu estava começando a me desgrudar de minhas influências direitistas. Havia ainda muita confusão mental em mim, muita influência da minha formação, muito colégio. E a Tati já era uma pessoa bastante progressista. Mas, no começo, ainda quebrávamos um pau firme em discussões políticas. Depois, o relacionamento melhorou em todos os sentidos, inclusive no político, porque houve também aquela minha viagem pelo Brasil.
Seu casamento mais longo durou quanto tempo?
Onze anos. Foi exatamente esse, o primeiro, com a Tati.
E o mais curto?
O mais curto durou um ano.
Você mantém boas relações de amizade com as ex-mulheres, ou é do gênero que rompe relações?
Com a maioria, mantenho boas relações; mas não com todas. O relacionamento foi pior com as que engrossaram durante a separação, especialmente com duas que engroassaram mesmo, para valer.
Com sua experiência, o que acha mais fácil: conquistar e casar-se com uma mulher, ou separar dela?
O difícil é separar. Casar é facílimo. Separar é sempre uma experiência dolorosa, porque são duas pessoas que vivem juntas, amam juntas, têm aquele contato diário. Isso tudo forma uma espécie de hábito, uma coisa que não é mecânica - quando existe amor, é claro. E, se há amor, é sempre muito dolorosa a separação.
Como foi sua iniciação sexual? Poética, traumática, normal?
Foi o normal de menino da minha idade, de seus 13 anos. Foi na rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte. Tudo providenciado por um tio meu. Foi com uma putinha, né, uma menina de 14 anos ou 15.
E correspondeu às suas expectativas?
Ah, correspondeu plenamente. Foi uma experiência muito boa. Depois o filho da puta inventou que eu tinha deixado a menina grávida. Eu tinha aquela ingenuidade de garoto e acreditei piamente; fiquei apavorado. Ele era um homem de muito mais idade, andava com um grupo de boêmios, era um seresteiro. E me dizia que eu ia ser obrigado a me casar. E eu com o cê assim não é.
E como foi aquela história de um amor fulminante que nasceu numa sala de museu, entre você e uma jovem loura que se viam pela primeira vez?
Era uma exposição de Portinari. A menina era muito interessante, uma graça. Eu dava uma olhada num Portinari e outra nela. E ela também. Eu sei que viemos de lados opostos e, quando a gente se encontrou, foi até um troço emocionante. Eu falei assim: "Eu te amo sabe?" Ela começou a chorar. Aí, pronto. Ela estava noiva, mas acabamos tendo um romance que durou um ano mais ou menos.
Como foi seu encontro com Deus e depois seu desencontro, seu desencanto?
Bom, o encontro foi normal: família católica, colégio de padres, aquele negócio de confessar aos domingos, de comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era maior. As confissões eram sempre as mesmas: "Bati três esta semana, bati quatro". Os castigos também eram os mesmos, de modo que aquilo acabou me cansando, me aporrinhando. Mas eu me meti a católico porque toda aquela fase de direita era muito ligada ao problema de Deus, principalmente por causa da influência do Otávio de Faria. Ele era aquele cristão dramático, lia muito Pascal, Claudel, os filósofos sofredores, me deu os primeiros livros para ler. Até hoje eu tenho uma grande admiração e estima por ele, embora as divergências ocorridas fossem graves demais para permitir que mantivéssemos um relacionamento estável. Mas gosto muito dele, quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em frente, me liguei muito a Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham uma consciência cristã, mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns eram francamente agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um desinteresse que acabou sendo total, não é?, com o problema religioso. Eu não acreditava mais.
Hoje você não tem mais qualquer preocupação com o problema de Deus ou de religião?
Num plano assim de vida, não. Restou talvez uma certa religiosidade, própria de meu temperamento. Por exemplo, eu me interesso por candomblé, certas superstições. Isso é sinal de que tem algum fogo na cinza. Mas aqui, na cuca, não tenho mais grandes indagações. Ao mesmo tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso mais por coisas que não sei explicar.
Você andou muito metido com candomblé na Bahia. Você acredita mesmo nisso?
Eu prefiro acreditar do que não acreditar, mas realmente não acredito. Quando penso de modo puramente cerebral, não acredito. Deixei também de fazer aquele gênero de indagações, olhar para o céu e perguntar: "Onde está Deus? Afinal alguém fez esta merda toda, não foi?" Mas jamais vou ter respostas a essas perguntas, a não ser talvez depois da morte. Mas também não sei o que há do outro lado, de modo que não penso mais nessas coisas. Além disso, à medida que fui perdendo a religiosidade e o misticismo, o ser humano cresceu muito em mim, tomou conta de tudo. O que me interessa hoje é gente.
E a morte?
Bem, a morte sempre me preocupou, e ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais simples, como uma espécie de saudade da vida, uma pena de deixar isso aqui com todas as cagadas e confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande plenitude. Sobretudo por causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei que a velhice pode ser uma coisa legal, mas não gosto da idéia de envelhecer porque perderia tudo o que as mulheres ainda podem me dar.
Você nunca conseguiu, ou quis, viver sozinho, não?
Não. Eu aceito a solidão bem, mas não por muito tempo. Realmente, para mim, a mulher é um ser indispensável. Não posso viver sem mulher. Houve uma época de minha vida que achei que esse negócio havia terminado, que as coisas não estavam dando certo, que talvez fosse melhor eu me isolar e parar de brincar com esse bicho tão perigoso. Mas não deu. Não deu mesmo. Eu sou um namorador inverterado.
Você vê muita diferença entre o Vinicius dos 18 anos e o Vinicius de hoje?
Não vejo muita diferença entre os meus sonhos de ontem e de hoje, entre uma certa parte lúdica que sempre tive, sempre em fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do que sonhava antigamente. Quer dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de um dia ou um momento, com paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de descrença.
Você está satisfeito consigo mesmo?
Bem, eu gostaria de mudar algumas coisas de mim, mas de um modo geral não sou um sujeito de se jogar fora. Tenho uma estima por mim bastante grande, sabe. Uma estima que vem da constatação das coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos amigos que tive e tenho. Considero tudo conquistas consideráveis, no cômputo geral. Às vezes tenho a imodéstia de dizer a mim mesmo: "Você vale a pena." Isso sem nenhum sentimento de vaidade. Não tenho qualquer preocupação com a glória literária. Se tivesse essa preocupação, eu trataria muito melhor das minhas coisas. A publicação de antologia dos meus poemas pela Aguilar foi um dos partos mais difíceis e demorados que já houve, tudo por despreocupação minha. Hoje em dia tenho uma preguiça enorme de trabalhar, escrever.
Você se tornou mais exigente?
Muitíssimo mais exigente. Hoje eu leio muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas me parece ruim. Atualmente, quando encontro um escritor que me interessa, para mim é uma festa. Mas, em geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou cinco páginas.
Qual era a visão que você tinha do Brasil quando começou a fazer poesia?
Eu achava o Brasil um país ideal, realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos. O primeiro choque que o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados Unidos, em 1951, e vi aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o bar Vermelhinho desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a penetração do estilo de vida americano.
E hoje, como você vê o Brasil?
Eu digo sempre uma coisa: tenho uma grande fé no Brasil. Uma fé meio estúpida, meio instintiva, por causa do povo. Realmente, a minha fé no Brasil não vem das instituições, nada disso. Pelo contrário, acho que elas têm sido extremamente negativas para os país. Agora, eu acredito neste povo. E cada vez que eu volto ao Brasil, de alguma viagem ao exterior, essa crença aumenta, compreende. E como essa crença é um bem gratuito, eu prefiro tê-la a não tê-la.
Quais os principais planos para o futuro que você tem?
Meu plano principal, no momento, é fazer essa moça feliz, a Gilda. Quero aprimorar esse relacionamento conjugal até ele se tornar uma coisa muito sólida. Para mim, seria um terrível desgaste ter de me separar novamente e procurar outra mulher. Inclusive estou chegando a uma idade em que isso fica cada vez mais difícil. Então, gostaria que a Gilda fosse realmente a última. E quando falo última, falo: "Que ela fosse a primeira". A Gilda tem as qualidades para isso. Naturalmente, vai chegar um dia em que teremos de nos separar por problemas de idade. Mas quanto a esse problema, não posso fazer nada. É um problema da vida, sou mito mais velho que ela, uma moça bastante jovem. Mas como sou um sujeito muito dialético, procuro resolver os problemas na hora. Não penso muito neles antes que pintem.
Além desse plano principal, você tem outros?
Bem, estou um pouco saturado de shows, excursões, música. Vou terminar esses dois livros de poesia e procurar viver minha vida dentro de uma felicidade possível. Se você me perguntar se sou um homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou porque não sei ser feliz dentro de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse é um problema que me afeta diretamente, me afeta não só como homem de esquerda, mas também como homem, simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu vou carregar pelo resto de minha vida, não há saída, porque não tenho a menor esperança de ver as coisas se normalizarem e se equilibrarem ainda no meu tempo.
Que tipo de sociedade você gostaria que houvesse no Brasil?
Acho que uma volta a uma democracia relativa já seria muito bom sabe! E sobretudo o povo ter liberdade - isso me parece fundamental. Quer dizer, ver as pessoas felizes, contentes, com as caras alegres, sem angústia. E, sobretudo, haver a realização, ou pelo menos um arremedo de realização, de uma organização social mais justa, com uma melhor distribuição da riqueza, uma reforma agrária legal. Isso eu gostaria de ver: os problemas sociais mais graves resolvidos ou, no mínimo, colocados num bom caminho. Isso já me daria um pouco de paz, de calma, de uma tranquilidade bastante maior do que aquela que eu tenho hoje. Eu não consigo me destacar do problema humano.
Entrevista de Narceu de Almeida Filho, publicada na revista Ele&Ela, em março de 1979 (fonte e outra entrevista, de Clarisse Lispector a Vinícius)
Anselmo Borges (2012)
Teólogo, filósofo, professor universitário, cronista e autor de vários livros. Crítico reconhecido de diversos aspetos da doutrina oficial católica, o padre Anselmo Borges fala por uma vez de si e do processo de conversão que o levou a pôr em causa a ortodoxia da Igreja Católica. Um percurso polémico e um processo exigente, iniciado aos 25 anos com a primeira crise e uma acusação de heresia e resolvido aos 50, depois de um ajuste de contas consigo próprio. Pelo meio, confirmou que o inferno, afinal, não existe. «Foi uma libertação.»
Disse, numa entrevista, que gostaria de escrever um livro com o título Diálogos Comigo. Com que frase abriria esse livro?
Sou muitos, a realidade é infinitamente complexa e, para entender, eu quero fazer um ajuste de contas comigo mesmo, com os outros e com Deus.
Que contas são essas que tem a ajustar com Deus?
Por que é que há tanto sofrimento e mal no mundo? Como se pensa o mundo sem Deus? Como se pensa o mundo com Deus?
Vê Deus antes de mais na pergunta. Quando começou essa necessidade da pergunta pelo fundamental?
Decidi-me a ser padre com 19 anos, porque fui sempre, não sei bem explicar porquê, muito afetado pelas grandes perguntas da vida, concretamente pelo sentido último da existência. Tendo encontrado Cristo, pensei que valia a pena dedicar a minha vida ao anúncio da sua mensagem, que dá sentido à vida e à morte.
Quando percebeu que seria um padre «problemático»?
A primeira imagem que tenho de mim é a de alguém que reivindicou autonomia. Tinha 3 anos e o meu pai mandou-me apanhar uma faca que caíra ao chão. De facto, não tinha sido eu a deitá-la ao chão. Ele fez tudo para que eu a apanhasse, abriu, inclusivamente, a minha mão, mas eu não a levantei. Recordo-me de em miúdo pensar que uma vida de pura obediência aos pais e a Deus seria uma vida oprimida e sem interesse. Por isso, quando procuro o fio condutor da minha vida de padre, julgo encontrá-lo no facto de lutar pela liberdade, contra a dogmática fixista, que pensava deter a verdade toda e definitiva. Eu precisava de conviver com a humanidade toda e pensamentos outros.
Como lidou então com o imperativo de obediência a Deus e a vida do seminário?
Fui para o seminário em 1954 e devo dizer que tenho uma boa recordação. Os formadores interessavam-se e queriam o nosso bem. Havia muita disciplina, sentido do trabalho, mas, ao mesmo tempo, muitos recreios. Aquilo fazia sentido, tinha bastante equilíbrio. O aspeto mais negativo está ligado com a afetividade, que ficava muito bloqueada. Em grande parte resolvi essa questão porque tive sorte, convivi com famílias sãs e muitos jovens, rapazes e raparigas, que ajudaram a quebrar o bloqueio. Mas ainda haverá marcas.
Nasceu em 1944, em Resende. O sacerdócio foi uma vocação de infância?
A minha mãe era muito religiosa e o meu pai era crente a sério, embora muito crítico em relação à religião oficial. Portanto, tiveram uma profunda alegria em ter dois filhos padres. Nunca pretenderam tirar benefícios materiais desse facto. Por isso é que nós estivemos, e estamos, num instituto missionário. O meu irmão mais velho sempre quis ser padre. E eu acabei por ir também, até porque ele estava lá. Mas fui padre convictamente.
Chegou a pensar que para conviver com a humanidade toda teria de renunciar a Deus e à Igreja?
Renunciar, não. Mas rever, desconstruir e reconstruir. A primeira crise foi aos 25 anos, ensinava no Instituto Superior de Estudos Teológicos do Porto, acabado de chegar de Roma. Mas ensinava sem grande convicção. Era pequeno e pouco o que me tinham ensinado, no sentido de que aquilo eram sobretudo doutrinas e fórmulas e não vinha de dentro. Que diabo, pensava eu, não é bem isto. E, certo dia, reuni com os meus colegas padres do seminário, para dizer-lhes: «Eu não acredito que a Igreja Católica tenha a verdade toda. Portanto, se vocês acham que estou a ser desonesto para com a Igreja, eu saio.» Não sei se perceberam bem o que eu lhes disse, mas a verdade é que me disseram para continuar.
Depois do seminário, seguiu para Roma, para a Universidade Gregoriana. Que relato faz desse tempo?
Aquilo que mais me impressionou não foi o esplendor do Vaticano, mas sim o esplendor cosmopolita. Íamos de Portugal, um país sem democracia, que estava em guerra colonial, não havia pluralismo. Quando cheguei a Roma, a televisão tinha debates, havia vida e foi isso que me seduziu. A liberdade de debate. Estávamos em 1967, o Concílio Vaticano II tinha acabado em 1965, e ainda havia os ecos em ebulição. Foram tempos de liberdade e de cosmopolitismo. Essa foi a grande experiência. Comprei um bilhete de estudante e viajei por toda a Europa. Andei a ver e a ganhar mundos, que era o que eu queria.
Nessa altura viveu também na Alemanha. Como lidou com outros credos e outras maneiras de ser cristão?
Saíamos daqui dogmáticos. Fora da Igreja, que sabia tudo, não havia salvação. Enquanto miúdos fomos permanentemente formados nisso. Diziam-nos que os protestantes eram gente com quem não podíamos contactar, que estavam condenados ao inferno. Muito jovem, na Alemanha, uma família protestante convidou-me para jantar. E o mesmo aconteceu com uma família muçulmana. E perante eles, pessoas admiráveis - pessoas, tão simples quanto isso -, pensei o que hoje pode parecer e é normal, mas que na altura era um enorme atrevimento: em primeiro lugar, somos todos homens, não podemos andar aqui a levantar barreiras. E daí ter surgido a minha primeira crise: era preciso repensar a Igreja e a própria figura de Jesus.
Regressa a Portugal em 1970. Leciona no Instituto Superior de Estudos Teológicos do Porto [ISET], promove conferências em que participam intelectuais como Óscar Lopes, e é considerado herético. Como é que recebeu a acusação?
Fui considerado herético pelo bispo de Portalegre e Castelo Branco de então, que foi acusar-me ao diretor do ISET. Mas o diretor esteve muito bem e desafiou-o a apresentar por escrito as minhas heresias.
E ele apresentou?
Tanto quanto sei, não.
Teve alguns escritos proibidos pela PIDE e realizou em 1972 um colóquio sobre o tema «Fé e contestação».
Foi uma clara provocação ao regime. Sim, alguns escritos estiveram proibidos e disseram-me, e é verdade, que o meu nome constava na PIDE. O colóquio, que realizei em 1972, foi de facto um arrojo, um atrevimento, que só foi possível graças a D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, um homem notável, que sempre me apoiou.
Em 1974, com 30 anos, trabalhava ativamente com jovens. Nesse ano, compôs um Credo, em que se cria mais em Deus do que na Igreja. Recorda-se do texto?
Até está publicado. Em síntese, diz que «cremos em Deus Pai, que por amor criou todas as coisas. E em Jesus Cristo, que foi totalmente livre, que amou a todos, amigos e inimigos, que triunfou da morte e que está vivo, mostrando assim que o sentido da existência é a vida e não a morte».
Em 1977 é vice-presidente do Instituto António Sérgio.
Para satisfazer o pedido insistente do presidente, um grande amigo, Fernando Ferreira da Costa. Mas foi uma passagem curta, pois o meu superior - veja a linguagem eclesiástica: superior - comunicou-me que aquele cargo era incompatível com a minha condição de membro da Sociedade Missionária.
É nessa altura que começa a frequentar o Botequim da Natália Correia.
Sim. Conheci então vários políticos, nacionais e no estrangeiro, e figuras da cultura, e perdi alguma inocência política. Não quero nem posso generalizar, mas há nos políticos algum distanciamento do povo, alguma incompetência. É dessa altura o meu encontro com a Natália Correia, que simpatizava comigo. Era uma mulher da cultura e profundamente preocupada espiritualmente. Quando morreu, pediram-me para ir dizer umas palavras no funeral.
Fez teatro no seminário. Que livros, que música, que pintura, aprecia e o comovem?
Sempre pensei que a primeira revolução é a da cultura. A Natália também tinha essa ideia. Fiz teatro, no seminário. Fiz um curso de visualização de cinema, em Roma. Livros, li tudo o que pude (antes do 25 de Abril, amigos meus traziam-me livros proibidos do estrangeiro): literatura, filosofia, teologia. Aprecio sobretudo a grande música clássica, que pode comover-me até às lágrimas - a música é o divino no mundo. Tive a oportunidade de viajar e não perdi os grandes museus - falo aos estudantes de grandes quadros, por exemplo, As Botas, de Van Gogh, em Amesterdão.
Depois da licenciatura em Teologia, fez sociologia em Paris, e Filosofia, em 1985, em Coimbra. Estava a preparar-se para a luta consigo próprio que se aproximava?
Certamente. Estudei sobretudo por causa de mim, para entender-me e entender o mundo. Isto é, precisava de estar no mundo de uma forma ordenada e honesta. Estudei Teologia. Depois, fui ver como funcionavam as instituições, sobretudo as religiosas, daí ter seguido Ciências Sociais. E, mais tarde, fui para a Filosofia, para meter mais a razão ao barulho.
Lembra-se de alguma experiência marcante nesta luta?
Várias. Mas sobretudo a que me levou a acabar com o medo do inferno. Em 1989, tinha eu 45 anos, comprei em Friburgo, Alemanha, a última obra do teólogo Edward Schillebeeckx, Homens. A História de Deus. Na viagem de comboio para Genebra, li-a e lá estava a confirmação da minha intuição: «não há inferno». Isto foi uma libertação: se houvesse possibilidade de alguém dizer definitivamente não a Deus, então, na morte, ficava no nada. Ora, o nada é melhor do que o sofrimento eterno. Somos limitados, a nossa liberdade é pequena e muito condicionada - então, como é que uma liberdade condicionada pode determinar uma vida eterna falida? Não há condenados. Foi uma experiência absolutamente marcante.
Mas há céu?
Espero convictamente que, na morte, não cairemos no nada, mas na plenitude da vida de Deus. Assim, a nossa vida neste mundo é a sério e tem consequências no além, pois Deus não pode levar à plenitude possibilidades que não realizámos aqui. Como é? Ninguém sabe.
Quando se deu finalmente a rutura com a ortodoxia?
Mas eu sou ortodoxo, no sentido de seguir a reta doutrina; procuro é interpretá-la para o tempo atual. De qualquer forma, em 1994, já melhor apetrechado, com mais mundo, já depois de aprofundar mais a história do pensamento e contactar de perto com grandes teólogos e filósofos, disse para mim mesmo: «Vou pôr entre parêntesis tudo aquilo que me ensinaram. Vou repensar tudo isto. Veremos o que vai resistir e o que não vai resistir.» Não foi por arrogância, eu é que precisava de fazer um ajuste de contas comigo. Tinha de formar um puzzle - eu, Deus, os outros, as ciências. E o puzzle começou a compor-se. E consegui articular a minha fé com os diferentes saberes e os diferentes posicionamentos dos homens e das mulheres, ao longo dos tempos. Agora estou de bem.
Foi um processo doloroso?
Muito, muito. Foi complicado. Tive de desconstruir aquilo que me tinham dado e que me tinham ensinado, foi profundamente doloroso para mim.
Ao longo desse tempo, nunca duvidou da fé?
A minha fé convive com a dúvida. É fé, embora com razões. Mas compreendo bem os agnósticos e os ateus. A fé não tem que ver, em primeiro lugar, com dogmas. Nós não acreditamos em dogmas. Isso são coisas, é o divino «coisificado». Nós acreditamos em Deus e em Cristo.
Há quem o considere um teólogo, sim, mas não da doutrina católica.
Eu considero-me católico, até etimologicamente falando, pois católico quer dizer universal. E, na Igreja Católica, deve haver liberdade de pensamento e haverá inevitavelmente conflitos de interpretações. Portanto, exerço esse meu direito e, diria também, esse meu dever. Talvez me tenha desligado da «ortodoxia» no sentido vulgar da palavra, mas, como procuro ser leal, julgo que estou de acordo com o essencial.
O que é o essencial?
O essencial é pouco e é tudo: acreditar em Deus enquanto mistério último da realidade, que é amor e nos é favorável, e acreditar em Jesus, o Cristo. E acreditar também nos homens e nas mulheres.
Há uns anos, no final de uma conferência, uma senhora comentava: «Estava tudo a correr tão bem até chegar o padre ateu.» Esta incomodidade que suscita em alguns crentes é um elogio?
Poderia ser um elogio, no sentido em que o crente verdadeiro tem de começar por ser ateu, tem de derrubar todos os ídolos. Só depois é que pode, verdadeiramente, acreditar no Deus verdadeiro.
Acredita em Fátima?
Pode ser-se católico e não acreditar em Fátima. Mas não excluo que os pastorinhos tenham tido uma experiência religiosa própria de crianças.
Que relação mantém com a hierarquia que tanto critica?
Uma relação leal de diálogo, uma relação agradável com muitos bispos, inclusivamente, fui colega de alguns na universidade. Do cardeal-patriarca, por exemplo, na Universidade Gregoriana, um excelente colega, bem-disposto.
Recebe reparos? Por exemplo, quando argumentou que em certos casos o uso do preservativo pode ser moralmente obrigatório?
É possível que, uma ou outra vez, alguns bispos sintam alguma incomodidade com o que eu digo e escrevo, mas eu também a sinto em relação àquilo que alguns deles dizem e fazem.
Tem um amigo, um interlocutor especial na Igreja portuguesa?
Não. Mas houve pessoas, três grandes amigos, professores com os quais fui dialogando. E a minha irmã, que sempre me vai dizendo: «Alguns podem não gostar, mas não tenhas medo, tu tens razão.» Por paradoxal que pareça, tenho uma imensa dívida de gratidão para com um filósofo ateu, que conheci pessoalmente, Ernst Bloch.
E como é que o seu irmão, também padre, olha para o seu percurso?
Como irmão.
Denuncia falta de liberdade de expressão na Igreja. Algum dia sentiu esse medo de falar ou escrever?
A estrutura do medo pode ser interiorizada. E também há os medos espirituais, que são os piores. Os fiéis têm medo do padre, o padre tem medo do bispo, os bispos têm medo do papa e o papa tem medo de Deus. Isto não faz sentido. O medo tolhe e leva à agressão. Arranjaram um Deus que mete medo. Ora, se Deus mete medo, é melhor ser ateu. Uma vez fiz um exercício: «Este Deus não existe; se existisse, matava-me.» Não me matou; portanto, fiquei livre. Deus não pode ser terrífico. O filho de Abraão, Isaac, tornou-se ateu, seguramente, pois Deus «mandou» que o pai o sacrificasse. Nós pregamos barbaridades. Há aqueles que se espantam por haver tão pouca gente na missa, eu espanto-me por ainda haver muitos que vão à missa. Houve milhões de pessoas para as quais teria sido preferível nunca terem ouvido a palavra «Deus». Ficaram com a vida estragada. Por isso é que admiro aqueles ateus que ousaram levantar perguntas, quando pensar diferente levava à fogueira do inferno e da Inquisição. São santos da humanidade.
Pregar «Deus é Amor» pode levar os crentes a concluir: «Então faço o que quero», dizem os conservadores da Igreja.
Nada disso. Dizer isso é uma estupidez, pois significa desconhecer o que é o amor. O amor é tremendamente exigente, entre homens e mulheres, entre amigos, com Deus. O amor implica dignidade e capacidade de entrega e sacrifício pelo outro.
De 1983 a 1986 viveu em Moçambique como professor no Seminário Maior. O que ganhou dessa experiência?
Era considerado o pior país do mundo para viver. Era uma guerra civil terrível. Ali, aprendi muita coisa. Aquilo era um horror - um regime comunista tirânico. Havia a fome e ao mesmo tempo gente generosa. E alegre, apesar de melancólica. Foi uma lição.
Agora que tem o mundo ordenado, qual é a grande questão que coloca a Deus?
A grande pergunta com que sou confrontado também pelos crentes: o sofrimento das crianças inocentes - é uma tragédia pessoal, o meu coração fica partido. E também «porque é que há tanta estupidez no mundo?» Sabe, eu tenho alguma confiança na razão, na inteligência. Acho que Deus poderia ter feito isto um bocadinho melhor. Que Ele me perdoe.
Que resposta recebe?
Deus não podia criar um mundo infinito, portanto, sem limitações, porque isso é contraditório. Assim, num mundo finito, o mal é inevitável. Depois, no meio do sofrimento, temos de encarar a vida e cada um dá a sua resposta. A resposta do crente é que isto é um processo, esperamos confiada e ativamente que, para lá do espaço e do tempo, se realize o cumprimento da esperança.
Como é que explicaria o perdão católico às mães dos jovens que foram assassinados na Dinamarca por Anders Breivik?
Até o filósofo Derrida, nos últimos tempos de vida, colocou essa questão. «É a partir do perdão que pode surgir a questão da religião», dizia ele. O carrasco não tem o direito ao perdão. E a vítima não é obrigada a perdoar. Portanto, o perdão transcende a justiça.
É nesse sentido que diz que o perdão é um milagre?
Exatamente, porque não é da ordem do cálculo. Sou muito sensível à dívida para com as vítimas inocentes da história. Quem paga essa dívida? Este é um ponto fundamental para colocar a questão de Deus.
Como é que lida com a morte?
Não me reconcilio com a morte, mas tento. Veja: a morte confronta-nos com o nada. Por isso é que não temos medo dela, mas sim angústia. O medo refere-se a algo concreto; a angústia, ao nada. Então, tudo desaba. Tento reconciliar-me com a finitude e procuro viver aqui e agora, de forma intensa. Só uma vida amada e amante é que pode esperar a vida eterna.
Deus é indefinível, diz. Mas qual é a palavra mais aproximada?
Acho que há três palavras: Criação, Amor, Beleza.
Comemoram-se este ano cinco décadas do Concílio Vaticano II. Que é feito da abertura que ele trouxe?
João Paulo II fez um imenso apelo à compreensão dos homens, entrou numa sinagoga, numa mesquita. Hoje são gestos evidentes, mas na altura não eram e foram muito dignificantes. Também numa encíclica, defende os trabalhadores e diz que o trabalho tem precedência sobre o capital. Isso é notável. Julgo, também, que foi o primeiro papa a falar de ecologia. Mas ao mesmo tempo que pediu perdão pelos crimes da Igreja, foi um papa que condenou muitos teólogos. Um tempo em que os lugares importantes foram sendo ocupados por bispos conservadores, para que travassem o Concílio Vaticano II. Com o papa João Paulo II e com o atual papa houve muito recuo. A Igreja Católica vive uma crise imensa e o problema maior é a Cúria Romana.
Há quem atire a culpa da crise da Igreja precisamente para o Concílio. Como estaria a instituição se ele não tivesse existido?
Sem o Vaticano II a Igreja seria uma seita.
Em 2000 defendia a realização de um concílio. E hoje?
Hoje temeria isso, porque, entretanto, Roma foi tapando perspetivas que vinham do Concílio Vaticano II. Temeria que, hoje, em vez de abrir, um concílio fechasse ainda mais.
A Igreja portuguesa acompanhou essa regressão?
A Igreja portuguesa vive de modo bastante morno.
Está pessimista quanto à sucessão, portanto.
O último conclave nomeou, sobretudo, cardeais europeus e italianos. Isto é contra a universalidade do cristianismo. Há ali uma série de estratégias para condicionar a eleição do próximo papa.
A perestroika na Igreja não significaria o colapso?
O ser humano é o resultado de uma herança genética e de uma cultura. Portanto, nós vamo-nos fazendo. Quanto mais me abro ao outro, mais venho a mim. A identidade é atravessada pela alteridade. É nesta dinâmica, até antropológica, que deve entender-se o diálogo ecuménico e inter-religioso. As outras religiões também têm verdade. Eu, como cristão, não pretendo tornar o budista cristão. Nós estamos reunidos por este mistério último a que chamamos Deus. E a Igreja existe para o serviço da humanidade e não para si mesma.
Como pode ser a Igreja democrática, se assenta numa verdade divina?
Nós apontamos para uma realidade que é o mistério último enquanto amor, ao qual chamamos Deus, mas ninguém possui Deus. Temos uma perspetiva sobre a verdade, mas ninguém a possui. Gostaria de um concílio para que a Igreja tomasse consciência da pluralidade de vivência e interpretação do mesmo Evangelho. Mais: na presente situação do mundo, deveria fomentar-se uma grande assembleia de todas as grandes religiões do mundo para debaterem as grandes questões de humanidade num mundo globalizado: o papel das religiões, a globalização, questões fundamentais de bioética, de ecologia, de justiça mundial.
Que reforma da Cúria Romana propõe?
Menos gente, menos burocracia, mais internacional, mais competência, mais transparência, mais mulheres. Não há fundamento teológico algum para não ordenar mulheres. É uma questão sociológica. As mulheres podem estar de mal com a Igreja porque são discriminadas, mas Jesus não as discriminou.
Acabava com a infalibilidade papal?
Perguntem a Joseph Ratzinger se ele acredita que Bento XVI é infalível. Só Deus é infalível. Em 1983, tive oportunidade de falar com João Paulo II nos aposentos privados. Apertei-lhe respeitosamente a mão e disse no meu íntimo: é apenas um homem.
A propósito, até nesse dia recusou usar cabeção. Porquê essa inflexibilidade?
Nunca gostei do cabeção nem de fardas. No dia seguinte à minha ordenação, recebi uma advertência do cardeal Cerejeira porque andava em Fátima em mangas de camisa. Mas, se estava calor, como havia eu de andar? Isto hoje parece ridículo, mas, na altura, em 1967, era uma ousadia, uma falha tremenda.
Que papel deve ter o papa?
Alguns protestantes e ortodoxos estariam dispostos a aceitar um papa, mas não um papa com poder absoluto. Tinha de ser tão-só um sinal pastoral de unidade da Igreja. A vida de mais de mil milhões de seres humanos católicos entregues a um homem só não faz sentido.
Que poder tem, atualmente, a Igreja?
É uma boa pergunta. Algum deve ter, caso contrário, não faria sentido tanta contestação a certas posições da Igreja, como por exemplo a da moral sexual. Um poder que é hoje menor, porque as pessoas reivindicam muito mais a autonomia. Mesmo em Portugal.
Há quem defenda que a tendência vai no sentido de uma Igreja de minoria.
Na Europa, é um facto sociológico. Tive uma grande professor de Teologia, Karl Rahner, que já na altura falava da diáspora, pequenos grupos espalhados pela sociedade que se reconhecem como cristãos. Estamos a entrar numa Igreja de voluntários.
Como deve a Igreja lidar com os temas chamados «fraturantes»?
Cada vez mais, temos de debater estas questões enquanto seres humanos e não enquanto crentes. As questões de e da humanidade devem ser debatidas por todos. E a Igreja também tem direito de apresentar o seu ponto de vista. O que tem é de fazê-lo argumentativamente.
Há uma ética natural?
A ética é, antes de mais, uma questão humana e não uma questão religiosa. Vimos ao mundo por fazer e devemos fazer-nos e fazer-nos bem. Em questões complexas, devemos debater todos.
Confrontado com uma situação terminal, aceitava pôr fim à vida de quem lho pedisse?
Pessoalmente, não o faria. Mas compreenderia quem o fizesse, a pedido de alguém que estivesse nessa situação-limite.
Colocava então de lado a possibilidade de um milagre?
Só acredito nos milagres do amor.
Os avanços da ciência afastam-no ou aproximam-no de Deus?
Nem afastam nem aproximam. A ciência é ciência e Deus é Deus e a fé é fé. E uns acreditam e outros não, com razões.
O que é hoje o pecado?
O que sempre foi: estragar a vida própria ou a dos outros.
Propõe a revisão do dogma da Imaculada Conceição de Maria. Não é uma heresia?
O que é preciso rever é a doutrina do pecado original, que não faz sentido. Como é que, aceitando a evolução, era possível o pecado dos primeiros pais, Adão e Eva, ter desgraçado a vida da humanidade inteira e da própria natureza? Santo Agostinho interpretou o pecado de Adão e de Eva como o primeiro pecado e um pecado herdado. Isto é, em Adão, todos pecaram. Ora, isto não cabe na cabeça de ninguém. Santo Agostinho não hesitou em deixar cair no inferno as crianças que morriam sem batismo. E ficámos com um Deus que precisou da morte do filho, Jesus, para se reconciliar com a humanidade. Isto envenenou completamente o cristianismo. O pecado original não está no Evangelho e o dogma da Imaculada Conceição é contra as mulheres, porque conceberiam e andariam com o pecado dentro delas durante nove meses. Eu limito-me a pregar Cristo que é libertador.
Mais uma vez: se a Igreja for ao encontro dessa liberdade, não perde o poder que ainda tem?
A Igreja não existe por causa do poder, mas por causa da libertação dos seres humanos em todos os domínios: libertação do pecado, do ódio, da injustiça, da morte.
Está contra o celibato enquanto lei. Gostaria de ter sido marido e pai?
A Igreja não pode impor por lei aquilo que Jesus entregou à liberdade. Sempre gostei de mulheres. Se não casei, não foi por falta de oportunidades. Mas, na presente situação da Igreja, se quisesse ser padre, tinha de aceitar o celibato, e foi o que fiz. Na sequência daquilo que quis fazer na vida, não teria possibilidade de fazer uma mulher feliz. Precisava de grande liberdade para me dedicar a estas tarefas, em várias partes. Procuro empenhar-me profundamente com as pessoas, com os estudantes. Mas nós, padres, não tendo mulher nem filhos, alguém que dependa profundamente de nós, corremos o risco de imenso egoísmo.
Afirma que a Igreja tem recuperado a religião oficial do sacrifício. Se Cristo voltasse, homem, seria de novo condenado?
Creio que sim. Não quero condenar ninguém, porque também estou na fila, mas isso leva-me a interrogar-me: o que é que em mim é cristão? Jesus veio como libertador. Jesus colocou o ser humano no centro. O ser humano é mais importante do que os próprios preceitos de Deus.
«Amar o próximo como a si mesmo» está acima de «Adorar a Deus sobre todas as coisas»?
Diria que sim. São Mateus não pergunta se fomos à missa, mas sim se demos de comer ao outro. É o que lá está. O cristianismo, através de Jesus, trouxe ao mundo a «pessoa humana» e a sua dignidade. O que depois os cristãos fizeram disso é outra coisa.
A caridade permite que cada pessoa possa realizar dignamente a sua humanidade?
Não. O que se chama caridade tem de ser caridade política. A Igreja hierárquica tem de ser muito viva e contundente na declaração dos direitos, nomeadamente os direitos sociais. Portugal diz-se um país de maioria católica, mas que não é cristão. A caridade nasce da urgência, mas nunca devemos esquecer que não se pode dar por caridade aquilo que é devido por justiça. Há pessoas que pensam que nunca mais existirão revoluções. Tirem daí a ideia. Eu temo o pior. Não excluo o perigo de um conflito armado global.
Chamaram-lhe semeador de horizontes. Com que defeitos, prazeres e tentações?
Tenho imensa alegria em semear horizontes e pôr as pessoas em marcha para o infinito do pensar. Prazer em ir para a praia apanhar sol, só ou acompanhado, em ouvir música, em viajar para conhecer mundo, num bom jantar com excelente vinho e um amigo ou amiga. Defeitos? Talvez alguma depreciação de colegas eclesiásticos, e há quem diga que sou vaidoso. Tentações, as normais.
Como é o seu dia a dia?
A quase totalidade do tempo é passada na preparação das aulas, publicações, conferências. Depois, tenho a sorte de viver ao pé do mar. São 15 quilómetros sobre a areia. Lá, estou comigo, com serenidade e com a força do mar. Ali medito e rezo, andando. Também ouço música.
Vive num seminário, não tem uma casa, partilha o que ganha com a sua comunidade.
Vivo em comunidade no instituto, o que também tem vantagens. Esta coisa de não ter uma casa própria dá um enorme desprendimento.
PERGUNTAS DE ALGIBEIRA
O livro da sua vida.
A Bíblia, claro. E Os Pensamentos, de Pascal.
Uma cena de um filme.
Aquelas cenas do filme de Bergman O Sétimo Selo: o cavaleiro e a morte jogando xadrez, e é ela que nos dá xeque-mate, e a confissão ao padre, que na realidade era a morte disfarçada.
Uma música.
Fidélio, de Beethoven, e Um Requiem Alemão..., de Brahms.
A última vez que chorou
Fui ensinado a controlar as emoções. A última vez que chorei desalmadamente foi na morte do meu pai e da minha mãe. Presidi ao funeral da minha mãe, mas não consegui ir até ao fim.
O que é que vê na televisão?
Não tenho tempo. A única coisa, quando posso, é o telejornal das dez, na RTP2. Acho aquilo sóbrio e gosto de um ou outro comentador.
Um lema.
Vive agora.
E contra a crise?
Crise unida a oportunidades.
Quantos minutos gasta diariamente a ler o jornal?
Bastantes. Tenho de estar informado. Sendo professor, tenho de estar atento às notícias e tenho de me informar sobre as grandes questões políticas, económicas e financeiras do mundo.
E o e-mail?
Infelizmente, tenho de usá-lo bastante, profissionalmente.
Um lugar para passar a reforma?
Onde estou, em Valadares. Gosto do sol, do mar. E ali à volta está grande parte dos meus amigos.
Entrevista de Alexandra Tavares Teles in revista Notícias Magazine de 18 de março de 2012 (fonte)
Disse, numa entrevista, que gostaria de escrever um livro com o título Diálogos Comigo. Com que frase abriria esse livro?
Sou muitos, a realidade é infinitamente complexa e, para entender, eu quero fazer um ajuste de contas comigo mesmo, com os outros e com Deus.
Que contas são essas que tem a ajustar com Deus?
Por que é que há tanto sofrimento e mal no mundo? Como se pensa o mundo sem Deus? Como se pensa o mundo com Deus?
Vê Deus antes de mais na pergunta. Quando começou essa necessidade da pergunta pelo fundamental?
Decidi-me a ser padre com 19 anos, porque fui sempre, não sei bem explicar porquê, muito afetado pelas grandes perguntas da vida, concretamente pelo sentido último da existência. Tendo encontrado Cristo, pensei que valia a pena dedicar a minha vida ao anúncio da sua mensagem, que dá sentido à vida e à morte.
Quando percebeu que seria um padre «problemático»?
A primeira imagem que tenho de mim é a de alguém que reivindicou autonomia. Tinha 3 anos e o meu pai mandou-me apanhar uma faca que caíra ao chão. De facto, não tinha sido eu a deitá-la ao chão. Ele fez tudo para que eu a apanhasse, abriu, inclusivamente, a minha mão, mas eu não a levantei. Recordo-me de em miúdo pensar que uma vida de pura obediência aos pais e a Deus seria uma vida oprimida e sem interesse. Por isso, quando procuro o fio condutor da minha vida de padre, julgo encontrá-lo no facto de lutar pela liberdade, contra a dogmática fixista, que pensava deter a verdade toda e definitiva. Eu precisava de conviver com a humanidade toda e pensamentos outros.
Como lidou então com o imperativo de obediência a Deus e a vida do seminário?
Fui para o seminário em 1954 e devo dizer que tenho uma boa recordação. Os formadores interessavam-se e queriam o nosso bem. Havia muita disciplina, sentido do trabalho, mas, ao mesmo tempo, muitos recreios. Aquilo fazia sentido, tinha bastante equilíbrio. O aspeto mais negativo está ligado com a afetividade, que ficava muito bloqueada. Em grande parte resolvi essa questão porque tive sorte, convivi com famílias sãs e muitos jovens, rapazes e raparigas, que ajudaram a quebrar o bloqueio. Mas ainda haverá marcas.
Nasceu em 1944, em Resende. O sacerdócio foi uma vocação de infância?
A minha mãe era muito religiosa e o meu pai era crente a sério, embora muito crítico em relação à religião oficial. Portanto, tiveram uma profunda alegria em ter dois filhos padres. Nunca pretenderam tirar benefícios materiais desse facto. Por isso é que nós estivemos, e estamos, num instituto missionário. O meu irmão mais velho sempre quis ser padre. E eu acabei por ir também, até porque ele estava lá. Mas fui padre convictamente.
Chegou a pensar que para conviver com a humanidade toda teria de renunciar a Deus e à Igreja?
Renunciar, não. Mas rever, desconstruir e reconstruir. A primeira crise foi aos 25 anos, ensinava no Instituto Superior de Estudos Teológicos do Porto, acabado de chegar de Roma. Mas ensinava sem grande convicção. Era pequeno e pouco o que me tinham ensinado, no sentido de que aquilo eram sobretudo doutrinas e fórmulas e não vinha de dentro. Que diabo, pensava eu, não é bem isto. E, certo dia, reuni com os meus colegas padres do seminário, para dizer-lhes: «Eu não acredito que a Igreja Católica tenha a verdade toda. Portanto, se vocês acham que estou a ser desonesto para com a Igreja, eu saio.» Não sei se perceberam bem o que eu lhes disse, mas a verdade é que me disseram para continuar.
Depois do seminário, seguiu para Roma, para a Universidade Gregoriana. Que relato faz desse tempo?
Aquilo que mais me impressionou não foi o esplendor do Vaticano, mas sim o esplendor cosmopolita. Íamos de Portugal, um país sem democracia, que estava em guerra colonial, não havia pluralismo. Quando cheguei a Roma, a televisão tinha debates, havia vida e foi isso que me seduziu. A liberdade de debate. Estávamos em 1967, o Concílio Vaticano II tinha acabado em 1965, e ainda havia os ecos em ebulição. Foram tempos de liberdade e de cosmopolitismo. Essa foi a grande experiência. Comprei um bilhete de estudante e viajei por toda a Europa. Andei a ver e a ganhar mundos, que era o que eu queria.
Nessa altura viveu também na Alemanha. Como lidou com outros credos e outras maneiras de ser cristão?
Saíamos daqui dogmáticos. Fora da Igreja, que sabia tudo, não havia salvação. Enquanto miúdos fomos permanentemente formados nisso. Diziam-nos que os protestantes eram gente com quem não podíamos contactar, que estavam condenados ao inferno. Muito jovem, na Alemanha, uma família protestante convidou-me para jantar. E o mesmo aconteceu com uma família muçulmana. E perante eles, pessoas admiráveis - pessoas, tão simples quanto isso -, pensei o que hoje pode parecer e é normal, mas que na altura era um enorme atrevimento: em primeiro lugar, somos todos homens, não podemos andar aqui a levantar barreiras. E daí ter surgido a minha primeira crise: era preciso repensar a Igreja e a própria figura de Jesus.
Regressa a Portugal em 1970. Leciona no Instituto Superior de Estudos Teológicos do Porto [ISET], promove conferências em que participam intelectuais como Óscar Lopes, e é considerado herético. Como é que recebeu a acusação?
Fui considerado herético pelo bispo de Portalegre e Castelo Branco de então, que foi acusar-me ao diretor do ISET. Mas o diretor esteve muito bem e desafiou-o a apresentar por escrito as minhas heresias.
E ele apresentou?
Tanto quanto sei, não.
Teve alguns escritos proibidos pela PIDE e realizou em 1972 um colóquio sobre o tema «Fé e contestação».
Foi uma clara provocação ao regime. Sim, alguns escritos estiveram proibidos e disseram-me, e é verdade, que o meu nome constava na PIDE. O colóquio, que realizei em 1972, foi de facto um arrojo, um atrevimento, que só foi possível graças a D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, um homem notável, que sempre me apoiou.
Em 1974, com 30 anos, trabalhava ativamente com jovens. Nesse ano, compôs um Credo, em que se cria mais em Deus do que na Igreja. Recorda-se do texto?
Até está publicado. Em síntese, diz que «cremos em Deus Pai, que por amor criou todas as coisas. E em Jesus Cristo, que foi totalmente livre, que amou a todos, amigos e inimigos, que triunfou da morte e que está vivo, mostrando assim que o sentido da existência é a vida e não a morte».
Em 1977 é vice-presidente do Instituto António Sérgio.
Para satisfazer o pedido insistente do presidente, um grande amigo, Fernando Ferreira da Costa. Mas foi uma passagem curta, pois o meu superior - veja a linguagem eclesiástica: superior - comunicou-me que aquele cargo era incompatível com a minha condição de membro da Sociedade Missionária.
É nessa altura que começa a frequentar o Botequim da Natália Correia.
Sim. Conheci então vários políticos, nacionais e no estrangeiro, e figuras da cultura, e perdi alguma inocência política. Não quero nem posso generalizar, mas há nos políticos algum distanciamento do povo, alguma incompetência. É dessa altura o meu encontro com a Natália Correia, que simpatizava comigo. Era uma mulher da cultura e profundamente preocupada espiritualmente. Quando morreu, pediram-me para ir dizer umas palavras no funeral.
Fez teatro no seminário. Que livros, que música, que pintura, aprecia e o comovem?
Sempre pensei que a primeira revolução é a da cultura. A Natália também tinha essa ideia. Fiz teatro, no seminário. Fiz um curso de visualização de cinema, em Roma. Livros, li tudo o que pude (antes do 25 de Abril, amigos meus traziam-me livros proibidos do estrangeiro): literatura, filosofia, teologia. Aprecio sobretudo a grande música clássica, que pode comover-me até às lágrimas - a música é o divino no mundo. Tive a oportunidade de viajar e não perdi os grandes museus - falo aos estudantes de grandes quadros, por exemplo, As Botas, de Van Gogh, em Amesterdão.
Depois da licenciatura em Teologia, fez sociologia em Paris, e Filosofia, em 1985, em Coimbra. Estava a preparar-se para a luta consigo próprio que se aproximava?
Certamente. Estudei sobretudo por causa de mim, para entender-me e entender o mundo. Isto é, precisava de estar no mundo de uma forma ordenada e honesta. Estudei Teologia. Depois, fui ver como funcionavam as instituições, sobretudo as religiosas, daí ter seguido Ciências Sociais. E, mais tarde, fui para a Filosofia, para meter mais a razão ao barulho.
Lembra-se de alguma experiência marcante nesta luta?
Várias. Mas sobretudo a que me levou a acabar com o medo do inferno. Em 1989, tinha eu 45 anos, comprei em Friburgo, Alemanha, a última obra do teólogo Edward Schillebeeckx, Homens. A História de Deus. Na viagem de comboio para Genebra, li-a e lá estava a confirmação da minha intuição: «não há inferno». Isto foi uma libertação: se houvesse possibilidade de alguém dizer definitivamente não a Deus, então, na morte, ficava no nada. Ora, o nada é melhor do que o sofrimento eterno. Somos limitados, a nossa liberdade é pequena e muito condicionada - então, como é que uma liberdade condicionada pode determinar uma vida eterna falida? Não há condenados. Foi uma experiência absolutamente marcante.
Mas há céu?
Espero convictamente que, na morte, não cairemos no nada, mas na plenitude da vida de Deus. Assim, a nossa vida neste mundo é a sério e tem consequências no além, pois Deus não pode levar à plenitude possibilidades que não realizámos aqui. Como é? Ninguém sabe.
Quando se deu finalmente a rutura com a ortodoxia?
Mas eu sou ortodoxo, no sentido de seguir a reta doutrina; procuro é interpretá-la para o tempo atual. De qualquer forma, em 1994, já melhor apetrechado, com mais mundo, já depois de aprofundar mais a história do pensamento e contactar de perto com grandes teólogos e filósofos, disse para mim mesmo: «Vou pôr entre parêntesis tudo aquilo que me ensinaram. Vou repensar tudo isto. Veremos o que vai resistir e o que não vai resistir.» Não foi por arrogância, eu é que precisava de fazer um ajuste de contas comigo. Tinha de formar um puzzle - eu, Deus, os outros, as ciências. E o puzzle começou a compor-se. E consegui articular a minha fé com os diferentes saberes e os diferentes posicionamentos dos homens e das mulheres, ao longo dos tempos. Agora estou de bem.
Foi um processo doloroso?
Muito, muito. Foi complicado. Tive de desconstruir aquilo que me tinham dado e que me tinham ensinado, foi profundamente doloroso para mim.
Ao longo desse tempo, nunca duvidou da fé?
A minha fé convive com a dúvida. É fé, embora com razões. Mas compreendo bem os agnósticos e os ateus. A fé não tem que ver, em primeiro lugar, com dogmas. Nós não acreditamos em dogmas. Isso são coisas, é o divino «coisificado». Nós acreditamos em Deus e em Cristo.
Há quem o considere um teólogo, sim, mas não da doutrina católica.
Eu considero-me católico, até etimologicamente falando, pois católico quer dizer universal. E, na Igreja Católica, deve haver liberdade de pensamento e haverá inevitavelmente conflitos de interpretações. Portanto, exerço esse meu direito e, diria também, esse meu dever. Talvez me tenha desligado da «ortodoxia» no sentido vulgar da palavra, mas, como procuro ser leal, julgo que estou de acordo com o essencial.
O que é o essencial?
O essencial é pouco e é tudo: acreditar em Deus enquanto mistério último da realidade, que é amor e nos é favorável, e acreditar em Jesus, o Cristo. E acreditar também nos homens e nas mulheres.
Há uns anos, no final de uma conferência, uma senhora comentava: «Estava tudo a correr tão bem até chegar o padre ateu.» Esta incomodidade que suscita em alguns crentes é um elogio?
Poderia ser um elogio, no sentido em que o crente verdadeiro tem de começar por ser ateu, tem de derrubar todos os ídolos. Só depois é que pode, verdadeiramente, acreditar no Deus verdadeiro.
Acredita em Fátima?
Pode ser-se católico e não acreditar em Fátima. Mas não excluo que os pastorinhos tenham tido uma experiência religiosa própria de crianças.
Que relação mantém com a hierarquia que tanto critica?
Uma relação leal de diálogo, uma relação agradável com muitos bispos, inclusivamente, fui colega de alguns na universidade. Do cardeal-patriarca, por exemplo, na Universidade Gregoriana, um excelente colega, bem-disposto.
Recebe reparos? Por exemplo, quando argumentou que em certos casos o uso do preservativo pode ser moralmente obrigatório?
É possível que, uma ou outra vez, alguns bispos sintam alguma incomodidade com o que eu digo e escrevo, mas eu também a sinto em relação àquilo que alguns deles dizem e fazem.
Tem um amigo, um interlocutor especial na Igreja portuguesa?
Não. Mas houve pessoas, três grandes amigos, professores com os quais fui dialogando. E a minha irmã, que sempre me vai dizendo: «Alguns podem não gostar, mas não tenhas medo, tu tens razão.» Por paradoxal que pareça, tenho uma imensa dívida de gratidão para com um filósofo ateu, que conheci pessoalmente, Ernst Bloch.
E como é que o seu irmão, também padre, olha para o seu percurso?
Como irmão.
Denuncia falta de liberdade de expressão na Igreja. Algum dia sentiu esse medo de falar ou escrever?
A estrutura do medo pode ser interiorizada. E também há os medos espirituais, que são os piores. Os fiéis têm medo do padre, o padre tem medo do bispo, os bispos têm medo do papa e o papa tem medo de Deus. Isto não faz sentido. O medo tolhe e leva à agressão. Arranjaram um Deus que mete medo. Ora, se Deus mete medo, é melhor ser ateu. Uma vez fiz um exercício: «Este Deus não existe; se existisse, matava-me.» Não me matou; portanto, fiquei livre. Deus não pode ser terrífico. O filho de Abraão, Isaac, tornou-se ateu, seguramente, pois Deus «mandou» que o pai o sacrificasse. Nós pregamos barbaridades. Há aqueles que se espantam por haver tão pouca gente na missa, eu espanto-me por ainda haver muitos que vão à missa. Houve milhões de pessoas para as quais teria sido preferível nunca terem ouvido a palavra «Deus». Ficaram com a vida estragada. Por isso é que admiro aqueles ateus que ousaram levantar perguntas, quando pensar diferente levava à fogueira do inferno e da Inquisição. São santos da humanidade.
Pregar «Deus é Amor» pode levar os crentes a concluir: «Então faço o que quero», dizem os conservadores da Igreja.
Nada disso. Dizer isso é uma estupidez, pois significa desconhecer o que é o amor. O amor é tremendamente exigente, entre homens e mulheres, entre amigos, com Deus. O amor implica dignidade e capacidade de entrega e sacrifício pelo outro.
De 1983 a 1986 viveu em Moçambique como professor no Seminário Maior. O que ganhou dessa experiência?
Era considerado o pior país do mundo para viver. Era uma guerra civil terrível. Ali, aprendi muita coisa. Aquilo era um horror - um regime comunista tirânico. Havia a fome e ao mesmo tempo gente generosa. E alegre, apesar de melancólica. Foi uma lição.
Agora que tem o mundo ordenado, qual é a grande questão que coloca a Deus?
A grande pergunta com que sou confrontado também pelos crentes: o sofrimento das crianças inocentes - é uma tragédia pessoal, o meu coração fica partido. E também «porque é que há tanta estupidez no mundo?» Sabe, eu tenho alguma confiança na razão, na inteligência. Acho que Deus poderia ter feito isto um bocadinho melhor. Que Ele me perdoe.
Que resposta recebe?
Deus não podia criar um mundo infinito, portanto, sem limitações, porque isso é contraditório. Assim, num mundo finito, o mal é inevitável. Depois, no meio do sofrimento, temos de encarar a vida e cada um dá a sua resposta. A resposta do crente é que isto é um processo, esperamos confiada e ativamente que, para lá do espaço e do tempo, se realize o cumprimento da esperança.
Como é que explicaria o perdão católico às mães dos jovens que foram assassinados na Dinamarca por Anders Breivik?
Até o filósofo Derrida, nos últimos tempos de vida, colocou essa questão. «É a partir do perdão que pode surgir a questão da religião», dizia ele. O carrasco não tem o direito ao perdão. E a vítima não é obrigada a perdoar. Portanto, o perdão transcende a justiça.
É nesse sentido que diz que o perdão é um milagre?
Exatamente, porque não é da ordem do cálculo. Sou muito sensível à dívida para com as vítimas inocentes da história. Quem paga essa dívida? Este é um ponto fundamental para colocar a questão de Deus.
Como é que lida com a morte?
Não me reconcilio com a morte, mas tento. Veja: a morte confronta-nos com o nada. Por isso é que não temos medo dela, mas sim angústia. O medo refere-se a algo concreto; a angústia, ao nada. Então, tudo desaba. Tento reconciliar-me com a finitude e procuro viver aqui e agora, de forma intensa. Só uma vida amada e amante é que pode esperar a vida eterna.
Deus é indefinível, diz. Mas qual é a palavra mais aproximada?
Acho que há três palavras: Criação, Amor, Beleza.
Comemoram-se este ano cinco décadas do Concílio Vaticano II. Que é feito da abertura que ele trouxe?
João Paulo II fez um imenso apelo à compreensão dos homens, entrou numa sinagoga, numa mesquita. Hoje são gestos evidentes, mas na altura não eram e foram muito dignificantes. Também numa encíclica, defende os trabalhadores e diz que o trabalho tem precedência sobre o capital. Isso é notável. Julgo, também, que foi o primeiro papa a falar de ecologia. Mas ao mesmo tempo que pediu perdão pelos crimes da Igreja, foi um papa que condenou muitos teólogos. Um tempo em que os lugares importantes foram sendo ocupados por bispos conservadores, para que travassem o Concílio Vaticano II. Com o papa João Paulo II e com o atual papa houve muito recuo. A Igreja Católica vive uma crise imensa e o problema maior é a Cúria Romana.
Há quem atire a culpa da crise da Igreja precisamente para o Concílio. Como estaria a instituição se ele não tivesse existido?
Sem o Vaticano II a Igreja seria uma seita.
Em 2000 defendia a realização de um concílio. E hoje?
Hoje temeria isso, porque, entretanto, Roma foi tapando perspetivas que vinham do Concílio Vaticano II. Temeria que, hoje, em vez de abrir, um concílio fechasse ainda mais.
A Igreja portuguesa acompanhou essa regressão?
A Igreja portuguesa vive de modo bastante morno.
Está pessimista quanto à sucessão, portanto.
O último conclave nomeou, sobretudo, cardeais europeus e italianos. Isto é contra a universalidade do cristianismo. Há ali uma série de estratégias para condicionar a eleição do próximo papa.
A perestroika na Igreja não significaria o colapso?
O ser humano é o resultado de uma herança genética e de uma cultura. Portanto, nós vamo-nos fazendo. Quanto mais me abro ao outro, mais venho a mim. A identidade é atravessada pela alteridade. É nesta dinâmica, até antropológica, que deve entender-se o diálogo ecuménico e inter-religioso. As outras religiões também têm verdade. Eu, como cristão, não pretendo tornar o budista cristão. Nós estamos reunidos por este mistério último a que chamamos Deus. E a Igreja existe para o serviço da humanidade e não para si mesma.
Como pode ser a Igreja democrática, se assenta numa verdade divina?
Nós apontamos para uma realidade que é o mistério último enquanto amor, ao qual chamamos Deus, mas ninguém possui Deus. Temos uma perspetiva sobre a verdade, mas ninguém a possui. Gostaria de um concílio para que a Igreja tomasse consciência da pluralidade de vivência e interpretação do mesmo Evangelho. Mais: na presente situação do mundo, deveria fomentar-se uma grande assembleia de todas as grandes religiões do mundo para debaterem as grandes questões de humanidade num mundo globalizado: o papel das religiões, a globalização, questões fundamentais de bioética, de ecologia, de justiça mundial.
Que reforma da Cúria Romana propõe?
Menos gente, menos burocracia, mais internacional, mais competência, mais transparência, mais mulheres. Não há fundamento teológico algum para não ordenar mulheres. É uma questão sociológica. As mulheres podem estar de mal com a Igreja porque são discriminadas, mas Jesus não as discriminou.
Acabava com a infalibilidade papal?
Perguntem a Joseph Ratzinger se ele acredita que Bento XVI é infalível. Só Deus é infalível. Em 1983, tive oportunidade de falar com João Paulo II nos aposentos privados. Apertei-lhe respeitosamente a mão e disse no meu íntimo: é apenas um homem.
A propósito, até nesse dia recusou usar cabeção. Porquê essa inflexibilidade?
Nunca gostei do cabeção nem de fardas. No dia seguinte à minha ordenação, recebi uma advertência do cardeal Cerejeira porque andava em Fátima em mangas de camisa. Mas, se estava calor, como havia eu de andar? Isto hoje parece ridículo, mas, na altura, em 1967, era uma ousadia, uma falha tremenda.
Que papel deve ter o papa?
Alguns protestantes e ortodoxos estariam dispostos a aceitar um papa, mas não um papa com poder absoluto. Tinha de ser tão-só um sinal pastoral de unidade da Igreja. A vida de mais de mil milhões de seres humanos católicos entregues a um homem só não faz sentido.
Que poder tem, atualmente, a Igreja?
É uma boa pergunta. Algum deve ter, caso contrário, não faria sentido tanta contestação a certas posições da Igreja, como por exemplo a da moral sexual. Um poder que é hoje menor, porque as pessoas reivindicam muito mais a autonomia. Mesmo em Portugal.
Há quem defenda que a tendência vai no sentido de uma Igreja de minoria.
Na Europa, é um facto sociológico. Tive uma grande professor de Teologia, Karl Rahner, que já na altura falava da diáspora, pequenos grupos espalhados pela sociedade que se reconhecem como cristãos. Estamos a entrar numa Igreja de voluntários.
Como deve a Igreja lidar com os temas chamados «fraturantes»?
Cada vez mais, temos de debater estas questões enquanto seres humanos e não enquanto crentes. As questões de e da humanidade devem ser debatidas por todos. E a Igreja também tem direito de apresentar o seu ponto de vista. O que tem é de fazê-lo argumentativamente.
Há uma ética natural?
A ética é, antes de mais, uma questão humana e não uma questão religiosa. Vimos ao mundo por fazer e devemos fazer-nos e fazer-nos bem. Em questões complexas, devemos debater todos.
Confrontado com uma situação terminal, aceitava pôr fim à vida de quem lho pedisse?
Pessoalmente, não o faria. Mas compreenderia quem o fizesse, a pedido de alguém que estivesse nessa situação-limite.
Colocava então de lado a possibilidade de um milagre?
Só acredito nos milagres do amor.
Os avanços da ciência afastam-no ou aproximam-no de Deus?
Nem afastam nem aproximam. A ciência é ciência e Deus é Deus e a fé é fé. E uns acreditam e outros não, com razões.
O que é hoje o pecado?
O que sempre foi: estragar a vida própria ou a dos outros.
Propõe a revisão do dogma da Imaculada Conceição de Maria. Não é uma heresia?
O que é preciso rever é a doutrina do pecado original, que não faz sentido. Como é que, aceitando a evolução, era possível o pecado dos primeiros pais, Adão e Eva, ter desgraçado a vida da humanidade inteira e da própria natureza? Santo Agostinho interpretou o pecado de Adão e de Eva como o primeiro pecado e um pecado herdado. Isto é, em Adão, todos pecaram. Ora, isto não cabe na cabeça de ninguém. Santo Agostinho não hesitou em deixar cair no inferno as crianças que morriam sem batismo. E ficámos com um Deus que precisou da morte do filho, Jesus, para se reconciliar com a humanidade. Isto envenenou completamente o cristianismo. O pecado original não está no Evangelho e o dogma da Imaculada Conceição é contra as mulheres, porque conceberiam e andariam com o pecado dentro delas durante nove meses. Eu limito-me a pregar Cristo que é libertador.
Mais uma vez: se a Igreja for ao encontro dessa liberdade, não perde o poder que ainda tem?
A Igreja não existe por causa do poder, mas por causa da libertação dos seres humanos em todos os domínios: libertação do pecado, do ódio, da injustiça, da morte.
Está contra o celibato enquanto lei. Gostaria de ter sido marido e pai?
A Igreja não pode impor por lei aquilo que Jesus entregou à liberdade. Sempre gostei de mulheres. Se não casei, não foi por falta de oportunidades. Mas, na presente situação da Igreja, se quisesse ser padre, tinha de aceitar o celibato, e foi o que fiz. Na sequência daquilo que quis fazer na vida, não teria possibilidade de fazer uma mulher feliz. Precisava de grande liberdade para me dedicar a estas tarefas, em várias partes. Procuro empenhar-me profundamente com as pessoas, com os estudantes. Mas nós, padres, não tendo mulher nem filhos, alguém que dependa profundamente de nós, corremos o risco de imenso egoísmo.
Afirma que a Igreja tem recuperado a religião oficial do sacrifício. Se Cristo voltasse, homem, seria de novo condenado?
Creio que sim. Não quero condenar ninguém, porque também estou na fila, mas isso leva-me a interrogar-me: o que é que em mim é cristão? Jesus veio como libertador. Jesus colocou o ser humano no centro. O ser humano é mais importante do que os próprios preceitos de Deus.
«Amar o próximo como a si mesmo» está acima de «Adorar a Deus sobre todas as coisas»?
Diria que sim. São Mateus não pergunta se fomos à missa, mas sim se demos de comer ao outro. É o que lá está. O cristianismo, através de Jesus, trouxe ao mundo a «pessoa humana» e a sua dignidade. O que depois os cristãos fizeram disso é outra coisa.
A caridade permite que cada pessoa possa realizar dignamente a sua humanidade?
Não. O que se chama caridade tem de ser caridade política. A Igreja hierárquica tem de ser muito viva e contundente na declaração dos direitos, nomeadamente os direitos sociais. Portugal diz-se um país de maioria católica, mas que não é cristão. A caridade nasce da urgência, mas nunca devemos esquecer que não se pode dar por caridade aquilo que é devido por justiça. Há pessoas que pensam que nunca mais existirão revoluções. Tirem daí a ideia. Eu temo o pior. Não excluo o perigo de um conflito armado global.
Chamaram-lhe semeador de horizontes. Com que defeitos, prazeres e tentações?
Tenho imensa alegria em semear horizontes e pôr as pessoas em marcha para o infinito do pensar. Prazer em ir para a praia apanhar sol, só ou acompanhado, em ouvir música, em viajar para conhecer mundo, num bom jantar com excelente vinho e um amigo ou amiga. Defeitos? Talvez alguma depreciação de colegas eclesiásticos, e há quem diga que sou vaidoso. Tentações, as normais.
Como é o seu dia a dia?
A quase totalidade do tempo é passada na preparação das aulas, publicações, conferências. Depois, tenho a sorte de viver ao pé do mar. São 15 quilómetros sobre a areia. Lá, estou comigo, com serenidade e com a força do mar. Ali medito e rezo, andando. Também ouço música.
Vive num seminário, não tem uma casa, partilha o que ganha com a sua comunidade.
Vivo em comunidade no instituto, o que também tem vantagens. Esta coisa de não ter uma casa própria dá um enorme desprendimento.
PERGUNTAS DE ALGIBEIRA
O livro da sua vida.
A Bíblia, claro. E Os Pensamentos, de Pascal.
Uma cena de um filme.
Aquelas cenas do filme de Bergman O Sétimo Selo: o cavaleiro e a morte jogando xadrez, e é ela que nos dá xeque-mate, e a confissão ao padre, que na realidade era a morte disfarçada.
Uma música.
Fidélio, de Beethoven, e Um Requiem Alemão..., de Brahms.
A última vez que chorou
Fui ensinado a controlar as emoções. A última vez que chorei desalmadamente foi na morte do meu pai e da minha mãe. Presidi ao funeral da minha mãe, mas não consegui ir até ao fim.
O que é que vê na televisão?
Não tenho tempo. A única coisa, quando posso, é o telejornal das dez, na RTP2. Acho aquilo sóbrio e gosto de um ou outro comentador.
Um lema.
Vive agora.
E contra a crise?
Crise unida a oportunidades.
Quantos minutos gasta diariamente a ler o jornal?
Bastantes. Tenho de estar informado. Sendo professor, tenho de estar atento às notícias e tenho de me informar sobre as grandes questões políticas, económicas e financeiras do mundo.
E o e-mail?
Infelizmente, tenho de usá-lo bastante, profissionalmente.
Um lugar para passar a reforma?
Onde estou, em Valadares. Gosto do sol, do mar. E ali à volta está grande parte dos meus amigos.
Entrevista de Alexandra Tavares Teles in revista Notícias Magazine de 18 de março de 2012 (fonte)
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