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Alain de Botton (2011)

Filosofia: Você é extremamente sensível em como a Arquitetura influencia a vida das pessoas. O que achou de São Paulo com exemplo de catástrofe urbana?

Alain de Botton: Confesso que, apesar de ter adorado minha estada na cidade e muitas das pessoas que conheci lá, São Paulo é lamentável como amostra de planejamento urbano. O problema é tanto o layout das ruas quanto as formas, cor e distribuição dos edifícios. Tudo isso é, em última instância, um problema político: o Brasil tem alguns dos melhores urbanistas e arquitetos do mundo. Eles precisam simplesmente que lhes deem liberdade e poder para fazer seu trabalho.

Filosofia: Pelas suas entrevistas aqui no Brasil, você parece ter gostado mais do Rio e de Porto Alegre. O que estas cidades têm que falta a São Paulo?

Alain de Botton: O Rio é mais imediatamente sedutor: a presença do mar e das montanhas cria um pano de fundo extraordinariamente dramático. Mas levaria muito tempo para que eu realmente entendesse ambas as cidades e apreciasse suas qualidades. O problema com turistas são as opiniões instantâneas, às quais um escritor tem de resistir.

Filosofia: Parece que seu programa de TV sobre Arquitetura está, de alguma forma, levando uma mensagem elitista. Você defende com todas as forças um tipo de estética que tem a ver com modernidade e mostra exemplos de uma "boa Arquitetura" exemplificada, em sua maioria, com casas ricas, enquanto os "maus exemplos" são as casas pastiche de classe média. Como personalizar a casa de 7 bilhões de pessoas nesse sentido moderno? Você não concorda que a Arquitetura tem também o propósito velado de distinção entre os gostos de acordo com a posição social?

Alain de Botton: A boa Arquitetura é extremamente elitista. Mas não é um elitismo de dinheiro, classe ou educação. É um elitismo de bom design. Alguns dos edifícios mais bonitos do mundo custaram muito pouco para serem construídos. Alguns dos edifícios mais revoltantes são profundamente caros. O que, em última instância, produz a boa Arquitetura é o bom pensamento.
O problema com o mundo moderno é que concreto, aço e elevadores baratos significaram que construtoras podem pôr em pé muito rapidamente um edifício que irá arruinar um pedaço da natureza por 300 anos. Precisamos desesperadamente de uma população letrada em Arquitetura e políticos que falem palavras simples, mas importantes, como feiura e beleza. Muito do que faz a vida moderna desesperadora é a feiura - e precisamos que este problema seja reconhecido e corrigido.

Filosofia: Você tenta modernizar as questões da Filosofia Clássica, como felicidade ou amor, dando-lhes uma abordagem mais próxima da vida atual. No entanto, você parece raramente tocar em questões que são uma vanguarda tecnológica e que estão comandando e mudando nossas vidas, como a Robótica, Biotecnologia ou Cyberespaço. Você tem planos de entrar nesses temas?

Alain de Botton: Eu discuto muito sobre o futuro. Sou muito interessado em para onde vamos como espécie. Eu somente não foco na Robótica como a rota da mudança. Como pensador humanista, estou menos interessado em como a tecnologia pode nos mudar e mais interessado nos valores e orientações sociais. No fim das contas, eu acredito sinceramente que nossas máquinas refletem nossas prioridades; não que elas criem as prioridades. Logo, a tarefa é examinar os valores antes de examinar a Robótica.

Filosofia: Alguns de seus críticos dizem que você cria manuais práticos a partir do pensamento dos filósofos e que, fazendo isso, incorre em dois problemas principais: 1. Seu enquadramento dos pensamentos desses filósofos encontra uma sabedoria prática do dia a dia onde não há; 2. Existe uma descontextualização e deformação dos trabalhos daqueles pensadores. Além disso, sua crítica mais comum é a de que você diz o óbvio de uma forma pomposa. Como você costuma responder a estas afirmações?

Alain de Botton: A tarefa de se entender um pensador "em seu contexto" é uma das que são feitas de forma bela pelas universidades modernas. Há milhares de acadêmicos por todo o mundo não fazendo nada além disso. Há muito menos, portanto, pessoas que se atrevem a perguntar "como esta ideia pode nos ajudar hoje?". Este é meu projeto, e penso ser válido (mesmo que eu não o faça tão bem). Penso também que é completamente legítimo deformar pensadores com o objetivo de extrair algo interessante deles.
Então, por exemplo, se eu ignoro dez páginas de Ruskin (John Ruskin, 1819 -1900) para focar em uma que considero fascinante, isto é de certa forma uma "deformação". A real questão a ser perguntada é: para começar, qual é o motivo de se ler Ruskin? De novo, meu ponto de partida é que precisamos ler essas pessoas pelo que elas podem nos dizer hoje, não pelo que eles podem ter dito à sua plateia há 100 anos.

Filosofia: Enquanto você estava em São Paulo, você publicou em seu twitter "Enfrentando uma grande plateia, um profundo desejo de abraçar os inventores de Propanol. Qual sua opinião sobre a crescente medicalização de nosso cotidiano? Chegamos a um ponto onde devemos aceitar que é impossível ser bem-sucedido sem ajuda química? Deveríamos aceitar que a Filosofia não é suficiente no mundo em que vivemos?

Alain de Botton: O ser humano sempre se apoiou sobre ajuda "química". Pense no vinho, no café, na água... Mas também, no sono, nos rituais como orações e nos momentos vazios em monastérios. Não há nada errado em tentar controlar o humor de alguém de qualquer forma que for possível. O que importa é o quão valiosa é a sensação que se tenta criar. O problema das drogas é, portanto, não que elas sejam "drogas", mas que as sensações que criam são, em geral, tão horríveis, irreais, sentimentais, violentas ou excessivamente sexuais. Se amanhã fossem inventadas drogas que nos fizessem parecidos a Proust ou Sócrates, eu não seria contra.

Filosofia: Nietzsche costumava dizer que uma pessoa só pode se chamar de filósofo se tiver desenvolvido todo um sistema de pensamento, como ele mesmo havia feito. Dentro desta condição, você se consideraria um filósofo, um professor de Filosofia ou um transmissor?

Alain de Botton: Eu desenvolvi um sistema de pensamento que abrange desde objetos de Arquitetura, amor, Religião até viagens e economia - portanto, pela descrição de Nietzsche, eu posso me considerar um filósofo.

Filosofia: Como a Escola da Vida funciona? O que é inovador nela?

Alain de Botton: Um dos paradoxos da sociedade de consumo moderna é que enquanto se pode encontrar milhares de negócios estilosos que lhe venderão o café ou a blusa perfeita, infelizmente poucas empresas estão interessadas em oferecer algo que poderia beneficiar sua mente. Um londrino ávido por receber algumas ideias de uma forma atrativa e viva sofre de uma séria escassez de opiniões para trabalhar.
A maior parte da Educação disponível para o público geral acontece em instituições deprimentes, com chão de pedra, sob a proteção de pessoas que nos lembram do porquê de a academia ser também um sinônimo para "distante" e "entediante", e porque nós fomos, provavelmente, um dia, bastante agradecidos por desistir da escola ou da faculdade.
É por isso que eu e alguns amigos nos reunimos para começar um estabelecimento educacional diferenciado há dois anos. Para começar, a Escola da Vida tem uma crença apaixonada em tornar relevante o aprendizado - e assim ministra cursos sobre questões importantes da vida cotidiana. Ao passo que a maioria das universidades enquadra o aprendizado em categorias abstratas ("História agrária", "Novela inglesa do século XVIII"). A Escola da Vida intitula seus cursos de acordo com as coisas que todos nós temos tendência a nos importar: carreiras, relações, políticas, viagens, famílias.
É provável que uma noite ou um final de semana seja usado em um desses cursos na reflexão sobre problemas tais como sua responsabilidade moral para com um ex-parceiro ou como resolver uma crise de carreira. Como a diretora da Escola, Sophie Howarth diz: "Nós o ensinaremos todas as coisas importantes e sensatas que um curso universitário pode oferecer, mas reunimos de forma diferente para que nunca pareça que estão te passando um sermão rígido ou chato. Mostramos a você como Aristóteles ou Platão podem fazer a diferença na sua vida. Claro, estamos adoçando a pílula do conhecimento, mas não é muito melhor do que adoçar a falta de senso?"
É inegável que a Escola da Vida está interessada em adoçar - ou antes, em parecer bem. De suas brochuras estilizadas ao interior lúdico de sua sede em Bloomsbury, você sabe que estar nas mãos de pessoas que pensam que alimentar a mente não deveria ser incompatível com o deleite visual. Mais importante, talvez, o lugar consegue manter o senso de humor sobre si mesmo e sobre todo o negócio da aprendizagem.
A Escola oferece um serviço chamado biblioterapia, baseado na ideia de que a razão real de as pessoas não lerem muito hoje em dia é que há, de longe, muitos livros na praça. Perplexas e confusas com as escolhas, e mentalmente desgastadas pelo mais novo e bombástico vencedor premiado, será mais fácil escolher a TV. Para mudar tudo isso, os biblioterapeutas da Escola da Vida oferecem encontrar-se com você em uma conversa profunda sobre seu caráter e aspirações e então chegar num plano de leitura para o futuro, que termina nos livros que poderiam realmente resgatar seus interesses subjacentes e enriquecer seu modo de olhar para o mundo.
Então, novamente tudo vem com o coração leve. A Escola tem uma divisão oferecendo psicoterapia para indivíduos, casais ou famílias - e o faz de uma forma completamente livre de estigmas. Para os ingleses, geralmente reservados, deve ser uma prioridade ter uma instituição que oferece terapia em uma rua comum e mais, trata a ideia de fazer terapia como não mais ou menos estranha do que cortar o cabelo ou ir a pedicure, e talvez seja um tanto mais útil.
Em uma cultura onde qualquer um que tenta ter uma conversa séria foi alguma vez acusado de pertencer às "chattering classes" (termo inglês usado para se referir à classe média urbana que engendra conversas com certo ar de esnobismo) e onde tudo o que é muito intelectual corre o perigo de ser chamado de pretensioso, deve-se aplaudir um lugar que tenta pôr o aprendizado e as ideias de volta para onde elas deveriam sempre ter ficado - bem no meio de nossas vidas.

Filosofia: Você tem um histórico familiar interessante vindo de uma família judia sefardita, como Edgar Morin, que veio de Alexandria, e como Eric Hobsbawn. Sua família está envolvida com coleções artísticas, bancos e Arquitetura, temas que você parece privilegiar. Seus filhos têm os nomes Saul e Samuel. Mais especificamente, como sua história familiar influenciou o seu trabalho?

Alain de Botton: Existem algumas coisas interessantes no meu histórico familiar: em primeiro lugar, desde muito novo aprendi a falar para uma audiência internacional. Eu falava três línguas fluentemente quando tinha oito anos e circulava entre Suíça e Reino Unido. Eu compreendi as classes e as diferenças sociais cedo. Acredito que isso ajudou meu trabalho cruzar fronteiras.
Minha própria identidade está toda baseada em recusar categorizações e fronteiras; sejam elas de um país ou uma instituição como uma universidade. Além disso, meu passado me deu um amor à Literatura - uma crença de que não há nada mais importante do que bons livros. Não me lembro de uma única parede da minha infância que não tinha livros por todo lado. Isso impressiona uma criança. Ao mesmo tempo, meus pais eram pessoas muito práticas, envolvidos nos negócios do mundo. Então, isso me deu o sentimento de que eu não era simplesmente um intelectual numa torre. Era importante também me misturar, mesclar-me, ser ativo - e tentar mudar as coisas além de meramente livros.

Filosofia: Considerando seu passado em uma família de banqueiros, como você vê a crise econômica que o mundo está vivendo? Como alguém deveria olhar para as incríveis discrepâncias entre ricos e pobres?

Alain de Botton: Eu tenho que te corrigir, já que a única pessoa que já foi banqueiro era meu pai - minha família tem sido tradicionalmente mercadores de algodão e rabinos: uma coisa bastante diferente! Minha sensação obliterante sobre a Economia é uma consciência de que nós simplesmente ainda não entendemos o dinheiro; a Economia está no nível em que a Neurocirurgia estava na Idade Média. Com exceção de que a construímos. Criamos um sistema que não podemos compreender. As respostas tradicionais da esquerda foram desacreditadas - mas elas continuam a ter um apelo emocional para nós: todos, a grande maioria, que estão interessados em justiça e um padrão de vida equitativo a todos.

Filosofia: Em sua série de TV, A Guide to Happiness, você diz: "da próxima vez que você vir uma pessoa dirigindo uma Ferrari, não olhe para ela com desprezo, mas a veja como uma pessoa extremamente frágil". Esta não é uma visão extremamente conservadora, considerando que a concentração de renda é um dos maiores problemas que temos no mundo?

Alain de Botton: É difícil de explicar da forma que você põe - de fato, me faz soar louco. O que eu estava simplesmente tentando indicar, como parte de uma discussão de 300 páginas em um livro, é que o que chamamos de materialismo não é simplesmente baseado em ganância, é também baseado em um desejo, um desejo de alimentação, nutrição emocional. O que dirige o mundo não é um amor ao dinheiro puro e simples. Muito disso é uma busca por status e honra; de fato, esta deve ser a parte dominante de nossas ambições.
Eu descrevi este fenômeno como "ansiedade por status", um termo inventado. A ansiedade por status é uma preocupação sobre sua posição no mundo, se vamos para cima ou para baixo, se vamos ser vencedores ou perdedores. Nos preocupamos sobre nosso status por uma simples razão: a maioria das pessoas tende a ser legal conosco de acordo com a quantidade de status que temos - se ouvem que fomos promovidos, haverá um pouco mais de energia nos sorrisos deles, se somos demitidos, eles fingirão que não nos viram. Por fim, nos preocupamos em não termos nenhum status porque não somos bons em nos mantermos confiantes sobre nós mesmos, se as outras pessoas não parecem gostar de nós ou não nos respeitar muito.


Entrevista de Bruno Tripode Bartaquini para a revista Filosofia em novembro de 2011 (fonte)
Imagem de Russell Shakespeare (fonte)

Kwame Anthony Appiah (2012)

Folha de S. Paulo - Existe uma bibliografia enorme sobre revoluções políticas, socioeconômicas ou científicas, mas quase não se fala em revoluções morais. Por que é possível chamar estas mudanças sobre as quais o sr. escreve de revoluções?

Kwame Appiah - Revoluções são grandes mudanças em curtos períodos. Trato de mudanças que costumam acontecer em até 20 anos. Elas não seriam chamadas de revoluções pelas escalas adotadas para a política. Mas o são em termos da vida moral. O hábito milenar de amarrar os pés das mulheres na China, por exemplo, sumiu ao longo de uma geração. O mesmo aconteceu com os duelos. Em 20 anos, passaram de uma prática que o primeiro-ministro poderia adotar para ganhar honra a algo ridículo. No Brasil, a escravidão foi considerada normal por centenas de anos, num curto período ficou "menos normal" e, em seguida, algo abjeto, a ponto de netos não entenderem como seus avôs foram capazes de escravizar.

O sr. já vivenciou alguma revolução moral?

Quando fui morar nos EUA, em 1981, se você dissesse no aeroporto que era homossexual seria imediatamente mandado de volta ao seu país. Hoje, se eu disser no aeroporto de Nova York que sou gay, vão me perguntar quem é o meu marido. Se tivessem me dito à época que cheguei que depois de 20 ou 30 anos eu poderia não apenas afirmar que sou gay como casar com outro homem eu acharia um delírio. Esta é uma revolução moral.

Como é a convivência da moral com a honra?

O caso dos duelos nos ajuda a esclarecer. Eles vinham acontecendo ao longo de 300 anos. Durante todo esse tempo eles eram ilegais, condenados pela Igreja e considerados uma loucura. Nos testamentos que os duelistas deixavam antes das batalhas ficava claro que sabiam que fariam algo errado, mas se sentiam obrigados a seguir por honra. Daí você aprende que a honra é muito poderosa e é independente da moral. Pode enfrentar a moral e vencer. Mesmo hoje: relatos recentes de curdos que assassinaram mulheres por honra mostram que eles o fizeram chorando, que sabiam que era errado, mas que era preciso fazê-lo.

A morte por honra faz com que 5.000 mulheres por ano sejam mortas por "envergonharem" suas famílias. Isso pode acontecer simplesmente porque ela foi estuprada.

O sr. diz que num futuro próximo sentiremos vergonha de termos vivido num tempo em que se matava por honra. Do que mais sentiremos vergonha?

Teremos vergonha de muita coisa, a começar por nossa comida. O tratamento de animais, criados para servirem de alimentos, é um escândalo. Nos Estados Unidos é perfeitamente legal fazer as coisas mais abjetas com porcos, galinhas e vacas que serão servidas nas mesas.

Com os humanos não é melhor. Temos hoje a maior população carcerária da história mundial, cerca de 20% dos presos do mundo. E as condições das prisões são terríveis. Se elas fossem apresentadas como sendo do Paquistão, os Estados Unidos mandariam o Exército intervir. Da mesma forma, se o que é feito em Guantánamo fosse uma obra do governo de Uganda estaríamos defendendo a condenação do presidente deles no Tribunal Penal Internacional.

O sr. considera o governo Obama honrado?

Não. Deveríamos ter muita vergonha dele, e alguns de nós temos. Obama, em quem vou votar novamente, tem um encontro semanal com agentes secretos, todas as terças, para decidir que pessoas da Al-Qaeda ou de outras organizações semelhantes os Estados Unidos irão assassinar.

Passei muitos anos lutando pela liberdade de expressão na China. Mas não me sentia na melhor posição para condenar as prisões se estávamos no negócio de assassinar pessoas.

Apesar de tudo, o livro do sr. parece otimista com relação aos avanços morais, não?

Não conclamo todos ao otimismo. Simplesmente foco nas questões que estão melhorando. Em diversos assuntos não estamos melhor, e em outros estamos piorando. Mas acho que se seu padrão de avaliação é comparar o século 19 com os dias de hoje, você ficará enormemente impressionado com o fato de que as condições simbólicas e materiais são claramente muito superiores hoje. Os chineses e os hindus tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza, é possível fazer uma operação cardíaca em qualquer país do mundo, erradicamos a varíola.

A sociedade dá dois passos para frente e um para trás. Depois de cem passos chegamos a cinquenta passos adiante. Nós andamos para trás todo o tempo, e Guantánamo é um exemplo claro disso, mas por outro lado, ainda que eu seja um crítico do regime chinês, eles estão avançando. Martin Luther King costumava dizer que o arco do universo moral é comprido, mas que ele pende em direção à Justiça.

A expressão "código de honra" é muitas vezes associada a instituições criminosas, como a máfia italiana. No Brasil, circula pela internet uma espécie de "código de honra", ou um estatuto, de uma facção criminosa chamada PCC. O que podemos aprender com estes códigos?

Já vi o código do PCC e ele exemplifica muitas das características dos códigos de honra em geral. Faz referência a ideias morais, como traição, inveja, humildade e respeito, mas vai além da moral ao pregar solidariedade dentro de um grupo em particular. Pelo que vi, o código deles não menciona especificamente honra, mas pressuponho que os integrantes do grupo acreditem que aqueles que permanecem dentro do código merecem respeito. Sem saber mais sobre a sociologia deste grupo, não tenho como prever quão eficiente este código consegue ser na prática e quais os desdobramentos para quem não os cumpre. Mas é um tipo muito interessante de código de honra.


Entrevista de Cassiano Elek Machado para o jornal Folha de S. Paulo a 24 de setembro de 2012 (fonte)

João Bénard da Costa (1994)


Público - Teve a noção, no dia 25 de Abril de 1974, que estava ali a queda do regime ou sentiu que era mais uma "tentativa"?
João Bénard da Costa - Tinha-me deitado tardíssimo na véspera, jantara com o Vasco Pulido Valente, que ficou até de madrugada a tentar convencer-me, numa imensa discussão, que o Marcelo tinha o poder garantido por mais 20 anos... E na manhã do 25 de Abril, sem saber ainda de nada - a não ser estranhar não haver trânsito nas ruas -, encontro o Villaverde Cabral à porta do Conservatório que me disse: "É agora!" "O quê?", perguntei. "É agora o fim do regime!" Bem, eu estava vacinado de fazer profecias que nunca se verificavam... E não sabendo rigorosamente nada sobre o MFA, com aquilo que estava a acontecer no Carmo percebi que era imparável. Embora hoje esteja menos convencido disso do que nesse dia. Se tem havido uma resistência militar a sério e com o que hoje se sabe sobre a preparação militar do 25 de Abril, se calhar ele teria abortado! A verdade é que ninguém esteve para arriscar. Só não foi tão excessivo como o 5 de Outubro, em que meia dúzia de oficiais mudaram o regime... Tudo isto para lhe dizer que na noite de 25 para 26 percebi que era irreversível.
P. - Para perceber alguns passos da história do 25 de Abril temos de voltar a trás. A história da sua geração, de que você é um dos emblemas, começa no fim dos anos 50. A política começou para si e para alguns dos seus amigos pela Acção Católica e pela JUC?
R. - Foi. A minha família era católica e ferrenhamente salazarista, com excepção do meu pai, que era democrata e tinha Churchill e a democracia inglesa por modelo. Mas a minha primeira grande influência veio de um cunhado meu, católico, que me tocou num ponto sensível - uma certa consciência moral, a ideia de que era impossível aos católicos, que eu era, conviver com o que chamávamos a "desordem estabelecida": um regime social injustíssimo, em que os pobres quase não tinham direitos, onde havia a censura, a PIDE e a tortura e onde se perpetuava o poder de uma minoria. Usando uma linguagem da altura, "um cristão não poderia aceitar aquilo"! Ninguém fazia nada para alterar as coisas e quem fazia era preso ou marginalizado. Cheguei assim à política por razões religiosas e morais.
P. - Depois, a faculdade cimentou tudo isso...
R. - Na universidade conheci gente cultural e politicamente inconformista e, sobretudo, encontrei uma geração a pensar como eu, mais precisamente na JUC, em 56-57, quando começa o jornal "Encontro", com um conteúdo completamente diferente de outra qualquer publicação católica. Havia muitos não católicos, à esquerda, que nos felicitavam pelo jornal. Entrei para a JUC no 2º ano, como militante de base, e com surpresa minha sou convidado pelo assistente, o cónego António Reis Rodrigues, para presidente-geral da organização. Tinha 21 anos, havia uma hierarquia, eu não esperava aquilo. Resolvi transformar a JUC, convicto de que - sendo ele embora mais moderado que eu - o conseguiria, porque estava convencido de que a Igreja também estava a mudar. Havia o bispo do Porto e as suas homilias, havia a carta pastoral "A miséria imerecida do povo português" e eu próprio cheguei a defender o cardeal patriarca dizendo que a sua visão era diferente da do Governo...
P. - Logo a seguir há as eleições de Delgado, em 58...
R. - O padre Rodrigues falou-me, na altura, pedindo-me que me abstivesse publicamente de tomar posições políticas, que se vivia um momento difícil para a Igreja, etc. Surge então um editorial no "Novidades" onde se fazia a apologia ao voto em Américo Thomaz, mas ingenuamente pensámos que se tratava apenas duma posição do director, monsenhor Moreira das Neves, sem repercussão na hierarquia. Escrevemos então uma carta - que foi o primeiro documento de fundo político elaborado por católicos -, assinada por João Salgueiro, Xavier Pintado, Rogério Martins, Pereira de Moura, entre outros, pedindo que o "Novidades" mantivesse a isenção que convinha à Igreja durante uma campanha eleitoral. Essa carta assumiu uma clara contestação à hierarquia e o padre Rodrigues lembra-me a minha promessa de não tomar posições. Ao que respondo que ela ia justamente no sentido de pedir que não se fizesse política... em nenhum dos lados. O desentendimento era irreversível, saí de presidente da JUC.
P. - Desiludindo o padre Rodrigues?
R. - Ele dizia que tinha preparado uma geração de rebeldes, que não tínhamos o sentido da Igreja, que afinal havíamos todos enveredado por uma via política. Acho que ele também vivia um momento de crise interior. No fundo, via-nos porventura como as pessoas que podiam continuar a aguentar o prestígio e o poder da Igreja numa futura sociedade civil. Enfim, como os sucessores de Salazar, com outras ideias e outra mentalidade...
P. - O que os norteava nesse caminho entre a Igreja, Deus e a política era já Emmanuel Mounier?
R. - Nesses anos foi mais o "Témoignage Chrétien", um jornal católico com um conteúdo bastante à esquerda que gostávamos de ler. A "Esprit" surge um pouco mais tarde, mas foi uma revista que me interessou de tal modo que fiz a tese de licenciatura sobre o personalismo e o pensamento de Mounier. Foi portanto a minha grande referência doutrinária e ideológica.
P. - Era aí que eu queria chegar: Mounier consubstanciava, para si, uma espécie de terceira via?
R. - Exacto, era a terceira via. Havia, nesse tempo, o existencialismo, por um lado, o marxismo, por outro; nós não tínhamos nada a ver nem com uns nem com os outros. Aquela terceira via afirmava uma série de valores cristãos, baseados no primado da pessoa, ao mesmo tempo que afirmava valores hostis ao regime.
P. - Quem estava consigo nessa altura?
R. - Muita gente: Nuno Bragança, Manuel de Lucena, Pedro Tamen, Manuel Lourenço, Luís Sousa Costa, Alberto Vaz da Silva, José Escada, Cristóvão Pavia - um espantoso poeta que morreu muito novo -, Nuno Portas... Era um grupo muito amigo e muito sólido. Identificávamo-nos numa linha que era simultaneamente política - nessa afirmação do personalismo contra o regime - e cultural - na recusa da literatura conformista do regime, mas também do neo-realismo defendido pelos comunistas e marxistas e que era o movimento literário vigente na esquerda portuguesa.
P. - É por aí, ou também por aí, que se chega a "O Tempo e o Modo"?
R. - Claro, queríamos fazer uma "Esprit" em Portugal, alguns de nós tinham experiência de jornalismo, por causa do "Encontro"; "O Tempo e o Modo" é uma consequência directa e imediata.
P. - Já se chamavam "católicos progressistas"?
R. - Já, embora recusássemos a expressão, porque ela tinha ao tempo uma carga pejorativa. Fora um movimento católico que no princípio dos anos 50, em França, se aliara aos comunistas e fora condenado pelo Papa. Aliás, Mounier dizia o mesmo na "Esprit": o grande erro deles foi pensar que era possível separar uma doutrina política de uma filosofia geral sobre a vida. E nós recusámo-nos inteiramente a isso e escrevemos diversas vezes que rejeitávamos um movimento que fora posto fora da Igreja. Pelo contrário: defendíamos uma total adesão à Igreja, já muito fortalecida quando, após a morte de Pio XII, veio o pontificado de João XXIII. Achámos que aquele Papa nos iria dar razão todos os dias com o concílio, a "Pacem in Terris"...
P. - "O Tempo e o Modo" é então a etapa seguinte e o terreno essencial desse combate?
R. - É. Decidimos fazer uma revista, mas faltavam-nos o dinheiro e os meios. Conhecemos o Alçada Baptista, que era mais velho, já estava formado e tinha a editora Morais. Foi o "coup de foudre": encontrámos nele a identificação total e os meios de andar para a frente. Ele seria o director, eu o chefe de redacção.
P. - Muito depressa "abriram" as páginas a não católicos... A revista foi, por isso, a semente de grande parte da oposição ao regime?
R. - Indiscutivelmente. Mas houve grandes discussões sobre se devíamos permanecer como um grupo católico ou abrirmo-nos a outras correntes, como o Mário Soares e o Francisco Salgado Zenha - que o Alçada dizia que seriam as duas pessoas que fora do círculo católico mais futuro teriam numa oposição política. Tanto o pensava que defendeu logo que eles entrassem para o conselho consultivo. Nós éramos seis e decidimos votar. Mas antes rezámos uma ave-maria para que a decisão fosse inspirada divinamente, e dessa ave-maria saíram o Soares e o Zenha - que eu nem sequer conhecia. Mas depois vieram outros, da geração de 62...
P. - Como olhava essa geração?
R. - Também não se situava nem no PC nem naquilo que foi o embrião do Partido Socialista, estavam mais à esquerda. E juntaram-se então a este movimento...
P. - Quem fez a ponte?
R. - O Manuel de Lucena, porque tinha sido católico, embora já o não fosse. Como tivera um papel muito importante na crise académica de 62, conhecia-os bem: o Jorge Sampaio, que fora o grande líder estudantil, o José Manuel Galvão Teles, o Vítor Wengorovious, etc. E o Vasco Pulido Valente, que era muito mais novo mas veio recomendado por eles para subchefe de redacção.
Houve também um facto curioso, que foi, através do Alçada Baptista, a entrada de Sotto Mayor Cardia, que nesse tempo era do PC - sem a gente saber, como é óbvio. Mas logo a partir do terceiro ou quarto número da revista ele saiu para a "Seara Nova", dizendo que "O Tempo e o Modo" era o veículo do reformismo português.
P. - Isto é?
R. - Era a aliança da democracia cristã, personificada por nós, com o PS, personificado por Mário Soares! O que era, portanto, uma arma ideológica perigosíssima... Coisa que nos causou o maior espanto, ninguém entendia estas jogadas nem sobretudo o que ali se estava a jogar. Começou por nos parecer um delírio, mas depois inclinámo-nos para uma manobra do PC, com o objectivo de nos isolar e limitar a nossa influência.
P. - Isso afligiu-os?
R. - Achámos que era ultrapassável. Houve um sobressalto com a saída de Cardia, porque receámos ficar rotulados à direita, mas procurámos sempre compensar à esquerda estes "desgastes". E acabou por ser só ele a sair...
P. - Entretanto, 1968 é um ano determinante.
R. - Há três acontecimentos fundamentais para o nosso grupo, que entretanto ia mudando com a entrada e saída de pessoas por motivos meramente pessoais. No plano interno, a morte política de Salazar e o início do marcelismo, o que originou uma divisão entre os que defendiam que tudo iria permanecer na mesma e os que olhavam Marcelo Caetano como uma via de alteração ou saída do regime. Era o caso da Ala Liberal, por exemplo, onde estava José Pedro Pinto Leite, que colaborava connosco e era um grande amigo meu, e o próprio Alçada, que quando Marcelo toma posse tem uma posição de simpatia para com ele.
O segundo factor foi o Maio de 68, com uma estrondosa repercussão em todos nós. Achámos logo que se iria cumprir o nosso sonho de mudança da vida e do homem e, sobretudo, achámos formidável que nada daquilo tivesse que ver com os aparelhos tradicionais dos partidos políticos. Era um movimento espontâneo que se propunha transformar tudo...
P. - Hoje, quando olha para isso, vê o quê - ingenuidade, ternura, utopia? Com que sentimento se vê envolvido em tudo isso?
R. - Ternura, com certeza, mas muito mais do que isso. Houve uma profunda emoção minha perante algumas daquelas coisas. E se havia utopia, ela era generosa e enérgica, não renego nada. Voltando ao terceiro elemento que foi fundamental em 68, a invasão de Praga e aprovação do PC português, ele gerou polémicas terríveis. Lembro-me que tive de escrever à pressa um artigo a dizer que não podia haver meias-tintas, tanto mais que havia dois textos que eram ultracríticos para Dubcek e quase desculpavam a invasão... E tudo isto com a censura sempre em cima de nós.
P. - O facto é que se acentua a ruptura à direita, por causa do marcelismo, e regista-se a saída de Alçada Baptista de "O Tempo e o Modo"... Vocês tornam-se mais críticos ou mais irreverentes perante os aparelhos tradicionais e, sobretudo, Mário Soares, abrem a revista a gente diferente...
R. - A transição de António Alçada Baptista foi pacífica; eu fiquei director, estava lá desde o início, conhecia as pessoas. Mas essa ruptura foi um facto: tínhamos uma posição ultracrítica em relação ao que era ainda o embrião do PS por considerarmos que se tratava da via para a abominável social-democracia. Mas sobretudo porque havia a ideia da necessidade de inventar uma nova esquerda, com novos valores a conquistar, na linha do Maio de 68. Em 68 e 69 entram, por causa disto, muitas pessoas ligadas ao maoísmo, gente que depois, em 69-70, formou o MRPP: Arnaldo de Matos, Amadeu Sabino, Martins Soares, Sebastião Lima Rego...
P. - E tudo só se clarifica em 69, com a formação da CEUD e da CDE?
R. - Exactamente. Em 69 põe-se de novo a questão da participação eleitoral. Já em 65 ela se pusera, mas optou-se maioritariamente por não intervir. Recordo que é nessa altura, em 65, que se faz a primeira grande discussão sobre o problema colonial. Quem a fez foi Mário Soares, candidato a deputado, o que suscitou um clamor imenso, abaixo-assinados, manifestações de rua... Entendemos, pelo nosso lado, que deveríamos dizer que também nós estávamos contra a guerra e a política do Governo em África, o que fizemos.
P. - Consideravam, na época, que o grosso do país os acompanhava nesse sentimento contra a guerra colonial?
R. - Achávamos que o grosso do país estava connosco. E não duvidávamos que as elites pensantes estariam maioritariamente ao nosso lado. Foi de resto isso que levou à redacção do célebre Manifesto Católico dos 101 - assinaram 101 pessoas -, em Outubro de 65. Foi, pela primeira vez, uma afirmação clara de ruptura na questão colonial. Baseámo-nos na encíclica do Papa para defender o direito de autodeterminação dos povos e dizer que Portugal o deveria respeitar.
P. - E depois, o que pensavam que se seguiria? A independência...
R. - Era preciso dialogar com os movimentos de libertação. De resto, no MAR - Movimento de Acção Revolucionário, de que faziam parte Jorge Sampaio, Vasco Pulido Valente, Nuno Bragança e muitos outros, havia grande admiração por esses movimentos de libertação terceiro-mundistas, desde Cuba aos africanos.
P. - Porquê?
R. - Era uma via nova para a revolução, que se tinha de distinguir cuidadosamente do comunismo e das vias neocoloniais. Pensava-se que quanto mais Cuba fosse apoiada, mais se evitaria que acontecesse em África o mesmo que nesse país... Isto é, que dirigentes africanos se precipitassem nos braços do Partido Comunista. Havia sobretudo referências ditirâmbicas de todas essas pessoas que citei sobre Amílcar Cabral, olhado como o grande líder negro e o homem que procurava uma via dessas em ligação a Portugal. E havia ainda a ideia, corporizada pelo MAR e por Manuel de Lucena em diversos artigos que escreveu, que, se em Portugal se estabelecesse um movimento capaz de dialogar com os movimentos de libertação em África, se criaria uma terceira frente no mundo e que, por isso, Portugal voltaria a ter um lugar-chave, preparando uma linha que escaparia aos dilemas clássicos da política mundial.
P. - Não alinhada, portanto...
R. - Uma linha de países terceiro-mundistas, de países não alinhados, onde houvesse cooperação e que pudesse dar de novo um sentido à afirmação exterior de Portugal. Pretendia-se que em Portugal e nos futuros países africanos pudessem vir a estabelecer-se regimes políticos que se entendessem claramente nesse ponto. Digamos, visto com o olhar de hoje e com aquilo que já conhecemos, que foi o que Melo Antunes veio a tentar recuperar quando procurou conseguir uma política africana fora dos blocos.
P. - É então no rescaldo de tudo isso que se chega à formação das listas para as eleições de 69?
R. - Iríamos ou não ter uma lista unitária? A nossa ideia era que, a haver, ela dissolveria todas essas novas movimentações de esquerda, essa nova energia, que iríamos cair numa posição tradicional e rotineira, no estilo da oposição verbalista que não levava a nada. Eram precisas caras novas, gente diferente, um discurso político diferente para Portugal. É claro que o PC se colou rapidamente a esta segunda posição - a que se concretizou na CDE -, que teve ramificações em todo o país, mas que em Lisboa assumiu características especiais. Houve até ao último momento tentativas para que as listas se unissem, mas a maior oposição a isso veio precisamente das pessoas que apostavam nesta terceira via onde eu me encontrava.
P. - E o PC?
R. - Não me custa admitir que houve da nossa parte um erro colossal de apreciação, mas estávamos ainda sob a euforia de Maio de 68... Tinha havido os maoísmos, houve, enfim, a ilusão de que comeríamos o PC ao pequeno-almoço... E de facto essa foi a imagem que se tornou pública em 69.
P. - O que, de resto, talvez explique os resultados...
R. - O que explica - com todas as reservas da altura - que a CDE tenha tido 19 ou 20 por cento e a CEUD oito por cento. Houve a adesão de toda uma geração à CDE, por causa desse ar do tempo. A CEUD eram uns senhores bem-comportados, à antiga, mas tão mal-comportados para o regime que normalmente pagavam isso nas cadeias.
P. - Isso mostra alguma lucidez e visão do dr. Mário Soares...
R. - Mostra, indiscutivelmente. Por um lado, ele percebe já que o grande obstáculo é o Partido Comunista, por outro, que aquela gente da CDE era uma cambada de irresponsáveis e que dali não iria sair nada! Fartou-se de nos dizer que acabaríamos todos no PS, coisa que nos punha possessos... Mas isso foi verdade a 99 por cento. Ele percebeu antes que, não sendo nós comunistas, não tínhamos outra via à esquerda que não fosse o PS. Nesse tempo estávamos todos num daqueles cíclicos movimentos de geração... E o curioso é que os resultados que Mário Soares obteve pareciam o primeiro fim dele.
P. - Como é que ele estava no dia seguinte?
R. - Bem, ele usava de um tom paternalista, dizia-nos que tínhamos de voltar a trabalhar, mas estava extremamente abalado, sobretudo por causa dos perigos que se anunciavam de uma radicalização de esquerda para o futuro. E enquanto, por exemplo, no dia seguinte toda a gente que dizia e queria coisas mil vezes mais à esquerda do que ele continuou a sua vida pessoal e política, ele foi logo parar à cadeia, tendo sido expulso de Portugal pouco tempo depois. O Jaime Gama também foi preso... Há, portanto, uma repressão que se exerce muito mais sobre a CEUD do que sobre a CDE.
P. - E quando é que vocês percebem que o aparelho da CDE - que de resto não se desfaz - estava a ser dominado pelo PC?
R. - Em 70 compreendemos que, na prática, aquilo era uma organização comunista encapotada. Saí nessa altura em ruptura violenta...
P. - Para se defrontar com outra: a tomada de poder dos maoístas em "O Tempo e o Modo"...
R. - Essa linha maoísta afirma-se maioritária, e eu saio da revista. Foi uma imensa desilusão, eu estava extremamente ligado a "O Tempo e o Modo".
P. - Foi uma derrota?
R. - Foi uma derrota. Tinha apostado naquilo, apostara que era possível dar à revista uma volta noutra direcção. E de repente encontrei-me com uma gente tão fanática e facciosa como o PC - alguns ainda piores -, numa linha ideológica com a qual não tinha a ver e numa revista cujo conteúdo se ia degradando dia após dia. A questão foi muito democraticamente votada em plenário, perdi por esmagadora maioria, vim-me embora.
P. - Já estava na Fundação Gulbenkian?
R. - Já, desde 69. Depois, entre 71 e 74, tenho uma intervenção política escassa. De resto, o ambiente era muito cinzento em 73 em Portugal. Tinha havido o desfazer da Ala Liberal, a oposição parecia muito mais diluída; na oposição havia, por outro lado, um tipo de acções cada vez mais perigosas e capazes de a conduzir a um grande isolamento, as Brigadas Revolucionárias, etc. Via muita gente com pouca preparação política metida em acções perigosíssimas, arriscando-se a levar 15 ou 16 anos de prisão... Tinha sempre a noção, por um lado, de que a situação não tinha saída e, por outro, que teria de acontecer qualquer coisa... Daí aquelas conversas intermináveis como a que referi no princípio. Mas nunca pensei que a situação caísse por via militar.
P. - E aí voltou-se uma vez mais para os seus amigos de sempre, e de algum modo há como que uma continuação das vossas teses de 69 na CDE...
R. - Havia a ideia de reformular, com toda aquela euforia esquerdizante que se seguiu ao 25 de Abril, o tal projecto de terceira via de esquerda... Mas no 28 de Setembro apercebo-me que o PC estava a tomar um papel de tal modo preponderante no país que daí advinham, de facto, perigos muito reais. E apercebo-me muito bem disso porque havia no MES - ao qual eu aderira como uma espécie de continuação do que queríamos em 69 com a CDE -, um cada vez maior alinhamento pelas posições do PC. Em Dezembro de 74 saímos todos - Sampaio, Galvão Teles, eu... - do MES, numa altura, já ninguém se lembra, muito preocupante: foi quando os comunistas tentaram conquistar o PS por dentro, na célebre luta entre Mário Soares e Manuel Serra. Mário Soares ganhou o congresso, mas por uma pequena margem. Por tudo isto, pela luta da unicidade sindical, pensei que estava diante de uma luta clássica pelo poder que encarnava todas as formas conhecidas das tomadas de poder nos países de Leste. Embora me custasse a crer que houvesse aqui, no extremo ocidental da Europa, condições para isso... Mas os sinais lá estavam.
P. - Ficou, após a saída do MES, numa espécie de orfandade política. Preocupou-o o fracasso dessa experiência?
R. - No MES criara-se depois uma coisa que me deu muita satisfação: desde o início que havia lá gente muito diferente de mim, com quem não me entendia de todo, que não pensava como eu, não queria o que eu queria... Mas após a cisão, quando se passou para o GIS - Grupo de Intervenção Socialista - começou a haver uma identidade muito maior, uma sintonia e uma coesão. Isso veio ao encontro do que eu queria: ter um tipo de intervenção mais virada para a escrita, a reflexão sobre certas questões...
P. - Por exemplo?
R. - Para onde se encaminhava Portugal, de que maneira, qual seria a evolução... Ela teria forçosamente que escapar a qualquer hegemonia dos comunistas, mas por outro lado teria, a meu ver, que manter os valores de uma esquerda independente, numa via original. Era nisso que acreditava profundamente e não me importo nada que me chame ingénuo. Era nisso que eu apostava seriamente.
P. - Não o chamo ingénuo, penso é que o dr. Soares deveria rir-se imenso...
R. - É que justamente era necessário não nos metermos num sistema clássico e sermos capazes de combinar várias fontes de inspiração da própria revolução.
P. - Por isso olhavam sempre de longe para o PS...
R. - Ainda vinha longe, embora começasse a fazer cada vez mais sentido que só dentro do PS se poderia actuar politicamente. Lembro-me, por exemplo, de ter tido uma conversa muito longa com Nuno Bragança, em pleno período da nossa contestação ao PS, em que ele me diz que não temos outra saída... porque aqueles movimentos todos não só não iriam dar a parte nenhuma, como iria ser impossível alterar os esquemas tradicionais da política.
P. - E o que se passa consigo em 78, data em que quase todos os ex-MES e ex-GIS entram para o PS?
R. - Nessa altura, com tudo o que se passou depois, e uma leitura diferente que fui fazendo - sobretudo a partir de 75, 76 - de tudo o que ocorrera no país, dos falhanços das várias linhas e de cada uma das nossas tentativas, resolvi afastar-me da política. Aliás, eu dissera várias vezes que no dia em que houvesse uma democracia estável, e dado que nem tenho jeito especial para a política nem ela me estimula particularmente, me afastaria. A minha última luta política foi dentro do grupo da Intervenção Socialista para uma entrada no PS, a tal que se faz em 78. Mas nunca cheguei a aderir formalmente ao PS.
P. - Entretanto ia escrevendo. Lembro-me de textos seus muito críticos, arrasadores alguns, sobre o PS e o academismo do seu discurso...
R. - Houve um texto no PS, chamado "Dez anos para mudar Portugal", que eram os anos oitenta. Escrevi dizendo que quem ia mudar Portugal nesses anos seria a direita, conquistando de novo o poder, não tendo o PS sequer dez meses para mudar Portugal. Foi um enorme escândalo, mas se a minha clarividência política nunca foi grande, aí não me enganei muito. Não tinha a menor ilusão sobre como tudo iria ocorrer.
P. - Atribuía essa sua antevisão aos erros do PS ou ao facto de ter surgido em cena Sá Carneiro?
R. - Aos erros cometidos pela esquerda em geral. Do PC não vale a pena falar, porque não se trata de erros mas de uma estratégia, que era conseguir as colónias para o seu bloco. O dr. Cunhal actuou aqui de forma a criar em Portugal um ambiente que lhe permitisse qualquer coisa de muito mais importante para a União Soviética, em termos de política mundial. Ganhou nos anos setenta.
P. - Os militares foram instrumentalizados?
R. - Não tenho dúvida nenhuma.
P. - Todos os que "mexeram" na descolonização?
R. - Melo Antunes não. É o homem que faz frente ao PC - aliás, uma das ironias de Portugal é as pessoas terem-no sempre conotado com posições ultra-esquerdistas, quando Melo Antunes, tal como Mário Soares, é o protagonista civil - é o militar que impede o triunfo do poder comunista em Portugal.
P. - Melo Antunes não impediu o comunismo em Angola ou Moçambique... Pelo menos como o logrou com êxito em Portugal.
R. - Mas esteve contra, foi o homem que tentou outras vias. Só que nessa altura a corrente militar estava demasiado absorvida com o que se passava cá para ter uma presença activa em África. Em África quem manda é Rosa Coutinho. Em Angola é ele. Rosa Coutinho era o expoente máximo, porque era governador ou alto-comissário, e as suas posições alinham pelo PC, como aliás alinhou Vasco Gonçalves. É contra esses homens que Melo Antunes e o Grupo dos Nove se opõem.
P. - Passaram-se vinte anos sobre o 25 de Abril. O que diz a si próprio? Como caracteriza estes anos, vistos da sua geração?
R. - Em relação ao sonho da minha geração, ele nada tem que ver com esta realidade. Só que o mundo modificou-se de tal maneira, tudo se alterou tanto que me é difícil projectar para hoje aquilo que pensávamos nos anos 60-70. Como eu diria nessa altura, isto hoje é uma democracia burguesa. Mas deram-se passos fundamentais: não só as pessoas estão muito mais livres e conscientes - pronunciam-se e afirmam-se -, como é preciso ser-se cego para não ver que o país sofreu uma evolução profundíssima. É outro país, mas não é um país com que se possa sonhar. Continua a ser atrasado e a sofrer de problemas gravíssimos, embora se tenha transformado substancialmente. Por outro lado, nenhum país do mundo concretizou, no quadro de uma revolução, aquilo que a minha geração pensava nessa altura. Não há modelos nesse aspecto. Ou tudo acabou, como no Leste, apesar de ele nunca ter sido para nós uma referência, ou continua aí - como Fidel, em Cuba: um dinossauro. Um dia pode olhar-se para este final do século XX do mesmo modo que a metade deste século olhou para o século XIX, isto é, como um falso momento de repouso histórico que preparava outras e diferentes questões e tensões. Ora, isso faz parte de toda uma dinâmica na qual continuo a acreditar profundamente.
P. - Que idade tem?
R. - Tenho 59 anos.
P. - E acredita em quê?
R. - Substancialmente, nas mesmas coisas. Mudei pouco de crenças e mantenho os mesmos amigos. Acredito na espantosa importância da cultura; penso que a arte tem um papel fundamental para o conhecimento e a transformação dos homens, acredito que isso é mais importante do que qualquer família política. Ao longo da minha vida sempre tive amigos com ideias políticas totalmente diferentes e isso nunca influiu na amizade, mesmo quando nos situávamos em campos opostos. Mas é-me difícil ter a mesma relação com alguém que não comungue dos mesmos valores culturais.
P. - Isso sempre se sobrepôs a tudo o resto?
R. - O valor cultural foi sempre dominante. Aliás, todos os meus disparates políticos vêm de uma leitura romântica e estética da sociedade e da política...


Entrevista de Maria João Avillez, jornal Público, 1994 (fonte) (outra entrevista a Bénard de Costa)

Quentin Smith (sem data)


Olá, Quentin. Como vai?
Quentin Smith: Sinto-me como se fosse liliputianamente pequeno e tivesse escolhido rastejar ao longo da borda afiada de uma espada, a única ponte sobre o fogo arcano, como minha trajetória do nascimento até a morte.
Por que é que você pinta além de escrever filosofia?
Quentin Smith: O processo começou quando eu tinha 16 anos. Passei pela experiência de me sentir chocado com o que me pareceu ser o nível de superficialidade com que as pessoas pareciam viver. Eu sentia que as pessoas ao meu redor não possuíam nenhum conhecimento real das, ou mesmo interesse nas, questões fundamentais sobre a realidade e o seu sentido (como, por exemplo, o silêncio do universo quando questionado sobre o propósito da vida, ou por que não há apenas o mais puro nada). Como consequência, tornei-me alienado da sociedade humana. Decidi devotar a minha vida a uma busca solitária por algum significado último, se realmente houvesse algum. A filosofia é a minha tentativa de colocar em conceitos o que acredito ser o sentido da vida humana e do universo. Eu tentei fazer isso com meu primeiro livro, «The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling», sobre o qual comecei a pensar por volta dessa época.
Mas aos 17 comecei a tomar consciência de que eu sentia ou intuía algo acerca da realidade que não poderia ser descrito apenas verbalmente. Acreditei, então, que poderia expressar isto através da arte. As minhas pinturas são sobre o inconcebível, sobre o que não pode ser expresso por quaisquer palavras. Há algo sobre a realidade que experiencio diariamente mas que só pode ser expresso pela pintura.
Que tipo de coisas expressa nas suas pinturas que não consegue expressar na sua filosofia?
Quentin: Não sou capaz de colocar em palavras. Quando pinto, eu vou pintando até não ser mais capaz de conceitualizar ou verbalizar o que a pintura significa, mas sei em algum nível intuitivo visual ou emotivo o que ela significa.
As pessoas geralmente comentam que as suas pinturas, assim como os seus poemas, são niilistas e expressam desespero, isolamento e sofrimento de algum tipo. É isso o que você está a expressar?
Quentin: Talvez, em parte. Mas não é isso o que eu sinto que estou a expressar quando pinto e escrevo poesia. Nas minhas pinturas, tento capturar uma reflexão emocional da estranheza da realidade, uma realidade que está além da nossa descrição verbal. É como se eu imaginasse que há uma espécie de seres conscientes, seres que são mais inteligentes que os humanos na mesma proporção em que somos mais inteligentes do que os coelhos. Tento expressar o tipo de emoções que esses seres mais inteligentes experienciariam se percebessem a natureza da realidade que nos é inacessível. Tento transmitir um vislumbre desta natureza da realidade retratando o seu reflexo em emoções demasiado profundas para serem experienciadas por seres humanos. Mas para atingir um nível em que sinto tal vislumbre, tenho que me deixar afundar no mais profundo tipo de desespero, ansiedade ou alegria que é possível, pois apenas nestes níveis extremos se pode perceber o que pode ser uma realidade mais profunda do que aquela que normalmente experienciamos como aquela em que vivemos. Mas como esta é uma escolha deliberada, não se trata de uma alegria, uma ansiedade ou um desespero psicológicos que experiencio, mas metafísicos, sentimentos metafísicos que são sustentados por uma vontade psicológica e um desejo de compreender toda a experiência e a realidade. O que eu quero sentir não são sentimentos agradáveis ou felizes “que eu não poderia realmente sentir a menos que estivesse feliz ou infeliz”, mas sentimentos profundos. Antes, eu sentiria uma tristeza infinitamente mais profunda do que a alegria e o bom humor quotidianos que as pessoas “devem” exibir por uma questão de convenção social. Não obstante, sou bem humorado quando na companhia de outras pessoas; acontece apenas que geralmente fico sozinho. Assim, em certo sentido, eu escolho ser infeliz em vez de feliz a fim de viver com o máximo de profundidade possível.
Como é que isso se relacionaria com a sua pintura publicada na edição de Novembro de 2003 de Art In America, chamada “The Last Human, Broken (O último humano, quebrado)“? A maioria das pessoas responderia: “O pintor é um niilista ou tem levado uma vida muito infeliz”.
Quentin: Olhando para a pintura, pode parecer que estou a expressar a visão de que a totalidade da vida humana provou ser insatisfatória, e que isso deixou em pedaços um humano hipotético que a tenha percorrido, ou percorrido toda a história. Mas, da minha perspectiva, isso não é uma experiência negativa. Em vez disso, é uma maneira de se tornar livre da, ou transcendente à, ou infinitamente desconectado da, vida humana, de modo a ser capaz de olhá-la de fora, de uma esfera não-humana. Se este último humano hipotético está “quebrado”, então isso levanta as questões: o que é que deixaria uma pessoa em pedaços? Afinal, é um lugar comum que experiências positivas e negativas ambas fazem parte da vida, que algumas vidas são felizes e outras infelizes. Mas esta pintura não é sobre o facto relativamente superficial de que algumas pessoas vivem vidas infelizes ou passam por algumas experiências negativas. Em vez disso, trata-se do facto de que todo o espectro da vida e da experiência humana, incluindo tudo o que achamos bom e ruim, é por alguma razão tão insatisfatória que deixou ‘o último humano’ arrasado. Mas o que poderia isso possivelmente ser? Que tipo de crenças estaria este humano a ter ao sentir-se ‘quebrado’? Como deveriamos proceder ao repensar a natureza e o sentido da vida humana de modo a que o que ‘quebrou’ o último humano não estivesse lá? Se o último humano está ‘quebrado’ tanto pelos aspetos ‘bons’ e ‘maus’ da vida humana, não se pode dizer que a resposta seja "meramente remover os aspectos maus da vida humana, eliminar as guerras, fomes, doenças, relacionamentos fracassados, sofrimentos, injustiças e ignorância". Pois isto ainda deixa o que chamamos de "as partes boas" da vida humana.
Portanto, tudo considerado, há alguma outra coisa. Talvez ao olharmos para a vida de um verme ou de uma mariposa, podemos ver o que falta nas suas vidas. Mas imagine que haja um ser hipotético cuja inteligência supera a dos humanos na mesma medida em que a nossa supera a de vermes e mariposas. O que é que tal ser perceberia como ausente da vida humana?
Este ser hipotético veria um sentido para a vida que os humanos não são capazes de ver? Está a sugerir que existe um sentido para a vida humana, e a vida apenas aparenta ser sem sentido em virtude das limitações de nossas experiências e do nosso intelecto?
Quentin: Penso que Darwin descobriu o sentido da vida em 1859: o sentido da vida é sobreviver e reproduzir. A verdadeira questão é: por que é que existe este sentido da vida? Este sentido da vida possui algum significado, ou é apenas um facto bruto sem nenhuma importância ou significado adicional? E se tem algum sentido, qual é?
Outras pinturas podem expressar a emoção de um ser hipotético que sabe e experiencia alguma coisa que nós aparentemente não podemos, a resposta para a questão “Por que é que há afinal alguma coisa, em vez de apenas nada? Por que é que há coisas, espaço, tempo, em vez de absolutamente nada? Nenhuma substância, nenhum tempo, nenhum espaço, nenhuma mente, nem mesmo um vácuo espacial?” A resposta pode ser incompreensível e consequentemente a reação emocional à resposta seria uma emoção demasiado profunda e estranha, além da capacidade humana de sentir.
Percebi que você pintou em 1971, quando estava com 18 anos, e então parou até 2002, quando estava com 49. O mesmo com a sua poesia. Você escreveu poemas dos 16 (1969) aos 22 (primeiro semestre de 1974) anos e então parou quase completamente até 2002. Parece que houve alguma mudança interna significativa na sua vida.
Quentin: Sim, foi em 2002. Imagino que foi o facto de que minha idade cada vez mais avançada (entrei na casa dos 50 em Agosto de 2002) me tenha deixado muito próximo da extinção total de todos os meus projetos. Eu costumava pensar, digamos por volta dos 30 anos, que a minha vida e as minhas maiores realizações se encontravam no meu futuro. Mas fui despertando para o facto de que isso pode já não ser verdade. É possível, sobretudo se eu morrer inesperada e prematuramente nas minhas próximas duas décadas de vida, que as minhas maiores realizações estejam no meu passado e que o significado ou importância da minha vida resida no passado, e agora eu esteja apenas a esperar pela morte, distraindo-me com projetos de longo prazo na filosofia e na física. Estes seriam apenas distrações se eu fosse subitamente arrebatado pela morte, e os projetos deixados incompletos, e nada de valor tivesse sido alcançado. Mas com a poesia e as pinturas, é possível expressar rapidamente um sentimento resumido do significado, e por este meio pode driblar-se a morte, ao menos metaforicamente.
Embora eu gaste a maior parte do meu tempo em trabalhos teóricos, eu também gasto várias horas por semana a pintar e a escrever poemas.

“Deveríamos entender o significado da vida humana em termos de sentimentos – significados sentidos – e não em termos de raciocínio puro, que é o que Platão e Aristóteles e a maioria dos filósofos na tradição ocidental disseram.”

Porquê 2002? Você já não se sente desta maneira?
Quentin: Em 2003 eu comecei a desenvolver algumas ideias filosóficas mais originais e fundamentais do que nunca antes, e agora eu vejo um projeto de três décadas de desenvolvimento destas ideias estendendo-se diante de mim. Em 2002, eu via o futuro em termos de desenvolver as ideias com as quais eu já havia trabalhado nos anos anteriores, e qualquer pressentimento de que eu estava no caminho de descobrir alguma coisa desconcertantemente inédita estava ausente.
Parecia então que o sentimento de descobrir algo novo numa paisagem teórica inédita era algo que eu não mais experimentaria. Mas agora essa experiência está de volta, de modo que eu sinto como se estivesse apenas a começar a realmente pensar e encontrar indícios apontando para a verdade.
Esta mudança começou com a ideia de que não estou apenas a esperar pela morte, e a minha ênfase na minha morte iminente definhou. Percebi que não há mais razão agora para pensar que posso morrer em breve do que havia quando eu tinha 20 anos, já que as evidências relevantes, os resultados de exames clínicos e coisas afins, tem mostrado, de acordo com o meu médico, que não tenho nenhuma razão para pensar que morrerei nas próximas décadas, o que talvez venha a ocorrer após eu cruzar a casa dos 90, considerando-se o histórico de longevidade da minha família.
Parece que você foi sobretudo infeliz nas primeiras décadas da sua vida, quando se tornou um filósofo e começou a pintar e a escrever poemas. Lendo os seus poemas escritos por volta de 1970, é difícil evitar a impressão de que você mantinha uma visão sombria e desesperançada da vida.
Quentin: Eu preferia os primeiros anos da minha vida quando era desconhecido, anónimo, alienado e desrespeitado pela sociedade por não ser uma “pessoa normal e bem sucedida”. Mas você está certo ao dizer que eu achava o isolamento e o desespero um estado natural. Dos 17 aos 26 anos, não mantive nenhum contacto humano. Eu pensava que a raça humana vivia em ilusão, que não havia nenhum propósito obviamente aparente para a vida, e que somente trabalhando em isolamento poderia haver alguma esperança de descobrir algum sentido último para o mundo e a existência humana. Escolhi evitar os seres humanos, e geralmente saía do meu apartamento apenas uma noite por semana para comprar comida.
Mas isto é apenas parte da história. Havia também alguma outra coisa à espreita. Na mesma época eu tinha experiências intensas, positivas, quase místicas, da totalidade do universo, que aparecia como uma espécie de Um indeterminado. O Um não é uma ‘nova realidade’, como o Um de Plotino, mas apenas o universo aparecendo de uma certa maneira, aparecendo sem os limites ou distinções entre as suas diferentes partes. Este obscurecimento de todas as diferenças entre as partes do universo pode aparecer apenas num tipo de êxtase. A maior parte do tempo eu sentia-o ouvindo as sinfonias de Bruckner, sobretudo a sua sinfonia nº 4. Eu não estava apenas a ouvir; era mais como se a música me alçasse a um estado extático. Era como se a música de Bruckner me carregasse na crista de uma onda que se espalhava interminavelmente através de todo o universo. Mas eu descobri que isto acontecia apenas com a versão da sinfonia executada pela Orquestra Sinfónica de Chicago conduzida pelo maestro Daniel Bareinboim (não com a sua versão com a Filarmónica de Berlim). Assim, com a ajuda desta música, eu oscilava entre o êxtase e o desespero.
Mas há um paradoxo aqui com os poemas de desespero, já que eu gastava o meu tempo a escrever poesia ou filosofia, e eu sentia-me feliz se escrevia um poema de desespero que eu considerava um bom poema. Excluí a satisfação positiva e o significado da minha vida pessoal, destes poemas, ao escrever. Porquê? Poesia é uma questão de autoexpressão completa, e eu sentia uma necessidade de me expressar quando me sentia sombrio e desesperado, e eu descobria uma necessidade de expressar esse desespero em outras ocasiões em que não estava desesperado. Mas percebi que à medida em que ficava mais velho, os poemas foram-se tornando mais positivos. Por exemplo, os meus poemas de 1974, como “Night” e “Mysterium Tremendum“, expressam uma atitude muito profunda e positiva de admiração e reverência pelo universo. E a maioria dos poemas que escrevo agora não são desesperadores, mas sobre tentativas de experienciar o significado. Penso que no começo da década de 1970, eu pensava que a vida era em grande parte sem sentido e desesperançada, mas por volta de 1974 o meu desespero foi mudando para um sentimento de assombro e reverência para com o universo. Mas aqui, mais uma vez, há um alerta. Eu também registei os êxtases que senti em relação ao universo nos começos da década de 1970, por exemplo, nos poemas ”At One with the Night“, “The Last Hour“, “Enchanted Night“, “Reconfirmation“, “Awestruck“, “Transfigured in my Backyard“, “There In Nowhere” e, acima de todos, “Walking Home From A Movie“, que melhor captura o que a Quarta Sinfonia de Bruckner evocava em mim, embora neste poema eu tenha tido a experiência sem ouvir nada. Eu caminhava de volta para casa após uma exibição do filme do diretor sueco Ingmar Bergman “Persona”, e estava tão avassalado pelo filme que não me consegui mexer por duas horas; apenas me sentei no passeio em frente ao cinema. E então fui para casa e senti uma espécie de êxtase. “Persona”, ainda penso, é o melhor e mais profundo filme jamais feito. É puro niilismo, e isto evocou a resposta em mim, após o filme, de que isto não é toda a verdade, e isso acarretou o êxtase, descrito em “Walking Home From A Movie“, escrito assim que cheguei em casa.
E sobre a sua infância? O que aconteceu de significativo na sua infância?
Quentin: Nada, realmente. Mas alguns incidentes podem ser de algum interesse. O meu pai, que era professor de psicologia no Bennington College, escreveu um manuscrito do tamanho de um livro constituído pelas suas descrições e teorias psicanalíticas da minha personalidade desde o meu nascimento até eu atingir os 10 anos ou um pouco mais. Ele usava estes manuscritos como livro-texto nos seus cursos de psicologia, e os alunos eram solicitados a desenvolver as suas próprias análises de mim baseadas no manuscrito.
Uma das suas previsões foi que eu me tornaria filósofo. Esta previsão foi baseada na observação de mim aos dois anos de idade, sentado imóvel diante de uma janela por três dias seguidos, a olhar para a casa do vizinho. Ele perguntou-me o que eu estava a fazer e eu respondi: “Esperando a casa do Harry desabar”.
Após fazer mais algumas perguntas, ele descobriu que eu tinha esta expetativa bastante notável porque três dias antes eu tinha visto uma telha a cair do telhado do nosso vizinho.
Há mais alguma coisa que gostaria de contar sobre a sua infância?
Quentin: Deixe-me ver. Algumas pessoas acham interessante o facto de eu ter sido chicoteado diariamente por um ano, quando estava com sete anos de idade. Mas não pelos meus pais; pela minha escola. Quando eu tinha sete anos, recebia chicotadas na minha mão esquerda todas as manhãs, já que (não sendo cristão), eu me recusava a rezar o Pai Nosso no começo das aulas. O chicote chamava-se “tira” de couro, e a mão esquerda era chicoteada porque o castigo deixava a mão paralisada, e quem era destro precisava de sua mão direita para fazer as lições durante o dia. A minha mão esquerda ficava paralisada cerca de cinco horas após o castigo, todos os dias.
Isso soa traumatizante.
Quentin: Não, não foi. Eu achava normal e não pensava que havia ali qualquer coisa de especial ou digno de menção. Parecia normal já que os meus pais esperavam que eu vivesse de acordo com os meus ideais individualistas em vez de pelo critério da conformidade irrefletida a seja lá qual for a cultura em que alguém tenha nascido. Eles não falavam muito sobre eu estar a ser castigado; eles tinham a mesma atitude que eu. Era como se eu estivesse a viver pelo truísmo de que o mundo não é um lugar perfeito e portanto não se deveria esperar que a sociedade fosse completamente justa em todas as épocas e lugares.
Você falou sobre as suas pinturas e os seus poemas. Quando se tornou um filósofo? E como surgiu a decisão de se tornar um filósofo?
Quentin: Isso aconteceu quando eu tinha dezasseis anos. Eu já tinha começado a escrever poemas, mas não por via de qualquer contacto com a alta cultura, à qual eu nunca tinha sido exposto. Em vez disso, os meus escritos poéticos eram inspirados pelas letras poéticas de canções de rock! Isso foi no final da década de 1960, e tudo o que eu sabia era que eu achava que alguma coisa estava errada com a sociedade humana. Parecia que a solução era virar hippie, o que eu fiz. Morei numa comuna hippie em Vermont por um verão. Mas acordei deste sonho bem rápido. Aconteceu quando li "O Lobo das Estepes", de Herman Hesse, por sugestão de alguém. Esse livro mudou a minha vida. "O Lobo das Estepes", principalmente da forma como é descrito no começo do livro, parecia ser como eu (Hesse tinha Nietzsche em mente). A minha auto-identidade subitamente mudou da de um hippie para a de um membro da classe de criadores históricos, artistas, filósofos e cientistas. Esta já era a minha situação quando li a segunda maior influência sobre o meu pensamento, "A Vontade de Poder", de Nietzsche. Em certo sentido, comecei como um discípulo de Nietzsche, pois lembro-me de que meu primeiro rascunho de um livro (comecei a escrever um livro de filosofia assim que terminei de ler O Lobo das Estepes) seguia a linha de que o sentido da vida era o aumento do poder, e eu identifiquei o poder com diferentes graus de felicidade. A esta altura já era possível discernir a preocupação com sentimentos ou significados percebidos.
Fale-me sobre a sua carreira como professor.
Quentin: Não penso que filósofos tenham carreiras. De executivos ou banqueiros pode-se dizer apropriadamente que têm carreiras, mas devotar a própria vida à busca das verdades básicas não pode ser considerado uma carreira. Eu experiencio a atividade filosófica sendo a mesma coisa que estar vivo. Por exemplo, eu não entendo a distinção entre “trabalho” e “lazer”, ou o conceito de “férias”. Como alguém pode tirar férias da atividade de refletir qual é o sentido da existência humana, ou se realmente há algum sentido? E como a atividade filosófica pode ser classificada como “horas de trabalho”? Até onde vejo, as horas em que se filosofa não são as “horas de trabalho” mas antes deveriam ser vistas como as horas de vigília, em oposição às horas de sono. Outros podem chamá-las de “trabalho”, mas eu chamar-lhes-ia de “fazer o que é natural para qualquer ser consciente”, tentar decifrar tudo.
Entretanto, pareceu-me, quando comecei a lecionar como professor assistente em 1978 que vários professores de filosofia viam a filosofia meramente como uma carreira, semelhante a qualquer outra carreira. O significado convencional implícito da carreira era definido em termos de buscar status social, galgar uma posição respeitável na comunidade, como se mudar-se de uma universidade para outra supostamente mais prestigiosa fosse como ser promovido do cargo de vice-presidente junior de um banco ao cargo de vice-presidente sénior, ganhando um escritório maior num andar mais elevado do prédio, uma casa maior e um carro mais luxuoso e viver numa vizinhança de maior poder aquisitivo. “Progride-se na carreira” bajulando os que têm o poder de o fazer progredir. A filosofia parecia ser entendida tacitamente por muitos como um meio de obter a aprovação dos pares e das mais prestigiosas autoridades da área e esta atitude parecia influenciar em larga escala aquilo sobre o que os professores filosofavam. Mas parecia-me que os valores “carreiristas” de vários professores não eram um caso de “tudo ou nada”, mas tendiam a variar em grau e a estarem mesclados em vários graus com o desejo desinteressado pelo conhecimento.
Isto influenciou a sua decisão de renunciar ao seu cargo com possibilidades de ascensão de professor assistente quando tinha apenas 27 anos?
Quentin: Não. Já me era claro no final da minha adolescência que havia uma distinção nítida entre ser um professor de filosofia e ser um filósofo, portanto este facto não foi relevante. Eu já sabia disso antes de me tornar professor. Renunciei ao meu cargo de professor assistente de filosofia na Universidade de Kentucky em 1980 por uma razão diferente. Renunciei, como a minha carta de demissão dizia, "a fim de fazer filosofia". Eu tinha o que considerava uma carga de trabalho pesada, dois cursos num semestre e três cursos no semestre seguinte. E isso deixava-me apenas três meses no Verão como tempo para escrever. Mas sem nenhuma ideia de como me manter financeiramente, demiti-me e comecei a escrever a tempo integral.
Qual foi o seu plano para obter abrigo e alimentação?
Quentin: Eu estava a planear mudar-me para a Flórida, escrever filosofia numa biblioteca enquanto estivesse aberta, dormir do lado de fora nas noites de Verão e, com alguma sorte, obter alimento em alguma instituição de caridade ou algo assim.
Como é que sobreviveu até agora?
Quentin: Fui afortunado o suficiente para receber alguns Rockefeller Awards, subsídios da National Endowment of the Humanities, e um subsídio do American Council of Learned Societies. Por um breve período morei nas regiões mais pobres de algumas cidades. Viver em cortiços não foi uma experiência das mais agradáveis, sobretudo porque ser roubado e usado como alvo tendia a tirar a minha concentração da teoria em que estava a trabalhar. Lembro-me que quando vivia em Louisville, eu era usado como alvo pelas crianças da vizinhança todas as vezes que elas me viam pela janela do meu apartamento. Consequentemente, tinha que rastejar no chão para me mover pelo meu minúsculo domicílio. Lembro-me que certa vez cometi o erro de ficar visível por muito tempo, e senti uma bala a passar pelo meu cabelo e a vi cravada na parede oposta. Perdi temporariamente a minha linha de raciocínio, mas fui capaz de recuperá-la cinco minutos depois.
Como e por que é que voltou para a Academia?
Quentin: Em 1991 eu recebi uma cátedra comissionada no Antioch College, a Lillian Pierson Lovelace Visiting Professor (uma cátedra comissionada com duração de três anos) que foi ideal pois negociei tempo para investigação e tinha que ministrar apenas dois cursos por ano. Mas eu estava tão acostumado a ser pobre nos últimos dez anos que lhes devolvi todo o meu salário exceto por US$ 7000. Não me pareceu nada peculiar na época, mas disseram-me mais tarde que me tornei no falatório do campus. As pessoas pensaram que eu era excêntrico, mas até onde posso dizer, são as outras pessoas que viviam excentricamente, e apenas eu vivia uma vida normal.
E como veio para a Western Michigan University?
Quentin: A minha cátedra comissionada na Antioch College terminou, e como não queria que ela expirasse, eu precisava de um emprego. Surpreendentemente, recebi diversas ofertas de emprego das assim chamadas “universidades de primeira categoria”, provavelmente porque àquela altura eu havia publicado coisas, em quantidade e qualidade, que despertou o interesse dos filósofos. Mas também recebi o que eu e também os demais filósofos profissionais consideram um cargo ideal, orientado para a pesquisa, na Western Michigan University. Eu deveria ministrar um curso por semestre (dois cursos por ano) e gastar o resto do meu tempo em investigação. Mas as principais universidades de investigação possuíam cargas letivas de dois cursos por semestre e este facto intratável facilitou a minha decisão de ir para a Western Michigan University. Eu também gosto dos administradores e da Faculdade de Filosofia daqui, de modo que também posso me considerar sortudo neste aspecto. Na verdade, senti de imediato que nessa faculdade não há a distinção entre “ser um filósofo” e “ser um professor de filosofia motivado pela carreira” que em geral senti 15 anos antes quando comecei a lecionar. A faculdade era constituída por professores de filosofia que eram filósofos genuínos. Este respeito fundamental por eles, assim como pelas suas habilidades patentes como filósofos, permitiu que eu “me sentisse em casa” no departamento, em vez de alienado dele. Eu também identifiquei desde o começo uma maturidade moral e uma harmonia que não está sempre presente em alguns outros departamentos de filosofia.
Outro factor que influenciou o meu julgamento deste Departamento de Filosofia foram os talentos filosóficos individuais e as realizações das outras faculdades. Algumas das faculdades daqui são bem menos conhecidas do que as das “mais prestigiosas” universidades de investigação, mas o corpo docente das faculdades é pelo menos tão qualificado e erudito quanto. Quando visito as mais prestigiosas universidades de investigação para dar palestras, descubro que os seus melhores filósofos não ultrapassam em inteligência ou erudição o corpo docente da Western Michigan University. Talvez seja por isso que a Western Michigan University figure entre os 10 mais bem colocados programas de mestrado do país; a maioria dos nossos mestrandos seguem para os mais bem avaliados programas de doutoramento, de modo que trabalhar com eles é como trabalhar com os melhores estudantes pré-dissertação dos melhores programas de doutoramento das universidades de investigação. Quando dou aulas, sinto-me basicamente ao mesmo nível que os estudantes de pós-graduação, e não como algum tipo de autoridade; aprendo tanto com eles quanto eles aprendem de mim. E em mais de uma ocasião eles refutaram alguns dos meus argumentos e teorias. É para estudantes desse nível que gosto de dar aulas.
Esta sensação de “estar em casa” na Western Michigan University parece ser uma mudança fundamental na sua atitude para com a profissão filosófica e, principalmente, para com a sociedade em geral.
Quentin: Eu mudei, provavelmente durante a minha terceira década de vida. Comecei a ver a irracionalidade da alienação. Comecei com o pensamento básico, “eu não me sinto alienado dos outros animais, que são mais diferentes de mim do que outros humanos, então por que é que eu deveria me sentir alienado da espécie humana?”. Mas esta mudança foi mais num nível psicológico do que um resultado de uma cadeia de raciocínio. Agora, em vez de me sentir alienado das outras pessoas, eu sinto uma espécie de empatia instintiva pelas pessoas. Eu não sei o quão incomum isso pode ser, mas eu não consigo deixar de gostar de todos com que venho a ter contacto ou a conhecer de alguma maneira ou de outra. A experiência fenomenológica diz que cada pessoa tem a característica de ”ser amável”.
Isto é verdade até mesmo para os meus assim chamados “adversários” filosóficos. Três dos meus principais adversários teóricos na literatura filosófica são L. Nathan Oaklander, William Lane Craig e William F. Vallicella. Outros filósofos, lendo o estilo “crítico” dos artigos que escrevemos sobre cada um dos outros, assumem que nós nos “odiamos”. Na verdade, estas três pessoas são três dos meus mais íntimos amigos. Nunca passou pelas nossas mentes que não deveríamos estimar e respeitar cada um dos outros apenas porque temos concepções diferentes sobre certos tópicos filosóficos. A nossa atitude era a de que as nossas críticas mútuas seriam reciprocamente úteis ao estimular reflexões adicionais sobre um tópico do interesse de ambos. Alguns filósofos que eu critico levam a coisa para o lado pessoal e, aparentemente (assim ouvi dizer), como consequência não gostam particularmente de mim. Os filósofos de Princeton, Scott Soames e Saul Kripke (aposentado) expressaram publicamente os seus sentimentos pessoais negativos em relação a mim. Mas isso nunca me impediu de os estimar e de os respeitar, apesar do “tom crítico” envolvido em discutir ou avaliar negativamente as suas visões filosóficas ou o seu lugar na história da filosofia. A filosofia, ao contrário da ciência, não é um empreendimento coletivo em que há concordância sobre os fundamentos; em vez disso, a filosofia é o campo do pensamento em que os fundamentos estão em disputa, e portanto o debate e as críticas mútuas são o caminho natural para tentar estabelecer quais visões são as mais bem justificadas. Nunca fui capaz de compreender por que é que um filósofo gostaria apenas dos que concordam com ele e detestaria aqueles dos quais discorda. Por que é que um filósofo deveria levar “para o lado pessoal” algo que não é efetivamente “pessoal”, mas uma tentativa de fazer progredir o conhecimento filosófico?
Poderia discorrer de forma um pouco mais elaborada sobre esta mudança em sua atitude geral?
Quentin: Não conheço nenhuma pessoa de quem eu não goste. A atitude de alienação universal que eu sentia na minha adolescência e juventude converteu-se no seu oposto. Esta mudança é mais de natureza psicológica ou instintiva do que o resultado de qualquer mudança nas minhas concepções filosóficas. Mas parece-me absurdo que possa haver uma razão para não gostar de alguém. Existe uma distinção clara entre gostar de uma pessoa e concordar com ou discordar do que ela acredita ou faz. O mesmo se aplica a tudo o resto. Acho animais, plantas e objetos inanimados estimáveis, mesmo que eu possa não estar “de acordo” com uma serpente que queira morder-me. Se esta atitude pode ser filosoficamente justificada ou não, não sei. Estou apenas a relatar como eu experiencio as coisas atualmente.
Isto também envolve reavaliar a minha atitude anterior em relação a pessoas com carreiras, como os executivos e os banqueiros. Quando conversamos com eles, descobrimos que um senso de propósito grandioso é o principal fator de motivação nas suas vidas. Por exemplo, certa vez conversei com o vice-presidente do Citibank (não foi muito difícil agendar um horário com ele, já que aconteceu ele ser meu irmão mais velho!) e era óbvio que ele via que o propósito da sua vida era melhorar a condição humana melhorando a sua condição económica. Descobre-se que este modo de experienciar a vida está presente em praticamente todas as pessoas, embora ele varie em grau de pessoa para pessoa.
Pode parecer paradoxal eu gastar a maior parte de meu tempo sozinho, se tenho esta atitude positiva para com os outros. Mas não é realmente paradoxal. Acontece apenas que tenho um estranho desejo de fazer algo mais além de socializar, isto é, produzir novas teorias filosóficas e obras de arte.
O seu motivo para escrever filosofia ainda é o mesmo de quando tinha vinte anos?
Quentin: Não. Eu agora percebo que a filosofia de alguém não pode “mudar o mundo”, o que eu estava decidido a fazer aos 16 anos, quando comecei a escrever "The Felt Meanings of the World". Em vez disso, o livro apenas estimulou a pensar aqueles que já tinham uma visão filosófica de mundo desenvolvida. E como eu admiro a originalidade de pensamento, e desencorajo as pessoas de se tornarem meus “discípulos”, por assim dizer, eu não quero que ninguém adote a minha visão filosófica do mundo como a sua própria. Em vez disso, eles deveriam adotar a sua própria visão do mundo, talvez com o estímulo das minhas publicações sendo útil neste processo.
Observei que atualmente, além de escritor, também é um editor.
Quentin: Sim. Os meus dois principais cargos editoriais são o de editor do Philo: A Journal of Philosophy, e o de editor de filosofia na Prometheus Books. Aceitei os cargos em parte porque concordo com a visão do mundo que o Philo e a Prometheus Books representam. E também pensei: todos reclamam sempre que a maioria dos artigos publicados em periódicos não são muito bons. Eu senti, bem, que neste caso há uma obrigação de fazer algo a respeito disso. Torne-se um editor se puder, e pare de recusar solicitações para avaliar artigos. O mesmo vale para livros. As pessoas reclamam que vários livros de filosofia publicados não são muito bons. Eu pergunto: quantos pedidos para avaliar e resenhar um manuscrito você recusou? Penso que o maior problema é que os filósofos mais talentosos e prolíficos acreditam que não têm tempo para avaliar obras alheias, e assim esta tarefa automaticamente recai sobre os ombros de filósofos menos talentosos ou preparados. Eu diria, portanto, que a baixa qualidade é principalmente culpa dos filósofos mais talentosos e experientes que se recusam a avaliar artigos e manuscritos de livros.
Há uma opinião amplamente disseminada sobre o seu trabalho filosófico, segundo a qual você começou como fenomenólogo e então tornou-se um filósofo analítico e filósofo da física. Isto está correto?
Quentin: Eu não aceito o facto de que há uma diferença entre a filosofia analítica e a fenomenológica (ou filosofia continental em geral). E a minha filosofia não é nem fenomenológica nem analítica, embora eu possa ver a razão pela qual (usando as categorias da filosofia contemporânea) os filósofos chamariam a algumas das minhas obras de “fenomenológicas” e outras de “analíticas”. As minhas principais influências no final da adolescência e começo da vida adulta foram os fenomenologistas e existencialistas. Eu estudei "o Ser e Tempo" de Heidegger, "O Ser e o Nada" de Sartre, a Filosofia de Jaspers, vários livros de Max Scheler, e as "Investigações Lógicas" de Husserl. Fui influenciado sobretudo por Heidegger, embora preferisse a metodologia mais precisa e o entendimento da consciência apresentado por Husserl, Sartre e Max Scheler. Heidegger permaneceu a principal influência no meu pensamento até por volta de meus trinta anos, quando também passei a ser influenciado pelo filósofos analíticos. A mudança ocorreu quando li pela primeira vez "The Principles of Mathematics" de Russell, e ali encontrei o tipo de precisão de pensamento pela qual procurava naquela altura de meu desenvolvimento filosófico. O meu primeiro livro categorizado como “analítico” foi o "Language and Time" (finalizado em 1990 mas só publicado, devido aos atrasos usuais, em 1993). Eu comecei a escrevê-lo em 1983, assim que terminei "The Felt Meanings of the World". As duas principais influências foram "The Language of Time" de Richard Gale e "The Nature of Necessity" de Alvin Plantinga.
Mas quando li "The Kalam Cosmological Argument" de William Lane Craig, fiquei tão excitado com o livro (antes de Craig, nenhum filósofo escrevera um livro sobre as implicações do Big Bang que começou o nosso universo) que eu o li sem parar da primeira à última página, atravessando a noite acordado. Pensei que poderia passar o resto da minha vida a escrever sobre esse livro, e isso acabou por se tornar parcialmente verdadeiro; algumas das minhas réplicas a Craig, e as suas réplicas a mim, foram publicadas em livro em 1993, "Theism, Atheism and Big Bang Cosmology". Apesar do facto de que a minha matemática tornou o livro ininteligível para filósofos, e a densa tecnicalidade da filosofia o tenha tornado ininteligível para os físicos, esse veio a ser meu livro mais vendido.
Tornei-me interessado em física, particularmente na cosmologia do Big Bang e na cosmologia quântica, no começo da década de 1980, após encontrar acidentalmente um recorte de jornal que dizia “físicos descobriram que o universo foi criado do nada”. Fiquei desorientado pelo título, mas lendo os artigos originais nos periódicos de física, percebi que os físicos estavam a desenvolver teorias explicando porque o nosso universo começou a existir. Isto motivou-me a aprender a matemática e a física necessárias para compreender as novas teorias, e comecei a publicar nesta área em 1985.
Como caracterizaria o sentido e as influências sobre sua poesia?
Quentin: Eu teria que escrever um poema para lhe poder verbalizar isso. Mas seria consistente rotular a minha poesia como parte do que é normalmente chamado “Poesia Americana Contemporânea”. Eu não fui influenciado por ela; não acho que comecei a lê-la antes de já ter escrito boa parte de meus poemas dos primeiros anos da década de 1970 (gostava de Kinnell e Roethke acima de todos). Mas os meus poemas diferem dos da maioria dos outros poetas contemporâneos americanos em dois aspetos. Primeiro, tento e escrevo sobre o sentido último ou a falta de sentido da vida em cada poema, ao passo que os outros poetas escrevem poemas sobre o lado mais superficial, convencional, da vida. Após conhecer diversos destes poetas no começo dos anos 70, eu senti que a razão para esta diferença era que eles eram pessoas ordinárias, convencionais, superficiais. Naturalmente, isto exacerbou ainda mais a minha desilusão com a humanidade.
A minha atitude na ocasião era que eles não seriam capazes de entender os meus poemas, já que os poemas eram de uma profundidade que eles nunca tinham experienciado. Terei que esperar para ver a reação à publicação de uma coletânea dos meus poemas mais recentes para ver se ainda tenho a mesma atitude.
Recordo que quando tinha entre 17 e 18 anos os professores de literatura tentaram sem sucesso fazer-me escrever poemas mais superficiais. Talvez isto corresponda às minhas reais influências, T. S. Eliot, W. B. Yeats, Rainer Rilke, Friedrich Hölderlin e Georg Trakl, todos os quais escreveram sobre apenas um tema: seria a vida dotada de sentido e, em caso afirmativo, qual é esse sentido e como deveríamos viver? E se a vida de facto tem um sentido, como o alcançamos através do tipo de experiências descritas nos poemas? Acho que, entre os poetas americanos, apenas Roethke e Kinnell daquela época alcançaram este nível de intensidade de experiência da vida ao escrever.
Quais dos seus poemas você prefere?
Quentin: Bem, primeiro deixe-me dizer o que penso da relação entre filosofia, poesia e pintura. A poesia captura um aspecto da realidade que não pode ser apreendido pela filosofia. Mas a pintura captura um aspecto da realidade que não pode ser capturado pela poesia, já que se trata de um aspeto mudo da realidade que pode ser percebido mas não descrito verbalmente ou poeticamente. Não estou a dizer que exista alguma realidade sobrenatural que não seja capturada pelas ciências e pela filosofia. Em vez disso, digo que a poesia e a pintura capturam certas modalidades fenoménicas das realidades descobertas pelas ciências e pela filosofia, modos de aparecimento que não podem ser expressos na ciência e na filosofia. Portanto, não sou nenhum místico. Muito pelo contrário, apenas desfruto a realidade de perspectivas múltiplas (esta teoria é a base de meu livro "The Felt Meanings of the World").
Agora, a sua pergunta sobre quais dos meus poemas eu mais gosto. Gosto sobretudo do poema que expressa com a máxima beleza estética a minha mais profunda atitude para com a vida. Esse poema é “Night“, escrito em 1974.
Qual é a sua obra filosófica favorita?
Quentin: Entre as minhas próprias obras, você quer dizer? Seria "The Felt Meanings of the World". Agora penso que a maioria das pessoas não vive num nível existencial suficientemente profundo para o entender ou conectar-se emocionalmente com ele. Acho que isso sugere que enquanto o escrevia eu tinha uma visão excessivamente otimista da humanidade. Ou que pelo menos eu presumi equivocadamente que as suas experiências de vida eram mais similares à minha do que de facto eram.
A minha atitude para com a morte mudou completamente ao terminar este livro. Antes de terminá-lo aos 30 anos, no começo do verão de 1983, eu tinha medo de morrer antes que pudesse terminar o livro. Eu pensava que esse livro era uma contribuição crucial que eu poderia fazer para a humanidade. Mas assim que o terminei, parei de me preocupar se vivia ou morria. Não fazia qualquer diferença para mim se eu acordaria na manhã seguinte ou morreria durante a noite. Eu tinha cumprido o que concebia, desde os meus 16 anos, como a tarefa da minha vida. Mas eventualmente, à medida em que novas ideias começavam a formar-se na minha mente, senti que havia algo mais que gostaria de descobrir e comunicar, e então comecei a preocupar-me mais com a possibilidade de estar vivo ou morto no dia seguinte.
Perguntou qual é o meu livro de filosofia favorito. Acho que isso também pode significar qual é o meu livro de filosofia favorito de outro autor. Em termos de personagens históricos, eu simpatizaria sobretudo com algum tipo de combinação entre Demócrito, Espinoza, Hume e Schopenhauer. E em relação à filosofia contemporânea? Eu diria que se eu não tivesse uma visão de mundo própria e tivesse que adotar a de alguém, eu adotaria a que John Post apresenta no seu livro "The Faces of Existence". Talvez este livro seja concetualmente sofisticado e profundo em demasia para angariar uma grande popularidade, o que pode explicar porque ele não é muito discutido na literatura. Mas este pode ser o melhor livro de filosofia escrito no século XX.
O que significa a resposta que deu para a primeira pergunta que lhe fiz?
Quentin: O fogo é o mistério da natureza da realidade e se a existência humana tem ou não algum sentido último. A única maneira de viver e estudar estas questões é rastejar ao longo de uma dolorosa consciência de não saber a resposta, e saber que a qualquer momento se pode morrer ao cair da lâmina rumo ao fogo.

Entrevista editada para português europeu (fonte)

Vinícius de Moraes (1979)

Vinicius, você andou meio desaparecido, ultimamente, viajando muito. Como você está agora?

Eu estou bem, de um modo geral. Tenho uns problemas de dieta, para regularizar o metabolismo do meu açucar, que é um pouco alto. Agora vou tirar umas férias e passar um mês em Punta del Este, dar uma descansada e terminar meus livros de poesia, que estão parados há quatro anos por causa desse negócio de shows. Foram quatro anos de pauleira o tempo todo, muita viagem, principalmente no Brasil e na Argentina, mas também na Europa. No ano retrasado estivemos na Itália e de novo no Olympia, em Paris. Agora fizemos mais ou menos o mesmo roteiro e incluímos Londres, onde eu não havia trabalhado ainda. Para mim foi uma surpresa muito boa, porque o show teve bastante sucesso. Do ponto de vista profissional, o ano foi ótimo, ainda que tenha me deixado um pouco de língua de fora... Mas tudo bem.

E agora você entra em férias para trabalhar?

É, férias para ver se escrevo um pouco. Esses livros estão realmente muito atrasados.

Quais os livros?

São dois livros. Um deles é o que venho escrevendo sobre o Rio de Janeiro. Há uns 25 anos que trabalho nesse livro. O outro são os poemas escritos de 1960 para cá, porque nesse tempo todo eu não publiquei nada de poesia, a não ser algumas edições especiais que fiz na Bahia, na editora do Calazans Neto. Uma delas é a História natural de Pablo Neruda, que fiz quando ele morreu. Agora vou reunir esses poemas escritos a partir de 1960 e completar o livro, que tem um título meio contabilístico - O dever e o haver. É uma prestação geral de contas,  do que foi feito, do que deixou de ser feito.

Esses dois livros que você vai publicar serão, em termos de poesia, a sua palavra final?

Eu considero esses dois livros uma espécie de limpeza geral da casa, sabe. Depois disso, se ainda tiver alguma coisa a dizer, terá de ser uma coisa realmente nova. Do contrário, eu paro de escrever. Para mim não é mais fundamental escrever. O que foi dito foi dito, e é, digamos, o meu recado de poeta. Não sei se terei algo de importante a dizer. E, se não tiver, prefiro não dizer. Escrever por escrever, simplesmente, é um coisa que não farei em hipótese alguma.

Você tem algum método de trabalho permanente, periódico, ou escreve somente quando baixa a inspiração?

É, eu escrevo somente quando a coisa vem. Teve uma época da mocidade, até aí pelos 30 anos, em que eu escrevia muito, tinha necessidade, aquela compulsão de pegar o papel e sentar para escrever. Até os 40 anos foi mais ou menos assim. Depois começou a escassear, a rarear. E veio o período de música popular, que foi muito importante para mim.

Você ficou famoso como poeta muito cedo,  antes dos 20 anos, não foi?

Muito cedo. Meu primeiro livro, O caminho para a distância, teve uma ótima crítica. Eu tinha 19 anos quando o publiquei. Com 22 anos ganhei o Prêmio Nacional de Poesia - chamava-se Felipe de Oliveira e premiava todas as artes literárias. Ganhei uma disputa com o Jorge Amado, e por um focinho apenas de frente.

O fato de ter ficado famoso muito cedo foi bom ou ruim para você?

Para mim não foi muito legal, não, sabe. Me deu uma certa soberba, eu achava que era um poeta genial, essas coisas. Mas depois, uns dois ou três críticos me puseram no meu lugar, direitinho. Um deles foi o João Ribeiro, com relação a esse primeiro livro. Ele fez uma crítica muito boa, mas também muito severa, como quem diz: "Olha, menino, trabalhe mais com o verso livre, os seus sonetos não são muito bons". Outro foi o Manuel Bandeira, que fez uma crítica bastante severa. Finalmente, quando ganhei o Felipe de Oliveira, o Otávio Tarquínio de Sousa escreveu também um rodapé muito bom, me colocando em minha devida posição. O Mário de Andrade, igualmente, me deu umas podadas muito bem dadas. Isso tudo me ajudou muito.

Na época você recebeu bem essas críticas?

Não recebi muito bem, não. Recebi mal, sabe. Porque, além do mais, havia todo o grupo do Otávio de Farias que me incensava. Para eles, era assim como se eu fosse o poeta que todo mundo esperava. Era o grupo da Faculdade de Direito. Essas coisas me subiram um pouco à cabeça. Mas com aquelas críticas, a própria vida, a experiência com o conhecimento maior dessas pessoas, aí eu comecei a me situar. Processou-se também uma evolução política muito grande. Eu tinha sido formado para ser um intelectual de direita. Mas em 1942 aconteceu uma coisa muito importante em minha vida, que foi a vinda ao Brasil do escritor americano Waldo Frank. O José Olympio ofereceu um coquetel a ele e todos os escritores compareceram. Começamos a conversar e, lá pelas tantas, ele me confessou que achava coquetel de intelectuais uma coisa chatíssima e perguntou se não podíamos sair por aí. Saímos, era dia de São Jorge e eu levei o Waldo para ver as putas do Mangue. Havia um delírio lá, ele ficou impressionadíssimo. Aliás, a origem da minha Balada do Mangue foi esse dia. Depois eu o levei à favela do Pinto, aquela que havia no Leblon. Hoje eu não faria mais uma coisa dessas, não há condições. Mas foi tudo bem, ficamos lá numa tendinha, pagamos umas cervejas para os crioulos e eles tocaram para nós. Ele achou tudo ótimo, queria mesmo era ver esses ambientes e fugir das cerimônias oficiais. Daqui ele foi para a Argentina, acabou se envolvendo em política lá - era um socialista, mas com uma grande dose de filosofia hindu, bastante maluco. Era um judeu, muito amigo do Hemingway e do Chaplin. Na Argentina, um grupo de fascistas aplicou-lhe uma tremenda surra e ele ficou três meses no hospital. Depois, voltou ao Brasil e pediu ao Aranha, o chanceler da época, que eu fosse indicado para acompanhá-lo na viagem que faria pelo interior do país. Eu ainda não era do Itamarati, mas o Aranha sabia que eu ia fazer o concurso para ingressar na carreira diplomática e me designou para ciceronear o Waldo. Para mim, a viagem foi maravilhosa, escutei histórias fantásticas dele, inclusive a de quando foi martirizado pela Ku Klux Klan. Foi a primeira vez que andei armado em minha vida, porque chegou a notícia de que uns tiras argentinos tinha vindo matá-lo no Brasil.

Até essa época você era bastante católico e místico, não?

Não era tão católico, não, mas era um cara muito mistificado, não só pela formação, mas também pelo grupo que orientava, sobretudo o Otávio de Faria. Eram todos caras de direita, muitos haviam aderido ao integralismo. Não sei como consegui me safar disso. Acho que foi meu lado de moleque de praia que reagiu na hora certa. Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um mês, uma virada de 360 graus. Sai um homem de direita e voltei um homem de esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife, as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano, Manaus. A barra me pesou mesmo.

Essa virada se manifestou em sua obra?

Logo em seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa. No Brasil, pouca gente havia tido essa experiênica com excessão de Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para mim, a leitura dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no sentido de um certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo.

E quando você começou a fazer música?

A música começou mesmo na década de 50, quando voltei de meu primeiro posto diplomático no exterior, em Los Angeles. Agora, eu sempre fazia minhas músicas, antes, mesmo sozinho, mas sem nenhum intuito de editar ou ver cantar. Aos 15 anos tive uma experiência interessante: eu me liguei a uma dupla vocal que havia aqui, chamada Irmãos Tapajós, e comecei a compor com eles. Fizemos várias músicas, das quais duas tiveram muito sucesso. Uma era um fox trote brasileiro, chamado Loura ou Morena (que foi regravado há uns 10 anos), e a outra era uma "berceuse", Canção da amante. Foi o primeiro dinheiro que ganhei em minha vida, produzido por essas músicas.

Quando você foi exonerado do Itamarati, em 1968, houve alguma alegação específica?

O Otto (Lara Resende) sabe de uma história muito engraçada que aconteceu: Quando o decreto veio de Brasília, assinado pelo Costa e Silva, o despacho dizia: "Ponha-se esse vagabundo para trabalhar". Aí, dizem que o Magalhães Pinto botou a mão na cabeça e chamou o Otto imediatamente, comentando: "Ih, isso vai dar um barulho dos diabos. Escreve um arrazoado aí para mandarmos para Brasília". O Otto escreveu e, por isso, o despacho não se tornou público. Mas a exoneração veio de qualquer maneira. O que para mim foi ótimo, porque eu já não aguentava mais aquilo, mas tinha um problema moral devido aos filhos, pois com 24 anos de carreira eu estava mais ou menos próximo da aposentadoria. Tinha um certo medo de jogar aquilo tudo pra o alto. Mas quando me livraram desse problema moral, fiquei muito satisfeito.

Voltando à música: você teve parcerias históricas. Por que lá pelas tantas, a parceria acaba?

É como um casamento, sabe. É parecido. Acho que há um desgaste. Além disso, no tempo da bossa-nova, por exemplo, havia milhares de compositores fazendo música, e apenas uns poucos letristas. De maneira que eu não chegava para as encomendas: era o Tom, o Baden Powell, o Carlinhos Lira. Depois, na geração 63, pintaram o Edu Lobo, o Francis Hime. Tanto assim que eu sou um dos pouquíssimos compositores brasileiros que atravessou essas gerações todas. Eu fiz música com o Pixinguinha, o Ary Barroso, com o pessoal da geração do Antonio Maria, o Paulinho Soledade; depois peguei o Tom, o Baden, o Carlos Lyra, o Edu, o Francis e, em 69, o Toquinho. E mesmo com caras mais jovens que o Toquinho eu já fiz música, como o Eduardo Souto Neto, o João Bosco.

Com quais parceiros você acha que houve mais criatividade?

Com o Tom, sobretudo, mas também como o Carlinhos Lyra e o Baden. O Baden tem uma produção muito boa, e foi ele quem me introduziu o elemento africano, o que não havia antes na bossa-nova - eram todos brancos, arianos.

O que você acha das críticas que o Tinhorâo faz à bossa-nova.?

Aquilo é burrice total do Tinhorão. É o negócio dos guardas-costas do samba. Como existe também, aliás nos Estados Unidos, com relação ao jazz. Lá tem cara que acha que a música só é jazz se for tocada com aquelas cornetas dos confederados. Se não for, não é puro. E tem que ter também a tábua de lavar roupas (washboard) verdadeiras, para marcar o ritmo. É muito sectarismo. Embora seja um excelente pesquisador, o Tinhorão tem esse lado insuportável.

Você acha que a influência do jazz foi boa para a bossa-nova?

Acho que foi uma influência muito boa. No samba tradicional, os instrumentistas não improvisavam, em geral as harmonias eram rígidas, as formações eram standard. Com a influência do jazz, abriu tudo isso, você podia introduzir qualquer instrumento num conjunto de samba, os instrumentistas improvisavam, as harmonias melhoraram muito e se enriqueceram, os instrumentistas tornaram-se excelentes e conheciam profundamente seus instumentos, como é o caso de Baden e Tom. A influência foi benéfica porque houve uma descaracterização de nossa música. O samba estava sempre presente na bossa-nova. Além disso, a bossa-nova trouxe mais alegria e bom humor à nossa música, que andava muito voltada para a tristeza, a dor-de-corno, a fossa, naquela época do Antonio Maria. Eram músicas muito bonitas, o chamado samba de boate. com a bossa-nova a coisa ficou mais sadia, mais otimista, os sentimentos eram mais de comunicação, mais legais.

Depois da bossa-nova, o que houve de mais importante na música popular brasileira, em sua opinião?

Da chamada geração de 63, tivemos dois nomes importantes, que são o Francis e o Edu, o primeiro mais urbano, o segundo pesquisando coisas de Pernambuco. Depois veio o Milton Nascimento, pesquisando a toada mineira. O que se perdeu foi aquela organicidade que havia no movimento da bossa-nova.

E os baianos, Caetano e Gil?

Os baianos já são outro esquema, um negócio mais próximo da geração dos Beatles. Eles quiseram misturar esse troço todo, fizeram o tropicalismo, rock e samba. Acho que os dois são compositores muito bons. Talvez eu goste mais das coisas iniciais deles, embora ache que até hoje eles continuam a fazer bons trabalhos.

E o Chico Buarque?

O Chico eu acho fora-de-série, realmente. Esse tem aquela estrela, um talento que não pode ter mais tamanho. E o Chico é bom de letra, é bom de música, sabe cantar. Tem tudo, o cara. São uns poucos casos isolados que existem na música brasileira - um Noel, um Caymmi, um Chico, que se distinguem muito.

O que você acha desse debate que tem havido atualmente nos meios artísticos brasileiros, com a cobrança de definições políticas por parte de artistas pela chamadas patrulhas ideológicas?

São pequenas desavenças ideológicas para as quais eu não dou a menor importância. Acho uma burrice o artista ser engajado politicamente e fazer uma música ruim - isso não tem o menor valor. O que adianta você ser o maior comuna e fazer sambas ruins? Aí eu acho que seria preferível ser alienado e fazer música boa. Acho que o engajamento político o cara só deve ter quando aquilo é tão importante para ele que passa a ser sua própria razão de existir, ele não pode viver fora daquilo. É um compromisso que assume consigo mesmo e com a sociedade, e ponto. Agora, o cara sentir a obrigação de expressar isso na arte dele, só quando pinta bem. Eu tenho um envolvimento político bastante grande, mas nunca o expressei em minha poesia, exceto quando surgiu como uma coisa válida, como em Operário em construção, Os barões da terra, Mensagem à poesia. Mas são bons poemas. Eu fiz também muita coisa política que era uma merda e joguei fora.

Já falamos de seus casamentos com parceiros musicais. E com os seus casamentos de verdade, quantos foram?

Estou agora no meu nono casamento.

Há quanto tempo?

Há três meses. A Gilda vivia na Europa, era estudante lá. É uma moça ótima, maravilhosa. Eu tinha saido de um casamento também muito bom, muito feliz, com aquela moça argentina, a Martinha. Mas ela estudava na Argentina, o que nos obrigava a viver numa verdadeira ponte aérea. Não deu para continuar.

Você diria que suas mulheres influenciaram sua obra?

Bom, todas foram premiadas, né. Todas ganharam poemas, canções, uma coisa ou outra.

Houve alguma que tivesse exercido uma influência maior sobre o nível de seu trabalho?

Nesse sentido, acho que a influência maior foi a Tati , minha primeira mulher. Quando me casei com ela, eu estava começando a me desgrudar de minhas influências direitistas. Havia ainda muita confusão mental em mim, muita influência da minha formação, muito colégio. E a Tati já era uma pessoa bastante progressista. Mas, no começo, ainda quebrávamos um pau firme em discussões políticas. Depois, o relacionamento melhorou em todos os sentidos, inclusive no político, porque houve também aquela minha viagem pelo Brasil.

Seu casamento mais longo durou quanto tempo?

Onze anos. Foi exatamente esse, o primeiro, com a Tati.

E o mais curto?

O mais curto durou um ano.

Você mantém boas relações de amizade com as ex-mulheres, ou é do gênero que rompe relações?

Com a maioria, mantenho boas relações; mas não com todas. O relacionamento foi pior com as que engrossaram durante a separação, especialmente com duas que engroassaram mesmo, para valer.

Com sua experiência, o que acha mais fácil: conquistar e casar-se com uma mulher, ou separar dela?

O difícil é separar. Casar é facílimo. Separar é sempre uma experiência dolorosa, porque são duas pessoas que vivem juntas, amam juntas, têm aquele contato diário. Isso tudo forma uma espécie de hábito, uma coisa que não é mecânica - quando existe amor, é claro. E, se há amor, é sempre muito dolorosa a separação.

Como foi sua iniciação sexual? Poética, traumática, normal?

Foi o normal de menino da minha idade, de seus 13 anos. Foi na rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte. Tudo providenciado por um tio meu. Foi com uma putinha, né, uma menina de 14 anos ou 15.

E correspondeu às suas expectativas?

Ah, correspondeu plenamente. Foi uma experiência muito boa. Depois o filho da puta inventou que eu tinha deixado a menina grávida. Eu tinha aquela ingenuidade de garoto e acreditei piamente; fiquei apavorado. Ele era um homem de muito mais idade, andava com um grupo de boêmios, era um seresteiro. E me dizia que eu ia ser obrigado a me casar. E eu com o cê assim não é.

E como foi aquela história de um amor fulminante que nasceu numa sala de museu, entre você e uma jovem loura que se viam pela primeira vez?

Era uma exposição de Portinari. A menina era muito interessante, uma graça. Eu dava uma olhada num Portinari e outra nela. E ela também. Eu sei que viemos de lados opostos e, quando a gente se encontrou, foi até um troço emocionante. Eu falei assim: "Eu te amo sabe?" Ela começou a chorar. Aí, pronto. Ela estava noiva, mas acabamos tendo um romance que durou um ano mais ou menos.

Como foi seu encontro com Deus e depois seu desencontro, seu desencanto?

Bom, o encontro foi normal: família católica, colégio de padres, aquele negócio de confessar aos domingos, de comungar. Mas acho que a vocação para o pecado era maior. As confissões eram sempre as mesmas: "Bati três esta semana, bati quatro". Os castigos também eram os mesmos, de modo que aquilo acabou me cansando, me aporrinhando. Mas eu me meti a católico porque toda aquela fase de direita era muito ligada ao problema de Deus, principalmente por causa da influência do Otávio de Faria. Ele era aquele cristão dramático, lia muito Pascal, Claudel, os filósofos sofredores, me deu os primeiros livros para ler. Até hoje eu tenho uma grande admiração e estima por ele, embora as divergências ocorridas fossem graves demais para permitir que mantivéssemos um relacionamento estável. Mas gosto muito dele, quero um grande bem a ele. Depois a vida foi em frente, me liguei muito a Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, que tinham uma consciência cristã, mas não levavam aquilo como um cartaz na testa. Alguns eram francamente agnósticos. De toda essa mistura nasceu um desencanto, um desinteresse que acabou sendo total, não é?, com o problema religioso. Eu não acreditava mais.

Hoje você não tem mais qualquer preocupação com o problema de Deus ou de religião?

Num plano assim de vida, não. Restou talvez uma certa religiosidade, própria de meu temperamento. Por exemplo, eu me interesso por candomblé, certas superstições. Isso é sinal de que tem algum fogo na cinza. Mas aqui, na cuca, não tenho mais grandes indagações. Ao mesmo tempo, me recuso a elas um pouco. Não me interesso mais por coisas que não sei explicar.

Você andou muito metido com candomblé na Bahia. Você acredita mesmo nisso?

Eu prefiro acreditar do que não acreditar, mas realmente não acredito. Quando penso de modo puramente cerebral, não acredito. Deixei também de fazer aquele gênero de indagações, olhar para o céu e perguntar: "Onde está Deus? Afinal alguém fez esta merda toda, não foi?" Mas jamais vou ter respostas a essas perguntas, a não ser talvez depois da morte. Mas também não sei o que há do outro lado, de modo que não penso mais nessas coisas. Além disso, à medida que fui perdendo a religiosidade e o misticismo, o ser humano cresceu muito em mim, tomou conta de tudo. O que me interessa hoje é gente.

E a morte?

Bem, a morte sempre me preocupou, e ainda me preocupa. Mas hoje, de uma maneira muito mais simples, como uma espécie de saudade da vida, uma pena de deixar isso aqui com todas as cagadas e confusões, porque sempre vivi dentro de uma grande plenitude. Sobretudo por causa das mulheres: tenho muita pena de deixá-las. Sei que a velhice pode ser uma coisa legal, mas não gosto da idéia de envelhecer porque perderia tudo o que as mulheres ainda podem me dar.

Você nunca conseguiu, ou quis, viver sozinho, não?

Não. Eu aceito a solidão bem, mas não por muito tempo. Realmente, para mim, a mulher é um ser indispensável. Não posso viver sem mulher. Houve uma época de minha vida que achei que esse negócio havia terminado, que as coisas não estavam dando certo, que talvez fosse melhor eu me isolar e parar de brincar com esse bicho tão perigoso. Mas não deu. Não deu mesmo. Eu sou um namorador inverterado.

Você vê muita diferença entre o Vinicius dos 18 anos e o Vinicius de hoje?

Não vejo muita diferença entre os meus sonhos de ontem e de hoje, entre uma certa parte lúdica que sempre tive, sempre em fermentação. Acho que hoje eu sonho mais do que sonhava antigamente. Quer dizer, a viagem é permanente, não é uma coisa de um dia ou um momento, com paradas e fases de descrença. Não sou de ter fases de descrença.

Você está satisfeito consigo mesmo?

Bem, eu gostaria de mudar algumas coisas de mim, mas de um modo geral não sou um sujeito de se jogar fora. Tenho uma estima por mim bastante grande, sabe. Uma estima que vem da constatação das coisas que fiz, das pessoas que eu amei, dos amigos que tive e tenho. Considero tudo conquistas consideráveis, no cômputo geral. Às vezes tenho a imodéstia de dizer a mim mesmo: "Você vale a pena." Isso sem nenhum sentimento de vaidade. Não tenho qualquer preocupação com a glória literária. Se tivesse essa preocupação, eu trataria muito melhor das minhas coisas. A publicação de antologia dos meus poemas pela Aguilar foi um dos partos mais difíceis e demorados que já houve, tudo por despreocupação minha. Hoje em dia tenho uma preguiça enorme de trabalhar, escrever.

Você se tornou mais exigente?

Muitíssimo mais exigente. Hoje eu leio muito pouco, porque a maioria das coisas publicadas me parece ruim. Atualmente, quando encontro um escritor que me  interessa, para mim é uma festa. Mas, em geral, mal consigo passar das primeiras quatro ou cinco páginas.

Qual era a visão que você tinha do Brasil quando começou a fazer poesia?

Eu achava o Brasil um país ideal, realmente, e essa visão durou até lá pelos meus 40 anos. O primeiro choque que o Brasil me provocou foi quando voltei dos Estados Unidos, em 1951, e vi aqueles bares americanos que começavam a proliferar, o bar Vermelhinho desaparecendo, as pessoas comendo em pé nas lanchonetes, a penetração do estilo de vida americano.

E hoje, como você vê o Brasil?

Eu digo sempre uma coisa: tenho uma grande fé no Brasil. Uma fé meio estúpida, meio instintiva, por causa do povo. Realmente, a minha fé no Brasil não vem das instituições, nada disso. Pelo contrário, acho que elas têm sido extremamente negativas para os país. Agora, eu acredito neste povo. E cada vez que eu volto ao Brasil, de alguma viagem ao exterior, essa crença aumenta, compreende. E como essa crença é um bem gratuito, eu prefiro tê-la a não tê-la.

Quais os principais planos para o futuro que você tem?

Meu plano principal, no momento, é fazer essa moça feliz, a Gilda. Quero aprimorar esse relacionamento conjugal até ele se tornar uma coisa muito sólida. Para mim, seria um terrível desgaste ter de me separar novamente e procurar outra mulher. Inclusive estou chegando a uma idade em que isso fica cada vez mais difícil. Então, gostaria que a Gilda fosse realmente a última. E quando falo última, falo: "Que ela fosse a primeira". A Gilda tem as qualidades para isso. Naturalmente, vai chegar um dia em que teremos de nos separar por problemas de idade. Mas quanto a esse problema, não posso fazer nada. É um problema da vida, sou mito mais velho que ela, uma moça bastante jovem. Mas como sou um sujeito muito dialético, procuro resolver os problemas na hora. Não penso muito neles antes que pintem.

Além desse plano principal, você tem outros?

Bem, estou um pouco saturado de shows, excursões, música. Vou terminar esses dois livros de poesia e procurar viver minha vida dentro de uma felicidade possível. Se você me perguntar se sou um homem feliz, eu vou dizer que não sou. Não sou porque não sei ser feliz dentro de uma sociedade tão injusta como a nossa. Esse é um problema que me afeta diretamente, me afeta não só como homem de esquerda, mas também como homem, simplesmente, como um ser humano. Então, esse ônus eu vou carregar pelo resto de minha vida, não há saída, porque não tenho a menor esperança de ver as coisas se normalizarem e se equilibrarem ainda no meu tempo.

Que tipo de sociedade você gostaria que houvesse no Brasil?

Acho que uma volta a uma democracia relativa já seria muito bom sabe! E sobretudo o povo ter liberdade - isso me parece fundamental. Quer dizer, ver as pessoas felizes, contentes, com as caras alegres, sem angústia. E, sobretudo, haver a realização, ou pelo menos um arremedo de realização, de uma organização social mais justa, com uma melhor distribuição da riqueza, uma reforma agrária legal. Isso eu gostaria de ver: os problemas sociais mais graves resolvidos ou, no mínimo, colocados num bom caminho. Isso já me daria um pouco de paz, de calma, de uma tranquilidade bastante maior do que aquela que eu tenho hoje. Eu não consigo me destacar do problema humano.


Entrevista de Narceu de Almeida Filho, publicada na revista Ele&Ela, em março de 1979 (fonte e outra entrevista, de Clarisse Lispector a Vinícius)