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Ian Buruma (2014)

Valor: Em seu mais novo livro, 1945 é apresentado como o ano zero da era contemporânea. Por que não 1914, com o começo do fim dos velhos impérios europeus, ou 1918, com o fardo imposto à Europa Central pelo Tratado de Versalhes?

Ian Buruma: São dois marcos importantes e podemos pensar em paralelos históricos, mas precisamos considerar diferenças importantes. A primeira delas é a ideia, clara entre os Aliados, de que a Segunda Guerra, ao contrário da Primeira, era, de fato, “justa”. Acreditava-se profundamente que era preciso lutar. Entre 1914 e 1918, as razões de enfrentamento foram diversas e muito mais nebulosas. Outra diferença fundamental é o fato de que algumas lições da Primeira Guerra haviam sido aprendidas em 1939 e houve, com o fim das hostilidades, seis anos depois, uma tentativa real de não se repetir certos erros. Os julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg e no Japão, são o exemplo mais claro, mas podemos ir além: a ONU é uma instituição mais ambiciosa do que a Liga das Nações e até mesmo as terríveis limpezas étnicas na Europa Central e Oriental no pós-Segunda Guerra, que relato no livro, têm um caráter diferente do da vingança orquestrada e institucionalizada em Versalhes.

Valor: Esse não é seu primeiro livro sobre a Segunda Guerra. O senhor lançou, há 20 anos, “Wages of Guilt: Memories of War in Germany and Japan”. O que o estimulou a voltar ao tema?

Buruma: Em “Wages” tratei especificamente da maneira como o conflito é lembrado no Japão e na Alemanha. O fio da meada para “Ano Zero” foi a história recuperada de meu pai, quando ele retornou da Alemanha para sua cidade na Holanda e viu como a necessidade da população local de voltar à normalidade incluía, por exemplo, trotes violentos em sua universidade. O que se aprendeu, afinal, com o conflito? Que tipo de mundo se criou a partir de tamanha destruição, e o que mantivemos do passado, se é que havia essa possibilidade em meio a tanta ruína? Ao mesmo tempo, reflito sobre esse novo mundo, iniciado em 1945, que parece estar gradualmente se acabando, chegando, agora mesmo, enquanto conversamos, próximo de seu fim.

Valor: O senhor também trata do esquecimento recente das lições de 1945...

Buruma: Sim, a quantidade de pequenas guerras comandadas nas últimas décadas pelos EUA, culminadas em invasões cujas consequências não foram levadas em consideração, também me instigaram a escrever “Ano Zero”. Foram guerras comandadas nos EUA e Europa por líderes inexperientes, comandantes civis e militares que nunca haviam tido a experiência real de guerra, nem mesmo no Vietnã. Talvez por isso tenham sido ingênuos o suficiente para acreditar na fórmula de enviar tropas, derrubar o ditador da hora e pronto. Obviamente, essas ocupações, como podemos observar agora no Iraque e no Afeganistão, criam novos problemas, incitam rebeliões, semeiam o caos. Humildemente, achei que era um bom momento para lembrar as pessoas das reais e duradouras consequências das ocupações civil-militares. Voltei, pois, à Segunda Guerra.

Valor: Um dos aspectos mais definidores de “Ano Zero” é sua decisão de contar a história a partir de personagens mais ou menos comuns, ignorando teorias históricas sobre o período abordado.

Buruma: Sim, foi algo que decidi logo no início das minhas pesquisas: estão proibidas nesse livro declarações de acadêmicos ou historiadores. Somente contaria com depoimentos de testemunhas, de gente que viveu o conflito, incluindo diários, relatos, reportagens. A experiência pessoal e a capacidade de descrever o mundo em transformação à sua volta usando seus olhos foi um pré-requisito para determinado trecho, fato ou relato entrar no livro. Não queria escrever mais um livro oferecendo alguma teoria histórica inovadora sobre as causas e efeitos da Segunda Guerra. Meu objetivo foi o de criar, tal qual um romancista, um quadro da vida cotidiana naquele momento e locais específicos. A ideia era levar a vida daquela gente, em 1945, para o livro.

Valor: Um de seus personagens é Nobusuke Kishi, importante na terrível campanha da Manchúria. Ele jamais é julgado e sai da prisão para se tornar, no fim dos anos 50, primeiro-ministro do Japão. Para o senhor, a ocupação aliada do Japão e da Alemanha nazista, mesmo com a permanência no palco público de atores importantes no teatro de guerra, foi muito mais inteligente do que a do Iraque e do Afeganistão na primeira década deste século, não?

Buruma: Nesse aspecto, 1945 oferece uma lição política para as atuais gerações. Quando a invasão do Iraque começou, falava-se da necessidade de destruir o Partido Baath, de Saddam Hussein, da “desbaathificação” do país. O modelo usado pelos neoconservadores era o que eles imaginavam ter sido a “desnazificação” da Alemanha. Mas eles não perceberam que o Iraque ficaria ingovernável se toda a elite sunita fosse marginalizada. Obviamente, era preciso fazer algo em relação aos mandachuvas da ditadura, mas é de uma ingenuidade ímpar desmantelar toda a burocracia estatal e querer governar o país ocupado a partir do zero. O resultado foi a anarquia a médio prazo e o risco de uma guerra civil de longa duração. Esse foi um caso terrível de falta de conhecimento cultural dos que estavam no comando.

Valor: Com o fim da Guerra Fria, o senhor diria que a integração econômica, desde o “ano zero”, em formas diversas, serviu de nova barreira para evitar a eclosão de um conflito de proporções globais?

Buruma: Antes de mais nada, precisamos lembrar que a economia europeia, em 1914, era muitíssimo integrada. E já havia a Liga das Nações. Então, não se trata de uma barreira tão forte assim. Mas interdependência econômica sempre ajuda. Como imaginar os EUA em guerra com a China? Seria economicamente terrível para os dois países. O federalismo, por sua vez, tem seus limites. Veja a Comunidade Europeia. Como classificar essa instituição federalista? Não é uma democracia liberal. Não é um império. Não é uma monarquia. É um híbrido que ninguém de fato deseja. O idealismo de 1945 ofereceu à Europa a possibilidade de criação de uma série de instituições fabulosas, mas as melhores intenções às vezes mascaram graves problemas para o futuro.

Valor: Para o senhor, três das heranças mais importantes de 1945, especificamente no mundo ocidental, mas não só, foram a consolidação da democracia liberal, a defesa do Estado de bem-estar social e o combate moral das desigualdades sociais. O que observamos desde os anos 1980, no entanto, é o questionamento desses três pilares incrementados no “ano zero”, não?

Buruma: Sim. O fim da Segunda Guerra trouxe, como um de seus efeitos principais, uma “explosão de idealismo”, em que a construção de um mundo mais justo, mais igual, se tornou imperativa. Mas esse idealismo não pode durar para sempre. Ele ficou mais caro com o passar do tempo. Os interesses da burocracia e dos sindicatos ganharam poder com a rigidez desse idealismo e se tornam alvos de outros setores, críticos dos limites da social-democracia e da solidificação do Estado de bem-estar social. O que se vê, hoje, no Hemisfério Norte, são os últimos suspiros desse momento histórico.

Valor: O senhor vê alguma “explosão de idealismo” no momento, o aparecimento de pensadores interessados em criar alternativas ao capitalismo de Estado chinês ou ao neoliberalismo euro-americano?

Buruma: Decididamente, não. A esquerda parou no tempo. Os ideais clássicos de esquerda se revelaram, na prática, ou muito caros, ou muito rígidos, ou acabaram cooptados por interesses corporativos. O colapso do império soviético no fim dos anos 80 e começo dos 90 ainda nutre, duas décadas depois, terríveis sequelas, de certa forma subtraindo o crédito de tudo o que esteja relacionado ao marxismo. A base ideológica da esquerda foi varrida do mapa. E nada ocupou de fato o espaço da velha esquerda do século XX na era do materialismo individualista em que vivemos.

Valor: As políticas de redistribuição de renda no Brasil não dariam a pista de um caminho possível para as esquerdas neste milênio, como, por exemplo, na denúncia da desigualdade social que se vê hoje nos Estados Unidos?

Buruma: Sim, mas especificamente para a esquerda latino-americana ou, quiçá, a de parcela significativa do Hemisfério Sul. Os caminhos da América Latina, desde o “ano zero”, foram bem diferentes dos da Europa Ocidental, por exemplo, que experimentou a social-democracia a partir de 1945. As seguidas ditaduras e governos de direita ao sul do Rio Grande ofereceram uma reação natural na figura, por exemplo, de um Lula. Uma encarnação de esquerda que classifico de moderada e, ouso dizer, provavelmente saudável para o Brasil. Mas não vejo como os dois principais modelos de social-democracia oferecidos à sociedade brasileira poderiam ser aplicados fora da América Latina.

Valor: O senhor ocupa a cadeira de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo da Universidade Bard. E há de considerar que esses três importantes pilares da vida social mudaram muito desde 1945, não?

Buruma: Enormemente. E o jornalismo, provavelmente, foi o que se transformou de forma mais radical, por causa da emergência da era digital. A maior preocupação que tenho é com a qualidade do chamado jornalismo internacional, vital para a aproximação e compreensão de culturas, função exercida pelos correspondentes durante todo o século XX. Mas as empresas não conseguem mais bancar esses profissionais, o que é uma tremenda perda. E se o acesso via internet aumentou a sensação de conexão com o estrangeiro, a autoridade da imprensa diminuiu decididamente. A internet, com as redes sociais, não reconhece mais a autoridade do jornalista. Ela se tornou o reino das opiniões, dos desabafos, dos diários disfarçados de notícia. Os filtros se foram, há de tudo no mesmo saco: reportagens de alta qualidade, opiniões de todos os naipes e importância, polêmica gratuita, tudo dividindo o mesmo espaço. Espaço que, talvez, até seja mesmo muito mais democrático, no entanto carente da importância e da capacidade de interferência de antes.

Valor: Por outro lado, a era digital ofereceu a possibilidade do desmascaramento de delitos oficiais, dos vazamentos de informação sigilosa, em uma proporção jamais vista.

Buruma: Sem dúvida, mas então precisamos deixar algo muito claro: isso não é jornalismo, é uma outra coisa, algo completamente diferente. Revelar dados não é jornalismo. Jornalismo é quando o “Guardian” ou o “New York Times” exercem sua capacidade de edição, de decidir o que é mais ou menos vital, o que deve ser publicado, e como esses documentos serão explicados, seu contexto, sua importância. Edward Snowden precisou de um jornalista e dos velhos dinossauros da imprensa escrita para divulgar seus achados.

Valor: Passemos aos direitos humanos. Houve, nas últimas sete décadas, uma avanço inegável nessa área, não?

Buruma: Sim, mas talvez tenhamos ido longe demais. A defesa dos direitos humanos se tornou quase uma religião, uma versão laica das missões cristãs. A ideia de guerras modernas em outros países, justificadas pelo ideário dos direitos humanos, é um equívoco prático, com a inevitável transformação do que era ruim em algo muito pior. Veja a Líbia. O resultado da deposição de Muamar Gadafi, em um primeiro momento fato histórico difícil de não considerar positivo, foi a produção de uma sociedade civil ainda mais violenta. Os direitos humanos só podem ser de fato universais se você os estreita a pontos racionalmente globais, como, por exemplo, o direito de não ser torturado. Quanto mais você os alarga, mais difícil se torna a tarefa de aplicá-los universalmente, ao menos de forma honesta.

Valor: O senhor mencionou a crença dos aliados de que 1945 foi uma “guerra justa”. Onde o senhor estabeleceria o limite do uso da força com a justificativa da defesa dos direitos humanos?

Buruma: Direitos humanos e dogmatismo não podem caminhar juntos. Há casos em que é preciso usar força militar para impedir, por exemplo, genocídios ou limpezas étnicas, mas não pode ser nunca a norma. Chegamos ao limite da ideia de que temos de intervir sempre que se detectar abuso de direitos humanos. Essa pode ser até, paradoxalmente, a semente para a criação de um novo Hitler.

Valor: Ao mesmo tempo, a justificativa de ações militares em “guerras justas”, guiadas pela necessidade de proteger a população de povos estrangeiros de seus governantes, tem força moral diminuída quando se enfrenta a crítica do desrespeito aos direitos humanos em casa.

Buruma: Sim, e imagino que você esteja se referindo à prisão de Guantánamo. Uma crítica honesta à administração Obama é justamente a timidez em relação às violações de direitos humanos praticadas pelos EUA. Não houve uma mudança política significativa de rompimento com as diretrizes da era Bush. A principal diferença é que Bush usava de forma cínica a noção de intervenção humanitária para justificar ações militares. Os “neo-cons”, curiosamente, usaram esse viés missionário cristão e se apropriaram, de certa forma, do ideário da velha esquerda, ocupando, nos EUA, o posto de internacionalistas da hora, acreditando de fato que tinham o dever moral de intervir e estabelecer democracias mundo afora. Alguns dos principais colaboradores de Obama, como a chefe da missão dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power, comungam, pelo viés liberal, do mesmo ideário, mas trata-se, em geral, de uma administração mais cautelosa, como se viu recentemente na Síria.

Valor: E a democracia? Há de fato uma crise do modelo das democracias liberais?

Buruma: Os governos nacionais, desde o “ano zero”, foram gradualmente perdendo sua importância, submetidos ao interesse de corporações globais poderosíssimas, que ultrapassam os limites históricos da nação. Consequentemente, as pessoas que elegemos são cada vez menos efetivas para lidar com o mundo à sua volta. Cria-se uma crise de confiança: mais e mais pessoas acreditam que a democracia liberal e a classe política não são mais aptas a nos governar. O resultado é a emergência de magnatas como Berlusconi, na Itália, ou, em países com economia em desenvolvimento, como Egito, Tailândia, Turquia e Ucrânia, uma crescente oposição de interesses entre a elite urbana e as populações interioranas. Há um consenso democrático de que todos os egípcios, turcos e tailandeses devem ter o direito ao voto. Mas também há uma enorme dificuldade de entender que o eleitor nos grotões desses países elegerá candidatos de acordo com seu interesse regional, quase sempre diverso do das elites urbanas e, muitas vezes, desrespeitando uma das fundações da democracia: a garantia dos direitos das minorias, outra herança importante do “ano zero”.


Entrevista de Eduardo Graça para a revista Valor Económico em janeiro de 2014 (fonte)

Tom Holland (2012)

ÉPOCA – Como surgiram as dúvidas em relação à história do islamismo?

Tom Holland – Nos anos 1950 e 1960, historiadores começaram a estudar os hadiths, as citações de Maomé, e a questionar se eram realmente do tempo do profeta. Quando ficou claro que, nesse caso, as “provas” que a tradição islâmica oferecia eram fracas, a estrutura toda começou a ruir. As biografias do profeta, os comentários ao Corão, as informações sobre o surgimento do islamismo, tudo ficou sob suspeita. Recentemente, os historiadores começaram a se perguntar se aquilo que os historiadores islâmicos dos séculos IX e X escreveram sobre o começo de sua fé era historicamente verdadeiro. A conclusão tem sido que, para entender o islamismo, as fontes islâmicas não são suficientes. Assim como se questiona se as narrativas sobre a vida de Cristo, escritas dois ou três séculos depois que as coisas aconteceram, correspondem aos fatos, o mesmo começa a ser feito com o islã.

ÉPOCA – Como surgiu a história do islã que conhecemos hoje?

Holland – Os bispos que triunfaram no Concílio de Niceia, no século IV, reescreveram a história do cristianismo para assegurar que houvesse uma única narrativa, linear, desde os tempos de Cristo. Provavelmente ocorreu o mesmo no islamismo. Existem diferentes interpretações dentro do islã, que parecem recuar no tempo até o século VII. Aquilo que conhecemos hoje como islamismo demorou pelo menos tanto tempo quanto o cristianismo para se consolidar. A história mostra que religiões e grandes civilizações não emergem formadas. Elas surgem pela confluência de circunstâncias e influências. Evoluem lentamente.

ÉPOCA – O senhor diz que o Corão é composto de várias influências – inclusive mitologia grega –, mas afirma que como documento histórico ele é sólido. Como é isso?

Holland – Quando se estudam as citações atribuídas a Maomé (os hadiths), percebe-se nitidamente que foram moldadas pelo período em que foram escritas. Elas contêm alusões claras a eventos históricos que tiveram lugar décadas e mesmo séculos depois da morte do profeta. Com o Corão, não é assim. Tanto quanto podemos perceber pelas cópias mais antigas, parece que todos aqueles que o copiaram agiram como se estivessem lidando com algo extremamente sagrado. Eles tentavam não mudar nada. Mesmo quando havia problemas entre o texto do Corão e rituais e leis islâmicas correntes, o texto foi preservado. Por exemplo, os muçulmanos rezam cinco vezes ao dia, e isso parece ter origem nas práticas do zoroastrismo, a religião dos persas. Mas o Corão diz que se deve rezar três vezes. Não se tentou alterar o texto do Corão para adequá-lo à realidade, embora isso pudesse facilmente ter sido feito. Ao que tudo indica, o Corão foi tratado como o livro mais sagrado, com que não se podia brincar. Portanto, o texto que temos hoje parece ser algo original, que veio de um período remoto e foi preservado através dos séculos.

ÉPOCA – O Corão foi escrito quando se diz que ele foi escrito?

Holland – Um de nossos desafios é descobrir precisamente de que período veio esse documento. A tradição islâmica diz que esse texto emergiu pronto da boca de alguém chamado Maomé, que viveu num certo período (570-632 d.C.). O peso das evidências dá apoio à tradição. O Corão parece aludir a episódios que tiveram lugar no início do século VII, um dos quais é uma derrota romana para os persas, que ocorreu na Palestina, exatamente no período em que a tradição diz que o profeta viveu. Há também uma passagem referente a Alexandre, o Grande. Ela ecoa, quase palavra por palavra, um texto escrito no Irã em 630 por um sírio ligado ao Império Romano. Essa é a data mais antiga em que podemos identificar uma fonte no Corão, e ela corresponde ao que nos informa a tradição. Uma vez que você aceita isso, pode aceitar o Corão como uma fonte de informação legítima, primária, capaz de nos dar pistas sobre onde, como e por que Maomé agia.

ÉPOCA – O senhor diz que Meca talvez não tenha sido o lugar onde Maomé nasceu e deu origem ao islamismo. Por quê?

Holland – Meca é um problema. De acordo com a tradição islâmica, ela era uma cidade pagã, sem traços de comunidades cristãs ou judaicas, e estava localizada num deserto. Maomé, vivendo ali, era analfabeto, porque não poderia ter aprendido a ler. Entretanto, no Corão há centenas de referências a profecias judaicas e cristãs. A Virgem Maria aparece no Corão mais que no Novo Testamento. Não só o profeta parece familiarizado com essas citações, como parece contar com uma audiência igualmente familiarizada com as tradições bíblicas – embora a tradição afirme que em Meca havia apenas pagãos. Algo ainda mais problemático é Meca ser mencionada uma única vez no Corão, de uma forma ambígua. Pode ser uma referência a um vale tanto como a uma vila. Não está claro. E nenhuma outra fonte do período menciona a cidade. De nenhuma forma. A primeira vez que o nome da cidade aparece é em 741. Quase um século depois da morte de Maomé. Mesmo assim, a cidade é localizada num deserto no interior do atual Iraque, não na Arábia. Não acho que Maomé seja originário de Meca. Ele provavelmente veio mais do norte. As evidências do Corão sugerem isso.

ÉPOCA – Por que a tradição islâmica situa o nascimento da religião em Meca?

Holland – Justamente porque ela é tão remota, tão isolada. Se você acredita que o Corão veio direto de Deus, você tem de deixar claro que não poderia ter vindo de nenhuma fonte mortal. O paralelo é com a virgindade de Maria, na tradição cristã. Se os cristãos acreditam que Jesus é o filho de Deus, divino, eles não podem tolerar que Jesus seja filho de um pai terreno. Logo, Maria tem de ser virgem. Então, se o Corão é divino, se vem diretamente de Deus, os muçulmanos não podem tolerar nenhuma menção de que ele possa ter vindo de influências judaicas ou cristãs. Eles precisavam situar sua origem num lugar o mais remoto possível. Esse lugar é Meca.

ÉPOCA – Qual sua conclusão sobre Maomé? Ele existiu ou é apenas uma lenda?

Holland – Tenho certeza de que existiu. A dificuldade está em saber quanto mais do que isso podemos dizer. Sabemos que ele existiu porque há um texto de propaganda cristã, em 634, que descreve os árabes num ataque à Palestina sob a liderança de um “profeta dos sarracenos”. Quem poderia ser senão Maomé? Isso parece demonstrar, no mínimo, que alguém muito parecido com Maomé estava ativo na Palestina durante aquele período. Mas Maomé, de acordo com a tradição islâmica, morreu em 632. O mesmo texto que confirma a existência do profeta contradiz a tradição sobre a data de sua morte.

ÉPOCA – O que os muçulmanos acham de seu livro e de suas conclusões?

Holland – Isso depende. Alguns estão furiosos. Outros reconhecem que o debate é parte do processo de que emergirá uma forma ocidental de islamismo. Na tradição ocidental, é natural que a religião seja alvo de investigação intelectual e acadêmica. Agora que o islã está se tornando uma religião europeia, ele será alvo do mesmo tipo de abordagem histórica que foi feita em relação ao cristianismo e ao judaísmo. Quase todos os muçulmanos com quem conversei foram muito generosos e abertos a respeito de minhas ideias.

ÉPOCA – O senhor não tem medo de sofrer perseguições por causa de seus pontos de vista?

Holland – Acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém que não é muçulmano duvidar que o Corão tenha vindo de Deus. A presunção muito difundida de que questionar a origem do islamismo significa receber automaticamente uma sentença de morte e que barbudos furiosos atacarão quem fizer isso está muito distante da verdade. A islamofobia assume que os muçulmanos são tão violentos e irracionais que, se você apenas questionar sua religião, eles virão matá-lo. Não acredito nisso. Essa imagem não corresponde a nenhum muçulmano que conheço.

ÉPOCAO escritor Salmam Rushdie talvez discordasse dessa afirmação.

Holland – Bem, Salmam Rushdie era originalmente muçulmano. No caso dele, havia uma acusação de apostasia (trocar uma religião por outra). Mas ele também estava fazendo um esforço deliberado de provocar. Defendo seu direito de fazer isso como artista, mas insultar propositalmente a figura do profeta é muito diferente de questionar as bases históricas do que sabemos a respeito dele.


Entrevista de Ivan Martins para a revista brasileira Época (fonte)

Manuel António Pina (2009)


Tem uma fixação no Winnie The Pooh...

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser... Ao [ Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: "Quem é afinal Borges?"; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, "Borges não existe" [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: "Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei." É verdade - agora digo eu.

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionoume imenso. Foi A Vida Sexual, do Egas Moniz.

Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta...

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade - que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado - que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O ursinho não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra "criar", pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O'Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra natal".E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro..., onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo... Vou dizer-lhe um poema: "Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha." Começa assim. "Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas." Continua por aí abaixo.

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo... E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: "Como é jornalista, viaja muito?" "Não gosto nada de viajar!" E ela: "Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno..." Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto.

Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

Há um poema seu que diz assim: "A alegria da viagem é o regresso a casa."

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas.

Sabe o que é isto aqui?

São coisas importantes para tratar.

Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias... Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

Está.

"Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?" Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. "Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva..."

Vai insistentemente aos poemas... A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: "O que virei eu a ser?" O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária - a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de explicar isto...

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães... Tem filhos?

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. "Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel." O "que queres ser quando fores grande?", fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, "ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos"; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora leia aquilo como um romance.

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. "Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô...", "Não escrevi nada", "Escreveste, escreveste, encontrei-os ali". Queria convencer-me de que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. "Não escrevi nada, é mentira, foste tu." Esses versos terminavam assim: "Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor"! [gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: "Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres." Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.

E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que "a má poesia normalmente é sincera". Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

Como naquele seu verso: "A palavra sangue não sangra"?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto... A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. "De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?" Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: "Quem somos" ou "o que somos". É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: "Que o escritor é que quis ser eu." E é verdade.

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal... Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: "Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro." E na minha Bíblia tinha uma nota de rodapé: "Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina." Eu dizia à minha namorada: "Hoje tens mais Doutrina que Moral" [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.

O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.

Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da Bíblia. "Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor..." Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria."

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas.

A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender..., isto é insegurança.

Por que é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata - não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O'Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela está a fazer?

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão. As minhas amigas psicanalistas - são duas ou três - diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não - são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes..., a psicanalisar! Os psicanalistas contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito "forex", como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático - é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: "Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração." Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração como o Manuel Ferraz.

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: "Sou um sacana." Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, "olha o padre Januário!".

Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é que não a comprei? Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l'air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas para o Ar.

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

Por fim, os gatos. Por que é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque "quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela" - como escreve Pessoa.

(Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)



Entrevista de Anabela Mota Ribeiro publicada a 26 Abril de 2009, na revista Pública. Foto de Alfredo Cunha (fonte)