escritores filósofos lusófonos historiadores mulheres músicos sociólogos antropólogos realizadores professores psicólogos poetas jornalistas pintores actores John Lennon críticos teólogos Agostinho da Silva Ayn Rand Christopher Hitchens David Lynch Edgar Morin Federico Fellini Fernando Savater Frank Zappa George Steiner Hans Kung Jared Diamond Kurt Vonnegut Lévi-Strauss Raymond Aron Simone de Beauvoir Steven Pinker Woody Allen arqueólogos astrónomos biólogos economistas editores geógrafos Al Worden Alain Corbin Alain de Botton Alberto Manguel Aldous Huxley Alexandre O’Neill Almada Negreiros Amartya Sen Amos Oz Anselmo Borges Anthony Giddens Antonio Tabucchi Atom Egoyan Bart Ehrman Bob Marley Bruno Latour Carl Gustav Jung Carl Sagan Carlos Drummond de Andrade Clarice Lispector Cláudio Torres Colin Renfrew Companhia da Palavra Daniel Dennett Darcy Ribeiro Dave Gibbons David Landes David Niven Debbie Harry Eduardo Galeano Eduardo Lourenço Elis Regina Emil Cioran Erich Fromm Evelyn Waugh Fernando Lopes Francis Bacon Francis Fukuyama François Colbert François Furet Geoffrey Miller Georg Lukács Gilles Deleuze Gilles Lipovetsky Gonçalo M. Tavares Gunter Grass Hannah Arendt Harold Bloom Henry Rousso Ian Buruma Irene Pimentel Isaac Asimov J. G. Ballard J. R. Searle Jacques Barzun Jacques Derrida Jacques Le Goff James Gandolfini James Hillman Jaron Lanier Jean Genet Jean-Paul Sartre John Gray John Keegan Joni Mitchell Jorge Amado Jorge Lima Barreto Jorge Luis Borges Joseph Campbell José Gil José Mattoso João Bénard da Costa Júlio Resende Jürgen Habermas Kwame Anthony Appiah Laurence Olivier Laurie Anderson Lawrence Grossberg Lester Brown Lindley Cintra Luc Ferry Luiz Pacheco Manuel António Pina Manuel Hermínio Monteiro Marc Augé Margaret Atwood Marguerite Duras Maria Filomena Mónica Maria José Morgado Mario Vargas Llosa Marlon Brando Marshall McLuhan Marshall Sahlins Martin Heidegger Martin Rees Michael Schudson Michel Serres Milan Kundera Monteiro Lobato Muhammad Ali Orson Welles Paul McCartney Paul Ricoeur Peter Singer Philip Roth Pier Paolo Pasolini Quentin Smith Ray Bradbury Raymond Chandler Renato Russo René Pélissier Richard Feynman Robertson Davies Roger Chartier Ronald L. Numbers Rui Bebiano Ruth Levitas Saldanha Sanches Salvador Dali Sam Peckinpah Sebastião Salgado Sherry Ortner Stanley Kubrick Theodor Adorno Tom Holland Tony Judt Truman Capote Vinícius de Moraes Vitorino Magalhães Godinho Vladimir Nabokov Vítor Silva Tavares Warren Buffett William Gibson Zygmunt Bauman ambientalistas astronautas desportistas empresários fotógrafos físicos informáticos jornalismo juristas marketing politólogos políticos

Páginas

Emil Cioran e Fernando Savater (1990)

Fernando Savater: Cioran, nunca tinhas falado antes publicamente acerca da situação na Roménia. Mas agora fizeste varias declarações sobre os últimos acontecimentos no teu país natal. Porquê?
Emil Cioran: Não podia fazê-las, compreenda. Tenho lá família, o meu próprio irmão. Em contrapartida, eu estava aqui, em Paris, refugiado… Mas há uns meses estava numa refeição e falava-se dos acontecimentos na Hungria, na Polónia, na Checoslováquia, em todos esses países. Um tipo muito insolente perguntou-me: “E da Roménia, o quê?” Disse-lhe: “não quero dizer nada”. O tipo ficou furioso e eu no fundo compreendi-o, porque também sentia raiva. Então decidi escrever um artigo contra os romenos. Intitulá-lo-ia: "O nada Valaca”. Quando estava a ponto de o escrever, ocorreram todos os sucessos da Roménia. Confesso que senti um certo entusiasmo: era a primeira vez que os romenos despertavam nos últimos cinquenta anos!
Fernando Savater: E o que opina da situação atual?
Emil Cioran: Como não fui lá, não tenho um contato direto com a presente realidade. Há pouco tempo, vieram uns jovens ver-me, em torno dos vinte anos, e causaram-me uma boa impressão pelo seu nível intelectual. Pelo que sei, os jovens são a única realidade da Roménia. Enquanto os demais, os velhos, a situação política… Não tenho boa opinião. Não houve, aparentemente, uma verdadeira mudança após a queda de Ceauşescu. As coisas continuam muito parecidas, salvo num ponto importante: agora há liberdade de expressão, pode-se criticar o governo, etc. É a única novidade realmente positiva. De resto, os intelectuais estão muito decepcionados. Vejo que todos que vêm de lá a Paris querem ficar em França, o que, compreenderás, não é possível. Imagina-se que no ocidente todos os problemas estão resolvidos…
Fernando Savater: Falemos um pouco da nova Europa que se está a gerar. Por exemplo, a união da Alemanha. Trata-se de uma esperança ou de uma ameaça?
Emil Cioran: Rotundamente, não é uma ameaça. Já sei que muitas pessoas veem essa união com medo, sobretudo na França, mas a minha opinião é que se equivocaram. Não há perigo na Alemanha porque os alemães finalmente compreenderam. Fez falta um monstro como Hitler para que aprendessem a lição, mas isso já é um feito, e não creio que possa haver volta atrás.
Fernando Savater: Também preocupa hoje a ascensão do racismo e da xenofobia.
Emil Cioran: Olhe, a realidade é que a França, por exemplo, se sente invadida. Há tempos atrevi-me a fazer uma profecia: disse que dentro de cinquenta anos a catedral de Notre-Dame seria uma mesquita. Há pouco um homem, político importante, comentou-me que eu era um otimista, que seria convertida em mesquita muito antes… Como sabes, sou apátrida, uma condição que convive bem com as minhas ideias. Todos os anos devo ir renovar os meus papéis num escritório situado num bairro periférico de Paris, é um processo rápido e simples. Este ano encontrei filas enormes de árabes, negros e gente de todas as partes. Havia muita polícia, brigas, etc. São coisas que certamente criam um mal-estar. Naturalmente, este mal-estar é logo aproveitado pela extrema direita; todavia, para além da direita ou da esquerda, o problema subsiste. Nota-se uma sensação de impotência e ninguém é capaz de ver uma saída. A realidade é que na França, como no resto da Europa ocidental, já ninguém se quer dedicar a trabalhos manuais e por isso tiveram de recorrer às pessoas de fora. Mas uma civilização está perdida quando renuncia ao trabalho manual. Na minha juventude li muito Spengler, que agora já ninguém cita. Claro, as suas opiniões políticas eram muito suspeitas, mas creio que o seu diagnóstico era fundamentalmente justo, embora estivesse muito condicionado pela decadência da Alemanha da sua época. A nossa civilização está cansada… Por mim, sigo este assunto com autêntica fascinação. Afinal de contas, não é dada a todos a oportunidade de presenciar uma decadência!
Fernando Savater: Citaste Spengler, uma antiga leitura. Pergunto-me o que lês agora. Obras novas, ou melhor dedicas-te à releitura?
Emil Cioran: Agora leio com maior liberdade do que antes, porque renunciei a escrever. Já não tenho nenhum projeto, de modo que posso ler o que me agrada, coisas que se me haviam acumulado durante anos na biblioteca. Por exemplo, um estudo em quatro volumes sobre Pascal e o seu século. Coisas assim. Pensamentos filosóficos, mas, sobretudo, história da filosofia. E também muitas biografias. Outro sinal de fadiga, vês?, o interesse nas biografias.
Fernando Savater: Permite-me uma pergunta que, quiçá, te parecerá algo tola. Se pudesses assinar uma obra das que admiras, apropriando-se dela, qual escolheria?
Emil Cioran: A de algum desses tipos que viveram com esperança uma revolução e logo foram decepcionados por ela.
Fernando Savater: Chamfort, por exemplo?
Emil Cioran: Esse é um exemplo perfeito! Amo esses personagens que viveram a ilusão e a deceção revolucionária, qualquer que seja a sua orientação política. A revolução francesa produziu muitos, naturalmente. São pessoas que por fim tiveram a ocasião de entender.
Fernando Savater: Atualmente diz-se que os intelectuais estão demasiado dependentes dos meios de comunicação, a televisão, etc. Tu mostraste-te relutante a essas seduções, mas não posso negar que agora és muito conhecido. Eu tive o privilégio de encontrar-te quando ainda muito poucos sabiam da tua existência.
Emil Cioran: Então eu não existia! E crê-me, era perfeito. Penso que não é bom para um escritor ser extremamente conhecido. No meu caso, a explicação é muito simples: deve-se ao livro de bolso. Claro, não estou contra o livro de bolso, porque é o que leem os jovens. Desde que apareci em livros de bolso, recebo muitas cartas de jovens, muitas mais do que as que posso responder. Mas o período mais interessante da minha vida, pelo menos para mim, foi quando ninguém me conhecia. Eu ia a jantares, a coquetéis, e as pessoas perguntavam: “Quem será que é este tipo?”. Sabiam que era amigo de Beckett, de Ionesco, etc., mas no fundo não sabiam nada de mim. Agora, já vês… Cansa isso de que te conheçam por inteiro. Mas, enfim, há outras desgraças maiores.
Fernando Savater: Na Espanha e na América Latina atualmente há uma notável polémica em torno da celebração do V centenário do descobrimento da América. Uns dizem que foi um grande acontecimento civilizatório e outros falam das matanças, etc. Achas que se pode celebrar a história?
Emil Cioran: Não, por favor, a história é uma matança! É o mesmo que ocorreu aqui no ano passado, a propósito da revolução francesa. Se alguém ler os grandes estudos abstratos, as teorias, as proclamações da época, muito bem; mas quando se lê as memórias dos que viveram esses acontecimentos, dá-se conta de que foram espantosos. O que é bom para a história é mau para os indivíduos: deve-se ler memórias para compreender isso. Na revolução francesa começou o hábito da denúncia, que os franceses logo conservaram, como se viu durante a II Guerra Mundial.
Fernando Savater: Falando da França, parece que há um percetível declínio da influência da língua francesa frente ao auge do inglês e do espanhol.
Emil Cioran: Sim, é a grande perdedora. Trata-se de uma verdadeira catástrofe. Nota-se, quando os franceses chegaram à Roménia, após a queda de Ceauşescu, para prestar a sua ajuda económica, descobriram que toda a gente sabia falar francês. Sabes porquê? Porque a ditadura comunista manteve-os separados do resto do mundo. Na Roménia sempre houve paixão pela cultura francesa, todos queriam ler em francês e ir à França. Algo quase mórbido! Após a França e a Bélgica, foi o terceiro pais na difusão de livros em francês. A ditadura conservou esse entusiasmo ao separar as pessoas do resto do mundo. Mas agora os mais jovens começam já a aprender inglês. Vês? Isto é a história: o devir do irreparável.
Fernando Savater: Sempre me chamou a atenção que, apesar do teu tom pessimista, os teus livros sempre contêm algo parecido com a alegria, o humor, uma espécie de alacridade na demolição.
Emil Cioran: Sabes porquê? Porque, para mim, escrever é uma terapia, exatamente isso. Escrevi para curar-me. O primeiro livro de minha vida, "Nos Cumes do Desespero" (recentemente apareceu em francês e está em vias de ser traduzido para espanhol), escrevi-o — em romeno, naturalmente — para não me suicidar. Sou filho de um sacerdote ortodoxo e aos vinte e um ou vinte e dois anos de idade, quando acabei os meus estudos em Sibiu, passei por uma crise terrível. Não podia dormir. Acho que a insónia sistemática é algo como um aperitivo do inferno… Passava a noite toda andando pelas ruas dessa preciosa cidade da Transilvânia, entre as prostitutas, minhas companheiras do noturno. Os meus pais estavam desesperados porque não sabiam como isso acabaria e eu não pensava em mais nada além de suicídio. Então escrevi o meu primeiro livro e assim me aliviei um pouco. Mas acho que o que me salvou disso tudo foi ter vindo para França. Se tivesse continuado na Roménia, não creio que haveria conseguido. A minha obsessão era Paris. Viver em Paris e não fazer nada! Consegui uma bolsa por três anos que me permitiu cumprir esse sonho. Vi-me aqui sem profissão, sem trabalho, sem nada, e assim vivi. A única coisa que fiz foi viajar pela França inteira de bicicleta.
Fernando Savater: Falando nisso agora recordo que foste um grande ciclista. Há anos, num programa de rádio sobre o ciclismo na França, entrevistaram-te. Chegaste a competir alguma vez?
Emil Cioran: Não, competir não, mas digo-te que viajei pela França inteira de bicicleta. Durante meses, a Costa Azul, Provença, tudo… Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, como não tinha dinheiro para hospedar-me em hotéis, parava nos albergues de jovens, que estavam fundamentalmente nas mãos dos católicos e dos comunistas. Assim cheguei a conhecer muito bem as opiniões e a disposição política dos franceses. Verás o que ocorreu, é divertido. Então nomearam o meu amigo Mircea Eliade, agregado cultural em Londres; ao passar por Paris perguntou-me como eu via o ambiente na França diante da guerra que se preparava. Disse-lhe rotundamente que os franceses não lutariam. Eliade comentou isso ao embaixador Romeno em Londres e este comunicou-o aos ingleses. Não o acreditaram, porque tinham enviado um observador, um lorde ou algo assim, que se entrevistou com uns quantos intelectuais em Paris e voltou convencido da reinante disposição bélica. Claro, nem toda a gente tem a sorte de dormir em albergues de jovens, que é a forma de se inteirar das coisas! No final da guerra, recebi um convite para almoçar com o embaixador romeno, o qual não conhecia. Disse-me que os ingleses ficaram muito impressionados com a sua clarividência quando a guerra começou e resultou que os franceses, na realidade, não lutaram. “Mas como é que tu o sabias?”, perguntaram-lhe. E ele respondeu misteriosamente: “Disseram-mo os meus informadores…”. O pobre homem, um funcionário muito medíocre, estava-me muito agradecido porque devia a mim o seu momento de glória em Londres.
Fernando Savater: Pensas voltar à Roménia?
Emil Cioran: Não, nunca. Agora há pouco tentaram levar-me, mas nego-me. Que sentido teria eu voltar para o meu país depois de cinquenta anos de ausência? Todos os que eu conhecia morreram, seria como ir a um cemitério. Agradar-me-ia, isso sim, voltar à minha aldeia natal, Rășinari. Mas fui demasiado feliz nela durante minha infância e não suportaria vê-la outra vez. Agradar-me-ia falar com os camponeses, com as pessoas do campo… O povo romeno é o mais cético que há. É alegre e desesperado ao mesmo tempo. Por razões históricas, cultiva a religião do fracasso. Recordo-me de um tipo na minha infância, um camponês que tinha herdado uma enorme herança. Passava o dia de taberna em taberna, sempre bêbado, acompanhado por um violinista que tocava para ele. Enquanto os demais iam ao campo trabalhar, ele passeava de taberna em taberna, o único homem feliz do mundo. Enquanto ouvia o som do violino eu corria para vê-lo passar, porque me fascinava. Gastou tudo em dois anos e logo morreu. Não, não voltarei à Romênia.
Fernando Savater: É certo que não escreverás nunca mais? Olha que já mo disseste antes muitas vezes…
Emil Cioran: Agora é sério. Naturalmente a expressão alivia, mas eu já escrevi muito. Cinco livros em romeno e dez em francês, é demasiado! Todos escrevem em demasia e eu não quero cair no mesmo vício. Para quê multiplicar os livros? Abdico porque ninguém quer abdicar. Disse-o mais de uma vez publicamente: Já caluniei bastante o universo.
Fernando Savater: Cioran, para quem realmente pensa, não há mais do que dois problemas essenciais na reflexão, os maiores tópicos, os únicos imprescindíveis: o amor e a morte. De um modo ou de outro, tens-te referido muitas vezes a ambos. A estas alturas de tua vida, quando dizes que já que não queres escrever mais, diz-me uma palavra sobre essas questões.
Emil Cioran: A verdade é que eu fui muito um grande amante no tratamento com as prostitutas. As de antigamente, na minha juventude pelo menos, tinham uma espécie de sabedoria, uma experiência da vida que não encontrei em nenhuma outra parte. Eu frequentava-as muito na Roménia e aprendi muito, porque me agradava falar com elas. Bem, não só falar, é claro! Na minha breve temporada como professor de instituto falava aos meus alunos que não queria vê-los pelos bordéis a partir das nove da noite: nesta hora começava o turno dos professores… Certa noite, uma disse-me que o seu marido acabara de morrer. Era jovem, bonita. Disse-me que quando fazia amor com alguém via o cadáver do marido na cama, a seu lado. Deve-se ir aos bordéis para escutar coisas tão profundas! Por mais duvidoso que seja esse romantismo, sempre se aprende algo.
Fernando Savater: Em certas ocasiões, reprovaste o facto da filosofia ocidental ocultar a presença da morte, escamotear o cadáver.
Emil Cioran: É curioso, mas há quem não sinta a obsessão pela morte, a sua permanente tocaia (nt. «acecho» no original). Eu senti-a sempre, em todos os momentos de felicidade. Sobretudo na felicidade. É algo que não impede de viver, todavia que dá um tom distinto à vida. Curiosamente, com a velhice diminui essa obsessão. Marcou sobretudo a minha juventude.
Fernando Savater: Para quem não te conhece, podes aparentar um personagem solitário, egocêntrico, desapegado dos demais. Mas na realidade és uma pessoa muito compassiva, sempre disposta a ajudar os outros, embora não o converta em uma doutrina edificante. Não há um fundo de budismo nesta atitude?
Emil Cioran: Durante muito tempo considerei-me budista. Agora, com a velhice, tornei-me mais superficial, mas o budismo foi para mim a religião. O cristianismo parece-me um conjunto de disparates (nt. «Lo del cristianismo me parecen tonterías»), mas não o budismo… Não necessito de uma religião, mas no caso de necessitá-la seria a budista. Sim, não posso negar que ajudei muita gente. Impedi que muitos se suicidassem, vê tu. Defendi a ideia do suicídio, mas disse-lhes que não há nenhuma pressa… Recordo uma ocasião em que durante três horas passeei pelo Luxemburgo com um engenheiro que queria suicidar-se. Ao fim convenci-o que não o fizesse. Disse-lhe que o importante era haver concebido a ideia, saber-se livre. A ideia do suicídio é a única coisa que faz a vida suportável, todavia há que saber explorá-la, não apressar-se a tirar as consequências. É uma ideia muito útil: deveriam dar cursos sobre ela nos colégios!


Entrevista publicada originalnente no jornal espanhol "El País" de 25 de outubro de 1990. Editada pelo autor deste blogue para português europeu com base numa tradução de Marcelo Rafanelli Rosatti (fonte) e no texto original (fonte)

Hans Küng e Paul Ricoeur (1996)

Todas as grandes religiões pregam o amor e a paz. E contudo, neste fim de século e de milénio, do Próximo-Oriente a Cachemira e da África à Bósnia, combate-se em nome de Deus. Para Hans Küng, teólogo católico suíço de renome internacional, Diretor do Instituto de investigação ecuménica da Universidade de Tubinga (Alemanha), judeus, cristãos, muçulmanos, budistas e hindus devem entender-se. Neste sentido, a pesquisa de regras éticas comuns é vital para a paz e a sobrevivência da humanidade. Hans Küng está igualmente na origem da criação de um Parlamento das religiões do mundo que, em Setembro de 1993, tinha reunido, em Chicago, 8000 pessoas. Havia aí representantes de todas as religiões do mundo. Do seu encontro saiu um “manifesto para uma ética planetária” (1995) que é aqui discutido.

Paul Ricoeur, o grande filósofo francês de confissão protestante, interroga Hans Küng exprimindo o receio de que esse projeto de ética planetária não minimize as convicções pessoais íntimas e específicas de cada religião: “Não será o problema, mais do que reunir as convicções morais comuns, o indicar o caminho de cada religião para esse fundo comum?” (…) “Não seria esse trabalho de um grande ecumenismo como uma espécie de hospitalidade de convicção, onde seriam reconhecidas, não apenas a expressão comum na ética, mas também a diversidade dos caminhos para chegar a essa ética a partir de um fundo de convicções que é mais do que ético?”

Tal é objeto, entre outros, desse debate fundamental organizado pela ARTE, e que nós reproduzimos aqui integralmente. Agradecemos vivamente à direção do canal ARTE por ter nos ter autorizado a reproduzir o conteúdo desta emissão […] que remonta a Abril de 1996.
Bruno Charmet


Paul Ricoeur: Caro Hans Küng, é para mim um grande prazer, uma grande honra, poder discutir consigo este projeto de um ethos planetário. E quero dizer desde já com que disposição de espírito me encontro: é com base numa cumplicidade profunda que sou mais sensível aos obstáculos, direi até que tenho uma certa resistência interior a este projeto.
Falarei rapidamente, partindo do que é mais visível para todo o mundo, para o público mundial, deste facto sólido que é as religiões terem inspirado guerras, e que no planeta se continua ainda a matar em nome de Deus. Não podemos afirmar, nós cristãos, você católico, eu protestante, que estamos indemnes, que estamos a salvo dessa grande infelicidade e dessa grande violência. Há ainda na Europa lugares onde se mata em nome de Deus. Crê que esse obstáculo possa ser transposto, ao mesmo tempo, por cristãos, mas igualmente por outras religiões?
Hans Küng: Sim, caro Paul Ricoeur, estou muito contente que estejamos aqui, em Paris, para discutir de forma muito aberta estas questões. Não creio que haja verdadeiras divergências de opiniões entre mim e você sobretudo se vemos as dificuldades, que são consideráveis, os obstáculos que se opõem a este género de projeto que consiste em construir uma ética planetária. Mas acredito que é preciso começar por dizer que hoje ainda as religiões podem inspirar guerras, que elas podem legitimá-las, por vezes até provocá-las. É um facto triste, certamente, mas é preciso dizê-lo. Isso acontece na Irlanda do Norte, no Médio Oriente, na Jugoslávia. Podemos adotar aqui duas posições. Podemos conformar-nos, ou então, é o meu ponto de vista pessoal, podemos defender que não haverá paz duradoura entre as nações, nem na Irlanda do Norte, nem na Jugoslávia, nem no Médio Oriente, enquanto não houver paz entre as religiões. A paz entre as religiões é uma das componentes determinantes para que se possa atingir a paz completa nessas regiões.
Paul Ricoeur: Mas nesse caso, precisamente, não será forçoso reconhecer a tendência atual para a violência no interior de uma convicção religiosa? E, neste sentido, o preço a pagar é por isso enorme para cada confissão, e em primeiro lugar para a nossa; uma espécie de autocrítica deve ser feita. É preciso antes de mais saber porque esta tendência para a violência existe na própria religião e como nós podemos purgá-la, digamos assim, do próprio interior dessa religião.
Hans Küng: Sim, de facto, é isso mesmo. Citamos muitas vezes o Islão, a título de exemplo. A utilização da violência emana justamente das religiões, mas eu penso que há outras religiões igualmente onde a violência pode ser chamada a intervir. Nós somos cristãos e somos muito exclusivos, somos dogmáticos. Há muitos cristãos que são fundamentalistas e que gostariam de lançar já aqui uma guerra contra aqueles que não acreditam, contra os agnósticos, contra os ateus, e esta guerra poderia, ela também, chegar a atos de violência. É preciso então empreender uma reflexão sobre a sua religião, e creio que toda a tradição religiosa tem páginas e páginas negras na sua história. Na Bíblia hebraica há guerras que são feitas em nome
de Deus, são guerras muito cruéis. Há igualmente, no Novo Testamento, histórias que são muito negativas, os descrentes são condenados. No Corão também há declarações semelhantes.
Paul Ricoeur: Penso, por outro lado, que essa autocrítica deveria partir disto: que é do próprio fundo de uma convicção forte que há o perigo da violência.
Hans Küng: Acredito que são sobretudo as religiões monoteístas, as religiões proféticas, tais como o Judaísmo, o Cristianismo ou o Islão, que tem ainda mais tendência a serem exclusivas, agressivas, mais, por exemplo, que o Hinduísmo que integra ou absorve mais. Creio também que o Budismo é mais tolerante. Mas é um facto. Em todas as religiões há lutas. Há lutas em Caxemira entre os muçulmanos e os hindus, há lutas entre os sikhs e os hindus, há lutas no Sri Lanka entre os budistas, os cingaleses que são budistas e os tamul que são hindus. Os representantes das religiões dizem muitas vezes: sim, mas sabem, isso não tem a ver com a religião. Mas é falso. Está ligado à religião. Pensa-o também, não é?
Paul Ricoeur: Acredito que é isso que devemos dizer com energia, porque seria uma fuga demasiado fácil dizer: não é a religião, servimo-nos da religião para, etc. É através do próprio apego das religiões à sua missão profunda de dizer uma Palavra que as ultrapassa, nessa mesma missão de propagar uma Palavra que as ultrapassa, que pode haver uma pretensão em dominar os outros, a impor a sua força. Como purificar então essa convicção da força de uma Palavra que nos precede, da tendência a impô-la pela violência? É para mim o problema da auto-purificação, da purificação interna das religiões. A minha questão seria neste caso a seguinte: como é que do fundo da minha própria convicção, posso eu reconhecer que existe qualquer coisa que não é dito na minha religião e que talvez é dito numa outra? É o problema do relativismo. Farei uma comparação. Direi que uma herança religiosa é como uma língua na qual crescemos, e esta língua, certamente, praticamo-la com conhecimento de outras línguas, mas justamente o que é dito noutras línguas, é uma língua estrangeira. Como receber então, como num exercício de tradução, por assim dizer, a mensagem dos outros, numa espécie de hospitalidade linguística, esta verdade dos outros que talvez não seja dita na minha língua?
Hans Küng: Creio que se eu estou certo de mim, se não tenho medo da verdade, se estou de facto enraizado na minha própria fé, então estarei igualmente pronto para estar aberto às outras e a estimá-las. Com efeito, empreendi numerosos diálogos com os muçulmanos, com os judeus, com homens que provieram de todas as tendências religiosas. Constatei sempre que quando dizia abertamente que os abordava enquanto cristão convicto, mas que gostava de os compreender melhor, tínhamos uma boa base. Com efeito, muitas vezes, aqueles que são mais agressivos em matéria religiosa, são aqueles que não estão muito seguros da sua fé. Nós temos numerosos católicos conservadores, protestantes fundamentalistas que se tornam de repente nervosos desde que se lhes diz uma simples palavra, do género: oh! Atenção. Nesse
mesmo instante, sentem-se ameaçados na sua própria crença. Mas eu não me sinto de todo ameaçado na minha crença, e posso perfeitamente discutir com um judeu enraizado na sua religião, ou com um muçulmano enraizado na sua fé.
Paul Ricoeur: Mas isso supõe um nível de cultura muito elevado, porque é preciso viver, se o posso dizer, em dois planos ao mesmo tempo, o da própria convicção: acredito pessoalmente como você que há na mensagem cristã da Incarnação, da Cruz, da proclamação da Ressurreição, qualquer coisa de absolutamente específico e, ao mesmo tempo, conservando fortemente essa mensagem específica, posso afirmar que há qualquer coisa de mais fundamental que é talvez dito para lá dela mas que não é dito completamente e que esta coisa fundamental circula de algum modo entre os interlocutores. Chegamos agora ao aspeto ético deste assunto fundamental, porque talvez, de uma certa forma, esta coisa fundamental seja ética. Como viver a minha convicção em dois níveis simultâneos, como compreender que há uma espécie de segundo plano, um pano de fundo que não é dito e que eu pressinto por alguns momentos em encontros, direi, graciosos com os outros: ah! Mas isso é dito, por exemplo, na compaixão budista. O budista, como você disse na sua obra, é muito firme nisto: não falamos de um Deus pessoal, mas falamos da compaixão. Posso dizer então, um pouco nos limites da minha mensagem, que há qualquer coisa que deve ser reforçada pela mensagem do outro? Por exemplo, o Sermão da Montanha, com este elemento de impassibilidade que é muito difícil aliás de assumir na vida quotidiana, esta impassibilidade é talvez dita com ainda mais força no desprendimento budista e na compaixão budista.
Hans Küng: É efetivamente uma questão muito difícil. Penso que se pode distinguir dois níveis de resposta. Existem, por um lado, as questões que estão especificamente ligadas à fé, ao dogma, teorias muito específicas, por outro lado, o nível da prática, do comportamento concreto, com as questões tais como esta: como é que eu me posiciono em relação ao meu próximo? São duas questões diferentes. Eu próprio, comecei com as questões que tocam a fé, o diálogo e é verdade, é preciso fazer tentativas, não posso elaborar coisas de forma puramente teórica. Creio que é preciso falar com os outros. Damo-nos então conta de que há um certo número de convergências. Por exemplo, com o budismo. Este último rejeita o conceito de Deus, mas tem ao mesmo tempo uma conceção da verdade derradeira, uma conceção do Nirvana que está muito estritamente ligada ao que nós entendemos por Deus, um conceito de Damakaïa. Seria difícil entrar no detalhe agora, mas nas questões da crença penso, apesar de tudo, que há uma convergência que poderíamos encorajar. No entanto, esta é apenas uma faceta da resposta, porque de acordo com a minha experiência neste diálogo, é muito mais fácil falar de comportamento concreto, de mandamento. Se encontrar um budista e lhe colocar a questão: aplica-se para si igualmente os mandamentos “Tu não mentirás, tu não matarás, tu não roubarás”, o budista dirá: sim, é igualmente a nossa conceção. Refleti durante muito tempo para saber como se podia fixar um consenso. No diálogo, vi que havia certas linhas diretrizes que existiam em nós, cristãos, nos judeus encontravam-se no Decálogo, e encontraremos também esses mandamentos de ética no Corão, nas religiões asiáticas. De que se trata? É preciso fazer abstração do facto de que no domínio teórico, da fé ou do dogma, existem muitas divergências, até conflitos. Uma convicção deve então guiar-nos: devemos viver em conjunto, pensar em todas as experiências que vivemos, conhecer todas as pessoas que vêm de outras religiões e pensar que podemos dialogar perfeitamente com elas, bem melhor do que com uma pessoa reacionária na nossa própria religião.
Paul Ricoeur: Vejo nesse caso uma dificuldade que seria a de dizer nesse momento: eh lá! Vamos colocar mesmo os conteúdos das nossas religiões a que chamamos dogmáticos entre parênteses e depois vamos falar do que temos em comum. Mas então, será que não desembocaremos numa espécie de moral comum que pode perfeitamente dispensar o apoio, o enquadramento religioso, teológico, daquilo que faz com que os mandamentos “Não matarás, não mentirás” e todo esse respeito profundo pela pessoa do outro, pela sua
dignidade, possa estar enraizado a cada momento numa crença religiosa específica? É o cerne do religioso e da ética que está aqui em questão, porque para o cristão dizer “Tu não matarás”, é fundamentalmente reconhecer a especificidade do sacrifício de Cristo, dado que ele é precisamente a vítima. Penso no dito de Pascal: “Por Ti derramei muitas gotas do meu sangue”. Aqui, é um dito cristão que diz “Tu não matarás”, na linguagem do cristianismo. Então, será que deveremos colocar de alguma forma entre parênteses o suporte, o acompanhamento e se assim posso dizer, a energia fundadora do religioso? E se o despojamos, não ficaremos com uma espécie de moral pobre?
Hans Küng: Sim, mas então não pensa que um judeu, que não crê em Jesus Cristo, possa dizê-lo também. Nós temos este mandamento “ Não matarás” e retomámo-lo da religião judia. Porque, de facto, “Não assassinarás”, pode um judeu dizê-lo igualmente e mesmo um muçulmano o aceitará. Não podemos assassinar um inocente. Muitos muçulmanos protestam hoje contra o facto desses indivíduos que perpetraram os atentados em Jerusalém ou Tel Aviv se referirem ao Islão. Essas regras não são simplesmente regras cristãs que fomos buscar ao Sermão da Montanha ou às palavras de Jesus Cristo. Irei mais longe: você é também um admirador das Luzes e no mundo católico criticaram-no por isso. Um agnóstico, um ateu, podem perfeitamente fazer suas essas formas da ética humana, este ethos humano. Acredito por isso que é preciso fazer uma distinção, por um lado, entre a norma enquanto tal, o “Não matarás” e, por outro lado, a razão que funda esse preceito. Um cristão poderá fundir isso com o Novo Testamento, um judeu com a Tora, um muçulmano com o Corão. E depois um agnóstico que vive na Polónia, por exemplo, que tem um passado de educação do Partido único ou um outro qualquer da antiga RDA poderão motivar isso mesmo de modo estritamente humano. É preciso então fazer uma distinção entre, por um lado, o dito, o mandamento, a norma e depois as razões dessa mesma norma, por outro lado.
Paul Ricoeur: Nesta medida, a própria ideia de uma Declaração assentará precisamente sobre esses pontos de acordo, mas pergunto: será que eles não serão, neste caso, completamente despojados de força de arrebatamento e empregaria ainda uma outra palavra, de uma espécie da aprovação fundamental que cada crente de cada confissão encontrará na estrutura profunda da sua religião? Compreendo que você chegue a esta afirmação: “Não matarás, não mentirás”, precisamente enquadrada e diria mesmo reforçada pela convicção de que não é uma palavra que inventamos, mas uma palavra que nos é confiada porque vem de mais longe que nós.
Hans Küng: É preciso que possamos viver em conjunto, e esta experiência não diz respeito unicamente ao mandamento: “ Não matarás”. Queria aqui falar do nosso “Manifesto para uma ética planetária”. Emana do Parlamento das religiões do mundo, reunido em Chicago em 1993. Estiveram lá representantes de todas as religiões do mundo. Todos esses indivíduos devem poder dialogar. Esse Documento, esse Manifesto que se pronuncia em prol de uma ética planetária, foi assinado pelo Dalaï Lama, que contudo não reconhece qualquer Deus, pelo arcebispo de Chicago, por rabinos, por intelectuais muçulmanos, e todas essas pessoas têm uma outra supra ética uma outra motivação. O que me interessa, não são tanto as motivações de uma pessoa humana, mas que os indivíduos possam aceitar viver em conjunto, porque as bases que são lançadas aqui são ainda muito elementares. Cada pessoa humana é o primeiro princípio, deve ser tratada de forma humana. O segundo princípio reside no mandamento seguinte, “não faças ao teu próximo o que não gostarias que te fizessem”. Esse princípio existia já em Confúcio, quinhentos anos antes de Cristo, igualmente no rabino Hillel que viveu alguns decénios antes de Cristo. Enquanto cristão estou inteiramente convencido de que a regra de ouro pode ser ainda melhor justificada para mim, se eu me referir a Jesus Cristo que teve um compromisso completamente diferente até à sua morte por esse mandamento, mas não posso contar com o facto de o judeu compreender isso ou o muçulmano, porque eles vêem-no de forma diversa. Mas há mesmo assim a regra de ouro.
Paul Ricoeur: Ao querer a todo o custo que esse Manifesto não seja abstrato, retorno novamente a esse termo abstrato, abstrato não no sentido de ser racional, mas de estar separado de um fundo de convicções, será que não cairemos numa espécie de Declaração fácil que consistiria em dizer que decidimos não levar em conta aquilo que nos separa, enquanto o verdadeiro problema é talvez compreender o que nos separa conseguindo antes dizer, através de um trabalho sobre si mesmo, de um trabalho em imaginação e em simpatia: podemos chegar a esta mesma regra partindo de um ponto de vista, de um outro enraizamento no
fundamental. Volto a esta expressão de fundamental, a esta espécie de excesso que há numa convicção, a essa qualquer coisa que eu suspeitaria que não pode ser posta numa Declaração. No seu livro, emprega por vezes a expressão de “realidade fundamental”. O termo é muito abstrato, é sobretudo da filosofia, não é mais da religião, é abstrato no mau sentido da palavra, no sentido conceptual, racionalista. Não será preciso recolocá-lo na dinâmica profunda da convicção para que ele recupere a sua forma de arrebatamento, de aprovação, tendo, ao mesmo tempo, o sentimento da anterioridade da Palavra, da superioridade da Palavra que me conduz e que faz com que eu diga, não fui eu que coloquei esta regra; ela foi-me confiada de algum modo. Regresso portanto à minha questão: o problema não será antes o seguinte: mais do que reunir as convicções morais comuns há que indicar o caminho de cada religião para esse fundo comum?
Hand Küng: Isto é já a condição. Se tem oito mil pessoas que vão a Chicago, provenientes de todas as religiões, elas já conhecem as suas diferenças, isso vê-se logo nos seus hábitos, nos seus comportamentos, em diferentes aspetos. A diferença é um facto. Sabemo-lo, somos diferentes. Um judeu sabe que é diferente de um cristão, um cristão sabe que é diferente de um judeu. Aceitamo-lo como ponto de partida. Mas se eu estou na Palestina ou na Bósnia, se eu estou em Sarajevo, é preciso apesar disso que eles todos, os judeus, os cristãos, os muçulmanos possam coabitar. Não é preciso falar de forma contínua das nossas diferenças. É preciso que consigamos dialogar e colocarmo-nos de acordo sobre certos pontos fundamentais. É, também me parece, a sua experiência pessoal. Por vezes, encontramo-nos de facto de acordo com um rabino que pensa a mesma coisa que eu, ou um intelectual muçulmano. Penso que é muito importante constatar que se queremos ter a paz, por exemplo, na ex-Jugoslávia, é preciso igualmente que haja nessa região a paz nos seus espíritos e não unicamente nos decisores políticos que assinaram o seu tratado, porque não se trata apenas de uma paz entre os povos, é necessário que haja paz nos seus espíritos, nos seus corações, e para isso é preciso que exista um mínimo de regra de vida comum. A nossa Declaração não é
de todo abstrata, ela é bem concreta. Se está a referir-se, por exemplo, ao que dissemos quanto à obrigação de não-violência, quer em Sarajevo ou em Jerusalém, trata-se de cada vez de uma situação diferente. Não deverão as diferentes religiões e os seus representantes comprometer-se? Por que razão compreendemos tão pouco os bispos croatas, os metropolitas ortodoxos, que deveriam ressalvar esses pontos em comum? A mesma coisa vale igualmente para os outros. Por que razão compreendemos tão pouco os muçulmanos, os representantes judeus, as autoridade cristãs em Jerusalém? Aqui, as religiões são chamadas a enfatizar os seus próprios princípios que muitas vezes são princípios comuns no que diz respeito à ética.
Paul Ricoeur: Aceitaria dizer que temos de trabalhar em múltiplos níveis? Temos de trabalhar a um nível, direi, de proclamação popular onde, efetivamente, é preciso separar as pessoas da estreiteza das suas convicções, dos seus fundamentalismos que lhes fazem dizer: eu vivo na minha confissão tal convicção e ela é hostil a todas as outras coisas, etc. Mas da mesma forma, nós intelectuais, nas nossas próprias confissões, dirigindo-nos aos nossos colegas com a mesma índole, com a mesma formação, no Islão, nas outras religiões, temos de fazer esse trabalho de vaivém entre a expressão mais simples desses mandamentos e, ao mesmo tempo, a extrema dificuldade em vivê-los com profundidade na convicção. Poderíamos ter uma excelente discussão a propósito da não-violência, porque é certo que a não-violência não está inscrita da mesma forma no budismo e nos diferentes monoteísmos. Você mesmo notou, nessa Declaração que havia uma grande dificuldade em encontrar até o vocabulário comum.
Podemos colocar-nos de acordo contra o assassinato, mas subsiste a questão do socorro à pessoa em perigo, o dever de servir a sua própria nação quando ela é atacada. São questões fronteiriças que são de longe as mais difíceis. Direi: é preciso assumir a dificuldade do que assumir a facilidade. Retomarei de bom grado a expressão de Karl Jaspers, isto é, o “combate amoroso”, “lieberder Kampf”, e não uma espécie de conivência fácil. É preciso tornar difícil essa Declaração comum, é o preço a pagar em convicções por Declaração comum.
Hans Küng: Antes de mais, não é necessário pagar um preço particular se temos regras sobre as quais podemos colocar-nos de acordo. Hoje, não podemos viver numa escola sem regra comum. Em Paris, na Alemanha e na Suíça, em certas escolas, 50% das crianças são muçulmanas. Como deverão elas viver em conjunto? É preciso que também a esse nível haja uma espécie de consenso. Nós fazemo-lo na Alemanha. Temos neste momento, por exemplo, um concurso entre escolas, entre professores, sobre o tema: “como podemos ensinar melhor estas regras aos estudantes?” Temos atualmente cada vez mais adolescentes assassinados.
Recentemente, em Liverpool, duas crianças de dez anos assassinaram uma criança de dois anos. É necessário apesar disso que, cedo ou tarde, se ensine a estas crianças: “Tu não matarás” e, se as religiões não se unem, se não há ninguém para transmitir estas grandes normas da vida, não é caso para nos espantarmos que a taxa de criminalidade aumente precisamente no caso dos jovens. Nos Estados-Unidos, há quase cinco mil adolescentes mortos por balas todos os anos. É uma missão verdadeiramente incrível que é preciso enfrentar. O que fazemos entre nós, entre intelectuais, escrevemos volumosos livros, é bom, mas na prática creio que há missões muito mais importantes. Eu sei que esse Manifesto constituiu o objeto de
uma discussão em Sarajevo de forma a estabelecer uma base para saber como os muçulmanos, os judeus e os cristãos podiam colaborar. Certamente, do ponto de vista intelectual, é muito modesto mas, mesmo assim, colocar-se de acordo sobre o facto de que não podemos roubar seja o que for e sobre muitos outros aspetos que constituem os detalhes muito concretos, constituem um avanço. Existe o mandamento: “ Não matarás”, mas não há senão isso. Trata-se para mim desses problemas quotidianos concretos, a esse nível. E depois, há um outro nível, o nível dos intelectuais, realizamo-lo, discutimos em conjunto, você e eu e aí é preciso um outro estilo.
Paul Ricoeur: Sim, é outra coisa, mas é outra coisa essencial, se precisamente levarmos a sério o facto religioso. Retomo a comparação com as línguas que esbocei há pouco. É um facto espantoso, e aliás perturbador, que a linguagem não exista em lado algum como uma língua universal e que haja línguas. O problema é então a “Verschiedenheit der sprachen” (“A multiplicidade das línguas”). É inevitável portanto viver nesta multiplicidade das línguas. Veja o fracasso do esperanto. Não podemos falar o esperanto. Não podemos mais conservar-nos ao nível de uma sociologia comparativa das religiões, e dizer de alguma forma: eu olho as religiões de cima, estou acima de todos e vejo que há qualquer coisa de semelhante aqui, qualquer coisa de semelhante ali e diferenças. É do próprio interior da história, como é igualmente do próprio interior de uma língua, que o problema é compreender o que é dito numa outra língua e que não é dito na minha própria língua. É um trabalho, direi “difícil” de tradução, com as duas vertentes da tradução, porque, por um lado, eu aprendo a habitar numa língua estrangeira e, por outro lado, eu acolho-a em mim. A esse respeito, empregava há pouco a expressão “hospitalidade linguística”. Não será este trabalho de um grande ecumenismo que seria como uma espécie de hospitalidade de convicção, onde seria reconhecida, não só a expressão comum em ética, mas igualmente a diversidade dos caminhos para chegar a essa ética a partir de um fundo de convicções que é mais do que ética?
Hans Küng: Poderei facilmente continuar a nossa conversa em francês ou em alemão. Posso falar então como cristão mas, se for preciso, posso igualmente falar, em inúmeros casos, como um muçulmano embora não tão bem quanto ele. Não conheço, de facto, o francês como Paul Ricoeur mas posso mesmo assim compreendê-lo. Posso dar-lhe um testemunho que é completamente instrutivo nesse sentido: aquando de uma conferência onde um teólogo cristão atacava um muçulmano, este último não se defendeu. Fiz-lhe de seguida a pergunta: porque não se defendeu? Ele respondeu-me: eu sabia que você faria a nossa defesa e é muito melhor se você, enquanto cristão, nos defender. Logo, devemos aprender a pensar na língua do outro. Isso não vale unicamente entre o francês e o alemão, isso é também válido entre os cristãos, os judeus, os muçulmanos e os outros também. Obteremos assim, tranquilamente, um início de compreensão. Estou, todavia, de acordo consigo: não deveríamos deixar-nos ficar num alto como se lá tivéssemos sido colocados por um helicóptero, quero dizer com isto um cume de teologia e fazer as nossas comparações lá de cima, porque ninguém tem uma visão de conjunto.
Paul Ricoeur: Está portanto de acordo de que não há lugar de destaque de onde se veriam as dificuldades…
Hans Küng: Completamente de acordo.
Paul Ricoeur: A minha sugestão seria dizer que cada um de nós tem de fazer o seguinte trabalho: não podendo permanecer, por assim dizer, à superfície das crenças, das expressões populares, etc., onde as distâncias são enormes, é preciso que cada um trabalhe em profundidade, de forma a diminuir a distância que diz respeito à questão de fundo. A minha pergunta seria então esta: será que não tocamos em alguma coisa que não é dita em algumas das religiões, num não-dito por assim dizer que seria precisamente como o fundo místico do fundamental que não passa completamente para a língua? Longe de uma Declaração comum quase tocaríamos num silêncio comum sobre o que não pode ser dito. É esse silêncio profundo que nos pareceria muito mais do que uma Declaração sobre os princípios éticos, dos quais podemos sempre dizer que não têm nenhuma necessidade de fundamento religioso.
Hans Küng: Não vejo aqui qualquer contradição. Certamente, um cristão sabe que não compreenderá Deus. Ele atinge um limite onde a linguagem se detém, onde não possuímos mais os conceitos necessários, onde a fantasia não contribuirá mais; há então um limite
último, e mesmo o melhor teólogo está submetido a isso, ele não poderá desvendar o segredo de Deus. Neste sentido, poderíamos reproduzir célebres citações de São Tomás de Aquino, de outros teólogos. Creio que se trata aí de um elemento comum. Um budista di-lo-á também: a realidade última não é possível de compreender. De uma certa forma, só podemos vivê-la. É uma dimensão que é dada em todas as religiões. Se fazemos então uma Declaração como esta, não falamos da verdade última senão à margem, isso deve ser mencionado simplesmente, mas esse Manifesto não vai além. De facto, trata-se simplesmente de saber como poderão os cristãos, os muçulmanos, os budistas viver em conjunto. E isto é uma questão que não depende na nossa conceção do mistério.
Paul Ricoeur: O que podemos inscrever na Declaração comum é este apelo a cada um de ir procurar no mais fundo da sua tradição o que o une subterraneamente, mas a um ponto que precisamente ninguém domina. Isso parece-me fundamental, para voltar ao nosso ponto de partida que dizia respeito à questão da violência. Porque, como vencer a tendência para a violência de uma convicção religiosa, senão indo em direção ao fundo que ela própria não domina, que ela não pode expor como fórmula dogmática e que, por assim dizer, a dirige como de longe, a partir de um ponto obscuro, da luminosidade de um ponto obscuro.
Reconheço que esse ponto de luminosidade obscura deve ser o mesmo noutro lado mas eu não sei de que forma. É preciso encontrar na diferença mais extrema o ponto de silêncio e o ponto de reunião que não esteja mais ao nível verbal de uma Declaração. O que será então tocado pela prece não o será por uma prece de exigência, bem entendido, mas por uma prece de reconhecimento, do ponto de vista cristão, pela meditação do judeu na casa de estudo, pelo trabalho de Iluminação no budista e no modelo, precisamente, do primeiro Iluminado, Buda.
Hans Küng: Neste Manifesto é dito, no final: “Nós pugnamos por uma evolução individual e coletiva da consciência, por um despertar das nossas forças espirituais, pela reflexão, pela meditação, pela prece, por um pensamento positivo, por um retorno a si dos corações”.
Pensamos que esse retorno a si do coração é justamente necessário. Mas é preciso mais do que um simples “silêncio”, é necessária também uma evolução profunda da consciência para que as questões do ethos sejam de novo apreendidas. Vimo-lo em três domínios em que conhecemos uma evolução muito profunda. Você, eu e todos os espetadores o sabem, nós não temos mais o mesmo pensamento quanto à guerra e à paz que tínhamos há vinte ou trinta anos, não temos mais a mesma conceção respeitante à economia e à ecologia que há vinte ou trinta anos, não temos mais a mesma visão das relações entre o homem e a mulher que há vinte ou trinta anos. E se, nesses três domínios, assistimos a uma evolução da consciência, isso deve igualmente ser possível para outras questões que estão ligadas, tal como a ética.
Paul Ricoeur: O que é importante, é que cada um descubra que aquilo que o conduz a esse respeito pela vida, pela palavra, pelo sexo, pela justiça social, provém de um ponto que, justamente, não está ao mesmo nível que estas declarações éticas. É preciso abordar um problema que não colocámos ainda: em que medida essas religiões são ainda religiões, o que faz com que sejam religiões é o facto de qualquer coisa ser dita, de cada vez, a partir de um lugar que eu não ocupo e é desse lugar que não ocupo que surge a obrigação de pronunciar essas palavras éticas comuns. Mas, ao mesmo tempo, a razão para pronunciar essas palavras não me pertence, compreendo que o outro chegue aí por um outro caminho; este fundamental não circula senão a partir do que um e outro não dominam. Seria aí que residiria o fundo da não-violência de uma religião. Entenda-me bem, se ao longo desta discussão, insisti sempre sobre este fundamento último, este fundamento profundo, não era para fugir para outro lado, mas era de modo a encontrar razões fortes para combater, aqui e em nós e nas nossas confissões, a tendência para o fundamentalismo e, logo, tudo aquilo que é suscetível de ser fonte de violência. Para reencontrar, por assim dizer, a motivação da não-violência da minha própria convicção, é preciso que eu encontre no próprio fundo da minha convicção motivo para condenar e quebrar o momento de violência da convicção, para reencontrar no fundo da convicção o que não posso dominar. Dito de outra forma, não sou o mestre do sentido. Creio que é necessário, de cada vez, lembrar isso no instante mesmo em que penso ser portador de uma mensagem. Não só essa mensagem me ultrapassa, como também me desarma. E é na medida em que ela me desarma que eu posso dirigir-me ao outro para esperar que ele faça o mesmo caminho. Penso em particular no caso do Islão. Estou convencido, é a minha grande convicção, que o Islão fará à sua maneira um caminho semelhante ao nosso. Por causa dessa história infeliz do colonialismo e de todos os tipos de repressão, devido à situação geográfica o Islão está em grande parte no terceiro-mundo; ele próprio foi vítima de tanta
violência que foi igualmente impedido de fazer esse caminho. Está verdadeiramente aí a minha convicção religiosa profunda de que todas as religiões são capazes de fazer esse caminho contra elas mesmas e contra o seu próprio fundamentalismo. Tenho grande confiança no Islão que hoje condena as violências ditas ao nome do Islão.
Hans Küng: Não pensa que este é um problema, que não apenas próprio dos muçulmanos, mas também dos cristãos, na medida em que temos igualmente cristãos que vivem na Idade Média?
Paul Ricoeur: Absolutamente. Chego aqui com a vergonha do que é dito em nome, por exemplo, do protestantismo na Irlanda do Norte. É esse trabalho, justamente, que não é simplesmente intelectual mas igualmente, como você o disse, que é um trabalho do coração. Deve existir aí, nos recursos de cada religião, qualquer coisa de semelhante ao que nós chamamos conversão, que é um movimento de retorno contra a componente de violência de uma convicção.
Hans Küng: Creio que em todas as religiões existem integristas e em todas as religiões existem também pessoas abertas. Há muçulmanos que têm as mesmas ideias sobre as Luzes que você e eu.
Paul Ricoeur: Fez alusão aos que não professam qualquer religião. Creio que temos necessidade igualmente da palavra da Aufklärung. E a grande oportunidade do cristianismo é de ter sido confrontado desde o início, graças à Grécia e a toda a herança do racionalismo, com esse conflito do que chamei o conflito da convicção e da crítica. É na medida em que nós levamos este combate no interior da convicção e com o apoio do exterior e do exterior de toda a religião, que temos necessidade do ateu, para nos compreendermos, nós crentes e para compreender os outros crentes que professam outras crenças que não a nossa.
Hans Küng: É obrigatório fomentar o diálogo. Não temos escolha. Quando evocamos a situação da antiga Jugoslávia e do Médio Oriente, temos exemplos em que se tratou da separação uns dos outros e não fizemos nada para tentar dialogar uns com os outros. Não haverá, a prazo, paz entre as religiões sem um diálogo entre essas mesmas religiões. Há muçulmanos que são esclarecidos como há judeus que são abertos e igualmente cristãos. Por isso, a Aufklärung, na medida em que ela vai no sentido dos direitos do homem, deve impor-se por todo o lado.
Paul Ricoeur: Voltaríamos aqui a encontrar o que é não-político numa convicção, não-político no sentido de ser desprovido de poder. É esta espécie de autocrítica da posse do poder em nome da verdade que nós devemos sempre voltar a fazer em nós mesmos. É nisso que temos necessidade das outras religiões e talvez da crítica que elas exercem em relação à nossa própria religião, para podermos ultrapassarmo-nos, aceitando sempre a leitura que, pelos outros, é feita do exterior sobre nós mesmos.
Hans Küng: A experiência que adquirimos no diálogo entre católicos e protestantes renova-se no diálogo entre os judeus, os cristãos e os muçulmanos e também com outras religiões. Todas as questões que nós dirigimos ao outro têm muitas vezes um reverso da medalha. Se eu coloco a questão relativa à violência no Islão, é preciso que eu tome consciência que esta é igualmente uma questão para o mundo cristão. Que é feito da nossa conceção da religião? Comparamos muitas vezes o ideal do mundo cristão com a realidade das outras religiões. Dizemos que somos a religião do amor, da paz e que os outros são as religiões da guerra, da Jihad, enfim da violência. De facto, o mundo cristão teve séculos durante os quais levou a cabo
guerras de religião.
Paul Ricoeur: Chego quase a este paradoxo segundo o qual o problema não é apenas o ecumenismo entre confissões cristãs, pois temos também necessidade de uma certa forma das outras religiões para conduzir o nosso próprio combate para o ecumenismo no interior do cristianismo; dito de outro modo, é através do exterior que podemos encontrar a palavra do interior e a palavra entre nós. Por outras palavras, entre cristãos de diferentes convicções, temos necessidade da palavra dos não-cristãos para que ela nos ajude a levar a cabo esse combate.
Hans Küng: É de facto isso que me dá alguma esperança. Penso que é igualmente o seu caso. Se é possível estabelecer a paz entre católicos e protestantes que tiveram, durante séculos, guerras abertas, se é possível ter a paz entre eles, deve também ser possível entre outras religiões. Se estamos reunidos hoje aqui e se podemos esquecer que os franceses e os alemães fizeram guerras mundiais, lutaram até à destruição total, se isso é possível, então deve ser igualmente possível encontrar uma solução entre croatas e sérvios na Bósnia, mas para isso é certamente necessário que coloquemos uma outra dimensão aos responsáveis. Sempre admirei o facto de Charles de Gaulle e Konrad Adenauer terem celebrado a reconciliação entre a França e a Alemanha através de uma missa na Catedral de Reims.
Paul Ricoeur: Não é forçoso, justamente, que seja uma partilha de poder em que se colocaria a religião no poder ou como sustentáculo do poder. É preciso sempre preservar a dimensão não-política, a dimensão de não poder, para que o poder de uma palavra fraca politicamente tenha uma oportunidade de ser entendida por outros.
Hans Küng: É preciso, na verdade, dizer claramente que a paz não tem unicamente uma dimensão política, uma dimensão jurídica, mas igualmente uma dimensão ética e uma dimensão religiosa. Se esses elementos convergem, então a paz será possível. Temos conhecido situações positivas em que tivemos uma transformação radical que foi possível sem derramamento de sangue. Isso aconteceu na ex-RDA, na Checoslováquia, nos países de Leste, mas aconteceu também na África do Sul, nas Filipinas. Nestes países, havia por todo o lado pessoas motivadas pela religião que disseram: não queremos mais este sistema. Queremos mudar as coisas, não queremos mais comunismo, apartheid, regime Marcos, mas o nosso não
implica não derramamento de sangue, queremos chegar a isso pela não-violência. Podemos ver aqui, através destes exemplos, o que as religiões podem fazer com a sua força interior no sentido da não-violência.
Paul Ricoeur: A esse respeito, se tivesse de dizer uma palavra de esperança, seria para afirmar que haverá sempre, aqui, ali, em cada confissão, uma palavra forte que dirá: não, não mates, diz a verdade, sê justo, respeita os fracos.
Hans Küng: Exatamente.


"As religiões, a violência e a paz. Para uma ética planetária". Canal Arte, 5 de Abril de 1996. Emissão proposta pela divisão de programas documentais. Redacção: Laurent Andres. Publicado em Sens (revista da Amitié judéo-chrétienne de France), nº5, 1998, p. 211-230. Tradução de Hugo Barros. (fonte)