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Darcy Ribeiro (1995)

Matinas Suzuki: Boa noite. O Roda Viva de hoje traz de volta um dos grandes momentos que o programa teve ao longo de seus dez anos: a entrevista com o escritor, antropólogo, pedagogo e político Darcy Ribeiro, um dos mais importantes intelectuais brasileiros. O programa que reapresentamos foi exibido em abril de 1995, quando Darcy Ribeiro lançava dois novos livros: O povo brasileiro e O Brasil como problema.

[Comentarista]: O "furacão Darcy" começou a se formar na década de 1940, sobre as aldeias indígenas. Aos 24 anos, recém-formado em sociologia pela USP, Darcy Ribeiro vira índio. E durante dez anos trabalha como etnólogo junto às tribos do Pantanal e da Amazônia. De volta à civilização, Darcy ajuda a estruturar a Universidade Nacional de Brasília, torna-se seu primeiro reitor e assume o ministério da Educação e Cultura de João Goulart. O Golpe de 1964 tenta barrar o “furacão Darcy”, a essa altura chefe do gabinete civil de Jango. Darcy é preso e vive fora do país por longos dez anos. Em 1978, o clima muda e ele volta à política. Quatro anos depois, é eleito vice-governador de Leonel Brizola no Rio. Em uma festa de posse, em que não faltaram beijos de Darcy para o público e do velho beijoqueiro no governador. Eleito senador pelo Rio em 1990, Darcy luta contra um câncer que teima em querer abatê-lo. Mas a doença enfrenta um páreo duro. Empurrado pela enorme energia, vontade de viver e pela brisa que sopra na sua casa em Maricá, o furacão Darcy está mais forte do que nunca.

Matinas Suzuki: Bem, para fazer esta entrevista histórica com o senador e antropólogo Darcy Ribeiro, nós convidamos hoje o jornalista Zuenir Ventura, que é repórter do Jornal do Brasil; a socióloga Maria Victoria Benevides, que é professora da USP; o comentarista da Rede Cultura e diretor da revista Placar, Juca Kfouri; o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, que é editor de domingo da Folha de S. Paulo; o colunista de O Estado de S. Paulo José Castello e o jornalista Ricardo Noblat, diretor de redação do Correio Braziliense.

Matinas Suzuki: Boa noite, senador Darcy Ribeiro. O senhor, vendo as imagens que a gente colocou aí, disse que “tinha saudades de mim mesmo”. O que o senhor quis dizer com isso?

Darcy Ribeiro: Isto. Cada vez que eu vejo imagens dessas, que me colocam nas posições que eu ocupei, eu fico com saudade. Por que que eu não fiquei ali? Por que que eu não fiquei com os índios, tratando só de índio? Por que que eu não fiquei só na universidade dando aulas? A minha vida é uma variação constante. Eu sou um homem inconstante. Se eu ficasse em uma coisa só, eu poderia ser o melhor etnólogo do mundo, porque eu sou competente nisso. Mas enjoei. E depois eu poderia ser o melhor educador do mundo também, um dos melhores, como Anísio Teixeira. Fui ministro da Educação, poderia ter ficado nisso, quietinho. Mas a política era irresistível. Fazer alguma coisa para o Brasil melhorar, fazer alguma coisa para mais gente usar os instrumentos do poder para mudar. Depois caí do cavalo, me jogaram no exílio. E lá eu fiquei, pondo remendos nas universidades, inventando novas universidades, dando conferências, e, digo de mim e do Fernando Henrique que “nós comemos o amargo caviar do exílio”, porque no primeiro dia estávamos contratados. Então, muitos exilados passaram uma vida muito dura, eu não gosto muito de falar do meu exílio, que o meu exílio foi um passeio muito bonito, contratado de país em país. Então eu vim na minha vida variando assim. No Rio, ao voltar, fui eleito. Fiz coisas formidáveis, quinhentas escolas para mil alunos. Uma universidade nova [Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), implantanda em 1993]. Te digo: o ministro da Educação esteve lá para dar a aula inaugural. E disse que esta nascente universidade, que eu estou fazendo no norte do Rio, essa nascente universidade é a quarta universidade do Brasil.

Matinas Suzuki: É em Campos a universidade?

Darcy Ribeiro: É em Campos. Mas é uma universidade que eu chamo do terceiro milênio. Feita para dominar a ciência mais avançada e dominar a tecnologia mais avançada. Porque é a minha convicção que ou nós comemos e dominamos o saber moderno ou nós vamos ser recolonizados. O mundo está mudando tanto, a cena está mudando tanto, que é preciso fazer isso. Então nós estamos criando uma universidade lá no Rio de Janeiro que quer ser o que Campinas foi. Campinas, de fato é herdeira de Brasília. Nós tínhamos criado a Universidade de Brasília; a ditadura liquidou com ela. Um grande paulista foi lá, aceitou o cargo de reitor, Zeferino Vaz [(1908-1981), idealizador e um dos responsáveis pela criação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)]. Tentou, mas quando Zeferino Vaz viu que o ódio da ditadura contra a universidade era grande, ele largou. Veio aqui e falou com o Ademar [Pereira] de Barros [(1901-1969), médico e empresário, foi prefeito da cidade de São Paulo, interventor federal e duas vezes governador de São Paulo] e conseguiu recurso para fazer Campinas. Que era retomar a idéia de Brasília, que não era minha, que era da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], que é da comunidade científica. Bom, deixa a pessoa perguntar, se não eu começo a falar e não paro.

Matinas Suzuki: Senador, eu queria aproveitar a oportunidade para a gente dar um furinho aqui no Roda Viva. O senhor está lançando os dois livros e está com eles aqui. O senhor poderia falar para os nossos telespectadores sobre esses dois livros que o senhor está lançando?

Darcy Ribeiro: Posso. Posso com muito gosto. Primeiro, é o seguinte: este livro é o livro mais importante meu, O povo brasileiro. Deve sair dentro de uns dez dias, não está editado ainda. É o primeiro exemplar. O povo brasileiro tem 30 anos e 40 dias. Durante trinta anos eu quis escrever esse livro. Tomei nota, estudei, porque a minha convicção, quando eu o comecei a fazer no exílio, eu queria saber por que que o Brasil não deu certo, quando eu estava no exílio. Por que perdemos? Por que, mais uma vez, a direita ganhou? Por que o Brasil não deu certo do ponto de vista do seu povo? E vi que eu não podia fazer esse livro, porque faltava uma teoria sobre o Brasil. E levei 30 anos escrevendo uma teoria geral. Uma teoria geral do mundo, das Américas. São cinco livros, que têm noventa e seis edições em várias línguas. E esses livros... ter escrito os cinco e não escrever o final, para o qual eu me preparei, era uma loucura. Então, quando eu via que estava morrendo, eu ia lá e aquele pessoal ia me matar naquela UTI [risos]. Eu fugi do hospital para viver e fugi para escrever esse livro. Então, eu escrevi esse livro nos 30 anos que eu me preparei e mais quarenta dias, depressa, com muitas secretárias para fazer ligeiro, antes de morrer. Parece que eu não vou morrer mesmo… Passar 30 anos indo e voltando, consegui. Então esse livro para mim é muito importante porque nós não temos uma teoria global do Brasil. Por exemplo, Gilberto Freyre fez um livro admirável que é o Casa grande & senzala, mas é o mundo do engenho. É o mundo do açúcar. Mas este mundo... mais importante que aquele, que é o mundo de São Paulo, que é o mundo das bandeiras, que é o mundo de Minas, que é o mundo do sul, que são os outros Brasis, não estavam descritos e não estavam interpretados. Então, eu tento essa interpretação. Esse livro… a convicção a que eu chego é de que uma das coisas mais belas do mundo foi a aventura do Brasil se fazendo a si mesmo. Um povo que constitui um novo gênero humano. Não tem novidade nenhuma em fazer a Austrália: pega um bocado de ingleses e escoceses e joga no terreno vazio e eles matam os índios e ficam lá e fazem uma Inglaterra sem graça [risos]. Isto daqui é bobagem. Mas fazer um gênero humano novo, fundir herança genética e cultural, índia, negra e européia num gênero humano novo, numa coisa nova, que nunca houve. É isso a aventura brasileira e que eu resumo dizendo que o que nós somos, mesmo, é uma nova Roma. E argumento: há dois mil anos atrás os soldados romanos saíram lá da Itália, da Enestrúlia, conquistaram, não se sabe muito bem como, a península ibérica, ficaram lá. Conseguiram latinizar a península ibérica e resistiram às invasões escandinavas, depois de 700 anos de dominação árabe, mantendo a língua e mantendo a "romanidade". Mil e quinhentos anos depois saltaram ao mar e vieram aqui e aqui é que deu certo. Você veja, a França não se expandiu. A Itália não se expandiu, ficaram lá comendo a sua comidinha, [...?] muito menos. O que expandiu foi a Ibéria. E a Ibéria veio e construiu esta coisa, equivalente ao mundo neobritânico, o mundo neolatino – do qual nós somos a unidade principal. É a nossa nação neolatina que é a mais rica, a mais futurosa. Então nós somos a nova Roma. A nova Roma é o Brasil. Uma Roma lavada em sangue índio, lavada em sangue negro, melhor, tropical, e que está chamada a representar um importante papel no mundo. E esse livro mostra lentamente, cuidadosamente isso. E eu creio que ele tem uma grande beleza também, porque é uma beleza a aventura do nosso povo se fazendo a si mesmo. Tal como uma figura terrível: a brutalidade, a incapacidade, a mediocridade da nossa classe dominante, que aqui o que faz é enricar, é ter vantagem para ela, é juntar, é gastar. O Brasil sempre foi um moinho direto da gente, moeu, liquidou seis milhões de índios que tinha aqui. Liquidou. Mais 12 milhões de negros africanos. Pra quê? Para adoçar a boca de europeu com açúcar. Para enriquecer com o ouro de Minas Gerais. Então, a classe dominante sempre se deu bem e continua se dando bem. Mas o povão está aí, com uma fome que é espantosa. Por que fome neste país? Por que criança sem escola neste país? Por que que nós só somos melhores, só somos melhores, excluindo São Paulo, do que Bangladesh, em educação? É pra morrer de vergonha. Então, tanto é bonito este povo se reinventando, se fazendo, se construindo, como esta classe dominante medíocre, que a gente tem que dar um jeito nela, para obrigá-la aceitar que o Brasil realize suas potencialidades, de uma nova civilização, de uma nova Roma.

Matinas Suzuki: E o senhor podia falar um pouco sobre o outro livro [O Brasil como problema] também, já que são dois.


Darcy Ribeiro: Se você tem paciência...Este livro [O povo brasileiro], estou apaixonado por ele. Este outro, eu também gosto dele. Eu explico para vocês. É O Brasil como problema. Eu fiz nos últimos anos…
Matinas Suzuki: Você não gosta muito do título do livro, né: O Brasil como problema?


Darcy Ribeiro: Este daqui [O povo brasileiro] é sobre 500 anos. Esse [O Brasil como problema] é sobre o quadro da atualidade. Eu fiz uma porção de discursos no Senado. Fiz, nesse período, muitas conferências, meio eruditas. Mas tudo isso se perde. O que se publica como publicação oficial ninguém vê. Então eu senti... Tanta gente pedia cópias dos discursos do Senado ou de conferências que eu fiz, que eu resolvi tirar dos discursos o tom de discurso, pôr mais linguagem direta e reescrever como um livro para o público comum. O público comum só pode encontrar coisas na livraria. Então, eu fiz um livro que, é o que eu tenho dito... pus aqui coisas raras. Um pedacinho, por exemplo, do discurso que eu fiz em Copenhaguen [capital da Dinamarca], quando me deram doutorado honoris causa, por ser um artigo que eu gosto muito dele. Recomendo os leitores a lerem. Quando a Suíça fez 700 anos, a Suíça resolveu convidar doze intelectuais do mundo para irem lá olhar. Uma boca rica, podia ir para o hotel que quisesse, uma boca rica mesmo. Eu fiquei... poderia ter ficado três meses, eu não tinha tempo, fiquei um mês só. E convidaram doze intelectuais, "eminentes", dizem eles, para escrever para os suíços o que achavam da Suíça. Então eu escrevi um artigo de quarenta páginas, longo, que os suíços gostaram. Mas eu falo muito mal da Suíça. Leiam. Chama-se A Suíça e a suicidade [risos].

Marcos Augusto Gonçalves: Darcy, de que brasileiros o Terceiro Milênio vai se lembrar, além de você, é claro?

Darcy Ribeiro: Meu caro, é difícil. Eu sempre me pergunto... No ano 2500, há alguns livros que vêem do passado e vão ficar. Um que eu ajudei a pôr em circulação, que é o livro do Manoel Bonfim, vejam a história desse livro. Eu estava na biblioteca, em Montevidéu, olhando o fichário e encontrei uma ficha: A América Latina: males de origem, de 503 páginas, publicada em Paris em 1903. E eu sou brasileiro, e nunca ouvia falar. Depois eu vim a saber que o livro dele tinha provocado no Sílvio Romero, que era o mais eminente intelectual de então, um livro de contestação. Era um livro denunciando o racismo. Eu estou publicando esse livro agora na mais importante publicação, Hayacucho, de Caracas, como o ponto mais alto do pensamento latino-americano. E este livro vai ficar, ainda que ele estivesse até morto agora. Casa Grande & Senzala vai ficar. Do Florestan Fernandes, que é um eminente sociólogo, vai ficar um livro... que talvez não goste disso... que é um livro sobre os índios tupinambás [Organização social dos tupinambás (1949); A função social da guerra na sociedade tupinambá (1952)], que é de uma grande beleza. Vão ficar outros livros como um, que até é extravagante que eu diga isso, mas tenham paciência. É um livro que eu vou escrever, que eu estou acabando de preparar, mas vai ficar [risos]. Quem disse isso foi Lévi-Strauss. Eu levei para Lévi-Strauss ver o meu livro sobre o processo civilizatório, um livro teórico. E ele disse: “Me interessou”. E eu disse: “Meu mestre, que é isso? Eu escrevo um livro e é publicado. E ele disse: “Olhe Darcy, você é um príncipe da observação. Tem uma capacidade enorme de observação, tanto que eu uso muito os mitos e as coisas que você colhe. E por isso eu acho bobagem você fazer teoria”. E eu disse: “Então, eu colho material no campo e você teoriza? Isso é lá coisa que se diga?”. E ele diz: “Não, estou falando a sério. Porque os seus livros vão ficar, os meus não. Porque a teoria dura 20 anos”. E a convicção que eu tenho é a seguinte: os livros que focalizam povos que desapareceram, por exemplo, tantos os de Jean-Paul Roux [Les Turcs Deux Mille Ans du Pacifique à la Méditerranée (Os turcos: 2000 anos - do Pacífico ao Mediterrâneo], tantos outros livros que focalizavam uma forma do ser humano, esses livros ficam. Esse diário que eu tenho, que eu vou preparar para publicar no próximo ano, ou talvez depois, são 600 páginas dos dias que eu vivi... dois anos que eu vivi com os índios no Pará e no Maranhão. É o dia-a-dia.
Matinas Suzuki: Por que você não publicou isso até hoje?

Darcy Ribeiro: Esses livros desapareceram ou então não desapareceram, mas se descaracterizaram. Então, é muito provável que esse livro, por essa característica, fique. Alguma coisa da poesia… Carlos Drummond [de Andrade (1902-1987), mineiro e universal, um dos principais poetas brasileiros do século XX], João Cabral [de Melo Neto (1920-1999), pernambucano, foi diplomata e poeta brasileiro conhecido pelo rigor com que lapidava seus poemas], [João] Guimarães Rosa [(1908-1967), médico, diplomata e escritor brasileiro, considerado um dos maiores escritores do mundo. Tendo o sertão mineiro como pano de fundo, recontou ou recriou as "estórias" de seu povo com uma linguagem inovadora e alcance universal], Jorge Amado [(1912-2001), escritor baiano que celebrizou, no país e no mundo, personagens típicas da Bahia], quem não gosta de Jorge Amado? A verve do Jorge Amado, a criatividade, vai ficar. Nós já temos um acervo de literatura que nos retrata e que é o espelho em que o Brasil se olha. Nós aprendemos a nos olhar assim. As mulheres brasileiras aprenderam a fazer amor com o preto, foi lendo Jorge Amado, aprenderam que era factível [risos].
Zuenir Ventura: Senador, no inventário da sociologia ou da política ou da economia, o senhor acha que pode ficar algum livro do sociólogo e presidente Fernando Henrique Cardoso?

Darcy Ribeiro: Eu acho que Fernando Henrique ainda não escreveu seu livro ainda, ainda vai escrever. Fernando tem um livro muito editado de ensaios [Matinas Suzuki o interrompe: "O senhor podia fazer uma avaliação do"...], comse gênero, não gosta mais. Tem um livro teórico [Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, tese de doutorado de Fernando Henrique, defendida em 1962 na Universidade de São Paulo] sobre o negro no Brasil, mas em vez de usar o negro na Bahia ou o negro em São Paulo, onde tinha muito negro, ele foi estudar o negro em Pelotas [risos]. No Rio Grande do Sul não tinha negro nenhum, então não tem muita graça. O Fernando é muito melhor que os livros dele. O Fernando devia ter o direito de escrever um grande livro.

Ricardo Noblat: Como presidente, ele é melhor do que como sociólogo, ou não?

Darcy Ribeiro: Hein?

Ricardo Noblat: Como presidente ele é um bom sociólogo?

Darcy Ribeiro: Olhe, eu acho que o Fernando para ser presidente teve que fazer uma aliança, ele não seria presidente de graça. Então, Fernando é o presidente do PFL, é o presidente do PSDB, é claro que isso significa compromissos. Mas eu tenho impressão de que o Fernando verdadeiro vai ser o do segundo mandato, ele vai conseguir que o presidente seja reeleito e então ele será presidente, talvez, apoiado por nós, aí melhora.

Maria Victoria Benevides: Senador, "senador esplêndido", como eu gosto da sua expressão lembrando a recepção na Universidade de Brasília em que o reitor tinha esquecido como se chamava o reitor – que é magnífico, esse termo engraçado – que acabou saindo “esplêndido”. Então, é isso que eu me lembrei quando o senhor começou a falar. Mas uma frase sua, logo no começo, que o senhor poderia ter sido um grande intelectual em qualquer uma das áreas que o senhor trabalhou, pesquisou, trabalhou, fez teoria etc. Mas houve esta irresistível atração pela política. Eu gostaria que o senhor falasse sobre isso, porque hoje nós estamos vendo um descrédito, quase que absoluto, não apenas nos políticos individualmente, mas, infelizmente, na atividade política com a sua possibilidade transformadora. Eu, como trabalho justamente na criação de uma escola de governo para entusiasmar os jovens, aliás, o senhor esteve lá e foi um sucesso total, eu gostaria que o senhor desse esse testemunho, como é importante acreditar na atividade política, essa capacidade transformadora e o que que isso foi para o senhor.

Darcy Ribeiro: Política: é a atividade humana fundamental. É aquilo que move o destino humano. É aquilo que define o que vai acontecer com comunidades. É vitalmente importante. Há países que deram certo, por coincidência da história, ou por competência deles, e que não confiam em intelectuais. A Inglaterra não dá a menor confiança para o intelectual, nem para o sociólogo, nem antropólogo, nem para a escola. A Alemanha também não, os Estados Unidos também não. Mas países que não deram certo têm que dar um pouco de atenção. Então há um lugar para nós meditarmos sobre isso. No meu caso pessoal: eu, aos 17 anos saí de uma cidade pequena e caí em Belo Horizonte. Era um rapazinho inteligente, tentando estudar medicina, tomava bomba todo ano, e queria me suicidar, estava muito agitado. Escrevi um romance de 300 páginas, o que estudante de medicina não escreve, então eu tinha que tomar bomba. Mas o que me interessava ali era a guerra de integralistas e comunistas. E eu aderi aos comunistas. Por quê? Eu acho que é porque um chato foi integralista antes e eu não quis ficar com ele, eu não sei, eu não tinha preparação para saber. Os integralistas tinham um certo encanto como nacionalistas, que os comunistas não eram, mas eu senti... E também um livro do Jorge Amado [Vida de Luís Carlos Prestes: o cavaleiro da esperança, 1944] sobre o [Luis Carlos] Prestes [(1898-1990), militar e político comunista brasileiro, ocupou o cargo de secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro]... a figura do Prestes me impressionou muito. Os comunistas me fizeram muito bem. Os comunistas me fizeram responsável pelo destino humano. Me interessa o que acontece aos homens na Indochina, no Paraná, no Peru. Me interessa. Isso de você assumir o destino humano é muito importante. Tanto que os jovens de hoje, eu pergunto: quem é que vai fazê-los responsáveis pelo destino humano? Isto era muito importante. Isto me ajudou muito. Aí eu continuei brincando de comunista, mas eu fui para São Paulo, estudar em São Paulo. Em certo momento, foi uma briga muito grande com a minha família; larguei a medicina e vim estudar sociologia e antropologia aqui. E eu era orientador da célula da Light e eu brincava de ser comunista e queria ser comunista profissional. Mas, um dia, o Partido Comunista fez uma reunião, quando eu me formei. Eu devia substituir o Câmara Ferreira, que era diretor do Jornal Hoje, e eu queria isso. E queria ser um comunista profissional. Mas o Partido Comunista tinha mais juízo do que eu… Disseram: “Não, não faz isso, não [risos]. Você tem uma proposta de estudar os índios, vá estudar os índios”. Então, foi uma decepção. Eu creio que eu era tão agitado, que eu fazia medo neles. Eu devia ter um pendor trotskista,qualquer coisa assim… O certo é que eles me liberaram. Então, eu não sou renegado, nem fugido, nem nada, eu sou licenciado do Partido Comunista. E continuei nos próximos dez anos e fui trabalhar com os índios. Então eu não fazia política nenhuma. De repente, em 1954, eu levei o susto de minha vida: o suicídio de Getúlio. Eu disse: “O que é isso?”. Não há mar de lama? Este homem vai criar a Light e vai criar a Petrobras e, em função disso, ele é levado ao desespero e se dá o drama mais tremendo da história brasileira. Um homem de 72 anos, da minha idade, às sete da manhã, aponta um revólver e arrebenta o coração. Foi um modo de virar. A direita teria tomado o poder. O Lacerda [(1914-1977), Carlos Frederico Werneck de Lacerda, jornalista, escritor e político brasileiro; membro da União Democrática Nacional (UDN), deputado federal (1947–1955) e governador do estado da Guanabara (1960–1965)] teria sido o presidente da República. Quem foi eleito foi o JK. Ele deu uma virada tremenda na política brasileira. Essa virada fez a minha cabeça. E eu aí comecei a pensar: não é o meu papel tentar fazer o que é factível de melhor aqui e agora, em vez de sonhar com a revolução comunista improvável? Os comunistas que eu conheço não são capazes de dirigir este país. Não. Não têm competência. Então, eu caí em mim e deixei de ser…

Matinas Suzuki: Senador, o senhor acha que o comunismo não daria certo aqui no Brasil?

Darcy Ribeiro: Um Estado brasileiro poderia até fazer dar certo, podia doer muito… Mas ia acabar como acabou na Rússia, não é? Eu acho o seguinte: eu acho que os comunistas levantaram uma série de questões básicas, como a defesa dos interesses nacionais, a defesa do povo, a defesa da reforma agrária, a denúncia da brutalidade da sociedade brasileira e representaram um papel bonito. Mas, visivelmente… E houve um momento, aqui em São Paulo, quando o partido foi à legalidade porque ele teve 600 mil membros... Podia, se assumisse uma feição democrática, podia ter tido futuro, mas ele se fechou. Uma coisa gozada, aí, para vocês, talvez… Por que que eu, um jovem de Montes Claros, em Minas Gerais, sou catapultado por dez anos para viver com os índios? Veja o seguinte, vê o que era São Paulo em 1944, 1945. Durante a guerra [Segunda Guerra Mundial], aqui, estavam abrigados da guerra Lévi-Strauss, Radclife Brown [antropólogo inglês], Wilhelms, [Herbert] Baldus [antropólogo brasileiro de ascendência germânica], uma quantidade de sábios. E havia em São Paulo um ambiente científico de uma altitude muito grande. Altitude tal, que podia fazer com que um jovem ambicioso, como eu era, pudesse ter como ideal uma carreira científica e estudar o fenômeno humano. Como é que esse moleque de Montes Claros vem estudar o fenômeno humano? Com que direito? Quer dizer, esta minha ambição, depois, de escrever uma teoria das civilizações, este livro que eu escrevi, é de uma ambição, que eu me dei e que é paulista. Foi por estudar aqui, neste ambiente de São Paulo, era um ambiente capaz de levar um jovem a isso, tanto que, uns anos depois, a minha mãe me disse: “Meu filho, esse emprego tão ruim, pede um emprego para o seu tio…”. E eu disse: “Que ruim, mãe? “Esse seu emprego de amaciador de índio” [risos]. A minha mãe pensava que eu era amaciador de índio... Depois eu saí disso, são as tais inconstâncias. Eu vivi dez anos, fiz uma obra grande como etnólogo e fui trabalhar com o Anísio [Teixeira] em educação e vim fazendo a vida aí. Mas o que me chama atenção aqui é como não só o comunismo me fez herdeiro do destino humano, me deu uma atitude aberta, São Paulo me deu um ideal científico muito alto: de estudar os índios para entender o fenômeno humano. Só que eu fui traído, em certo sentido, porque eu me comovi tanto com os índios, com o drama dos índios, que eu vi que era uma loucura tratá-los como fósseis do espírito humano, como Lévi-Strauss queria. Como fósseis... que é pegar um mito que é um mito da forma original do mito, que existiu há milhares de anos atrás. E eu comecei a ver os índios como um problema, e me encantei por eles. E hoje, eu passei, desde então, a ser não só um antropólogo, mas um amigo dos índios. Agora, por exemplo, eu estava doente de câncer. Sabia que em várias aldeias faziam festas para mim, faziam cerimônias para me salvar, é uma beleza. Eu fiz alguma coisa pelos índios como criar o Parque do Xingu. Mas eles fizeram muito mais por mim, eles me deram a dignidade. Hoje eu posso ir a qualquer país do mundo falar de índio. Então, de fato, quando você faz coisas aparentemente altruístas e generosas, você faz coisas também egoístas.

José Castello: Senador, uma questão. O senhor agora comentou que os ingleses não confiam muito em seus intelectuais. Agora eu li algumas entrevistas suas em que o senhor diz também que o senhor não confia nos intelectuais. Eu queria entender um pouco isso, já que o senhor é um dos mais importantes…

Darcy Ribeiro: Intelectuais não prestam, não [risos]! Tem certas relíquias, uma flor de pessoa, que me salvou a vida há pouco tempo em Paris. E cada vez que eu vejo o Zuenir, devia ter a obrigação de beijar na testa dele... Eu tive uma vez uma labirintite, seis horas horríveis de labirintite num trem de Frankfurt pra Paris. Em Paris, cheguei, uma francesa me amparou, abracei num poste e fiquei lá. E aí, passa o Zuenir com um grupo de brasileiros. E me pega, me leva para o hotel, me acaricia, chama um médico, traduz a minha fala com o médico, o médico me dá uma injeção que ele vai comprar, me ajuda, me põe no avião no dia seguinte para vir para cá, não queriam que eu viesse para cá também. Então, há intelectuais que, enquanto seres humanos, que são bons sujeitos, há intelectual bom sujeito, como eu também, que sou intelectual da sua pátria, do seu povo, que está aqui para ajudar o povão, tá comovido, tá indignado, intelectual que está indignado com o Brasil. Agora a canalha gosta mesmo é do poder. Gosta mesmo é das multinacionais. A maior parte dos nossos coleguinhas estão na vida rica, da tripa-forra, não tem nada com esse país. Então, a atitude deles é… O empresário ganha mais dinheiro, que ele tem a sua boca também… Então, eu acho que o Brasil não tem uma intelectualidade fiel ao Brasil, precisa de muito mais. Eu acho que a fidelidade é ao seu povo e ao seu tempo, estar aqui, preocupado com o seu povo, com o destino de seu povo. Isto não é importante na Inglaterra. Na Inglaterra o intelectual pode fazer palavra cruzada. Ou na Suíça. Mas aqui, não! Nós aqui estamos urgidos.

Maria Victoria Benevides : Tem toda a razão.

Matinas Suzuki: Vamos ouvir a pergunta do Juca Kfouri.

Juca Kfouri: Senador, falando da intelectualidade brasileira, uma coisa que sempre me incomodou muito foi ver como a intelectualidade brasileira voltou as costas a um dos fenômenos mais enraizados na cultura brasileira, que é exatamente o fenômeno do futebol, que eu trato tão de perto. Como é que o senhor vê essa questão do futebol? O senhor também vê o futebol como ópio, o futebol como alienação? É regra na nossa intelectualidade?

Darcy Ribeiro: Não. Adoro o futebol. Futebol é o único reino em que o povo sente sua pátria. Incrível: todo brasileiro, do patrão ao empregado, quer dizer... Uma copa é uma coisa formidável, a torcida da copa… Há um livro do Antônio Cândido [de Mello e Souza (1918-), poeta, ensaísta, professor universitário e um dos principais críticos literários brasileiros], que é o intelectual mais eminente de São Paulo, mais bonito, formidável. Há um livro de São Paulo, dele, em que ele foi estudar uma pequena comunidade caipira.

Juca Kfouri: Parceiros do Rio Bonito.

Darcy Ribeiro: É. Parceiros do Rio Bonito. E em Parceiros tem uma coisa linda, conversando com os informantes, ele diz que a “patriazinha”, a pátria daquela gente, era aquele local. Eles não sabiam de outra pátria. A pátria do brasileiro comum é o futebol. Quer dizer, essa briga do futebol há muita atração. Mas essa coisa, que não é alienadora… ele torce. E depois futebol era democrático, qualquer menino arranjava uma bola de pano, uma bolinha. Por exemplo, uma das coisas que eu fiz, uma burrada que eu fiz na vida, para fazer os meus Cieps, não tinha terreno, é muito difícil arranjar terreno de dez mil metros, quinze mil metros, então eu acabei com sessenta campinhos de pelada, no Rio. Um dia eu mandei fazer cerca em um lugar e chego lá e os que jogavam estão acampados dizendo: “Aqui não faz porra nenhuma! [risos] Aqui é nosso campo”. E eu vi que era uma loucura aquilo, os campos de pelada que havia, terrenos públicos eram campos de pelada, e eu estava acabando com eles. Então o que é importante é: as escolas de todo o lugar darem mais chance. Porque, para surgir um fenômeno, como um gênio, como o Einstein, dos nervos e dos músculos como o Pelé, é muito difícil; mas só é possível quando você seleciona sobre um milhão, quando um milhão de meninos estão jogando futebol. Quando não jogam, porque não há campo de pelada, é ruim. Eu acho o futebol muito importante e acho que futebol é o momento em que o brasileiro chora, se apega, em que ele tem pátria. A pátria para ele é madrasta: deu para ele uma má escola, deixa ele com fome, desempregado, é aquele momento que conta. Você não acha isso, Zuenir?

Juca Kfouri: E qual é o time do seu coração, senador?

Darcy Ribeiro: Como?

Juca Kfouri: O time do seu coração? O senhor tem um time de preferência?

Darcy Ribeiro: Eu digo, por demagogia, que é o Flamengo [risos].
Juca Kfouri: Demagogia? Para ganhar voto?

Darcy Ribeiro: Porque o povo todo é Flamengo…

Matinas Suzuki: Senador, o senhor mencionou o Ciep, que é uma concepção de educação inovadora, popular que o senhor fez. Qual é a avaliação do Ciep que o senhor tem hoje? E como o senhor reage à crítica que o problema do Ciep não é a criação, é a manutenção do Ciep, que é muito cara?

Darcy Ribeiro: Olha, vamos falar um pouquinho disso. No mundo só há Cieps, os imbecis não sabem. A escola de um turno é uma perversão brasileira. Em nenhum lugar do mundo a criança está abandonada, por quê? Porque a cada criança tem uma escola onde ele passa o dia inteiro. Ele vai às sete, oito da manhã, e sai de tarde. Então, não há criança abandonada. O Brasil, um dia, tem que fazer isso. É claro que, sobretudo, nos grandes centros metropolitanos. Enquanto São Paulo não puser todas as crianças numa escola em que elas passem o dia inteiro e que alguém estude com elas, é claro que vai estar cheio de meninos se matando uns aos outros, sendo mortos, caindo na droga e na criminalidade. Veja aí: São Paulo é pior em educação do que o Paraguai. Não é de morrer de vergonha? São Paulo tem tantas vantagens... São Paulo não leva metade de seus alunos a completar a quarta série primária. Olha, quem completa a quarta série primária é que é alfabetizado. Porque na quarta série primária é que ele vai aprender a escrever uma carta independentemente, a fazer uma conta e aprendeu a estudar, ele pode daí ir diante. Eu digo sempre, o Lula fez até a quarta série primária e foi adiante, por isso é um bom presidente. Se não fizesse, ficaria varrendo a porta da fábrica. Isso tem que ser dado a cada criança. E quando não dá, quando São Paulo não dá, e não dá por quê? Porque a escola é desonesta. A escola trata o menino popular como se fosse classe média. Ela dá exercício para fazer em casa. Suponha que ele tenha casa. Suponha que em casa tenha quem já estudou; 80% das famílias da periferia de São Paulo não tem. Então a escola é feita para ele fracassar nela. É um absurdo. Agora, o doloroso, as dores da minha vida, a dor da minha vida, eu vi agora no Rio. O prefeito, por questão política, está tirando 350 mil crianças, que eu deixei em Cieps de dia completo, que são 30% das crianças do Rio, e mandou colocar em meio período por economia. Fazer economia com criança? Vai ficar mais caro! O que vai pagar para eles na prisão, na polícia para tomar conta dele. É uma barbaridade! Por que que o Brasil é tão bárbaro com sua criança? O Brasil parece detestar suas crianças… Eu nunca vi país nenhum em que ninguém se comove porque tem criança com fome, nós fazemos de conta que não vemos. Ninguém sabe, sempre assoviando. Outro dia eu estava comendo na varanda de um restaurante árabe com um amigo. E tinha quatro pivetes ali. E eu disse: “Eu vou chamar aqueles pivetes para comer, dar uma comida boa para eles”. Fiz um sinalzinho assim, para eles virem… E eles se conversaram e olharam para mim e disseram: “Que velho tarado é esse!”. E correram [risos]. Nem tem como você ajudar as crianças, que têm medo. Então há uma guerra contra as crianças. Essa guerra é do feirante. O feirante do Rio, do lúmpem-proletariado, do lúmpem-burguesia, que vende um cigarro, uma banana. É essa gente que é roubada pelo menino, porque roubou uma banana, que para aquele lúmpem-burguês vale muito e ele dá duas bananas para alguém matar o menino. Não pode continuar assim... [alguém tenta interrompê-lo] Só completando isso... Então, para mim, doeu muito que o governador, com a alegação de que não é preciso dar dia completo... É preciso. Japonês se fez com a história do dia completo, francês e inglês. Só há isso no mundo. Tem que fazer. Custa três vezes mais caro o Ciep mas, como ele aprova noventa e tantos alunos, é mais barato. Porque o produto de uma fábrica são os sapatos que ela faz. Se você põe mais gente formada, o preço é o preço de um menino formado. Então realmente aqui, a única explicação que eu tenho, a única que eu encontrei até hoje, estou pronto para aceitar outra, é a seguinte: o Brasil é o último país do mundo que acabou com a escravidão. A escravidão condena o negro a lutar pela sua liberdade. Mas condena o dono a ser bandido, a arrebentar o escravo com o chicote para tirar dele o lucro que ele pode dar. Então a classe dominante brasileira, de filho e neto de senhor de escravo, ela tem uma atitude bruta diante do escravo, o escravo é como carvão: gasta um, compra outro. Então, há uma atitude pra com o povo pobre, sobretudo o preto e o mulato e o branco pobre, há uma atitude de descaso. Quer dizer, que o Brasil não se envergonha de um fato simples. O Brasil consegue ser, em poucos anos, o segundo produtor mundial de soja, para engordar porco no Japão e porco na Alemanha. E isso que o sistema da agricultura tão poderosa que pode fazer, mas esta agricultura não dá bola para o feijão que o povo come, e nem é obrigada a fazer. E também não dá terra, que é a forma mais barata de ocupar gente criando a família. Então há problemas brasileiros muito sérios, entre eles, um problema seriíssimo, é  enfrentar isso: a escola de tempo integral. Veja mais. Há 60 anos, Anísio [Teixeira] escrevia isso. Os educadores de São Paulo escreviam isso, Fernando de Azevedo [(1894-1974), professor, educador, crítico, ensaísta e sociólogo], há cinqüenta anos: “É preciso criar uma escola de tempo integral, pra aluno e pra professor”. É preciso que a professora ganhe o dobro porque trabalha o dobro, mas fica o dia inteiro na escola. Isso aqui é uma questão capital. Tem que pôr na cabeça isso. São Paulo deve morrer de vergonha da escola que tem, porque não fez a escola de tempo integral, tem que fazer. Sobretudo… não precisa fazer nas cidadezinhas pequenas do interior, porque todo mundo toma conta de todo mundo, mas na periferia. A periferia está cheia de gente. Então os imbecis diziam: “Mas o Brizola está fazendo prédio de luxo para os Cieps”. Simplesmente eu me neguei a fazer prédio daquela palavra merda, pode dizer?

Matinas Suzuki: Pode [risos].

Darcy Ribeiro: Daquele prédio de merda, para gente de merda… Então, Copacabana tem escola bonita, Tijuca tem, Botafogo tem, para fazer para a baixada [Baixada Fluminense], por que tinha que fazer feio? Então encontramos um método com o Oscar [Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares (1907-), arquiteto brasileiro considerado um dos nomes mais influentes na arquitetura moderna internacional; projetou, com Lucio Costa, a construção de Brasília] de uma construção que fica 30% mais barata, que pode se fazer. E é o orgulho de cada bairro. E escola que atende a três requisitos. Segundo Paulo Freire, a escola precisa de dois requisitos: primeiro, "tempo". O tempo de jornada dos pais. Segundo, "espaço". Porque não pode ser em uma sala…professora olhando pra aluno, aluno olhando pra professora porque se detestam. Tem que ter lugar para espairecer, para chupar o dedo, para dizer palavrão. E o que é fundamental: é espaço, é tempo e é professor bem formado. Meu orgulho é ter formado 24 mil professores em nível superior, normal superior, com um concurso que eu fiz com a Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Acabar com isso? É uma lástima.

Matinas Suzuki: Vamos, por favor, ouvir o Marcos Augusto, que ainda não fez nenhuma pergunta. Marcos Augusto, por favor.

Marcos Augusto Gonçalves: Bom, eu queria falar sobre uma outra parcela do povo brasileiro, já que falamos de índios e crianças, que eu sei que o senhor também tem uma especial ternura, que são as mulheres.

Darcy Ribeiro: Uai! E quem não? [risos]

Marcos Augusto Gonçalves: Como antropólogo e como admirador do gênero, o que o senhor diria da mitologia que cerca a mulher brasileira, de que a mulher brasileira tem alguma coisa de diferente, de especial em relação às mulheres européias e norte-americanas? Isso é uma mitologia machista, isto é, alguma coisa que tem algum tipo de sustentação antropológica, o senhor tem alguma coisa a dizer sobre isso?

Darcy Ribeiro: Você concorda que as italianas são mais bonitinhas, não concorda?
Marcos Augusto Gonçalves: Não.

Darcy Ribeiro: É porque tem uma gotinha de sangue negro.

Marcos Augusto Gonçalves: Ah, mais bonitinhas que as do norte?

Darcy Ribeiro: É, aqui. Eu acho que essa gotinha de sangue negro que tem aí, faz com que a bundinha seja mais lubrificada, tem um jeito de andar melhor… Então, há uma graça da mulher brasileira, que não se pode negar; e é claro que é mais graciosa. Eu acho suecas muito bonitas, eu tive uma namorada sueca que tinha dois metros e meio, eu ficava a tiracolo nela assim... [risos] Mas eu acho, eu estou respondendo... um pouco de brincadeira… A mulher brasileira… O que é a mulher brasileira? A mulher brasileira é essa sofrida mulher de 90%, que trabalha no campo, que trabalha dia e noite, uma mulher sacrificada. Nós fazemos de conta que há uma família brasileira cristã: pai, mãe, filhos… Mentira. A família brasileira é madrecêntrica, é uma [...] anos tem um filho, e ela vale porque tem a graça dos treze anos, catorze, quinze… Depois aquele larga e entra outro homem na vida dela. E ela não joga nenhum filho fora, ela não vende nenhum filho, ela diminui o valor dela como trabalhadora por cada filho que tem. Mas ela continua heroicamente cuidando desse filho dela. Então, a família brasileira é uma família centrada na mulher, é madrecêntrica, o homem é um malandro. Tanto que, no Rio de Janeiro, eu não consegui fazer, mas quero que alguém faça um dia, todas as terras de periferia e de favelas, que são questionáveis, eu queria que o Estado desapropriasse tudo e desse para quem mora. Mas para a mulher que mora, porque é a mulher que é a dona da casa. O homem é capaz de vender para tomar cachaça… Eu gosto dos brasileiros, mas gosto muito mais das mulheres… A mulher brasileira é uma dessas coisas… Pode ser porque a minha mãe ficou viúva muito cedo, como professora primária nos criou...isso pode ter tido algum efeito… Por exemplo, eu tenho 200 mulheres que trabalham comigo e uns 20 homens, e não são fanáticos…[risos] Ou seja, a mulher trabalha mais, a verdade é que trabalha mais. É mais dedicada, numa repartição, num lugar qualquer, eu acho que trabalha mais. É claro que o homem não é de jogar fora, é indispensável deixar os rapazes aí também…

Juca Kfouri : O senhor mantém a sua tradição de namorar três por vez?

Matinas Suzuki: O senhor tem namorado muito? O senhor disse que queria voltar a namorar bastante…

Juca Kfouri: Eu li alguma coisa em que o senhor dizia isso: “O ideal é namorar três por vez”.

Darcy Ribeiro: É indispensável. ["Por que é o melhor, professor?", pergunta alguém] No mínimo três… Pelo seguinte. Primeiro, se você tem uma namorada, elas querem casar. Eu digo: “Menina, eu só posso fazer você viúva, deixa de besteira…”. Então, não tem lugar, não tem casamento. Agora, não querem casar também. A mulher tem um senso, e é compreensível, de que é preciso ficar com um homem… Eu não tenho senso. Eu acho que, depois de dez anos, o casamento é meio incestuoso, porque a mulher é uma irmãzinha, você gosta dela, ela serve para carinhos e coisas, mas para o amor a outra é melhor. Acho eu, no meu…

Zuenir Ventura: No seu fraco modo de entender…[risos]

Darcy Ribeiro: No meu fraco modo de entender…Vocês não concordam com isso, mas eu acho que você passa a dormir com a irmãzinha… E é preciso tratar bem a irmãzinha, ser carinhoso com ela. Mas eu casei algumas vezes e vi umas casadinhas, muitas casadinhas que tem. Mas aprendi que é importante ter três, não só porque a variação é interessante. Você fica mais carinhoso se há uma variação e não há o perigo de casar.

José Castello: Mas espera aí, isso aí é bom para o senhor, é bom para o homem, mas para elas é bom?

Darcy Ribeiro: Ah, meu caro, elas não se queixam, não [risos].

Zuenir Ventura: Darcy, sempre que você fala nos seus amores, você fala daquela indiazinha cadivaro,que você namorou quando esteve lá, e tal… Ela terá sido a grande paixão da sua vida?

Darcy Ribeiro: Não. Não foi, mas é uma coisa curiosa, porque na minha geração, a geração do Rondon, e com muito boas razões, se evitava de toda forma ter relações com as índias. Mas neste caso, eu passei dois anos com os índios no Pantanal. Vocês não imaginam o que era o Pantanal há 50 anos atrás. Era uma beleza. O que eu me lembro… Vocês todos já ouviram falar de Pantanal agora, mas aquele Pantanal… Meses e meses entrando em caçadas com os índios, acompanhando as águas do Paraguai, que saem do rio e inundam tudo, depois voltam, e a caça fazendo este movimento. Era uma coisa formidável. Essa índia, Iwiwiwuki, era o nome dela, ela se encantou por mim; era casada, o marido dela foi na expedição também e ela foi, mas não cuidava dele e cuidava de mim. Quando eu olhava assim, atrás de mim, ela estava sempre lá. A gente tava no lugar aonde ia dormir... Eu não posso fazer a você confidências, mas… [?] ficou muito no meu coração…

Zuenir Ventura: Foi platônico?

Darcy Ribeiro: Hein?

Zuenir Ventura: Foi platônico?

Darcy Ribeiro: Deixa de fazer perguntas, Zuenir. Essas coisas não se dizem. Agora, depois, por exemplo, amor… Uma situação que eu passei vários meses em que eu tinha relações com índias que passavam por ali, de outras tribos, mas não com a minha tribo, essa tribo que eu estudei mais, que eu passei dois anos, os urubus-capó. Isso por quê? Eles tinham uma vida sexual muito livre, muito independente. E as moças gostavam muito de transar comigo. Agora, lá, por exemplo, em um certo momento, depois de muito tempo de tradição, eu vi um índio dizendo a quem eu tinha dado cada coisa. Tinha umas 100 pessoas. Deu a fulano uma tesoura, deu a outro duas rodas de miçanga, deu a outro uma faca etc. Ele sabia tudo que eu tinha feito. A memória deles. Se eu tivesse trepado com uma, todo mundo saberia. E quando você faz relações com alguém, é um tema desse livro, deste meu livro, você estabelece uma relação de cunhado, quando você chega lá, eles já chamam você de Ça-é. Ça-é significa "o cunhado". Ça-é. E Ça-é, "cunhado", por quê? Se você faz amor e relaciona-se com uma mulher e se ela é sua cunhada, os pais dela podem ser o seu sogro e sua sogra. A gente das gerações de baixo, genro e nora. Você tem a obrigação já de dar tal pedaço da caça para o seu sogro, então a relação é gerida pelo parentesco. E o parentesco se estabelece também por isso. Por exemplo, na minha teoria, a explicação para o Brasil que eu dou, do Brasil feito por São Paulo, é do cunhadismo. O cunhadismo era uma instituição indígena. Quando chegava um estranho para relacionar-se com ele, dava uma mulher a ele. E ele, tendo uma mulher, passava a ter aparência. Ou seja, se podia comportar com ele. É o que acontece aqui. Os velhos paulistas aqui. Os primeiros europeus que chegam aqui, o encontro é terrível. O índio está na beira da praia, olhando aquela gente que vem nas naus. As naus com aquelas velas enormes. E os índios olhando aquela coisa que vem como uma divindade. E vão chegando. E quando chegam, o índio devia achar o europeu horrível, porque estavam barbudos. Eles nunca tinham visto gente barbuda. Todos cravados de escorbuto, porque vinham de uma travessia longa sem comer frutas e verduras, fétidos. Eles não tomavam banho havia três meses. Então [tapa o nariz enquanto fala] era um trem horrível aquela brancalhada horrível. Esta era a visão do índio. Mas a visão do europeu era a que vai dar no bom selvagem. Aquela indiada nua, pintada, adornada, sadia, era aquela… Então foi um desencontro incrível…

Matinas Suzuki: Senador?

Darcy Ribeiro: Mas aqueles brancos que vinham, traziam facas, miçangas, espelhos, coisas que se tornaram indispensáveis. Então os índios tiveram que encontrar um modo de relacionar-se com o estranho e esse modo foi levar uma mulher. Se ele se relacionava com uma mulher, se ele aceitava, ele passava a ser membro daquela aldeia. Então ele podia ver, o que é importante, ele podia pegar todos os parentes dela para cortar o pau-brasil e pôr no navio, porque ele não podia pagar salário. Então, todo o trabalho era feito com base no parentesco, eu suponho que… Se sabe de um espanhol que teve 80 mulheres, porque, como não havia uma tribo capaz de tomar decisão por si, cada aldeia levava uma mulher. Então, como é que o Brasil se faz? Uns poucos europeus se multiplicando em 200 mil, segundo meu cálculo, mulheres indígenas, que produzem o primeiro milhão de mamelucos. Mameluco é uma palavra paulista. Os paulistas gostam. Não sabem que mameluco é um xingamento. Os jesuítas chamavam mameluco porque mameluco é um tipo criado na casa de árabe. Os árabes tinham casa para criar animal e casa para criar gente. O tipo que era muito bruto, eles castravam, era um eunuco. O tipo que era um cavalheiro árdego, era um gerízaro, e tinha o xipaio, que era o policial, meio traidor, e tinha o mameluco, que era capaz de voltar para o seu povo, foi tomado aos dois anos, levando a cara de seu povo, mas outra alma, para dominar pelos árabes. Então, esse é o nome que [Antonio Ruiz de] Montoya [padre jesuíta peruano da Companhia de Jesus] dá aos paulistas pela brutalidade do paulista. Esse filho da índia prenhada por um branco, ele não se identificava com a índia, o que é legítimo. O português não se identificava com ele, o europeu. Ele era ninguém. Ele sai dessa “ninguendade” [neologismo para a condição de quem é ninguém] para ser brasileiro. A negra. Para cada negro que se portava, calcula-se que para cada quatro negros, precisa de uma negrinha. Claro que era para o patrão, não era para os negros. O negro nunca trepou com negra aqui. Era o patrão, era o capataz. E essa negrinha gerava filhos mulatos que não eram africanos, evidentemente, e que não eram índios, não eram ninguém. Esses "ninguéns", o ninguém-mameluco, o ninguém-mulato procura um ser para ele... é que vem a ser o brasileiro. Essa é uma das teorias que eu exponho…

Matinas Suzuki: Senador, eu lamento fazer uma interrupção, nós vamos ter que fazer um intervalinho. Antes, eu gostaria de dizer para o senhor o seguinte. Normalmente eu fico aqui recebendo os faxes dos telespectadores para ler para o senhor, mas hoje há uma quantidade imensa de fax para homenageá-lo, muito mais do que para perguntar. Então eu vou ler os nomes rapidamente. O João Belam, do Rio Grande do Sul; a Roseli Villa, de Belo Horizonte; José Luis Pires dos Santos, de Nova Era, Minas Gerais; a Vera Lúcia Príncipe, de Salvador; a Ester Ribeiro, de São Paulo capital; o Álvaro Machado, de Santana, São Paulo também; o Joaquim Andrade, de Salvador; a Vanda Luz e Cinsque, de Belém do Pará; Ubirajara Lins, de Brasília, Distrito Federal. E eu tenho aqui também dois faxes para homenageá-lo, um bastante interessante, eu gostaria de ler. Diz o seguinte: “Excelentíssimo Senador, Darcy Ribeiro da Vida, está para nascer e acho que vai demorar... Darcy e Dercy, dois exemplos de vontade e garra. Vocês dois deveriam ser os ministros da Fazenda e do Planejamento respectivamente." E aqui eu tenho outro fax também: “Darcy, estou contente em vê-lo e ouvi-lo, formidável, você continua o mesmo moço antropólogo de 40 anos passados, exuberante, alegre, irreverente quando quer. Não há tempo para ir até aí abraçá-lo. Abraço grande aqui da tribo. Orlando Villas Bôas”. Nós vamos agora fazer um breve intervalo e voltamos continuando a entrevista com o senador Darcy Ribeiro.

[intervalo]

Matinas Suzuki: Bem, nós voltamos com o Roda Viva de hoje, que faz uma entrevista histórica com o senador Darcy Ribeiro. Darcy Ribeiro costuma confessar, sem nenhum constrangimento, qual é o seu assunto predileto: ele mesmo. Em uma entrevista ele disse com todas as letras: “Admito com toda desfaçatez que gosto demais de mim e que me acho admirável”. Mas isso não impede o senador de admirar outras personalidades.

[comentarista]

Darcy Ribeiro é um homem que se orgulha das amizades que conquistou. Mas não se esquece daqueles que fizeram a sua cabeça. Um dos primeiros foi o poeta Carlos Drummond de Andrade, que, conta Darcy, o "desasnou". Outro poeta, Manoel Bandeira, também faz parte de sua vida. E Gilberto Freyre produziu com Casa grande & senzala, o mais importante livro do país. Darcy, grande namorador, se encanta com a capacidade de produzir canções amorosas de Vinícius de Moraes. Admira o orgulho de ser negro de Gilberto Gil. O tropicalismo de Caetano Veloso. Ele revela ainda que sua grande paixão foi Gal Costa, que reinventou a mulher. Outra mulher que admira é Zélia Cardoso [de Mello, ministra da Economia, de 1990 a 1991, durante o governo de Fernando Collor de Mello] que teve coragem de assumir que namorava enquanto era ministra da Economia [Zélia Cardoso admitiu o namoro com o então ministro da Justiça, Bernardo Cabral]

Matinas Suzuki: Ministra Zélia?

Darcy Ribeiro: Ela está casada... [risos] [na data desta entrevista, ela estava casada com o comediante global Chico Anysio]

Matinas Suzuki: Senador, por falar em amizades e admiração, eu conversei esse fim de semana com Caetano Veloso, que disse que gostaria muito de estar aqui entrevistando o senhor, e eu falei: “Bom, já que você não pode ir ao programa…”, porque ele vai fazer um show amanhã, em Nova Iorque, em homenagem ao Tom Jobim. E eu falei: “Você faria uma pergunta ao senador?”. E ele disse: “Eu gostaria de saber do senador o seguinte”, diz Caetano. “Qual é o segredo da eterna adolescência dele” ? Porque uma das coisas que ele mais admira no senhor é esse ar adolescente que o senhor mantém até hoje…

Darcy Ribeiro: É, o Caetano é um dos compositores que eu mais admiro. O Caetano é o homem da música, com uma criatividade formidável. Mas eu acompanhei esse grupo, eu sou muito velho, então eu vi o velho Edgar Santos, um reitor luminoso, que fez um reitorado na Bahia trazendo cultura européia, trazendo a cultura erudita mais avançada para a Bahia. E que teve a coragem de levar para a Bahia também a mulher mais admirável que andou por São Paulo, Lina Bo Bardi. Lina é gênio. Hoje o mundo está descobrindo a Lina, e há exposição da Lina no mundo inteiro. Foi quem fez o Museu de Arte Moderna aqui, ela com o velho [Pietro Maria] Bardi [esposo de Lina]. Então, eu vi o ambiente criado por Edgar [Albuquerque Graeff, arquiteto], por Lina, em que surge Glauber [Rocha], Gilberto [Gil], Caetano, [Maria] Betânia, Gal [Costa]. São umas pessoas lindas… Eu, quando estava preso, tomei-me de uma paixão pela Gal. Por que vocês lembram que a Gal reinventou a mulher, né? Naqueles anos 70, ela inventou a mulher toda cheia de… Era uma espécie de Carmen Miranda mais moderna… Com muitas plumas e coisas… Eu tinha um tesão na Gal, para preso é terrível ter tesão… [risos] Eu vivia incandescido pela Gal. Não houve nada porque a Marinha me libertou e o Exército quis me prender. Eu fiquei três dias livre, escondido no apartamento, não deu para ver a Gal, foi uma lástima…

Juca Kfouri: Senador, nos últimos tempos o senhor deu — e depois o senhor mesmo brincou com isso—, diversas últimas e históricas entrevistas. O senhor percebeu que o Matinas já se referiu duas vezes a esta entrevista como uma entrevista histórica. Esta é mais uma das suas últimas entrevistas e nós vamos estar aqui no ano 2000 voltando a entrevistá-lo?

Darcy Ribeiro: Meu querido, eu peço a Deus ou ao diabo ou… Eu quero viver. É claro que eu quero viver com tesão. Quero viver com curiosidade, eu quero viver lendo, eu quero viver escrevendo. E eu dou a impressão de que sou meio... Meu irmão, por exemplo, vai para o bar tomar cerveja e mijar com os amigos [risos], aquela coisa de tomar chope e ficar conversando. Eu nunca prestei para isso. Quer dizer, eu sou uma máquina de ler, de comer o papel, de pensar. É claro que eu gosto muito de ação. Fazer escolas, estar em cima. O [Leonel] Brizola disse que eu como o [...?], que eu sou um fazedor. Eu fiz o sambódromo. Outro dia o Brizola estava lá em casa, por causa de uma fundação minha que nós criamos, e ele dizia: “Eu jamais imaginaria, no exílio, que a minha primeira obra seria um sambódromo, culpa sua”. Um sambódromo, todo o ano se fazia um arranjo... porque ele é muito caro. E eu propus fazer um permanente, consegui que o Oscar [Niemeyer] fizesse a planta e eu meti duzentas salas de aula embaixo da arquibancada. Então é um sambódromo e um escolódromo, que empresta a sua sede uma semana por ano para o Carnaval. Então me deu muita satisfação as coisas que eu fiz. Na avenida Getúlio Vargas eu passava outro dia, lá eu fiz o Sambódromo, a Biblioteca Estadual, a Casa França-Brasil, o monumento a Zumbi dos Palmares. Tinha lá uma fábrica de escolas enorme, que o imbecil acabou, ele fazia uma escola por dia. Então, eu gosto de fazer coisas, eu sou um homem de “fazimento”, organizar administrativamente. Agora, por exemplo, eu mantive durante um ano um programa de uma hora por dia para melhorar a qualidade das professoras na TV Manchete, fiz 400 horas de filmagem. Eu preparei 600 horas. Eu não vou ficar contando vantagem. Eu gosto de dirigir coisas, de organizar a equipe, de fazer… As minhas equipes sofrem muito, eu sou muito bruto, muito ríspido, mas todas gostam muito de mim. Por quê? Eu dou uma espécie de carona às pessoas nos meus ideais, nas coisas que eu quero fazer. E eles têm um sentimento de que estão fazendo. Eu tenho algumas amigas admirabilíssimas… Por que que eu estava nisso?

Juca Kfouri: Porque nós combinamos que nós vamos voltar a entrevistá-lo no ano 2000… O senhor está impondo as condições…

Darcy Ribeiro: O câncer foi terrível. Eu tive dois. Há 20 anos eu tive um e me deixaram vir aqui para morrer. Eu não queria morrer, joguei fora, pisei nele e saí bem. Mas me obrigaram a dizer outra vez. Agora me veio este segundo. Eu sempre dizia que eu não podia morrer de pneumonia dupla, porque eu só tinha um pulmão. Mas eu não sabia que poderia vir seqüencial. Teve uma e depois teve outra no mesmo pulmão. E quase acabou comigo. E o que é muito ruim... o câncer, ele é ruim em si, mas o remédio do câncer é pior. Eu era bonitinho [risos], olhem meu cabelo, acabou tudo! A imagem que eu tenho de mim é uma caveira de poeta ou de gênio. De repente, eu fiquei com a cara do guarda-livro, não me agrada nada.

José Castello: O senhor estava falando da sua vocação para fazedor. Na última década, a sua imagem de fazedor, sua vida de fazedor esteve muito ligada ao brizolismo, ao Brizola. E eu lhe pergunto: o que é que vai sobrar do brizolismo depois do Brizola? Vai sobrar alguma coisa?

Darcy Ribeiro: Depois do Brizola vai sobrar o quê? Depois de você vai sobrar o quê? Depois de cada um de nós, não se sabe. O Brizola é uma das figuras mais bonitas da história da política brasileira. Nunca houve um brasileiro eleito em dois estados importantes como o Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Nunca houve um brasileiro que podia escolher em que estado que ele queria ser eleito. O Brizola teve derrota, mas teve grandes vitórias. Contra o Brizola... toda a mídia se incendeia contra ele, se incandesce contra ele. Ninguém tem dúvida de que o Brizola não veio brincar no mundo. Se ele chega ao poder, ele tenta fazer coisas, a propor... Muita gente tem essa convicção, e há uma campanha, quase ganhou na eleição passada. Ele perdeu do Lula por 300 mil votos.

Maria Victoria Benevides: Em 1989.

Darcy Ribeiro: Se tivesse ganho, teria tido outra perspectiva. Brizola também foi muito alisado, lixado pela vida. Está muito sem aresta. E o Brizola… Eu vi, por exemplo, o Brizola no exílio. Anos. Eu não era do Brizola, eu era do Jango, e os dois grupos eram diferentes. E nós estávamos tentando fazer o que fosse possível fazer, legalmente, com gente como o [Carlos Alberto Alves de] Carvalho Pinto [(1910-1987), governou São Paulo de 1959 a 1963, criou a Universidade de Campinas, a Faculdade de Medicina de Botucatu e a Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp)], o Brizola não acreditava nisso. Tinha o Grupo dos Onze [criado por Leonel Brizola, em 1963, visava organizar a sociedade em grupos de onze pessoas, que deveriam lutar pela implantação das reformas e a libertação do Brasil da espoliação internacional]. Mas no exílio nos encontramos. Depois eu vi uma coisa incrível: a [Aliança] Internacional Socialista. Você sabe. Foram da Internacional Socialista Fernando Henrique, [Miguel] Arraes [político pernambucano com extensa participação na história do Brasil], [Francisco] Waldir Pires [de Sousa, (1926-), durante o governo de João Goulart ocupou o cargo de consultor geral da República], [Levy] Gasparian [comendador], bom… Todo mundo. Ela nunca viu ninguém. Brizola chegou e ela viu. Esses cabrões se conhecem. Então, é incrível... Eu fui a Paris, você conhece Paris, e em Paris eu fiquei hospedado, porque estava com o Brizola, no [hotel] Régine, e com tratamento de chefe de Estado. Então eu me lembro da maravilha que foram os dias passando no Régine, porque estava lá o dono de uma [fala imitando japonês]... esses filmes japoneses, enorme... E ele era cuidado pela mulher das mais lindas que eu já vi, uma gueixa, mas uma gueixa vestida de gueixa, que era uma beleza, que vinha lá, organizava uma série de cortinas para o homem comer dentro do cortinado. Mas vê-la organizar aquilo era uma beleza. Então eu vi o Brizola tratando com o Ville Brief, com o amigo dele. Brizola só fala português e espanhol. Incrível. Eu vi o Brizola ficar amigo do [François] Mitterrand [primeiro socialista a assumir a presidência da França, em 1981; reeleito em 1988].

Matinas Suzuki: Professor Darcy, uma curiosidade: quando o senhor e o governador Brizola estão conversando, como é que faz? Como é que um consegue ouvir o outro?

Darcy Ribeiro: Sei lá. Eu gosto de ver o Brizola, não converso muito com o Brizola. Ele conversa muito mais com outras pessoas do que comigo. Nós temos um paralelismo tal, que a gente, com poucas palavras, se entende. Ele quer as coisas que eu quero e a gente muito facilmente... O Brizola tem que estar convencendo pessoas, ouvindo pessoas, consolando pessoas, ocupa muito e ele é muito bom de telefone e eu sou muito ruim. Ele é uma alegria no telefone, alegra as pessoas com quem ele fala. E eu não gosto de falar no telefone. Então, o nosso convívio não é muito de falar. Mas é claro que passamos hora nos falando, temos toda uma vida comum. A Neusa [Brizola, esposa de Leonel Brizola] é uma das pessoas que eu mais gostei. A Neusa é uma mulher formidável, passou quase dez anos sem falar com o irmão porque havia um desentendimento entre Brizola e o Jango. Era uma mulher formidável, ajudou muito o Brizola. E isso também me ligava muito a ele. E o Brizola, eu gosto muito dele e eu tenho muita admiração. Uma coisa: os intelectuais nossos são meio bestas. Porque leram meia dúzia de livros, acham que sabem. Brizola, muito mais do que ler livro, lê gente. É o que o Jango fazia também. Lê gente. Eu vi várias vezes. O Jango chamou o Santiago [Dantas, ministro da Fazenda na gestão do presidente João Goulart], para falar com o Santiago uma hora. Depois chamava a mim e falava. Depois chamava mais cinco. E ele via pelos olhos da cara das pessoas o que estavam pensando. É uma coisa que o Brizola faz muito também, ler a pessoa. E ele tem um grau de conhecimento, porque é um conhecimento que não está no livro, não está no jornal. Por exemplo, como é que se troca banana do Brasil por maçã da Alemanha? Alemanha, não, Argentina? Como é que se acerta a conta de resseguros do Brasil com o Lloyd’s [Companhia de Seguros] de Londres? Quer dizer, eu podia dar 20 exemplos, você não sabe...

Juca Kfouri: Hã, hã...Claro que não.

Darcy Ribeiro: E nenhum intelectual sabe, nem dá importância, sabe umas bobagens. Agora, Brizola sabe isso. Esses cabrões como o Tancredo [de Almeida Neves (1910-1985), primeiro presidente civil, depois de 20 anos de ditadura militar no Brasil. Em 1961, articulou a instalação do parlamentarismo, evitando que João Goulart fosse impedido de assumir a presidência por um golpe militar]. Eu estava fazendo a reforma agrária em 1964, projetando. E eu podia falar com o Florestan [Fernandes]. Mas o Florestan proporia que eu desse um dinheiro a ele, eu levaria dez anos estudando e depois escreveria um livro. Por isso era muito mais negócio chamar o Tancredo. O Tancredo sabia das coisas. Então, pensar que o político não sabe e que não há uma sabedoria política é uma estupidez. Eles são intelectuais. Os gregos diziam que todo membro de um partido político é um intelectual. E os políticos são intelectuais competentíssimos. Você pega um Maluf desses, ele sabe São Paulo como nenhum intelectual sabe, não. Então, é uma especialidade e é uma propensão que a gente deve respeitar. Eu convivi muito com eles, sendo uma figura dupla, porque sou meio político e sou meio intelectual…

Maria Victoria Benevides: Senador, o senhor falou de Brizola e de Jango e, justamente, eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a sua vida no governo João Goulart, porque, afinal de contas, completaram-se no ano passado 30 anos do golpe militar. Eu sei porque meus alunos na universidade têm 20 anos, conhecem pouquíssimo sobre o assunto e têm uma impressão deformada do que foi aquele período. E, portanto, eu não concordo, eu tendo a concordar que o governo de João Goulart foi um período excepcional de efervescência da sociedade, de busca de transformações, e tal, e que caiu pelas qualidades, e não pelos defeitos, mas isso não aparece. E como o senhor foi uma figura tão importante neste governo…

Darcy Ribeiro: Meu bem, me perdoe, mas é meu bem mesmo. Meu bem, 30 anos de imprensa contra nós. Os que ganharam fizeram a história. Trinta anos fizeram a cabeça dessa meninada. Agora, quem é o Jango? O Jango é [...] num dia, no mesmo dia que o [general] Golbery [do Couto e Silva (1911-1987), chefe da Casa Civil no governo de Ernesto Geisel (1974-1979), teórico militar contrário à linha-dura mas importante na articulação do Golpe de 1964]. Ele tinha ficado nos anos de Getúlio, ele fazia as honras de vizinho: visitava, punha a costela para o velho Getúlio, conversava. Ficaram amigos. Getúlio encontrou algum talento em Jango e, quando assumiu a presidência, eleito, trouxe o Jango para ministro da Fazenda. Conversando com o Getúlio, o salário mínimo tinha caído de 700 para cento e poucos, porque houve uma inflação no [Marechal Eurico Gaspar] Dutra [presidente do Brasil de janeiro de 1946 a janeiro de 1951], e o Dutra nunca aumentou o salário mínimo. Então, o salário mínimo já [tinha] se reduzido a uma sexta parte do que era. Uma brutalidade. Então, o Getúlio mandou repor o salário mínimo. O Jango dobrou o salário mínimo, para começar. Dobrou o salário mínimo…

Maria Victoria Benevides: 1953.

Darcy Ribeiro: Isto causou uma reação tremenda. Incompreensível. Os militares, sobretudo coronéis, ameaçaram fazer uma revolução contra Getúlio…

Maria Victoria Benevides: Um manifesto…

Darcy Ribeiro: Era o [coronel Jurandir] Mamede e o Golbery. Então, no mesmo dia, o Jango cresce como o homem que dobra o salário mínimo e o Golbery surge como o homem que era contra a canalha operária. Isso no mesmo dia. O Getúlio, era tão delicada a coisa militar, estava chegando, que ele teve que tirar o Jango. Ganhou Golbery. Mas ele refez a operação militar e pôs o salário mínimo, dobrou o salário mínimo. Então, veja se você vê, Jango surge assim. Em seguida, Jango passa a ser vice-presidente, duas vezes vice-presidente por quê? Porque ele passou a existir para o povo como tal. A imagem do trabalhismo era ele. Agora veja. Jango, quando vai para o governo, ele era um jovem que engordava 20 mil cabeças de gado por ano. Rico. Uma das melhores fazendas do Rio Grande do Sul era dele. Mas era um homem que tinha uma sensibilidade social. A frase básica dele, que nunca chegou na imprensa, era a seguinte: “Nós temos dois milhões de pequenos proprietários. No dia em que tivermos dez milhões, a propriedade estará muito mais bem definida. E muito mais gente vai comer e educar os filhos”. Você veja: essa idéia de que a prosperidade é mais gente em pequenas propriedades. Ele dizia: “Com 10% das terras que nós temos, dá para criar 10 mil propriedades de 20 hectares”. O que criaram foram milhares de propriedades de mil hectares. Então quando ele chega no governo, ele quer retomar a linha mais nobre da política brasileira, que é a linha do Getúlio. Getúlio é que moderniza o Brasil a partir de 1930, que cria a legislação do trabalho, o direito dos [trabalhadores]… O Brasil moderno todo surge… Porque o Brasil continuava com aqueles canastrões do Império, eram os ministros da República, da Primeira República. Você sabe…

Maria Victoria Benevides: Os carcomidos.

Darcy Ribeiro: Era horrível. Há aquela virada toda e o Getúlio faz essa modernização e coloca gente mais brilhante do Brasil: [Gustavo] Capanema [Filho, (1900-1985), ministro da Educação e Saúde Pública durante o governo de Getúlio Vargas], Chico Campos [Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968), jurista e político brasileiro, responsável, entre outras obras, pela redação da Constituição brasileira de 1937 e do ato institucional do golpe de 1964], que era um fascista, mas de uma inteligência brilhantíssima, e quantidade de gente mais. Jango, Lindolfo Collor [primeiro ministro do Trabalho do governo de Getúlio Vargas], aqui uma das burrices brasileiras, ele pediu considerar que a legislação do trabalho do Getúlio era uma legislação fascista, da Carta del Lavoro [constituição promulgada na Itália em 1927, considerada um dos documentos fundamentais do fascismo], há um livro do Alfredo Bosi [(1936-), professor universitário, crítico e um dos principais estudiosos da literatura brasileira] em que ele mostra que não. Que é positivista, foi copiada do sindicalismo positivista…

Maria Victoria Benevides: A dialética da colonização.

Darcy Ribeiro: Do sindicalismo positivista da Argentina e Uruguai. Mas o Brasil viveu dessas falsas idéias. Então, organizando-se o sindicalismo, o PT foi contra, tinha ódio do imposto sindical, dizia que era de pelegos. Mas, na hora de votar, votou pelo imposto sindical, porque, se acabasse o imposto sindical, acabava a força do sindicalismo. O imposto sindical não pesa sobre operário nenhum, é uma invenção formidável e permite, com um salário, um dia de salário por ano, pago em doze meses, manter o sistema sindical, que pode ser aperfeiçoado, mas não é jogar fora e tentar criar um trem do lulismo, outra burrada do PT. O PT dizia que a pior coisa era a unidade sindical, eles eram pela pluralidade. É um socialismo de sacristia. Por quê? Porque na Itália tem o sindicato católico, sindicato protestante, sindicado comunista, sindicato… Eles queriam a mesma coisa, o que é um absurdo. Os metalúrgicos terem um sindicato só é uma beleza. Então, apesar… O ponto de vista original do PT era esse, porque era muito mais influído pelo trem do lulismo norte-americano, pelo discurso lá dos Estados Unidos, e não era herdeiro da história brasileira. O dia em que o PT herdar a história brasileira, de 1930 para cá, ele alcançará a condição, realmente, de governar o Brasil. Porque retoma o que é a linha histórica nossa. Jango é essa linha... no governo, o empenho dele quanto a uma coisa fundamental. O Getúlio mostrou, para tentar criar a Petrobras –  e criou, e criaria a Petrobras –, que não era possível entregar as coisas fundamentais do país a empresas estrangeiras. E não era possível que capital feito aqui em cruzeiro rendesse dólar. O capital estrangeiro tinha que viver o destino do capital nacional. Isso o Jango quis fazer. A lei passou no Congresso, a lei do MSLU [trata-se da lei 4.131, de 03 de setembro de 1962, que disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior], passou na Câmara dos Deputados e passou no Senado. Foi regulamentada pelo Carvalho Pinto, que não era nenhum comunista. Ela era uma perspectiva. Aquela lei, disse o Caio [da Silva] Prado [Júnior, (1907-1990), historiador, geógrafo, escritor, político e editor brasileiro], se aplicada, teria dado a independência. E foi aquela lei que fez o Lyndon [Baines] Johnson [(1908-1973), presidente dos Estados Unidos de 1963 a 1969] nos derrubar, foi aquela lei…

Marcos Augusto Gonçalves [tentando interromper] Senador?

Darcy Ribeiro: Só para completar… Desculpa, um pouco... A reforma agrária. Jango queria fazer a reforma agrária e eu fiz um projeto da reforma agrária que foi proposto. Não esperamos mais tempo. Mas ia passar. A idéia era criar milhões de pequenos proprietários. O governo do Jango foi o mais brilhante que o Brasil teve. Os homens que estiveram lá: Santiago, Hermes Lina, Darcy Ribeiro…Gente muito boa. O momento mais rico do Brasil. O cinema novo, a bossa nova, o tropicalismo. Isto durou até 1968… A beleza que era o movimento de cultura popular. Então foi um momento de grande alegria e alegria bonita, porque o povo achou, o jovem, estava tomando conta do país e para mudar o país. A UNE [União Nacional dos Estudantes], a UNE está agora com essa besteira de ficar querendo votar para reitor. O que ela tem que fazer é ganhar o povo, ganhar as ruas e lutar pela reforma agrária, era o que ela fazia. Então, nós fomos derrubados, como eles disseram, em função dos nossos acertos, porque éramos o perigo, e não pelos nossos erros. Não sei se respondi…

Maria Victoria Benevides: Senador, eu só queria dizer para o senhor que eu sou uma petista convicta [risos].

Darcy Ribeiro: E a minha maior vocação sabe qual é? É fundir PT com PDT…

Maria Victoria Benevides: Eu acharia ótimo…

Darcy Ribeiro: Ou seja, é uma loucura completa, você veja que loucura: o crime da Itália e da França é que o Partido Comunista e o Partido Socialista nunca se uniram, só agora. Eles, durante décadas, poderiam unir, poderiam ter feito um governo comum. Brigaram mais um com o outro do que contra a direita. E nós estamos nisso. Então eu tenho muitos amigos do PT e a minha vocação é que, se política fosse racional, os dois partidos seriam um partido.

Maria Victoria Benevides: Também acho. Concordo inteiramente.

Marcos Augusto Gonçalves: Senador, o senhor sugeriu ao então presidente João Goulart que desse uma varrida de metralhadora nas tropas de Minas. E o senhor acreditou que, caso ele tivesse feito isso, o golpe poderia ser evitado? Como é que é essa história?
Darcy Ribeiro: Olhe, naqueles dias nós esperávamos que o golpe, a tentativa do Castelo Branco, fosse em primeiro de maio. E é claro que imaginávamos responder pacificamente a um levante militar. Greves e essas coisas estavam mais ou menos articuladas, havia idéias nesse sentido. Mas houve uma fagulha saltada: o doidão do Mourão, o general vaca fardada, decidiu sair com a tropa dele um mês antes. O Castelo ficou horrorizado, quiseram mandá-lo de volta também, porque atrapalhava tudo, mas ele saiu com a tropa. Então, eu dizia ao Jango: "Mas veja só que coisa gozada." Eu falava com o Jango pelo telefone como historiador. Eu tinha um historiador e ele tinha outro. Mas nós nunca prestamos atenção, que os dois eram norte-americanos [risos]. É evidente que eles estavam cansados de saber o que nós falávamos. Era um governo incapaz de se defender, porque era um governo inocente. Nós estávamos metidos numa batalha do mundo. O Brasil, se estivesse certo no governo Jango, fazia uma reforma agrária e, fazendo as multinacionais trabalharem a favor da moeda nacional... o fundamental é obrigá-las a trabalhar a favor, que ganhem lucro, que mandem para fora, mas que não hostilizem, que não impeçam de ter uma medida. Os Estados Unidos foram independentes porque obrigaram as empresas inglesas de lá a trabalhar a favor do dólar e não da libra. Então, aqui… Onde é que eu estava?

Ricardo Noblat: Estava falando quando o senhor mandou ou sugeriu que se desse uma varrida de metralhadora…

Darcy Ribeiro: É, a história que eu queria fugir dela. Então, nós esperávamos para o primeiro de maio. Venho antes da vaca-fardada. Eu dizia ao Jango: “Presidente, o brigadeiro Teixeira tem aí, no aeroporto tal, Santa Cruz, cinco aviões com metralhadora na asa e eu já falei com ele e está pronto. Manda lamber a tropa do Mourão. A tropa do Mourão tinha três meses de quartel, é meninada que o Mourão mandou e que não tinha ideologia nenhuma e que se lambesse por fora, voltava para o quartel chorando. Mas o Jango dar uma ordem de fogo era muito difícil.

Ricardo Noblat: Por que, senador?

Darcy Ribeiro: Meu caro, há pessoas que não dão ordem de fogo. O Jango não era. Para ele era demais.

Matinas Suzuki:  Se o senhor fosse o presidente, o senhor teria dado?

Darcy Ribeiro: [continua respondendo a pergunta anterior, sem dar atenção à pergunta de Matinas Suzuki] E ele tinha informações que eu não tinha então. O Santiago Dantas tinha dito a ele que a tropa norte-americana já estava na Guanabara. Não estavam, mas estavam em Vitória. Quantos piratas norte-americanos? Não era considerado. Porque, 20 anos depois, eles contam tudo, já publicou-se tudo. Quer dizer, era tropa com nove grandes barcos de guerra que iam reconhecer Minas como estado independente, que iam levar para lá missão… Eram uns doidos norte-americanos, a canalha loucona lá, assim como partiu o Vietnã, assim como partiu a Coréia... partiu o Brasil. Ou seja, a ordem da tropa era ir para lá… ["O senhor está convencido que, se tivesse havido reação...", interrompe Ricardo Noblat, mas Darcy Ribeiro continua] Santiago Dantas tinha a informação e disse ao Jango. Então, Jango sabia que ordem de fogo era uma coisa complexa e o desdobramento poderia ser complexo. E ele com alguns conselheiros dele, não eu, achavam que poderia ser o [...?], que eles voltariam para lá. E que era melhor isto do que desencadear. Getúlio não quis desencadear a guerra civil. Pouca gente sabe. O Brizola levou a garantia ao Getúlio de que a tropa do Rio Grande estaria com ele, se a tropa do Rio continuasse traindo. Mas era uma guerra civil. O Getúlio deu um tiro no coração. Encontrou outra saída. Jango, diante daquilo… Partir o Brasil como Coréia, como Vietnã? Começar uma guerra com um milhão de mortos. E ele tentou… Ele ficou um dia inteiro no telefone, tentando demover. O cruler que estava aqui, o outro que estava no Quarto Exército para não conspirarem. E o cruler já havia saído no rifle e eu disse para ele: “Tira, tira”. Nós todos… não tem problema nenhum. Mas politicamente você não pode tirar quem você quer, tirar pode ser uma derrota também. Aqueles foram dias extremamente tensos… Eu não escrevi um testemunho sobre isso, não preciso escrever, muita gente sabe o que ocorreu e vai ser descrito. O mal grande que há é que a direita fez essa história e fez a cabeça da juventude. E o dano mais terrível é essa juventude de coração quebrado. É tão diferente a juventude universitária de hoje da juventude de 1964 a 1968, que é uma coisa que nós temos que recuperar.
Juca Kfouri: Senador, nesse caminho, o senhor acha que a sua geração é uma geração derrotada ou, de certa forma, a vitória recente do Fernando Henrique resgata essa derrota?

Darcy Ribeiro: O Fernando Henrique não nos resgata. O Fernando fez uma coisa que fizeram antes com o [Fernando] Collor [de Mello, presidente do Brasil, de março de 1990 a dezembro de 1992, quando renunciou ao cargo devido a um processo de impeachment], a direita arranjou uma cara emprestada. É um luxo o Fernando ser presidente. O Fernando é muito inteligente, é patriota e sério, mas política, eu fui político de poder na mão, não é de graça, não é ideológico, são contratos, são compromissos. O Fernando tem compromissos de ordem da privatização que é uma volta atrás. Ele tem compromissos com a globalização que é uma loucura. Honduras ou Nicarágua ou Costa Rica estão condenados à globalização, mas nós não. Esse país tem muita caixa, este país tem que construir-se como um dos grandes do mundo. Ele não pode entregar tudo, quer dizer, entregar Volta Redonda a banqueiro porque pode dar mais lucro, é de doido. O que que eu tenho com o lucro do banqueiro? A empresa que é útero da indústria brasileira. A indústria... história de Volta Redonda, Getúlio Vargas com a imagem dele, fascista. Ele foi fascista de 1937 a 1939. Em 1939, ele manda Osvaldo [Euclides de Souza] Aranha [(1894-1960), político e diplomata brasileiro; foi amigo e aliado de Getúlio Vargas] aos Estados Unidos dizer que queria aderir aos aliados, mas ele tinha condições, não era de graça, não era imbecil, não. Exige uma siderúrgica, exige e consegue que [Franklin Delano] Roosevelt [(1882-1945), governou os Estados Unidos por quatro mandatos, de 1933 a 1945] venha com sua cadeira de rodas, venha com a cadeira de rodas para Natal, conversar com ele. Não é brincadeira, é o homem mais poderoso da Terra. E aí contrata. Eu preciso daquilo que é condição para o Brasil existir no mundo moderno, que é uma siderúrgica de tantos milhões de toneladas de aço.

Juca Kfouri: O senhor acha que a idéia nacionalista ainda perdura?

Darcy Ribeiro: Venha cá. O Roosevelt se comprometeu, construiu durante a guerra e inaugurou em 1945. Dar agora, por questão de lucro ou achando que banqueiro é melhor do que servidor público... não há coisa melhor do que servidor público, servidor público como eu é mil vezes melhor do que gerente. Gerente não é gente, gerente pertence ao patrão, eu pertenço à minha pátria. ["Se todos fossem iguais a você"..., diz uma voz masculina] Há muita gente assim, há muita gente boa. Então essa loucura dessa entrega por um preconceito neoliberal, o mesmo neoliberalismo do Roberto [de Oliveira] Campos [(1917-2001), pensador, economista, diplomata e político brasileiro; ocupou os cargos de deputado federal, senador e ministro do Planejamento de Castello Branco], do [Antônio] Delfim [Netto, (1928-), economista, professor universitário e político brasileiro; ministro da Fazenda durante o regime militar, entre 1967 e 1974, nos governos Costa e Silva e Médici, período em ocorreu o chamado "milagre econômico brasileiro"], que arrasou o Brasil, arrasou o emprego, criou o desemprego, criou este problema tremendo no país. Agora veja. Então, Volta Redonda foi feita assim. No mesmo ato, o Getúlio, os ingleses reivindicaram um crédito aberto, comprar fiado. Getúlio aceitou vender fiado. Durante toda a guerra, os ingleses, tudo o que eles quisessem, vendeu, desde que eles devolvessem. As minas de ferro de Minas Gerais e a estrada  Vitória-Minas. A Vale do Rio Doce é uma das empresas que mais cresceu no mundo. Tem associação com dezenas de empresas. Por que querer vender, então, à canalha de banqueiro? Por que querer entregar? Sabe que a Vale controla minérios, fontes de minérios, ferro, manganês, ouro, cobre, que valem muitos trilhões de dólares? É claro que algumas empresas podem tirar isso do chão mais depressa. Mas a [...?] o que fez no Brasil, o que faz... essas empresas, a empresa de minério, deixa buraco e mineiro pobre. Não deixa nada. Então, Fernando Henrique está sendo compelido a fazer coisas dessas e nós temos que ter oposição.

Matinas Suzuki: Senador, falando agora, então, do presente e do seu presente no Senado, nós temos aqui várias perguntas dos telespectadores sobre educação, como a pergunta do Fabio Teixeira de Rezende, da Bela Vista, aqui em São Paulo; da Sônia Arruda, de Pirassununga, estado de São Paulo; do Nilton Costa, de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro; da Regina Dias, aqui de São Paulo; do Francisco Almeida, do Piauí; do Daniel Alves, de Amparo, estado de São Paulo. Mas a professora de segundo grau Sueli Ferreira, de Jundiaí, estado de São Paulo, pergunta para o senhor o seguinte: "Qual o andamento do substitutivo pelo senhor, apresentado no Senado, referente à Lei das Diretrizes e Base da Educação Nacional [LDB]?"

Darcy Ribeiro: Bom. Muita gente ficou contra mim porque há seis anos eu estava discutindo leis de diretrizes e base. E é como se fosse um absurdo eu entrar na discussão e não adotar. Mas primeiro: fui eu que promulguei, como ministro da Educação, a lei anterior. Eu acompanhei isso durante 40 anos. Eu fiz mais escolas do que qualquer pessoa. Escola boa. Eu tenho autoridade para falar no assunto. E a lei que a Câmara fez é um horror. É uma lei congeladora, ela congela a educação. Ela congela a ditadura. Ela não muda nada. Ela não manda morder professora, ela não manda matar aluno, não. Mas um ensino primário que não alfabetiza. Um ensino médio que não ensina. E um ensino superior em que o professor faz de conta que ensina e o aluno faz de conta que aprende. É o desastre brasileiro. Congelar isso é um absurdo. Tem lá um Conselho de Educação corporativista em que toda a educação seria entregue aos professores sindicalizados ou aos donos de colégio, e educador mesmo não cabia nenhum. Veja, por exemplo, essa gente ficou muito contra essa medida provisória que o governo mandou. Viu o sentido da medida provisória e o sentido irresponsável. Há no Brasil um milhão e cem mil proletários estudantis. Um milhão e cem mil, de um total de um milhão e seiscentos, que estudam em escolas particulares, pagas, geralmente noturnas, caras e ruins. Você não fazer uma aferição? E a única forma de aferir é ver o que aprendeu. Havia idéia de publicar no diploma ou publicar. Tirou-se essa idéia. Mas é indispensável que o governo, uma vez, tenha responsabilidade de ver o que é aquilo para amparar o milhão e cem. Dizer: “Não continua aí, menino, porque não presta!”. Ou fechar a escola ruim. Agora, a canalha toda se fecha, como se fosse uma agressão à USP. O que que a USP tem com isso? E que medo a USP pode ter? Há perigo de algum curso da USP ter pior nota do que aquela universidade daqui de Mogi das Cruzes, que é uma fábrica de dinheiro? Não há. Então, realmente, há uma porção de equívocos aqui, que precisam ser vistos. A minha lei, o meu substitutivo, ele tenta honestamente aproveitar o melhor do que se fez nestes últimos seis anos, o melhor que se discutiu, o que podia ser aproveitado, com muita generosidade, coisas até com as quais eu não acho indispensável, eu adotei, para ter um projeto enxuto, aberto, libertário. A França que tinha uma excelente experiência na educação fez uma nova. A Argentina fez outra nova, Espanha fez e Portugal fez. Porque a educação está mudando tanto, a tecnologia da educação que se oferece hoje é tão prodigiosa que evidentemente você tem que mudar a lei. Se esses países estão mudando, por que não o nosso? Por que insistir numa lei burra? É uma lei que congela o que está, deixa tudo como está e o que está é uma calamidade. Então é essa a situação.

Zuenir Ventura: Darcy? Você disse agora há pouco que aos vinte anos pensou em suicídio. E hoje você é essa admirável, comovente, exemplar missão de vida. O que que fez essa mudança? Você mudar desse namoro de Tanathos [na psicanálise, é a personificação mítica da "pulsão de morte", um impulso inconsciente que busca a destruição] para Eros [pulsão de vida, oposto a Tanathos], que é a sua paixão?

Darcy Ribeiro: Eros e Tanathos, que se fala, né? Não sei. Eu só pensei em suicídio, de fato, quando eu era estudante em Belo Horizonte, aos 20 anos. Eu estudava medicina e tomava bomba, porque eu assistia ao curso de direito e curso de filosofia. Por exemplo, eu era um idiota, estudei num ginásio do interior muito ruim. Deixa eu contar um episodiozinho bobo. Eu encontrei lá - viu, Maísa - eu encontrei lá, me deram um livro de história da filosofia de Will Durant [William James Durant, (1885-1981), filósofo, historiador e escritor norte-americano]. Eu li e fiquei encantado, e disse: “Pô, em Montes Claros não tem ninguém como este Sócrates e nem aqui em Belo Horizonte”. De repente, a cultura aparecia para mim como uma coisa surpreendente, porque eu era muito inocente, eu era um tolo. Então, não podia ficar estudando medicina, que era muito chato aquele negócio, quando tinha coisas interessantes fora, tomava bomba e queria me suicidar. Eu tenho um diário daquela época, dos meus 19 anos. Eu, de tantas em tantas páginas, eu escrevo: “Não decidi que ia nascer. Hoje decido se vou viver”. E aí nós induzimos um gurizinho, um poetinha, um “poetaço”, que tomava pinga conosco, [...?], em Minas, é a discrição mineira, tomava em xícara de café, em todo lugar estavam os meninos tomando café. E estavam tomando uma boa pinga. E ele se suicidou. Ele dizia que ia se suicidar. “Você não tem alma? Isso não é bairro, isso não é… Suicidar é grandeza”. E ele se suicidou. Eu me lembro disso porque escrevi no diário. Fulano se suicidou para mim, eu vou deixar disso”. Ou seja, 19 anos é uma idade perigosa. Depois eu sempre pensei que aos 50 e aos 60 eu me me matava, por que viver brocha? É uma chateação aos 60. E aos 60, eu pensei que era aos 70, e agora eu penso que é aos 80…

Matias Suzuki: Senador, infelizmente o nosso tempo está esgotado e eu queria ler mais duas mensagens para o senhor… Uma é do Norton Mostiscaneiro, que é médico e presidente da Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, ele diz o seguinte: “Como médico, quero cumprimentá-lo pelo exemplo que dá, entre outros tantos, de como se pode superar a doença. Fica demonstrado que uma mente clara é que espanta o mal". E a Maria Elisa que é daqui do Morumbi, quer saber do senhor o seguinte: “Qual o mês em que o senhor vai ter só duas namoradas, porque ela está na fila deste mês?” [risos]



Darcy Ribeiro faleceu em 17 de fevereiro de 1997. No último ano de sua viva dedicou-se a organizar a Universidade Aberta do Brasil e a Escola Normal Superior, para formação de professores, com cursos de educação a distância. Organizou também a Fundação Darcy Ribeiro objetivando manter vivos sua obra e seus projetos educacionais e culturais.

Jorge Amado (1981)

LITERATURA COMENTADA - Há meio século, Jorge Amado, você lançou seu primeiro livro. Em setembro de 1981 comemora-se o cinqüentenário de O País do Carnaval. Esta entrevista será incluída num livro dedicado especialmente a você, que será lançado no dia 10 de agosto, exatamente o dia em que você estará completando 69 anos de idade. Nossa intenção é fazer uma entrevista biográfica. Mas, numa entrevista de 1980, à revista francesa Lui, você disse que não gostava de falar de si mesmo. Por quê?

JORGE AMADO - É verdade, não gosto. Tem gente que adora falar de si próprio, alguns porque não têm importância nenhuma e falam para se dar importância, e outros, que são importantes, falam porque gostam. Agora, eu não sou importan­te e não gosto de falar sobre mim; aliás, não gosto nem de ouvir falar a meu respeito: fico encabuladíssimo, fico assim sem jeito... eu não gosto, é uma maneira de ser.

LC - Portanto, é normal que o público tenha uma grande curiosidade so­bre o homem Jorge Amado. Em grande parte, os leitores de Literatura Comentada são jovens que não viveram tudo isso e querem saber suas opiniões, suas versões. Insistindo: essa entrevista tem um objetivo basicamente biográfico.

JA - Está bem, concordo. Estou às ordens. Toca o bonde!

LC - Para começar, você poderia falar um pouco sobre seu pai, João Ama­do de Faria, e sobre dona Eulália Leal, a dona Lalu, sua mãe.

JA - Eu quero falar um pouco tam­bém sobre o meu nascimento porque há uma coisa controvertida. Há notícias diferentes, erradas. Há muitíssimos anos, na Enciclopédia Larousse, da França, existe um verbete que me dá como nascido em Piranji. Piranji é uma coisa que não existe mais. Deve existir outro no Brasil, porque aquele teve que mudar de no­me, passou a ser Itajuípe. Outro dia, num texto que escrevi para uma revista que dedicou um número a mim, a Vogue, eu disse que não nasci em Piranji, ao contrário, Piranji eu vi nascer. Eu assisti ao seu nascimento, desde as primeiras casas que foram construídas.
Em geral, me dão como nascido em Ilhéus, o que é muito compreensível, pois eu fui pra Ilhéus com um ano, ou, para ser exato, com um ano e cinco meses, pois fui pra lá em janeiro de 14 e nasci em agosto de 12. Mas eu nasci realmente numa fazenda de cacau que meu pai estava montando, perto de um arraial chamado Ferradas, distrito do município de Itabuna. O nome da fazenda era Auricídia... hoje, o arraial cresceu, chegou lá, chegou até a casa onde nasci. Aliás, faz poucos anos, eu estive lá e a população foi muito generosa comigo, muito cordial, todo mundo me esperando na rua...
Sou nascido em Ferradas, distrito de Itabuna, sou itabunense, ou seja, sou um grapiúna da região do cacau. Mas Ilhéus também é minha cidade no sentido de que é o lugar onde eu vivi a minha infância - a infância, um tempo muito importante na vida da gente. E também a minha adolescência, as férias. Ilhéus é uma cidade extremamente ligada à minha vida, como todo o sul da Ba­hia, toda a região do cacau. Itabuna fica a 25 quilômetros de Ilhéus. Quando estava em Ilhéus, ia pra Itabuna sempre. Quando morreu meu irmão Jofre, nós fomos pra Itabuna porque minha mãe não quis ficar em Ilhéus. Passamos lá um ano e tanto, foi quando nasceu meu irmão Joelson, que é médico e mora em São Paulo. Dos três irmãos, o único nascido em Ilhéus é James.
Assim, eu sou, ao mesmo tempo, um menino de Itabuna e Ilhéus, como o Adonias Filho, que é nascido em ltajuípe, o antigo Piranji, e criado em Ilhéus.

LC - Seu pai era fazendeiro, pioneiro do cacau ...

JA - Meu pai foi um homem que viera muito cedo de Sergipe, da cidade de Estância. Viera no início do século, quando das grandes lutas envolvendo o cacau, ele se envolveu nessas lutas, participou delas...

LC - Lutas pela posse das terras?

JA - A terra não era de ninguém, era mata, ele veio para ocupar a mata. A luta era para ver quem ficava com as melhores terras para plantar cacau. Meu pai plantou essa fazenda Auricídia - aliás, a saga que está contada em Terras do Sem Fim - e, bastante tempo depois, casou-­se com minha mãe, dona Eulália Leal, que também era de uma família de desbravadores da terra.

LC - Em conseqüência você acabou fugindo. Conta essa fuga.

JA - Quando terminei o segundo ano, pedi a meu pai que não me mandasse mais pro colégio interno. Como eu estava indo bem na escola, o Vieira era o melhor colégio de Salvador e meu pai podia pagar, ele dis­se que sentia muito, mas como eu já estava lá, queria que eu continuas­se. Cheguei aqui para ir pro Vieira e o meu tio Alvaro, esse personagem formidável da minha infância, me levou até a porta do colégio e me deixou lá com o dinheiro para pagar as despesas.
Bem, aí ele foi para um lado, eu fui pro outro e fugi. Eu tinha menos de treze anos naquela época. Foi uma coisa muito importante pra mim essa fuga.

LC - E foi para onde?

J A - Eu atravessei todo o sertão da Bahia até Sergipe. É uma viagem hoje, você pode fazer em horas... tão poucas horas, mas, naquele tempo, eu levei dois meses para atravessar, dois meses vagabundando.
Pelo caminho, eu fui parando, fazendo amizades. Meu dinheiro acabou logo. Gastei rapidamente o di­nheiro que tinha, logo no início da viagem. Comprei uma coleção de revistas de cinema num sebo de livros. Mas consegui atravessar e viver sem nenhuma dificuldade. Cheguei até Itaporanga, onde vivia meu avô, o velho Zé Amado, pai de meu pai. E o curioso é que meu pai deixou.

LC - Ficou acompanhando à distância?

JA - À distância. Pronto, naturalmente para intervir se qualquer coisa de pior me passasse, mas ele deixou... Depois, quando chegou junho, as férias de São João, meu pai pediu para tio Álvaro ir me buscar.
Eu vim certo que ia levar uma surra, mas quando cheguei em casa ele só perguntou por que tinha fugido. Eu disse que não queria mais estudar. Pois muito bem, ele respondeu, você vai pra fazenda.

LC - Foi plantar cacau?

JA - Eu fiquei lá seis meses. No fim do ano, ele me perguntou se queria voltar a estudar e eu disse que queria. Ele me mandou pro ginásio Ipiranga, um internato que fica aqui pertinho. No Ipiranga, fui colega do Adonias Filho. No Vieira, fui contemporâneo de muita gente depois importante, como o Mirabeau Sampaio, meu amigo até hoje, o Gio­vanni Guimarães, o Paulo Peltier de Queirós, o Antônio Balbino, que foi governador da Bahia, o jurista Maximiano da Mata Teixeira, o poeta Hélio Simões, o jornalista Jorge Calmon.

LC - Só que, apesar de tudo, você acabou voltando a um internato,

JA - O Ipiranga era um internato muito mais brando. A gente pulava o muro todas as noites e ia para as casas de putas, ia para as festas, para a rua Carlos Gomes, pro beco de Ma­ria Paz ... eu fui amigado com uma rapariga chamada Benedita e então, toda noite, à meia-noite, pulava o muro e ia ficar com ela.
O Ipiranga era muito mais livre que o Antônio Vieira. Isaías Alves de Almeida era um homem que deixava o barco correr. A meu ver, tinha mais sensibilidade pra tratar com os jovens do que os jesuítas- ­hoje não, mas, naquela época, os pa­dres eram mais presos, mais conservadores. Um grupo de internos pulava o muro do colégio todas as noites e saía para a vida.
Passei lá um ano mas, no fim, já tinha liberdade de sair sem precisar fugir. No outro ano, já estava com catorze anos de idade, não voltei mais para o internato, cumprira minhas primeiras prisões.

LC - Em 1927, ao voltar para Salvador, você fica externo do colégio e pu­blica um poema?

JA - Ah! publicado na Luva, uma revista considerada importante. O tí­tulo era Poema ou Prosa: Uma sátira aos poemas da época, poema­prosa, prosa-poema... é uma coisa as­sim, uma espécie de gozação, um certo tipo de poesia modernista.
Bem, ao voltar, eu comecei a viver a vida do povo da Bahia. Para mim, foi a coisa mais importante de todas. Eu tinha catorze anos e comecei a trabalhar em jornal, primeiro no Diário da Bahia, depois num jornal chamado O Imparcial - onde eu viria a trabalhar de novo, em 43, depois de ser solto pela polícia do Rio. Como eu dizia, em 27 comecei a trabalhar em jornal e a viver misturado com o povo da Bahia. Era o pior estudante do mundo... vivia num casarão, no Pelourinho. Hoje tem uma placa no sobrado onde habitei, atualmente um hotel. Uma placa, falando de Suor, que eu iria escrever em 34. Eu morava naquele casarão, numa água-furtada, nos altos. Quando morei lá, via aqueles ratos que subiam escada acima... era cada rato deste tamanho, um negócio terrível! Mas eu não achava terrível na época, eu era um garoto. Comia nos botecos mais incríveis, porque não tinha dinheiro.

LC - Doenças venéreas já com catorze, quinze anos?

JA - E, eu tinha uma vida muito ativa e misturada: festinhas populares, casas de raparigas. Posso dizer que a minha educação, em grande parte, se processou nas casas de raparigas.

LC - Enfim, para um adolescente dos anos 20, você tinha uma boa vida?

JA - E tem mais. O pessoal dos sa­veiros, por exemplo, era todo meu amigo. Eu saía, tomava um saveiro, ia pra Cachoeira, Valença, Porto Seguro, Maraú. Eu tinha uma vida muito livre, admirável no sentido de gostosa, de agradável.

LC - No início dessa entrevista, você disse que adquiriu consciência do problema racial em Salvador, em 1927...

JA - Foi quando eu passei a viver misturado com o povo da Bahia que o problema racial começou a me afetar. Foi sobretudo a minha relação com o povo dos candomblés, vendo a perseguição terrível de que eram objeto os cultos afro-brasileiros.
Mas eu nunca tive dúvidas: o problema racial é conseqüência do problema social. Não existe um problema racial isolado do contexto social. Se você isolar, vai errar na apreciação do problema e na busca das soluções. A solução não é você botar os pretos e os brancos a se matarem entre si.

LC - A solução é fazê-los dormir uns com os outros?

JA - Exato. Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não há outra e, se alguém tiver, que me apresente... quero ver! Não é um racismo diferente, seja racismo preto, seja racismo árabe ou judeu, que vai acabar com o problema. Você não acaba com o racismo botando racismo contra racismo. Isso é uma coisa idiota, '' que está em moda, mas é uma moda superficial... é como uma dessas erupções que se tem na pele, brotoejas, coceiras, que acabam passando.

LC - Você já fazia literatura nesse período?

JA - Subliteratura. Naquele tem­po, as idéias viajavam em navio de carga e levavam anos pra chegar. O Modernismo, que explodiu em São Paulo em 22, levou cinco, seis anos para chegar aqui... chegou por volta de 26, 27, com o primeiro livro de Eugênio Gomes, o poema Moema, com o primeiro livro de Godofredo Filho, A Balada de Ouro Preto. Por volta de 27, formaram-se aqui três grupos de jovens: o grupo Arco e Fle­cha, que publicava a revista Arco e Flecha, o Samba, que tinha a revis­ta Samba, e a Academia dos Rebel­des, que editava a revista Meridiano.
O Arco e Flecha tinha como guru o Carlos Chiacchio, crítico literário do jornal A Tarde, e reuniu pessoas como Pedro Aguiar, Hélio Simões, Carvalho Filho, o próprio Godofredo - Godofredo era mais velho -, Queirós Júnior e Eurico Alves.
O nosso grupo era a Academia dos Rebeldes, de uma rebeldia arretada. Na Academia estavam pessoas que depois foram literariamente muito importantes: o contista Dias da Costa, o grande ensaísta e etnógrafo Edison Carneiro, o grande poeta Sosígenes Costa, João Cordeiro, Walter da Silveira, Clóvis Amorim, Aidano do Couto Ferraz. Nosso guru era um homem chamado Pinheiro Viegas, poeta panfletário muito importante.
Era um homem de quase oitenta anos, que é um pouco o Pe­dro Ticiano do meu primeiro, livro, O País do Carnaval. Eu e o Edison Carneiro vivíamos juntos o dia inteiro. Nós, mais o Dias da Costa, íamos juntos pras casas de mulheres, vivíamos comendo no mercado das Sete Portas ... comendo. sarapatel à meia­noite na feira de Água de Meninos.
Brigávamos uns grupos com os ou­tros, mas todos queríamos a mesma coisa, a renovação literária e modifi­cações na sociedade. Era o tempo do "tenentismo".
Nós éramos muito ligados à vida popular. O Edison já começava seus estudos de etnografia, de antro­pologia social. Com ele e Artur Ramos, comecei a freqüentar os candomblés. Outro dia, a Menininha de Gantois recordava que ela me conhe­ce há mais de cinqüenta anos, daí pra lá... ela jovem mãe-de-santo, ho­je está com 84 anos, devia ter uns, trinta anos.
Nessa época me tornei amigo do pai-de-santo Procópio. Foi ele quem me deu o primeiro título de candom­blé, Ogan de Oxóssi. Procópio foi o pai-de-santo que mais perseguição sofreu da polícia por causa da questão religiosa. Ele tinha as costas marcadas pelas torturas. A questão religiosa, racial, era muito mais intensa do que hoje... muito mais violenta.
A polícia chegava, invadia, prendia. Eu marquei isso, primeiro em Jubiabá, depois em Tenda dos Milagres.

LC - Aliás, você é um dos doze Obás da Bahia, não?

JA - Sou, o Carybé é outro e o Caymmi também. E não é por acaso. Tenho vários títulos, um título dado por Joãozinho da Goméia, Ogan de Iansã no candomblé da Go­méia. Joãozinho foi meu amigo e seu caboclo Pedra Preta foi herdado pela minha amiga Mirinha do Portão, que dançou tão bonito outro dia na festa do povo pra Carybe. Essa gente toda é minha amiga, eu sou um deles.
Não é por acaso que tenho esses títulos. Desde criança eu vivo mistu­rado com o povo dos candomblés. Em 43, quando a polícia do Rio me soltou e me forçou a viver em Salvador - e eu vivi aqui até 44, dois anos -, não fiz outra coisa senão ir à polícia buscar as armas de santo e as coisas todas dos candomblés que a polícia invadia, tomava os emble­mas sagrados e os levava. Eu ia lutar para tirar meus amigos da cadeia ... Fui amigo de Procópio, de Aninha, a mãe-de-santo Aninha, uma figura extraordinária de mu­lher. Quando ela morreu, em 38, o enterro dela foi acompanhado por 5 mil pessoas, um enterro nagô, magnífico.

LC - Logo depois disso, Jorge, você se ligou ao Partido Comunista, um partido marxista, materialista ...

JA - Em Tenda dos Milagres, que é o romance meu de que mais gosto, a certa altura, o professor de medicina pergunta a Pedro Archanjo como é que ele, sendo um materialista, conciliava isso com sua atividade no candomblé. Pedro Archanjo respon­deu que "o meu materialismo não me limita".
Eu sou materialista, mas meu materialismo não me limita. Então, se o povo dos candomblés me dá um título e eu aceito, eu tenho que cumprir as obrigações desse título. Senão, eu não estaria tendo com eles o mesmo tipo de relacionamento, de amizade que eles têm comigo. Por isso, quando entro no Axé Opô Afon­já, com meus colares, faço tudo o que tenho que fazer e faço exatamente tudo com o maior prazer... Eu não poderia escrever sobre a Bahia, ter a pretensão de ser um romancista da Bahia se não conhecesse realmente por dentro, como eu conheço, os candomblés, que é a religião do povo da Bahia.

LC - Em 1935, você lançaria Jubiabá, em 1936 publicaria Mar Morto ... mas no começo de 1936 foi preso.

JA - No começo de 36. Em novem­bro de 35, no dia 27, houve o levan­te do III Regimento de Infantaria. Fomos presos vários intelectuais... Eu acho que alguém que foi preso antes, foi espancado e falou. Graciliano Ramos foi preso em Maceió e levado pro Rio. Eu fiquei preso dois meses na Polícia Central. Vários in­telectuais foram presos na época, Santa Rosa, Caio Prado Júnior, Di Cavalcanti, Hermes Lima, Eneida, Castro Rebelo, Aporelly, Álvaro Mo­reyra etc.

LC - Nunca te interrogaram?

JA - Nunca me interrogaram. Fiquei lá um bocado de tempo... era uma prisão muito ruim por ser na Policia Central, com presos sendo torturados à noite. Eu não fui torturado, mas estive preso com gente que foi terrivelmente espancada.

LC - Você atribui sua prisão a seus livros?

JA - Eu tive uma militância grande na Aliança Nacional Libertadora... O Congresso Juvenil Proletário- Estudantil... não me lembro mais o nome, de 34, foi convocado com três assinaturas: a minha, a do Carlos Lacerda e a de um rapaz cujo nome não recordo, que era secretário da Juventude Comunista.

LC - Só um parêntesis: em outras entrevistas, em artigos e verbetes de enciclopédia, consta que você só entrou no Partido Comunista em 1945.

JA - Meu contato com o Partido é anterior a essa época. Em 45 minha militância fica pública. Eu era ligado à juventude. Naquele tempo, havia Juventude Comunista.

LC - Como foi sua libertação?

JA - Em certo momento me botaram em liberdade. Nunca me ouvi­ram. Fiquei dois meses lá, jogado. Saí, fui pra Sergipe, a cidade em que meu pai nasceu, Estância, e lá terminei Mar Morto. Em 37, a coisa tinha melhorado um pouco, acabara o estado de guerra, a candidatura de Zé Américo estava lançada. Aí eu viajei por toda a América Latina: Uruguai, Argentina, Chile, México ... onde conheci Orozco e Rivera, escritores como Alfonsus Reves. E depois fui até os Estados Unidos, onde conheci Michael Gold, vários escritores, John dos Passos.

LC - Você voltou pouco antes do golpe do Estado Novo?

JA - Eu cheguei a Belém em outubro. O Dalcídio Jurandir foi me ver às escondidas e disse pra eu sair imediatamente do Brasil que ia ha­ver um golpe. Ele achava que eu seria mais útil no exterior, pra gritar contra o golpe lá fora.

LC - Capitães da Areia tinha sido lançado em setembro, não?

JA - Tinha saído e estava sendo apreendido. Em São Paulo, na Ba­hia, estava sendo queimado em pra­ça pública. Em Salvador tem até ata da queima... 1 694 exemplares dos meus romances queimados em pra­ça pública por ordem do comando da 6ª. Região Militar.

LC - Em 1945 você presidiu a delegação baiana e foi vice-presidente do Pri­meiro Congresso dos Escritores.

JA- O Congresso foi a primeira de­monstração pública contra o Estado Novo.
Aqui na Bahia eu escrevi São Jorge dos Ilhéus e a primeira versão do Guia da Bahia de Todos os Santos, que teve sucessivas modificações pa­ra se atualizar. E escrevi uma peça de teatro, “D. Amor do Soldado”, pra Bibi Ferreira, que colocou em mi­nha mão um cheque de 20 contos, um dinheiro aloprado naquele tem­po... não resisti, aceitei e escrevi; só que quando terminei, ela já não tinha a companhia teatral.
Ai fui pra São Paulo, passei um ano em São Paulo, aceitei mudar porque o Partido decidiu que eu de­via ficar lá. Fui diretor do jornal do Partido, o Hoje, junto com o Caio Prado, o Clóvis Graciano...

LC - E acabou sendo deputado por São Paulo à Assembléia Constituinte?

JA - Eu não queria ser candidato, aceitei por decisão do Partido e aca­bei eleito. O Partido disse: "Você se candidata e depois renuncia". Mas eu fui muito votado, fui um dos qua­tro eleitos, o mais votado foi o José Maria Crispim, o segundo foi o Os­valdo Pacheco, eu fui o terceiro e o quarto, um ferroviário, não lembro o nome dele ... Eu conheci muita gen­te do povo aí, nos comícios ... em San­tos eu tinha tanta popularidade que o Partido, para garantir a eleição do Osvaldo Pacheco, proibiu a ida das minhas cédulas para lá. Considera­vam que eu estava eleito no Estado, o que era verdade.

LC - Você lembra quantos votos teve?

JA - Não, não me lembro. Bem ... eu fui eleito, deixei minha carta de renúncia com o Partido e fui pro Uruguai com Zélia. Nós tínhamos casado em julho. Ela não conhecia o Uruguai. Quando estava lá, recebi um telegrama pedindo que eu voltas­se. Queriam que eu assumisse, por­que eu tinha tido uma grande vota­ção e o fato de eu renunciar podia soar mal junto àqueles que tinham votado em mim. Queriam que eu fi­casse três meses.

LC - Falando um pouco de coisas ínti­mas, você se casou em 1933 com Ma­tilde Garcia Rosa.

JA - É verdade. Fui casado com ela até 44, quase dez anos.

LC - Tiveram filhos?

JA - Tive uma filha, Lila, em 35, que morreu quando eu estava na Eu­ropa, ela estava com catorze anos.

LC - Sua atual esposa escreveu· Anar­quistas, Graças a Deus. No intervalo da conversa, ela disse que está escrevendo um livro contando fatos de sua vida.

JA - Zélia é uma ótima contadora de histórias.

LC - Desde quando vocês estão casa­dos?

JA - Em 45 me casei com Zélia ... casei sem casar, porque naquele tempo não havia o divórcio. Ontem nós comemoramos três anos de casados pela lei. Legalmente. E temos... faz... vai fazer 36 anos em julho que realmente somos companheiros.

LC - Seus filhos nasceram durante os cinco anos de Europa?

JA - Não, João Jorge está com 33 anos, nasceu aqui em 47. Paloma nasceu em Praga, em 51, fará trinta anos em agosto.


Entrevista de Antônio Roberto Espinosa para o caderno Literatura Comentada da Editora Abril (julho de 1981).
Fonte:  http://sopadepoesia.blogspot.pt/2010/08/entrevista-com-jorge-amado.html