Conhecimento Prático Filosofia: Para começarmos gostaria que explicasse um pouco o que vem a ser a filosofia da linguagem e como ela dialoga entre estes dois campos: Filosofia e Linguística.
John Rogers Searle: Não há uma linha divisória entre a filosofia da linguagem e a Linguística, mas na prática as atividades dos filósofos da linguagem e linguistas são realmente muito diferentes. Filósofos estão mais interessados em questões relacionadas a como as linguagens se relacionam com a realidade, a natureza do significado, como a comunicação é possível, o que é a verdade, o que é necessidade lógica, como a linguagem se relaciona com a mente etc. Linguistas estão mais interessados em questões empíricas sobre línguas humanas atuais e naturais, como o inglês ou português. Como eu disse, não há uma linha divisória, mas ninguém trabalhando no campo irá reconhecer obras da filosofia da linguagem como sendo diferentes da Linguística. Dentro da Filosofia, a filosofia da linguagem é uma importante sub-disciplina, juntamente com a filosofia da mente, a epistemologia, a metafísica, a ética, a filosofia política e outras.
CPF – Uma discussão interessante que levanta é quanto a não necessidade da linguagem para a existência da mente. Ao partir desse pressuposto, trata da possibilidade dos animais terem mente. Isso presume a capacidade de eles terem consciência?
J. R. Searle: Não há dúvida de que muitos animais sem linguagem são conscientes e, nesse sentido, eles têm mentes. Há uma visão despropositada defendida por alguns filósofos e psicólogos de que os animais não têm consciência, mas essa visão não é séria. Se você tem alguma dúvida, você deveria conhecer o meu cão Roger. Não há dúvida de que o Roger é consciente, e de fato seus antecessores, outros cães anteriores da minha família – Gilbert, Ludwig, Russell e Frege – eram todos bem conscientes. Há confusões filosóficas complexas que levam as pessoas como Descartes a negar que os animais têm consciência, mas eu não acho que isso pode ser seriamente considerado. O argumento decisivo para a existência da consciência animal é que os mecanismos que produzem a consciência nos seres humanos, tais como os mecanismos da visão, sede, fome, dor, movimento voluntário etc., são extremamente semelhantes a esses mesmos mecanismos em animais. Nós somos biologicamente e psicologicamente semelhantes a outras espécies animais.
CPF – Recentemente foi divulgado em uma revista científica a possibilidade de determinados “estralos” emitidos pelas baleias cachalotes serem nomes. Ou seja, seria a indicação precisa do uso de uma linguagem complexa por animais não humanos. A validação de algo desse tipo acarretaria o que para o entendimento da mente e da consciência?
J. R. Searle: Nós realmente não sabemos o suficiente sobre outros animais para saber o quão complexa é a sua linguagem. Tem havido uma série de pesquisas sobre abelhas, e como resultado, agora entendemos razoavelmente sobre a linguagem das abelhas. Houve também algumas pesquisas sobre a notável capacidade dos papagaios para imitar a fala (língua) humana. Mas o nosso conhecimento da linguagem (língua) entre os mamíferos marinhos, como golfinhos e baleias, parece, para mim, muito rudimentar. Nós podemos apenas especular. Nós realmente não sabemos se cachalotes usam sons como palavras.
CPF – Como reconhecer a consciência?
J. R. Searle: Eu suponho que você queira dizer “consciousness” e não “conscience”. Há todos os tipos de formas de reconhecer que outros seres humanos são conscientes, assim como há muitas maneiras de reconhecer a consciência animal. O argumento usual na filosofia é dizer que é por causa do comportamento de um ser que se pode determinar que ele seja consciente, o que a mim parece estar totalmente equivocado. Por exemplo, podemos construir um robô que seja completamente inconsciente, mas que se comporte de uma maneira efetiva como seres conscientes. O argumento decisivo para a existência da consciência em outros seres é simplesmente que a coordenação entre o seu estímulo de entrada (input) e o seu comportamento aparente (output) é feita por mecanismos que são bastante semelhantes aos nossos e, portanto, não há dúvidas suficientemente sérias sobre se eles têm estados internos de consciência que mediem esses estímulos de entrada e comportamentos aparentes.
CPF – Acredita que será possível dotar máquinas de consciência? Qual seria o principal desafio?
J. R. Searle: Nós já temos consciência maquínica porque, naturalmente, o cérebro é uma máquina. Se uma máquina é um sistema físico capaz de executar certas funções, então não há dúvida de que os cérebros humanos e animais são máquinas. O que temos sido incapazes de fazer até agora é construir uma máquina artificial que seja consciente. O obstáculo para isso é óbvio: não sabemos como o cérebro faz isso, e por isso mesmo não sabemos como criar uma máquina artificial que o faça. Nós poderíamos perguntar: “podemos construir um cérebro artificial que crie a consciência?”. Da mesma maneira que nós poderíamos perguntar se “podemos construir um coração artificial que bombeie o sangue?”. Nós sabemos como o coração bombeia o sangue humano, por isso é bastante simples construir uma máquina que faça isso. Nós não sabemos como o cérebro humano cria a consciência, então não sabemos como criar uma máquina que o faça. É provável que ainda haja um longo tempo antes que possamos construir uma máquina artificial que duplique os poderes causais do cérebro-máquina humano real para produzir consciência.
CPF – Não raras vezes o senhor aborda a importância da subjetividade na construção do indivíduo. Gostaria que o senhor explicasse a própria subjetividade, a influência dela no indivíduo e relevância geral.
J. R. Searle: A distinção entre objetivo e subjetivo é uma fonte de confusão enorme na nossa cultura intelectual, porque a distinção tem dois sentidos diferentes: um sentido epistêmico que tem a ver com diferentes tipos de afirmações de conhecimento e um sentido ontológico que tem a ver com os modos de existência. O que importa para essa discussão são os modos de existência. No sentido epistêmico, a distinção é sobre afirmações: uma afirmação é objetiva se sua verdade ou falsidade pode ser formulada de forma independente das opiniões e atitudes dos proponentes da afirmação. É subjetiva, se ocorrer o contrário. Assim, a afirmação de que Van Gogh morreu na França é epistemicamente objectiva. Já a afirmação de que Van Gogh é um pintor melhor do que Manet é epistemicamente subjetiva, ou seja, é uma questão de opinião subjetiva. No sentido ontológico, uma entidade tem existência objetiva se ela existe independentemente de qualquer sentimento humano. Tem uma existência subjetiva se ela só existir como experiência de um sujeito humano ou animal. Assim, dores, cócegas e coceiras são ontologicamente subjetivas, ao passo que montanhas, moléculas e placas tectônicas são ontologicamente objetivas. A confusão era enorme ao supor que, uma vez que a ciência é objetiva e a consciência é subjetiva, não poderia haver uma ciência da consciência. Essa é uma confusão entre o sentido epistêmico e o ontológico. Epistemicamente falando, a ciência é de fato objetiva na medida em que procura encontrar verdades que são independentes dos sentimentos e atitudes de investigadores particulares. Mas – e isto é um ponto importante – a subjetividade ontológica de um domínio não nos impede de ter uma ciência epistemicamente objetiva desse domínio. A consciência é realmente subjetiva, ontologicamente, mas isso não nos impede de ter uma ciência epistemologicamente objetiva da consciência. Na verdade, estamos trabalhando na criação de uma tal ciência agora.
CPF – Ainda com relação à subjetividade, por exemplo, o psicanalista George F. Kneller considera a subjetividade sendo intrínseca ao homem, mas como resultado das interações dele com o meio ambiente. Concorda? Nesse ponto, até onde o indivíduo seria livre na construção de sua própria subjetividade/ identidade?
J. R. Searle: A subjetividade humana é uma característica dos estados conscientes criados pelo cérebro. Na verdade, o cérebro incorporado obtém experiências interagindo com seu ambiente, mas os processos necessários e suficientes para a criação de subjetividade são internos ao cérebro.
CPF – Poderia discorrer quanto à “Natureza da Consciência”?
J. R. Searle: Escrevi vários livros sobre esse tema, então eu posso realmente apenas nomeá-los: The Mystery of Consciouness, Mind, a Bief Introduction; The Rediscovery of the Mind; e, Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind¹. Para os propósitos dessa discussão, vamos definir consciência (consciousness) como segue: a consciência é constituída por aqueles estados ontologicamente subjetivos de sentimento, sensibilidade, ou a consciência que, tipicamente, começa quando acordamos de um sono sem sonhos e continuamos durante todo o dia até que adormeçamos ou nos tornemos inconscientes de alguma outra forma. Sonhos, nessa definição, são uma forma de consciência. A consciência tem muitos recursos, mas o mais essencial é a subjetividade, como eu acabei de explicar, com suas características subordinadas de qualitatividade e unidade: para cada estado consciente há um certo caráter qualitativo referente a esse estado e a totalidade dos estados conscientes como parte de um campo consciente unificado. Todos os três estão relacionados a um quarto – intencionalidade – a capacidade da mente para representar objetos e estados de coisas no mundo independente de si mesmo. Nem todos os estados conscientes são intencionais e, claro, muitos estados intencionais são inconscientes. No entanto, existe uma estreita conexão entre consciência e intencionalidade.
CPF – Ainda acredita que hoje uma das questões fundamentais da Filosofia seja o entendimento de nós mesmos como agentes conscientes inseridos em um universo formado basicamente por “seres e objetos não-pensantes”?
J. R. Searle: Essa é a questão fundamental da Filosofia hoje. Como conciliar uma concepção que temos de nós mesmos como seres conscientes, mentais, racionais, livres, éticos, estéticos em um mundo que consiste inteiramente de partículas físicas sem consciência, sem sentido? Essa não é apenas “uma das questões fundamentais da Filosofia contemporânea”, é a questão fundamental.
CPF – Quanto ao Realismo Externo?
J. R. Searle: Realismo externo é a visão de que há uma realidade que existe independentemente de nossas representações dela. Eu não penso que haja algum questionamento de que o realismo externo é verdadeiro e mais importante e que ele é um pressuposto necessário de grande parte da nossa ciência e de nossa comunicação com o outro. Se eu lhe perguntar “está chovendo?”, não estou perguntando sobre o seu estado de espírito, mas sobre o estado do tempo que existe de forma totalmente independente da sua mente ou de qualquer outra pessoa.
CPF – Qual o problema semântico da Experiência Perceptiva?
J. R. Searle: Percepção, como crenças, desejos etc, tem intencionalidade. Intencionalidade é apenas essa característica da mente pela qual é dirigida a ou sobre objetos e estados de coisas do mundo, e na medida em que há um “problema semântico” da experiência perceptiva, é precisamente o problema em explicar essa relação. Como é possível que as nossas experiências subjetivas internas qualitativas possam dar-nos conhecimento objetivo de uma realidade que existe independentemente?
CPF – Como entende a importância dos Estados Alterados de Consciência para a formação do indivíduo ou mesmo para o entendimento da mente?
J. R. Searle: Nós realmente não temos uma noção científica clara de “estados alterados de consciência”. Às vezes você pode obter uma melhor compreensão do caso normal estudando o caso degenerado ou patológico. A história da ciência da mente está cheia de exemplos. Talvez um dos exemplos mais interessantes é o que Weiskrantz chamou de visão-cega em que o paciente pode relatar eventos que ocorrem em seu campo visual, embora por causa dos danos ao seu cérebro, ele não possa ter qualquer experiência consciente desses eventos.
Outro exemplo famoso de estados alterados de consciência é o caso dos pacientes com cérebro dividido. São pacientes que, para curar a epilepsia, sofrem uma separação cirúrgica entre os dois hemisférios pelo corte do corpo caloso. Como resultado, verifica-se que o paciente aparentemente passa a ter dois centros de consciência, um em cada hemisfério; função essa, pelo menos em parte, independente uma da outra. Então, se você mostrar uma colher para o hemisfério direito e perguntar ao paciente: “O que você vê?”, o paciente diz, por seu hemisfério esquerdo ser onde ele tem a linguagem: “Não vejo nada”. Mas ele, então, estende a sua mão esquerda, que é controlada por seu hemisfério direito, e pega a colher.
Muito pode ser aprendido sobre a consciência através do estudo de tais estados patológicos.
CPF – É comum em suas exposições de ideias o rompimento sistemático com várias linhas teóricas do conhecimento como o dualismo, estruturalismo etc. Acredita que isso se dê por quê? Teriam essas teorias filosóficas hoje, mais do que antes, a necessidade de serem revistas?
J. R. Searle: Eu penso que o vocabulário e categorias tradicionais para se discutir essas questões estão irremediavelmente confusos e inadequados. Estou pensando em categorias e conceitos como o dualismo, materialismo, mentalismo, o behaviorismo, o funcionalismo etc. Em um dos meus livros mais recentes: Mind – A Brief Introduction¹ (Oxford University Press 2005), eu exponho a falência da terminologia e categorias tradicionais.
CPF – O que destaca como sendo o principal problema filosófico do início do século?
J.R.Searle: O principal problema filosófico da época atual é dar conta de nós mesmos como conscientes, mentais, racionais, tendo livre-arbítrio, políticos, estéticos, sociais, que falam uma língua, enfim, seres morais em um mundo conhecido que consiste inteiramente de inconsciência e partículas físicas sem sentido. Talvez tenhamos que desistir de alguns de nossos pressupostos sobre nós mesmos. Talvez, por exemplo, não sejamos capazes de manter a nossa concepção tradicional da liberdade da vontade. Mas a pergunta mais interessante na Filosofia de hoje, na verdade eu diria que a questão mais excitante na vida intelectual hoje, é encontrar uma forma de tornar a nossa realidade humana e consistente e uma extensão natural do que conhecemos como a realidade básica.
¹Traduções literais dos títulos: o mistério da consciência e mente – uma breve introdução; A redescoberta da mente, e intencionalidade: um ensaio de filosofia da mente.
²Tradução literal: Mente – uma breve introdução.
Entrevista publicada origialente em revista "Conhecimento Prático Filosofia" de Matheus Moura (Janeiro, 2012)
Sobre J. R. Searle: https://en.wikipedia.org/wiki/John_Searle
Imagem/créditos: Matthew Breindeluploader Matro at en.wikipedia - self madeOriginally from [1], CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1974017