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Mario Vargas Llosa (2011)


- Em El sueño del Celta um personagem diz: “É possível ser um grande escritor e um medroso (“timorato”) em assuntos políticos”. O que você pensa sobre essa frase?

- O personagem a quem ela se refere é Joseph Conrad e não Roger Casement. Conrad era medroso politicamente por uma razão óbvia: era um recém chegado à nacionalidade britânica. Por outro lado, tinha essa espécie de lealdade canina que tem um imigrante de primeira geração com o país que o acolheu e ao qual se integrou. Ainda que fossem muito amigos, o fato de Casement optar pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial, um país que, por razões óbvias, os poloneses...

- Como Conrad.

- Claro. Os poloneses odiavam a Alemanha tanto quanto a Rússia porque ela fez com que desaparecessem como país. Isso fez com que Conrad tomasse distância de Casement e retirasse sua assinatura desse manifesto dos intelectuais que pediam a comutação da pena. Deve ter lhe doído muito, pois eram amigos. Casement tinha uma enorme admiração por Conrad, que havia apoiado a sua luta contra o governo belga pelas atrocidades cometidas no Congo. O diálogo é fictício, inventado.

- Mas Conrad retirou sua assinatura.

- Sim, existiu o fato de que Conrad retirou sua assinatura e, ainda que não haja testemunhas disso, é certo que para Casement deve ter sido muito doloroso que uma pessoa que tanto admirava e que, além disso, tinha prestígio, não quisesse assinar o manifesto.

- O que é um timorato em política? Porque timorato é uma palavra que se usa pouco.

- É alguém que teme se pronunciar com clareza sobre aquelas coisas nas quais acredita. Não é uma pessoa vacilante...

- Não está falando de um apolítico.

- Não, é uma pessoa que não tem a coragem de assumir publicamente suas opiniões políticas porque pensa que há riscos implicados nisso. É assim que eu definiria um timorato. Uma pessoa pode ser vacilante, pode ter dúvidas a respeito de certos temas, isso é perfeitamente legítimo.

- E é bom, não?

- Sim, é bom. Em muitos casos é bom. Ter muita segurança é perigoso (sorri).

- O que é o contrário de “timorato” para alguém que conhece a língua tão bem como você. Há um antônimo?

- (Pensa) Deixe-me ver...Eu creio que é um pouco exacerbado dizer “valente”. Não sei. Parece-me que se uma pessoa tem ideias políticas, sobretudo em circunstâncias em que essas ideias estão postas a prova (para não falar quando estão em perigo), deve defendê-las. Se acredita nelas, deve defendê-las. Sobretudo na América Latina nós sabemos para o­nde conduzem muitas vezes esses riscos. Então, me parece que uma pessoa deve defender suas ideias preferencialmente com razões e não com pedradas ou socos.

- Você fez um click em suas ideias políticas de um momento para outro?

- Não. Um click de um momento para outro nunca, creio. Foi um processo. Por exemplo, a passagem de convicções socialistas para convicções democráticas e liberais foi um processo que tem distintas etapas, mas acredito que se inicia em meados dos anos 60, em relação a Cuba, basicamente.

- Mas em algum momento faz um click entre dizer ou não dizer as coisas?

- Não, não. Digamos que eu creio que estava muito identificado com a esquerda, basicamente a partir da Revolução Cubana, e comecei a ter certas dúvidas, mas não me atrevia a torná-las públicas. A primeira dúvida séria que tenho com a Revolução Cubana é quanto à Umap, as unidades militares de apoio à produção, um eufemismo para campos de concentração.

- Por que diz isso?

- Eram campos de concentração o­nde meteram miseráveis, criminosos comuns e gays. Para mim essa foi uma experiência muito chocante, eu não esperava. Conheci vários dos jovens que foram para os campos de concentração.

- No ano passado, Fidel Castro disse ao jornal La Jornada, do México, que a perseguição aos homossexuais havia sido um dos grandes erros da Revolução Cubana.

- Um pouco tarde, não? Porque nessa experiência sofreram terrivelmente não somente rapazes e moças que eram identificados com a revolução, os do grupo A Ponte. Foi muito doloroso e traumático e para mim foi a primeira vez que tive dúvidas muito sérias sobre se a Revolução Cubana era o que eu acreditava e o que eu dizia que era. Esse fato foi me mudando muito, me criando muitas dúvidas e estimulando atitudes críticas relativamente à revolução. Outra experiência que acabou sendo confirmatória e muito mais importante para mim foi o apoio de Fidel à invasão da Tchecoslováquia.

- A de 1968.

- Sim, foi a primeira vez que já não me importou “dar armas ao inimigo”, e o digo entre aspas para falar da fórmula chantagista que mantinha sempre em silêncio os críticos de esquerda. Neste momento escrevi um artigo intitulado “O socialismo e os tanques”, fazendo claramente uma crítica à revolução. Mas ainda fui uma vez a Cuba depois disso – foi a última vez -, já não me recordo o ano, não sei se 1969 ou 1970, imediatamente antes do caso (do poeta Heberto) Padilla. Ele ainda não tinha sido preso, mas era evidente que iam prendê-lo a qualquer momento. Padilla estava enlouquecido pela tensão na qual vivia, e o clima era um clima... de uma... Uff, havia ansiedade, havia medo entre muitos escritores que conhecia muito bem. Eu saí completamente angustiado dessa viagem, e logo em seguida ocorreu o caso Padilla, que foi a gota d’água.

- Essa foi uma mudança de idéias socialistas para ideias liberais?

- Não, o liberalismo é posterior. Neste momento, o socialismo entusiasta passa a ser um socialismo muito crítico, passa a ser uma social-democracia. Eu me senti como sentem os padres que, em determinado momento, tornam-se ateus: muito desamparados, muito só, em um mundo muito confuso. Foi um processo lento de revalorização da ideia de democracia, a importância dessa democracia formal tão injuriada pela esquerda e comecei a ler Raymond Aron, George Orwell, (Arthur) Koestler e (Albert) Camus, a quem tinha lido e havia atacado quando eu era muito sartreano. Inclusive publiquei um livrinho que se chama “Entre Sartre e Camus”, contando essa evolução.

- E o liberalismo, quando começou em você?

- Primeiro foi uma espécie de resgate da ideia democrática, da importância desses valores formais, das formas no político. Em seguida, o liberalismo foi o descobrimento de Isaiah Berlin e (Karl) Popper. A leitura de Popper, a leitura de “A sociedade aberta e seus inimigos” para mim foi fundamental. É um dos livros que mais me marcou, mais me mudou, me enriqueceu extraordinariamente sobre o que é a visão do autoritarismo, do que é o totalitarismo, e como essa é uma ameaça que está sempre presentem inclusive nas sociedades mais livres, mais avançadas.

- Você acaba de participar de um seminário sobre populismo organizado em Buenos Aires pela Sociedade Mount Pelerin. Popper foi um de seus fundadores.

- Sim, claro. Popper participou em 1947...

- E (Milton) Friedman e (Friedrich von) Hayek também. Os dois terminaram sustentando a ditadura de Augusto Pinochet.

- Eles não têm culpa da ditadura de Pinochet.

- Eu disse apoiantes, não causadores. Pinochet aplicou políticas de mercado, mas jamais apoiou a política liberal, que parte da democracia política. Pinochet não apoiou o liberalismo político, mas Friedman e Von Hayek apoiaram a ditadura de Pinochet.

- Não, não. Apoiaram a política econômica, pensaram que a política econômica era boa, mas nunca apoiaram a ditadura de Pinochet, nunca apoiaram os crimes, nunca apoiaram a dissolução do Congresso, o fim das eleições livres. Nunca. Von Hayek defendeu...Vejam... Não sei se já leram “A Constituição da Liberdade”, um livro absolutamente fundamental em defesa da cultura democrática e da liberdade econômica a partir da liberdade política. É a base fundamental da ideia de Von Hayek.

- Mas não estamos falando das idéias, mas sim do apoio a uma política concreta.

- Pois eu não conheço nenhuma declaração de Von Hayek a favor de Pinochet, o­nde ele tenha defendido a ditadura de Pinochet. Todo o pacote, com os crimes, os desaparecimentos. E se a defendeu, se equivocou.

- Se quiser, passemos a Friedman. Esteve várias vezes como convidado no Chile de Pinochet.

- Mas foi dar conferências.

- Ele até escreveu cartas de agradecimento a Pinochet por ter aplicado suas recomendações econômicas.

- Não conheço essas cartas.

- São de 1975. Aqui estão, impressas. Podemos lê-las, mas isso prolongaria a entrevista.

- Se Friedman e Von Hayek fizeram isso se equivocaram. Cometeram um grave equívoco e é preciso criticá-los por isso, porque nenhum liberal deve apoiar uma ditadura militar. Se o faz, se equivoca, e é preciso criticá-lo. Eu sou um liberal e nunca apoiei uma ditadura.

- Isaiah Berlin é uma coisa, Popper, que foi co-fundador da Sociedade Mont Pelerin, é outra. E os outros dois fundadores, Friedman e Von Hayek, foram muito ativos politicamente, nos Estados Unidos e no Chile.

- A Sociedade Mont Pelerin é uma sociedade criada fundamentalmente para avaliar a situação da economia no mundo. É uma sociedade criada por especialistas em economia, a qual eu não pertenço. É a primeira vez em minha vida que participo de uma reunião da Mont Pelerin. Eu estou totalmente a favor da liberdade econômica como um correlato ou contrapartida da liberdade política. Essa é a minha visão do liberalismo. Essa é a visão de liberalismo dos liberais que admiro, que leio. De modo que, se há liberais que apoiaram uma ditadura, para mim não são liberais. Não tenho por que carregar a responsabilidade de senhores que defendem ditaduras.

- Uma sociedade de liberais políticos que reivindicam Friedman e Von Hayek é como fundar um centro de estudos social-democratas e dar a ele o nome de Sociedade Lavrenti Beria, em homenagem ao chefe da polícia secreta de Stalin.

- (risos) Mas é injusto! A Sociedade Mont Peelerin defende a liberdade econômica, está constituída fundamentalmente por economistas, mas que eu saiba, que eu me recorde, jamais se identificou com nenhuma ditadura por que essa ditadura fez políticas de mercado. Von Hayek e Friedman defenderam a liberdade econômica que foi introduzida no Chile, defenderam certas reformas.

- Essas reformas poderiam ter sido introduzidas em 1973 sem ditadura?

- Deveriam ter sido introduzidas numa democracia. Essa é a postura de um liberal. Um liberal é alguém que acredita na liberdade e acredita que ela é indivisível, que não se pode dividir a liberdade política da econômica. Esse é um princípio básico do liberalismo. Está em Adam Smith, o pai do liberalismo. Se há alguém que pretende dividir a liberdade política e econômica se equivoca: não tem o direito de ser chamado de liberal ou abraça uma visão completamente corrompida e condenável do liberalismo. Esse não é o liberalismo que defendo e com o qual me sinto identificado. Além disso, creio ter demonstrado que minha conduta é uma conduta de defesa claríssima da liberdade no campo político, no campo social e no campo econômico.

- Você acaba de participar de uma reunião sobre o populismo na América Latina. Alguém poderia dizer que Franklin Delano Roosevelt, presidente norteamericano que assumiu em 1933, foi um grande populista. Está de acordo?

- Tudo depende de definições. Por exemplo, aqui, no dia da inauguração da Mont Pelerin, o representante do presidente da Sociedade disse que havia um populismo “bom” e um populismo “mau”. O populismo bom era o de Ronald Reagan. O que é que este senhor queria dizer? Ele entendia por populismo a projeção, em nível popular, das reformas liberais por meio de um grande comunicador, como era Reagan.

- Esse é o momento em que começa o processo de maior desigualdade histórica dos Estados Unidos. Quem o diz é Paul Krugman, outro Nobel, mas de Economia, não de Literatura.

- Sim, mas...Se eu tiver que corrigir cada frase vamos perder muito tempo.

- Não se trata de corrigir, ou não corrigir. É uma entrevista.

- Nós, liberais, não somos a favor da desigualdade.

- O que querem?

- Que tudo nasça do êxito, do esforço, da produção de bens e serviços que beneficiem o conjunto da comunidade. Que haja pessoas que tenham maiores ou menores rendas em função de sua excelência, de seu talento, isso é legítimo para um liberal. O que não é legítimo é que essas diferenças se estabeleçam a partir do privilégio ou da desaparição da igualdade de oportunidades de base, que é um princípio liberal.

- E o que ocorre quando, por exemplo, como diz Krugman, Reagan modifica a política tributária e corta impostos dos mais ricos. Não muda o que você define como igualdade de oportunidades de base?

- Hummmm, é que aqui teríamos que discutir muitíssimo. Krugman não é precisamente um liberal. Krugman é um homem muito inteligente, mas é uma espécie de social-democrata com debilidades consideráveis na direção de fórmulas socialistas, coletivistas. Tem debilidades neste campo.

- Você está dizendo que Krugman, colunista do The New York Times, é um coletivista?

- Sim, tem debilidades coletivistas, como muitos socialdemocratas muito respeitáveis, democratas impecáveis que têm debilidades coletivistas. Por exemplo, os democratas cristãos são absolutamente democratas, mas eles acreditava que o Estado tinha que intervir massivamente na economia para corrigir o que chamavam de desigualdades de base. Nós, liberais, sempre criticamos essa ideia.

- Mas a intervenção do Estado não era defendida também por Adam Smith?

- Não, não. A intervenção do Estado na economia para suprir o que os democratas cristãos chamavam – porque isso mudou – de debilidades de base, é uma forma de intervencionismo que, ao final gera muito mais injustiça e muito mais privilégios. Mas enfim..., creio que isso nos aborreceria muitíssimo.

- Voltemos ao tema do populismo. Do populismo bom e do populismo mau.

- Mas é isso que dizia esse senhor e eu acredito que estava equivocado. Chamava de populismo uma forma de popularidade. Então, se isso é populismo toda forma de comunicação exitosa seria populismo. Eu creio que populismo é sacrificar o futuro em nome de uma atualidade passageira, efêmera, e fazer política com esta visão. Há um populismo de direita e um populismo de esquerda, sem dúvida alguma.

- As políticas de curto prazo seriam uma forma de populismo?

- Sim, sobretudo em medidas econômicas. Mas há um populismo político, não somente econômico.

- Voltemos a Roosevelt, caso não se oponha. Você não desconhece o que ele fazia. Com o rádio como ferramenta, falava diretamente ao povo sobre os efeitos da crise dos anos 30.

- Mas o que é que Roosevelt consegue? Consegue dar segurança em um momento de uma insegurança terrível. Então, com essa tranquilidade com a qual se dirige a sua sociedade, a seus eleitores, cria uma segurança que fazia uma falta extraordinária para que a crise econômica não se aprofundasse.

- Roosevelt dizia aos cidadãos que apelava diretamente a eles para explicar-lhes que o Senado e os bancos não deixavam que resolvesse a crise.

- Mas bom, está bem...O Senado e os bancos neste momento não o deixavam governar. Às vezes é bom não deixar os políticos governarem se eles fazem más políticas, não é verdade?

- E neste caso era bom?

- Não falo de fazer revoluções, mas sim de que existam uma democracia e algumas instituições que permitam frear as leis más. Por exemplo, no Peru, na época de Alan García, nós conseguimos parar uma medida, que para mim era o final da democracia: a nacionalização dos bancos. E a paramos com democracia, sem fazer nada de sedicioso, mediante manifestações e atos públicos. Ao final, conseguimos que essa lei, que era uma lei má que podia acabar com a democracia no Peru, não prosperasse, dessa marcha ré, sem que houvesse alguém morto ou preso.

- Nenhum liberal reivindica Roosevelt e John Maynard Keynes? O que um liberal como você diz sobre isso?

- Keynes, sim. Ambos foram grandes democratas. Keynes foi um gênio, um homem de uma cultura absolutamente prodigiosa, e as teses keynesianas, que a socialdemocracia abraçou, são teses geradas em um contexto muito especial de crise terrível, o­nde já não estava mais em jogo uma política econômica, mas sim a sobrevivência de um país e de uma cultura democrática. Esse é o contexto no qual nasce o keynesianismo, que não pode ser aplicado de uma maneira automática. Ninguém descreveu melhor que o próprio Friedman o que significa a inflação para um país, não é verdade? Eu tenho muito respeito por Keynes, creio que é um dos grandes pensadores modernos, sem nenhuma dúvida e, de certa forma, boa parte de seu legado pode ser reivindicado pelos liberais. Sem nenhuma dúvida.

- Em certa medida, e seguindo sua frase de que nada pode ser aplicado de maneira automática, os países mais importantes da América do Sul estavam em uma situação parecida com a que você descreve. E, nos últimos anos, resolveram sua tremenda crise com maior intervenção estatal.

- Há circunstâncias em que nenhum liberal vai rechaçar uma certa intervenção do Estado a partir de certos consensos democráticos, obviamente. Sem nenhuma dúvida, não é verdade? Nesta última crise terrível, por exemplo...

- A crise mundial que começou em 2008.

- Sim. Frente a ela, os liberais ficaram completamente divididos. Alguns diziam que se tratava de “salvar o morto”, pois estava morrendo. Então, era necessária a intervenção do Estado. Outros liberais diziam que o ia morrer não era o Estado, mas sim as políticas que nos levaram a esta crise absolutamente monstruosa.

- E você o que dizia?

- Eu estava na confusão total, e creio que ali se necessitava de um tipo de conhecimento técnico da magnitude da crise e das consequências para tomar uma decisão. Eu carecia disso e, simplesmente, como sobre muitas outras coisas, o que declarei foi minha perplexidade, Sobre isso não posso opinar porque não seu. Opinaria a partir do puro palpite e creio que isso é irresponsável, não na literatura, mas sim na política.

- Você tem algum palpite sobre o segundo turno peruano entre Ollanta Humala e Keiko Fujimori?

- Aí não há palpite, mas um conhecimento muito claro. Há um mal menor e um mal maior. O mal maior é Keiko Fujimori e então eu voto por Humala. Isso é claríssimo. Os problemas que Humala pode trazer, os enfrentaremos quando eles aparecerem. Mas tenho uma esperança que quero que fique registrada. Minha esperança é que Humala se afaste realmente de Chávez e se aproxime de gente como Lula, como Mujica, como Funes, e faça uma política semelhante no campo econômico.

- De qualquer modo, na América Latina, em cada país termina se desenrolando seu destino nacional, não há uma forma de copiar...

- Não há destinos nacionais...

- Ainda que alguém queira copiar, não poderá fazê-lo porque cada nação é única.

- Há formas de copiar a orientação, há formas de entender que a criação da riqueza passa pelo mercado, não passa pelo estatismo. As provas são tão absolutamente contundentes...O socialismo chileno, o uruguaio e o brasileiro entenderam isso. Há uma esquerda peruana que entende isso, ainda que seja muito pequena. Oxalá com Humala essa passe a ser a política adotada. Seria uma salvação.

- Você falou de Lula como modelo. Sua estratégia foi de intervenção forte do Estado.

- Não tão intervencionista graças ao fato de o presidente anterior ter sido Henriquez Cardoso. Lula aproveitou as grandes reformas feitas por Cardoso. Ele é o grande estadista.

- Fernando Henrique Cardoso?

- Sim.

- Mas Lula representou uma ruptura e não uma continuidade em relação a Cardoso.

- Não, não, não! Como? Que horror, que injustiça! O que está dizendo!

- O Brasil cresceu e se tornou mais justo com Lula.

- Mas isso foi por causa da grande reforma econômica, da grande reforma monetária feita por Henriquez Cardoso. Ela criou as bases de uma economia de mercado, abriu as fronteiras do Brasil. O que ocorre é que ele faz as coisas de modo discreto, com uma elegância britânica, porque não é um populista. Então Lula, que não sabia nada de economia, que não entendia absolutamente nada...

- Você diz que um homem que foi fundador do Partido dos Trabalhadores e secretário geral dos metalúrgicos não sabia nada de economia?

- Lula encontrou um país preparado graças à extraordinária habilidade e à imensa cultura de Henriquez Cardoso, que abriu o Brasil para a modernidade, que introduziu uma economia de mercado autêntica, que fez a esquerda brasileira entender que não há criação de riqueza sem mercado, sem empresa privada, sem investimentos, sem integração ao mundo. E Lula, em boa hora para o Brasil, seguiu esse caminho.

- Talvez Lula seja considerado “tribal” por Hayek, mas Lula é que fala de justiça social, não Cardoso.

- Falar de justiça social não quer dizer nada...

- Hayek dizia que buscar a justiça social é uma atitude que vinha das tribos ou hordas. Lula foi tribal ao colocar em prática esse princípio?

- Para fazê-lo é preciso criar riquezas. Um país tem que prosperar. Isso é o que a política de Henriquez Cardoso permitiu: que esse país prospere.

- Mas o país não cresceu com Cardoso, e não superou os 3%/ano de crescimento.

- Mas criou as condições e começou a crescer e ordenou a moeda. Encontrou uma estabilidade que, na história do Brasil, praticamente nunca tinha ocorrido. Essa estabilidade é fundamental para que haja uma economia de mercado. Como pode haver investimento, como um empresário pode planejar seu trabalho, seus investimentos, se a moeda está sujeita aos vai-e-vem permanentes que ocorriam quando ele assumiu o poder.

- Talvez a novidade de Lula seja que a justiça social não foi só um valor, mas sim uma condição de eficácia e possibilidade prática para conseguir o desenvolvimento econômico.

- Aí creio que já estamos nos aproximando (risos). Não falamos nada de literatura, só uma perguntinha. O ideólogo não o permitiu (risoso). Uma entrevista após outra...Que barbaridade, é um ritmo estajanovista (*).

- É uma palavra muito soviética.

- Agora que a União Soviética desapareceu pode-se usá-la.

- É retrô, um clássico?

- Vi em Nova York os retratos do realismo socialista e o que ocorre é que a frivolidade os colocou na moda. A frivolidade da vanguarda faz com que toda essa pintura comece a ser resgatada nas galerias nova-iorquinas.

- Que teria dito Milton Friedman?

- Friedman era um bom leitor de novelas. A única vez que conversei com ele não falamos nada de economia, só de literatura.

- O que vocês está lendo agora?

- O último livro de Jorge Edwards, “A morte de Montaigne”. Parece uma crônica histórica e depois começa a surgir a ficção.

- Se tivesse que escolher um livro, com qual ficaria?

- Guerra e Paz. Se tiver que ficar com um só, talvez fique com esse.

(*) O estajanovismo foi um movimento operário socialista que nasce una antiga União Soviética, criado pelo mineiro Alekséi Stajanov, que defendia o aumento da produtividade laboral, baseado na própria iniciativa dos trabalhadores.

Entrevista de Martín Granovsky e Silvina Freira para o jornal argentino Página/12 em 24-4-2011. Tradução de Marco Aurélio Weissheimer (fonte)