É um dos meus livros
de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma
coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser... Ao [ Jorge Luís]
Borges, perguntaram assim: "Quem é afinal Borges?"; ele
começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa,
"Borges não existe" [risos]; depois passou para a primeira
pessoa do singular: "Sou todos os livros que li, todas as
pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas
que amei." É verdade - agora digo eu.
Como se deu o encontro
com o Winnie The Pooh, de Milne?
Descobri-o tarde, era
um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O
primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionoume imenso. Foi
A Vida Sexual, do Egas Moniz.
Comecei a ler livros
por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.
Como o apresentaria? É
improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na
idade adulta...
E de uma forma muito
forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com
o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade - que é
a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de
grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que
houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de]
deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um
universo perdido, de um mito, de um passado dourado - que nunca
existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse
reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as
nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É
natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da
infância.
Era à voz da infância
que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde
Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da
infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória,
pousar a cabeça.
O ursinho não é
propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e
imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com
as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E
seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer
sentido e de produzir sentido. A palavra "criar", pelo
menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança
também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito
através do discurso.
E que tem isto a ver
com os seus livros?
Escrevo o livro comigo
mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A
minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de
frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O'Neil, do Ruy Belo e do
Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se
calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na
minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo
da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com
esses poemas do Milne.
O primeiro espaço da
sua infância foi o Sabugal.
No dia 4 de Abril,
vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão
pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá
pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a
morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a
melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que
nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso
circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra
natal".E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu,
por mais voltas que tenha dado.
[afasta-se] Deixe ver
se encontro aqui esse livro..., onde é que está isso agora?
Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus
livros, este armário todo... Vou dizer-lhe um poema: "Os homens
temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e
temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha."
Começa assim. "Por isso os seus passos os levam de regresso a
casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à
poeira das primeiras, das únicas lágrimas." Continua por aí
abaixo.
Vamos até à casa onde
nasceu?
Nasci em casa. Era a
casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo... E, no
entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das
Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer
amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos,
eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.
Quando saiu do Sabugal,
iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?
Há uns anos, uma miúda
perguntou-me: "Como é jornalista, viaja muito?" "Não
gosto nada de viajar!" E ela: "Se calhar foi por viajar
tanto quando era pequeno..." Tinha uns dez ou 11 anos, e
chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre
a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a
fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava
a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou
quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância
nisto.
Mas não desistia?
Não. Estamos
condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui
do Porto.
Não tenho amigos da
instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos
Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia
desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo
quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a
casa.
Como era?
Eu vivia numa casa e
atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar
um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa.
Era horrível! É o problema do regresso a casa.
Há um poema seu que
diz assim: "A alegria da viagem é o regresso a casa."
A minha vida, na
infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É
natural que tivesse a melancolia do regresso.
Era um menino triste?
Não. Essas coisas são
profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou
na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e
são as que nos marcam mais.
Não desistia de fazer
amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o
desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o
mundo. Não o fez menos loquaz.
Se calhar até aumentou
a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a
minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser
recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.
Olhando à volta,
percebe-se que acumula coisas.
Tenho muita dificuldade
em deitar coisas fora.
Podia pensar, em função
do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.
Foi exactamente isso
que me fez ser mais agarrado às coisas.
Sabe o que é isto
aqui?
São coisas importantes
para tratar.
Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!
Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!
Descobri que as coisas
importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de
ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que
entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que
tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e
a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o
cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou
muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é
que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim.
As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia
era um grande cliente delas.
Nunca foi cliente de
psicanalista?
Não, e não gosto de
psicanalistas.
Porquê?
Desconfio. São
polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para
dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a
minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é
o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.
Sem o bigode, nem o
reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.
Sou, sou. Sou o mesmo e
outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias... Isto é a
minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho
esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?
Está.
"Como é que eu
podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de
alguém que eu na altura desconhecia?" Estava a falar da
infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só
sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras
não. "Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás,
com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco
e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de
baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando
baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando,
como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva..."
Vai insistentemente aos
poemas... A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para
evitar ou adiar o encontro com os outros?
Não. Quando começo a
escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser
informe que se pergunta a si mesmo: "O que virei eu a ser?"
O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer
transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou
seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que
cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os
poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir
um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas
isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência
nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária -
a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com
o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de
explicar isto...
Como foi o seu encontro
com as palavras?
Aprendi a ler muito
cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto
que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para
Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às
aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um
mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo
Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas
o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o
jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as
mães... Tem filhos?
Não.
Mas tem mãe. As mães
são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava
essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço,
escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e
com as coisas. Escrevia em verso.Como é que um miúdo de seis anos
escreve versos?
Os versos eram
dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do
milagre das rosas e eu pu-la em verso. "Nasceu um dia em
lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel." O "que queres ser
quando fores grande?", fazia sempre em verso. Queria ser
detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.
Os rapazes querem ser
detectives? Essa nunca tinha ouvido.
Queria ser detective
por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha
aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à
pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.
Padre? Porquê?
Eu queria ser santo.
Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a
quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra,
que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser
que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma
coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me
designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.
Era um elo numa cadeia.
Uma cadeia para o
infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe
da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, "ai,
provoquei um terramoto nos universos inferiores todos";
imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir
piedade, piedade! [risos].
Donde veio a ideia de
querer ser santo?
Queria ser bom até ao
limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola
era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para
rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.
Era também um desejo
de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?
Era. O meu pai era
anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a
alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia
militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu
avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista,
republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de
origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.
Onde é que pára o
judaísmo e o desejo de ser santo?
Eu, que já fui
agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por
religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia,
embora leia aquilo como um romance.
A prosa nunca foi a sua
forma?
Nunca. Ainda hoje leio
pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o
Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque
tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500
escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o
tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por
prazer.
Porque aquilo era uma
casa.
Talvez. Está a
psicanalisar-me! [risos].
Fale-me da sua mãe,
por falar em psicanálise.
A minha mãe também
fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu
avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma
fraude. "Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte
do teu avô...", "Não escrevi nada", "Escreveste,
escreveste, encontrei-os ali". Queria convencer-me de que era eu
que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. "Não
escrevi nada, é mentira, foste tu." Esses versos terminavam
assim: "Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor"!
[gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir
uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu
recitasse para as visitas: "Quero ser alferes, e de um lindo
regimento de mulheres." Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública
e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns
poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por
fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém.
Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas
engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.
E escreveu versos?
E escreveu versos?
Não. Não escrevo
poemas sobre nada.
A sua poesia escreve-se
com memória, não com sentimentos.
Toda a poesia se
escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O
Oscar Wilde dizia que "a má poesia normalmente é sincera".
Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original
do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no
livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.
Na infância escrevia
em versos. Sobre quê?
Sobre sentimentos.
Escreveu versos sobre a
morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô.
Porquê?
Sabe-se lá porquê?
Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas
coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem
escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada
que ver com isso.
Como naquele seu verso:
"A palavra sangue não sangra"?
Se me dói uma coisa,
dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não
choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso.
Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto,
agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto... A
minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações,
sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao
amor.
Eros e Tanatos.
Eros e Tanatos, e o
Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem
enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm
três anos. "De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes
de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?" Os sistemas
filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no
meio tempo: "Quem somos" ou "o que somos". É
natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique
ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da
poesia, da música.
Quis ser escritor?
Nunca. Os miúdos, nas
escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até
costumo responder-lhes com um jogo de palavras: "Que o escritor
é que quis ser eu." E é verdade.
Não quis ser escritor,
mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.
Quando era jovem,
gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal...
Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de
Sulamita: "Os teus seios são como duas pombas, para não falar
do que está dentro." E na minha Bíblia tinha uma nota de
rodapé: "Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a
Doutrina." Eu dizia à minha namorada: "Hoje tens mais
Doutrina que Moral" [gargalhadas]. Depois também me interessei
pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.
O meu evangelho era o
de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo
secondo Matteo.
Além de ser belo, é um filme muito carnal.
Além de ser belo, é um filme muito carnal.
Também. Agora, que já
sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo
Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a
cabeça cheia de versículos da Bíblia. "Podes ter o dom das
línguas, mas se não tiveres o amor..." Conhece esse? Vou ler,
desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto
nada do São Paulo: é misógino.
Não gosta do São
Paulo porque ele é misógino?
E por outras coisas.
Mas esta é lindíssima. "Ainda que eu tivesse o dom da
profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência
e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse
o amor, eu nada seria."
O que seria da sua vida
sem o amor?
Costumo dizer uma
coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a
beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas
ou três ou quatro pessoas bondosas.
A minha sogra é uma
pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal
veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita,
deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o
que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos,
e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a
fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com
este cigarro sem o acender..., isto é insegurança.
Por que é que é
inseguro?
Sei lá. Vou contar-lhe
um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à
mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia
com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos
livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].
Para quê?
Para ficar mais
certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha
intimidade, a irregularidade.
Isso é irregularidade?
Tenho essa mania. O que
é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a
gravata - não uso gravata. Quando estamos em público não nos
apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um
título do Alexandre O'Neil, que é um bocado a minha relação com
as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as
palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela
está a fazer?
Está a meter-se dentro
da minha carteira.
Ela é muito
brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.
Enxotei-a. É como se
fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.
Fez bem. É
intromissão. As minhas amigas psicanalistas - são duas ou três -
diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se
sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?
Já disse pelo menos
duas vezes que é inseguro.
Sou. Antes tinha
vergonha, mas agora não - são os tais privilégios da idade. Lá
está você a contar as vezes..., a psicanalisar! Os psicanalistas
contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.
Se sou isso, vou dizer
que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé,
que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a
Odisseia.
Não é tanto a
Odisseia, é mais a Ilíada.
O tema do regresso a
casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia.
Por isso falo dela.
A Odisseia foi muito
marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são
todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o
Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges,
curiosamente.
Estranho, porque Borges
é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não
lê ficção.
Sinto-me mais
consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário
Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos
meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.E a
vidinha?
A vidinha, convivo bem
com ela.
Estudou Direito porque
era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras
coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se
impõe, com os pés na terra.
São vidas paralelas,
convivem perfeitamente uma com a outra.
Como é que aprendeu a
fazê-las conviver?
À própria custa!, é
a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural
que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida
corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar
coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos
rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!,
não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo
tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos
e que desejamos.
Ainda não explicou
como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a
vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar
com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.
Acho que é fácil
compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a
tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito "forex",
como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático - é o tal
espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa
de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras
perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].
Essa com a TMN, pelos
vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?
Não. Queria ser santo,
queria ser bom.
Santo Pina.
Há uns versinhos de um
miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome
horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: "Eu quero ser bom, mas
não bom de todo o meu coração." Eu queria ser totalmente bom.
Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração
como o Manuel Ferraz.
Pelo meio, exerceu
advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.
[De novo a gata] Anda
cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.
Era um advogado de
causas perdidas?
Também. As pessoas
confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo
exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo
todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos
sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não
dizer: "Sou um sacana." Somos o nosso pior juiz. Em relação
a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht,
digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são
hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido
na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário
Torgal Ferreira, o bispo, "olha o padre Januário!".
Continua a dizer hoje o
que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas
fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?
Acho que continuo a
dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui
obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser
candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não
ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem
popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca
quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida
biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade
afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o
militante é perfeitamente dispensável.
Aproximou-se da
política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.
Foi a seguir ao 25 de
Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita,
sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que
vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade
colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha
filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor
da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas,
estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em
debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que
vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava
imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é
que não a comprei? Porquê?
Estava sinceramente
convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de
comprar casa! A militância não foi só por causa de l'air du temps.
Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas
vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária
revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações
partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente.
Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.
Foi em 74 que editou o
seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o
Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.
Foi nas vésperas da
revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.
É um título
profético, de certa maneira.
Tinha editado um livro
infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas
para o Ar.
Sei que não gosta da
designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura
infantil.
Não faço distinção
entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma
atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os
outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é
dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os
adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes,
conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai
escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como
livro para crianças ou como poesia para adultos.
Lembra-se muitas vezes
da criança que era?
Recordo-me. Mas de uma
forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não
ser fora da minha lembrança.
Por fim, os gatos. Por
que é importante ter esta gataria perto de si?
Dou-me bem com os gatos
porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como
estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com
alguma melancolia, porque "quem me dera ter a tua inconsciência,
e a consciência dela" - como escreve Pessoa.
(Não quer tomar nada,
um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)
Entrevista de Anabela
Mota Ribeiro publicada a 26 Abril de 2009, na revista Pública. Foto de Alfredo Cunha
(fonte)