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Edgar Morin (2002)

P.: Com o aniquilamento das promessas progressistas, cada um de nós pode ainda ter alguma esperança no futuro?

Edgar Morin – Aquilo que foi aniquilado é a certeza do progresso histórico e a confiança no futuro. A ilusão propriamente moderna, assegurando que "hoje é melhor do que ontem e amanhã será melhor do que hoje", está morta. A incerteza invadiu o futuro. Podemos certamente ter confiança num progresso, mas ele não seria atribuído a uma "lei" da história, e sim a uma consciência e a uma vontade humanas, e não seria irreversível. O socialismo, sob o modelo soviético e, para alguns políticos ou tecnocratas, sob o modelo social-democrata, deixou de ser a Solução para o futuro. Depois de 1989, o liberalismo econômico representou por pouco tempo a nova Solução.
Daí a tendência de uma grande parte do mundo, sobretudo quando o presente é angustiante, de retornar às raízes, ao passado, à esperança religiosa, de se fechar na comunidade étnica ou nacional. Existe entre nós uma tendência de planejar mais o "dia-a-dia", de tentar viver o presente. Desse modo, assistimos a uma resistência espontânea contra a prosa do cotidiano, contra a banalização da vida. Evadimo-nos nas férias, nas viagens exóticas, nos fins de semana, nas saídas. A adolescência, principalmente, esforça-se por resistir à prosa do mundo adulto, sob a forma da aventura, do "espetacular", dos êxtases provenientes das drogas ilegais ou legais (álcool). Essas não são obrigatoriamente as diversões no sentido pascaliano. São as tentativas de resistir à ofensiva da prosa generalizada própria da nossa civilização, de subtrair-se à quantificação de todas as coisas e à mecanização das condições de vida. Aos poucos, por todos os lados, a qualidade começa a resistir à quantidade.

P.: Como o senhor definiria, setenta anos depois do ensaio de Freud do mesmo nome, nosso "mal-estar na civilização"?

Morin - Sigmund Freud, no ensaio ao qual o senhor faz referência, atribuía o mal-estar da civilização à hiper-repressão de uma sociedade policiada. As pulsões agressivas reprimidas estão escondidas em profundidade, fechando-se antes de subir novamente à superfície no momento de crise. Na visão freudiana, a civilização é somente uma crosta superficial sobre o fundo da barbárie. Quanto mais ela aparece harmoniosa e ordenada, tanto mais ela abriga aquilo que se situa num nível mais profundo, as tensões exasperadas, as ameaças de implosão nervosa. O interesse de Mal-estar na civilização reside no fato que, além dos seus aspectos teóricos, ele documenta, três anos antes da ascensão de Hitler ao poder, o lado oculto do crescimento dos perigos, o avanço em direção ao abismo de um continente inteiro. Reler Freud, hoje, é tomar consciência da distância que nos separa dele.
Existe um novo mal-estar, que se situa além daquele da repressão dos instintos, e que se deve aos sucessos da nossa civilização. O desenvolvimento técnico e material produziu um subdesenvolvimento psíquico e moral, o bem-estar produziu o mal-estar, sem suprimir as zonas de anomia e de miséria. Qualquer indivíduo traz consigo uma propensão egocêntrica e uma propensão comunitária. Nossa civilização desintegra as comunidades concretas, favorece não somente o individualismo, o que é uma virtude, mas também seus excessos no egocentrismo e hedonismo.

P.: Muita ordem civilizada mata a ordem civilizada?

Morin - Os progressos do individualismo permitem a autonomia e a responsabilidade pessoal. Em contrapartida, eles provocam a desintegração das solidariedades tradicionais, familiares, locais e profissionais. Somente as solidariedades anônimas desenvolveram-se, tais como o Seguro-saúde, o Seguro Social...

P.: Essas solidariedades impessoais entregam os indivíduos ao Estado, ao "ogro filantrópico", segundo a expressão de Octavio Paz?

Morin - Com efeito, esse sistema de solidariedade institucionalizada está ligado à desintegração das solidariedades concretas e ao crescimento das solidões individuais.

P.: O estresse ocupa um lugar de destaque na sua reflexão, como estado ao qual está condenado um indivíduo a partir do momento em que suas relações com o exterior estão reduzidas ao mínimo afetivo...

Morin - A França apresenta um inquietante paradoxo… o país do viver bem, mas é também aquele que tem recorrido mais freqüentemente aos tranqüilizantes.
Muitos males psicossomáticos, depressões, fadigas têm uma determinação ou subdeterminação sociológica ou civilizacional. A dificuldade em estabelecer uma relação autêntica durável com o outro e a inserção numa comunidade de destino evidencia um problema de civilização.

P.: Um dos elementos do mal-estar na civilização não reside no fato de que o antagonismo ou o diferente não é aí mais tolerado, e que ele é traduzido novamente, automaticamente, em termos do ódio?

Morin - Existe um enfraquecimento do superego cívico no espírito de bem dos indivíduos. No máximo, quando ocorre a desintegração do tecido social, a sociedade aparece como a inimiga, e o outro se torna um inimigo potencial. No mínimo, a degradação da relação com o outro se traduz pela incivilidade. É preciso saber que a sociedade "funciona" com a civilidade. O desaparecimento da cortesia torna difícil o diálogo, a compreensão do outro. Ele favorece choques, grosserias, insolências e, finalmente, as violências. O desaparecimento da saúde, dos signos tradicionais de polidez traduz uma degradação das relações humanas.

P.: Com essa critica da cultura moderna, o senhor não está fazendo importantes concessões à crítica tradicionalista da modernidade?

Morin - Sem dúvida, mas eu lhe recordaria que esta crítica está presente em Marx, quando ele afirmava que o capitalismo anônimo destruía as relações de pessoa a pessoa. É preciso notar efetivamente o papel de mercantilização generalizada, ou seja, da diminuição dos atos gratuitos e do crescimento dos desejos materiais. Ocorre também as necessidades da alma humanana compreensão, no amor e na amizade que estão mal satisfeitas. A crise da civilização é invisível porque vemos somente uma miríade de crises individuais, de problemas separados uns dos outros. Eu a vejo de modo profundo. Marx dizia que a história progride pelo lado errado. Poderíamos hoje interrogar sobre a pertinência do termo "progresso".
A idolatria da modernidade impediu-nos de avistar o rosto escondido do progresso, sua face obscura. Ela impede de ver que o progresso técnico, científico, econômico, não é a locomotiva do progresso humano.

P.: Podemos distinguir duas tendências da aspiração utópica: a utopia da vontade de poder e a utopia da moderação e da autolimitação?

Morin - A modernidade européia foi animada por uma utopia que prometia ao homem um aumento ilimitado de seu poder. Sob essa ótica, o apelo à moderação é realista, não utópico, do mesmo modo que o apelo da fragilidade e da finitude humana. A quimera da dominação total do mundo, encorajada pelos prodigiosos desenvolvimentos das ciências e das técnicas, chocam-se atualmente com a tomada de consciência de nossa dependência no que concerne à biosfera e à tomada de consciência dos poderes destruidores da tecnocência.
Do meu ponto de vista, há dois tipos de utopia. A "boa", que propõe um progresso técnica ou materialmente possível, mas atualmente impossível. A "má", que é uma utopia de harmonia e perfeição que acredita poder se impor pela força. Para mim, a supressão das guerras entre nações ou a solução do problema da fome no mundo têm soluções, mas elas são ainda impossíveis.
Minha utopia pessoal é aquela da Terra-Pátria, porque todos os seres humanos vivem um destino comum em face das ameaças ecológicas e nucleares, em face do mercado

mundial e da comunidade de destino, aquela que define uma pátria, segundo a concepção de Otto Bauer. A má utopia é a utopia da perfeição, do aniquilamento dos conflitos, da evacuação do negativo. É a utopia que a União Soviética pretendeu realizar, quando, de fato, ela criou uma sociedade totalitária.

P.: A necessidade de escapar às malhas da realidade alimenta, sobre o terreno das lutas sociais, a reivindicação de uma "outra política". Esse fato representa o sinal de um retorno pela pequena porta da utopia?

Morin - De fato, existe uma contestação que se amplifica ou se radicaliza, existe uma crítica da mundialização econômica neoliberal, mas não existe ainda uma alternativa.
Mesmo com a maior das greves em 1955, mesmo na recente campanha eleitoral, os trotskistas não propuseram como alternativa a Revolução socialista. O modelo econômico soviético está morto. Existe uma justa aspiração por uma outra política, por uma outra via, e eu próprio proponho uma "política de civilização", mas nenhum partido prospectou ainda este novo caminho.

P.: Mas certas formações qualificadas de populistas reivindicam igualmente uma "outra política".

Morin - Podemos considerar como utopia o mito da Frente Nacional, de uma identidade francesa purificada? Trata-se, antes de tudo, de um desconhecimento da realidade francesa, feita da francização multissecular das etnias heterogêneas, e que se fundamenta num espírito comum, numa vontade comum, e não em um sangue idêntico. Não podemos nos esquecer de que a origem da identidade francesa é mestiça, visto ser ela trans-galo-romana.

P.: A revolta ou o protesto não esgota, portanto, o sentido de retorno ao polético?

Morin - É uma banalidade sem sentido afirmar que é preciso modernizar a política francesa. De fato, a urgência é muito mais ambiciosa, se eu ouso dizer, de pós-modernizá-la, de avistar um além da modernidade. Estou convencido de que podemos continuar na chamada via do desenvolvimento com a obsessão da eficacidade – rentabilidade econômica e primazia da técnica. Devemos compreender que a qualidade deve primar sobre a quantidade, que aquilo que é propriamente humano foge ao cálculo. Foi essa a revanche de Ivan Illich, profeta da convivialidade. A cada ano nossas sociedades hipertecnológicas, voltadas à rentabilidade e ao lucro desenfreados, são expostas às catástrofes, como revelou a crise da vaca louca.

P.: Não é necessário que se diga uma coisa e seu contrário, ou seja, ao mesmo tempo recusar o realismo sem frase e resistir à tentação do imaginário?

Morin - É preciso fazer, simultaneamente,a crítica ao realismo e a crítica à utopia. É conveniente ser capaz de ter um pensamento complexo. Bernard Grethuysen dizia: "Ser realista, que utopia!". Após a derrota francesa de 1940, e até o outono de 1941, ser vichyste era ser realista, ou seja, aceitar como fatalidade a dominação nazista sobre a Europa. Esse realismo tornou-se irrealista em dois anos. É preciso, enfim, conceber para o futuro a possibilidade de uma nova criação, de uma metamorfose, inconcebível antes que ela se produza.
Quando um sistema é incapaz de resolver com seus próprios meios seus problemas fundamentais, ou ele se rompe, ou consegue fazer surgir a partir de si mesmo um "metassistema", mais complexo, capaz de resolver os problemas que lhe são colocados.

P.: Mediante os perigos que nos confrontam, estaríamos nós diante da alternativa "associação ou barbárie"?

Morin - As sociedades atuais são incapazes de tratar os problemas planetários fundamentais. É vital que elas se associem, daí a alternativa associação ou barbárie. Mas essa associação deveria fazer emergir uma sociedade de um tipo novo, uma sociedade-mundo.

P.: Seus desejos de um "new deal civilizacional", mais do que um tipo neorealista, passa por uma reforma intelectual e moral?

Morin - Não podemos equacionar os problemas globais do planeta enquanto estivermos num conhecimento fragmentado em disciplinas fechadas; é preciso uma reforma do pensamento que nos permitisse conceber os problemas fundamentais e os problemas globais que nosso conhecimento atual reduz a migalhas. Não podemos pensar nem de maneira local nem global. Eles se interpelam sem parar, interpenetram e se confundem. Daí a necessidade de um pensamento complexo.

P.: O apelo heideggeriano de habitar poeticamente a terra não pode dar uma forma concreta à sua utopia da complexidade?

Morin - Vivemos prosaicamente quando fazemos aquilo que somos obrigados a fazer para sobreviver. Viver verdadeiramente é viver na intensidade da paixão, do amor, do jogo, da comunidade.
Acredito que é preciso substituir a idéia de desenvolvimento, que se confia ao progresso tecno-econômico para assegurar o progresso humano, pela idéia de uma política de civilização, que nos conduz a reformar nossa própria civilização e a reconsiderar os princípios que a comandam e que, na minha opinião, conduzem-nos à esclerose, à regressão, em direção à catástrofe. De resto, não se manifestam mais em nossa civilização nem a esperança nem a solidariedade.
A idéia de que um outro caminho é possível suscitaria uma ressurreição da esperança. Não mais a antiga esperança, fundada sobre a certeza do progresso, mas uma esperança consciente da aposta que ele comporta.



Entrevista a Alexis Lacroix publicada originalmente no jornal Le Figaro, em 21 de julho de 2002 (fonte)