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Günter Grass (2010)

Der Spiegel: Sr. Grass, seu novo livro é intitulado “Grimms Wörter. Eine Liebeserklärung” (Palavras dos Grimm. Uma declaração de amor). Como começou esse amor pelos Irmãos Grimm, os linguistas alemães que famosamente reuniram contos de fadas no século 19?

Günter Grass: Meu relacionamento com Wilhelm e Jacob Grimm começou na minha infância. Eu cresci com os contos de fadas dos Grimm. Eu até mesmo assisti uma produção teatral de o “Pequeno Polegar” durante o Advento do Teatro do Estado em Danzig (nota do editor: a atual Gdansk), que minha mãe me levou para ver. Então, posteriormente, os irmãos influenciaram minha obra criativa.

Spiegel: De que forma?

Grass: Bem, o Pequeno Polegar vive em Oskar Matzerath de “O Tambor”. Os próprios Jacob e Wilhelm têm um papel em muitos dos meus manuscritos. Em “A Ratazana”, por exemplo, eles são retratados como um ministro e um vice-ministro que tentam impedir a morte das florestas (pela chuva ácida).

Spiegel: O que o senhor considera mais atraente a respeito dos irmãos?

Grass: Sua natureza firme, não condescendente, acima de tudo. Em 1837, eles protestaram em Göttingen contra a abolição da Constituição (do Reino de Hanover) e, portanto, contra o poder do Estado. Como os outros professores rebeldes no grupo conhecido como Sete de Göttingen, eles perderam seus cargos. E a tarefa na qual embarcaram depois disso era basicamente impossível: um dicionário alemão repleto de citações e sentenças de exemplo. E eles só chegaram até a sexta letra do alfabeto. Outros concluíram o dicionário.

Spiegel: Mais de 120 anos depois.

Grass: Esse longo período também me fascina. Especialistas em estudos alemães de ambas as partes da Alemanha trabalharam sobre isso nos últimos 15 anos. No meio da Guerra Fria, eles se sentaram discretamente em suas mesas em Berlim Oriental e Göttingen e reuniram notas de rodapé para um dicionário pan-alemão. É um reflexo da mesma história alemã de que falo em “Grimms Wörter”.

Spiegel: Assim como sua própria história pessoal com este país também exerce um papel em seu livro.

Grass: Eu me concentrei nos meus anos mais novos no livro “Nas Peles da Cebola”, depois em “Die Box” eu escrevi sobre meus laços e embaraços familiares. Este livro é sobre o lado político e social. A vida dos Grimm, que viveram durante um período marcado por mudança radical, assim como eu, se presta a isso.

Spiegel: O senhor descreveu os dois irmãos como “investigadores de palavras”, preocupados a respeito de cada letra individual. O senhor também escreve: “Por um lado, as palavras fazem sentido. Por outro, elas são apropriadas para criar absurdo. As palavras podem ser benéficas ou prejudiciais”. Como as várias facetas das palavras moldaram sua própria vida?

Grass: Eu descobri que as palavras que são repletas de pathos e criam uma euforia sedutora são aptas para promover absurdos. “Vocês querem guerra total?”, por Adolf Hitler, é um exemplo. Mas a mesma coisa se aplica à sentença: “Nossa liberdade também está sendo defendida no Hindu Kush”. (Nota do editor: A sentença foi famosamente dita pelo ex-ministro da Defesa alemão, Peter Struck, para justificar a missão militar da Alemanha no Afeganistão.) Essas sentenças carregam um forte significado e podem exercer esse significado porque não são suficientemente questionadas. Eu já ouvi minha cota de palavras prejudiciais. Eu acho que é especialmente grave quando cidadãos como eu, que apontam os abusos em seus países, são tratados como “idealistas”. É assim que uma frase que pode ser usada para deter uma discussão se torna parte do uso comum.

Spiegel: De que palavras benéficas o senhor se recorda?

Grass: As realmente maravilhosas estão ligadas à minha infância. “Adebar”, outra palavra para cegonha, redesperta todo um cosmo de lembranças para mim. Outra é “Labsal” (refresco), que já foi quase completamente esquecida. Eu adoro o som do longo “a” repetido. Os Irmãos Grimm também consideravam isso fascinante. Eles praticamente faziam sexo oral com as vogais. “Labsal” soa tão reconfortante. Faz você pensar em voltar para casa em segurança, após uma experiência terrível.

Spiegel: Soa como se a língua significasse um sentimento de segurança e um lar para você.

Grass: Isso é certamente verdadeiro. Eu escrevi meu romance “O Tambor” em Paris, onde também comecei a trabalhar em “Anos de Cão”. Mas após quatro anos eu notei quão perdido me sentia, cercado por uma língua estrangeira. Eu tinha que voltar, voltar para um lugar de língua alemã. Minha experiência era semelhante à de muitos escritores que emigraram para os Estados Unidos durante o período nazista. Alguns deles mal podiam suportar, apesar de um ditador brutal estar no controle em casa. Eles careciam da linguagem que precisavam para se fazerem ser entendidos e entender os outros.

Spiegel: Essa mesma experiência, apesar de não tão severa, pode ser sentida no próprio país de uma pessoa. A cultura jovem tem seu próprio estilo de linguagem distinto. O senhor sempre entende o que seus netos estão dizendo?

Grass: É claro. Para mim, é um ganho maravilhoso o fato de conseguir manter, com a ajuda de meus netos, o jargão atual. Em troca, expressões como a velha palavra “knorke” (excelente) de Berlim não são mais usadas.

Spiegel: O senhor lamenta a perda?

Grass: Felizmente, uma palavra como “knorke” está preservada na literatura. Em geral, eu concordo com Jacob Grimm e sinto que devemos permitir as mudanças e o crescimento descontrolado da língua. Apesar disso também permitir o desenvolvimento de novas palavras potencialmente ameaçadoras, a língua precisa da chance de constantemente se renovar. Na França, onde a Académie française praticamente policia a língua, nós vemos que a língua pode se tornar formal e rígida quando é excessivamente protegida.


Spiegel: Em “Grimms Wörter”, o senhor até mesmo escreve que não tem objeção às modificações de seu nome.

Grass: Eu tomo a liberdade de escrever Grass tanto com dois esses ou com “ß” (nota do editor: a letra alemã equivalente aos dois esses). Antes da reforma ortográfica alemã, a palavra “Hass” (ódio) também era escrita com “ß”. Pessoalmente, eu gosto de usar o “ß” quando assino meu nome. Eu gosto desses jogos, assim como fico empolgado a respeito de fontes diferentes ou da qualidade do papel do livro. Felizmente, com Gerhard Steidl eu encontrei um editor que é um fanático por livros e que trata seu papel e equipamento de impressão com grande afeição.

Spiegel: O senhor é um dos poucos escritores que se encarregam do design de seus próprios livros. O senhor cuidou do design de todas as capas pessoalmente. Por que isso é tão importante para o senhor?

Grass: É o toque final. Ele é uma parte tão importante do livro quanto a primeira sentença. E exige o mesmo cuidado que é necessário ao escrever.

Spiegel: Quais são as características de uma boa capa?

Grass: Ela deve resumir e simplificar o conteúdo do livro como um emblema. Na capa de “Anos de Cão”, eu consegui isso com a cabeça de cachorro, que parece um fantoche de teatro de sombras. Para “Anestesia Local”, eu escolhi um isqueiro com um dedo sobre ele. Desta vez vez são letras. Não faria sentido trabalhar com um duplo retrato dos Irmãos Grimm, porque transmitiria apenas parte da mensagem. Eu peguei nas mãos o livro finalizado pela primeira vez há poucos dias. Toda vez é uma experiência maravilhosa.

Spiegel: Então o senhor deve estar consternado com os desdobramentos no mercado literário. As vendas de livros eletrônicos estão crescendo rapidamente nos Estados Unidos.

Grass: Eu não acredito que isso signifique o fim do livro. Ele adquirirá um valor diferente. A produção em massa será reduzida e o livro novamente adquirirá a aparência de um objeto digno de se manter e passar para nossos filhos.

Spiegel: O senhor consegue imaginar “Grimms Wörter” em um iPad?

Grass: Dificilmente. Mas eu também cheguei a um acordo com minha editora para que nenhum dos meus livros esteja disponível para isso até que uma lei protegendo os autores esteja em vigor. Eu só posso aconselhar cada autor a desenvolver a mesma autoconfiança neste relacionamento.

Spiegel: O senhor está convocando um protesto?

Grass: Eu gostaria de colocar um fim a este movimento para leitura em computadores, mas parece que ninguém é capaz disso. Todavia, os reveses do processo eletrônico já são aparentes durante a redação do manuscrito. A maioria dos autores jovens escreve diretamente em seus computadores, e então editam e trabalham em seus arquivos. No meu caso, há muitos passos preliminares: uma versão manuscrita, duas que datilografo eu mesmo na minha máquina de escrever Olivetti e, finalmente, várias cópias de versões que minha secretária digita no computador e imprime, nas quais realizo várias correções à mão. Esses passos são perdidos quando você escreve diretamente no computador.

Spiegel: O senhor não se sente antiquado com sua Olivetti?

Grass: Não. No computador, um texto sempre parece de certa forma finalizado, mesmo quando está longe disso. Isso é tentador. Eu geralmente escrevo a primeira versão, manuscrita, tudo de uma vez, e quando há algo que eu não gosto, eu deixo um espaço em branco. Eu preencho essas lacunas na versão da Olivetti, e por causa dessa minúcia, o texto também adquire uma verbosidade tediosa. Nas versões que se seguem, eu tento combinar a originalidade da primeira versão com a minuciosidade da segunda. Com essa abordagem lenta, há menos risco de infiltração de esperteza e arbitrariedade.

Spiegel: Mesmo assim sua linguagem mudou ao longo das décadas?

Grass: Inicialmente, eu tentei retirar todas as paradas. Quando escrevi “O Tambor”, “Gato e Rato” e “Anos de Cão”, era um momento em que muitos escritores mais velhos sentiam que a língua alemã não deveria mais ser autorizada a se acostumar de novo ao excesso.

Spiegel: O senhor fala dos representantes da chamada “Kahlschlagliteratur” (literatura bem definida) do período pós-guerra, que eram conhecidos por sua linguagem simples e direta?

Grass: Sim, e esses autores tinham todos os motivos para serem cautelosos. A língua alemã tinha sido manchada no período nazista. Mas nós autores jovens, incluindo Martin Walser e Hans Magnus Enzensberger, não queríamos nos sentir acorrentados e nos recusávamos a condenar a linguagem como um todo. Como resultado, minha escrita derivou de um sentimento de querer exibir tudo o que a língua tem a oferecer. Agora, na velhice, a experiência também faz parte disso. De forma que a escrita está mais concisa.

Spiegel: O que o senhor quer dizer?

Grass: Em um grau elevado, as experiências políticas da minha vida, que descrevo em “Grimms Wörter”. Em 1961, por exemplo, eu viajei pela primeira vez como parte da comitiva de campanha de Willy Brandt. (Nota do editor: Willy Brandt, na época o prefeito de Berlim Ocidental, concorreu a chanceler da Alemanha em 1961. Ele se tornou chanceler posteriormente, em 1969.) A construção do Muro de Berlim também foi uma dessas experiências, assim como a reunificação alemã em 1989/1990 e minhas muitas visitas à Alemanha Oriental antes disso.

Spiegel: O que levou o senhor a ir para lá?

Grass: Eu acreditava firmemente no conceito de uma nação culturalmente unida. Como parte dela, nós escritores do Ocidente e do Oriente nos encontrávamos em apartamentos privados em Berlim Oriental e líamos nossos manuscritos. Eu duvido que os informantes que trabalhavam para a Stasi (nota do editor: a polícia secreta alemã-oriental) entendiam do que eu estava atrás. Eles não conseguiam entender que alguém poderia criticar os dois lados diferentes. Ou pelo menos foi a impressão que tive quando li meu arquivo da Stasi.

Spiegel: Como o senhor se sentiu quando o leu?

Grass: Entediado, em grande parte. Por muito tempo eu me recusei a lê-lo e nunca fiz o requerimento. Há mais de 2 mil páginas. No final, a sra. Birthler (nota do editor: Marianne Birthler, a Comissária Federal para os Arquivos da Stasi) os entregou para mim, mas eu pedi para que todas as passagens onde os informantes fossem citados fossem censuradas. Eu não queria saber quem é que me espionava. Não é mais importante atualmente, 20 anos após a reunificação.

Spiegel: O senhor argumentou veementemente contra a reunificação. Qual é seu veredicto hoje?

Grass: Eu ainda acredito, como no passado, que não deveríamos ter anexado a Alemanha Oriental daquela forma apressada. É absurdo que tenhamos perdido tamanha oportunidade. Nós não devíamos ter asfixiado aquele momento, no qual, após duas ditaduras, a consciência democrática tinha florido naquelas quatro palavras famosas: “Nós somos o povo!” (Nota do editor: “Wir sind das Volk!” –“nós somos o povo!”– foi um slogan cantado pelos manifestantes pró-democracia na Alemanha Oriental, nos meses após a queda do Muro de Berlim.) Em pouco tempo, o país e sua indústria estavam liquidados, enquanto a Treuhand (nota do editor: a agência que privatizou as empresas estatais da Alemanha Oriental) vendia seus ativos por quase nada. Durante o longo período do pós-guerra, essas 17 milhões de pessoas (na Alemanha Oriental) tiveram que suportar sozinhas o principal fardo de uma guerra que foi travada e perdida por todos os alemães.

Spiegel: O que o senhor teria feito?

Grass: Eu teria aumentado acentuadamente os impostos e não teria buscado a reunificação com fundos emprestados. Há uma pouco de autoilusão na noção de que agora, no ano do 20º aniversário da reunificação, nós estamos nos parabenizando em como as coisas transcorreram maravilhosamente. Os fatos dizem o contrário: o desemprego elevado, as áreas despovoadas. E o fenômeno que as pessoas chamam de “o Muro em nossas mentes” ainda existe. A forma como foi tratado o Partido do Socialismo Democrático contribuiu para essa mentalidade. Ele foi enchido de elogios e tornou-se popular porque, apesar de ser o partido sucessor do Partido Socialista Unido da Alemanha (nota do editor: o partido comunista da Alemanha Oriental), ele não foi responsabilizado (pelas ações do Estado alemão-oriental). Na verdade, ele recebeu passe livre, e essa abordagem prejudicou o Partido Social-Democrata (SPD).

Spiegel: A perda da importância do SPD incomoda o senhor? O Partido alemão tradicionalmente de esquerda tem uma história longa e respeitável, mas ele perdeu sua popularidade quando se deslocou para o centro nos últimos anos, durante o período de Gerhard Schröder.

Grass: Bem, o Partido Social-Democrata representa um elemento de continuidade. É o motivo para me agarrar a ele. Nós temos pouca continuidade na Alemanha e o SPD está prestes a fazer 150 anos. Ele cometeu erros e passou por muita coisa. Mas seus princípios sociais, que estão enraizados no movimento trabalhista europeu do século 19, foram e ainda são de importância fundamental para nosso país. Apesar de muitos social-democratas mais jovens estarem muito afastados da história de seu partido, isso é algo que o SPD também superará.

Spiegel: Em “Grimms Wörter”, o senhor não faz menção aos possíveis erros em suas opiniões políticas. O senhor nunca errou?

Grass: Após a reunificação, eu temia a possibilidade de surgir uma espécie de Grande Alemanha, com um poder centralizado em Berlim. Mas felizmente o federalismo alemão se mostrou forte o suficiente para afastar quaisquer dessas tendências. Por mais inconveniente que frequentemente seja, eu acredito que o contrapeso dos Estados é a melhor opção para a Alemanha no final.

Spiegel: O senhor pode pensar em outros erros que cometeu durante sua vida?

Grass: No meu caso, como todos sabem, eu fui seduzido pela Juventude de Hitler quando era mais novo. Eu deixo isso bem claro no meu livro, “Nas Peles da Cebola”. Eu suponho que tenha adquirido certa imunidade a qualquer postura ideológica por causa desse erro.

Spiegel: Em “Grimms Wörter”, o senhor fala novamente de sua passagem pela Waffen-SS e descreve seu juramento em uma noite fria e clara. O senhor tinha 17 anos na época. O senhor também considera esse momento um dos erros de sua vida?

Grass: Não foi uma má ação de minha parte. Eu fui convocado, assim como milhares de outros foram. Eu não me apresentei como voluntário para a Waffen-SS. O fim da guerra me liberou do juramento de obediência cega. Depois disso, eu sabia que nunca mais faria um juramento.

Spiegel: O senhor está enraizado na história alemã, mas sempre fez objeção a qualquer forma de culto do nacionalismo. Como o senhor se sente a respeito do novo entusiasmo patriótico, como vimos durante a Copa do Mundo de futebol, por exemplo?

Grass: Eu sempre acreditei que não se pode deixar a discussão a respeito do nacionalismo inteiramente para a direita. Nós só podemos exercer um papel responsável na Europa se pudermos justificar de forma eficaz nosso próprio senso de identidade nacional –além do nacionalismo. Mas também havia aspectos alegres nas pequenas bandeiras alemãs que as pessoas estavam acenando durante a Copa do Mundo. Eu vi mulheres colocando chupetas pretas, vermelhas e douradas nas bocas de seus bebês. Esse tipo de coisa compensa qualquer senso de pathos percebido.

Spiegel: O senhor não é o único escritor de sua geração a fazer declarações políticas repetidas vezes. O senhor percebe uma falta de vigor semelhante entre os escritores mais jovens?

Grass: Eu consideraria lamentável se não extraíssem uma lição desta tradição relativamente breve. Eles não devem repetir os erros da República de Weimar e se retirarem para seus mundos privados. Os intelectuais contribuíram enormemente para o desenvolvimento de nossa jovem democracia na Alemanha Ocidental em uma democracia madura. Infelizmente, há sinais de que essa contribuição está diminuindo. A crise financeira, as crianças pobres, a deportação (de imigrantes ilegais), a crescente desigualdade entre ricos e pobres: todas essas são questões a respeito das quais os escritores mais jovens deveriam desenvolver e expressar uma opinião.

Spiegel: O senhor está menos envolvido politicamente do que antes. Em uma carta aberta para a chanceler, o escritor Martin Walser, que é um de seus contemporâneos, pediu pela retirada da Alemanha do Afeganistão. O senhor não tem uma posição a respeito dessa guerra?

Grass: É claro que tenho. Mas a guerra no Afeganistão, entre todas as guerras, não pode ser simplificada demais. Diferente da guerra contra o Iraque, há um mandato da ONU. Nosso envolvimento lá provou ser um enorme erro, mas é difícil encontrar uma forma responsável de recuo dessa responsabilidade. Os Estados Unidos certamente não deveriam ter recebido o papel de comando. Os americanos são incapazes de travar esse tipo de guerra. Eles estão fracassando de novo, assim como fracassaram no Vietnã, e estamos fracassando com eles.

Spiegel: Se não há uma solução clara, sua voz como ganhador do Nobel tem mais peso hoje do que no passado. Por que o senhor está se contendo?

Grass: Eu não tenho a impressão de que é isso o que estou fazendo. Além disso, eu não passo o dia todo pensando no fato de que sou um ganhador do Nobel. Às vezes sou lembrado disso, geralmente quando opino sobre algo. Certamente não me ajuda quando escrevo, apesar de também não atrapalhar.

Spiegel: Isso não o coloca sob pressão?

Grass: O prêmio não inibe nem um pouco a minha escrita. Talvez isso aconteça por tê-lo recebido em uma idade avançada. Na verdade, o prêmio que o Grupo 47 (nota do editor: uma prestigiada associação pós-guerra de escritores alemães) me deu em 1958 foi mais importante para mim, porque eu era pobre como um rato de igreja na época. E foi concedido por outros escritores, o que lhe dava um significado completamente diferente. Eu não estou fazendo pouco do Prêmio Nobel, mas ele não teve um impacto influente na minha vida.

Spiegel: Mas seja honesto: o senhor não esperou recebê-lo por um longo tempo?

Grass: Não mais, especialmente no fim. Aconteceu sempre da mesma forma por 20 anos: todo outono, jornalistas me telefonavam para me dizer que eu estava entre os candidatos e queriam agendar a primeira entrevista comigo. E então as coisas se acalmavam novamente por um ano.

Spiegel: O senhor não ficou irritado quando o escritor alemão Heinrich Böll recebeu o prêmio em 1972?

Grass: Não, não fiquei, mesmo que você não acredite em mim. Eu estava no meio de uma campanha eleitoral do SPD, sentado em um ônibus VW, em uma praça de mercado, em algum lugar no Estado da Renânia-Palatinado. Nós estávamos realizando esses eventos espontâneos que envolviam dirigir até cidades pequenas. Eu estava falando ao microfone, fazendo um breve discurso, quando alguém me entregou um bilhete dizendo: Böll ganhou o Prêmio Nobel. Eu incorporei aquilo na campanha. Por acaso, nós dois defendíamos a mesma ideia política.

Spiegel: O senhor tira uma conclusão em seu novo livro. O senhor escreve que “superar obstáculos” na vida nunca termina e que “mesmo as histórias tradicionais são para ser recontadas. E após cada fim, eu percebi que tinha mais trabalho a fazer”. Que tipo de trabalho o senhor pretende fazer a seguir?

Grass: Após um período escrevendo que durou muitos anos, eu tenho que mudar as ferramentas e me dedicar novamente à impressão. Eu quero criar novas gravuras e pontas-secas para meu romance “Anos de Cão”, para o 50º aniversário de sua publicação. “Grimms Wörter” certamente marcará o fim das minhas obras autobiográficas. Na minha idade, a pessoa fica surpresa ao conseguir experimentar a próxima primavera, e eu sei quanto tempo demora para concluir um livro com um conceito épico.

Spiegel: O senhor teme o fim de sua vida?

Grass: Não. Eu percebi que, por um lado, a pessoa fica pronta para isso. Eu também percebi que mantive uma certa dose de curiosidade. O que acontecerá aos meus netos? Quais serão os resultados do futebol no fim de semana? É claro, também há algumas banalidades que ainda quero experimentar. Jacob Grimm escreveu algo maravilhoso sobre o envelhecimento, e também encontrei esta sentença em outro de seus trabalhos: “A última colheita está no caule”. Aquilo me tocou e, é claro, me levou prontamente a refletir sobre minha própria idade. Ao fazê-lo, eu não encontrei nenhum medo predominante da morte.

Spiegel: Sr. Grass, obrigado por esta entrevista.

Entrevista à revista Der Spiegel publicada a 20 de Agosto de 2010. Tradução de George El Khouri Andolfato (fonte)

James Hillman (1999)

República: O Código da Alma começa dizendo: "Há mais coisas nas nossas vidas do que admitem nossas teorias sobre ela". Ecoando Hamlet, o sr. nos convida a romper com os estreitos parâmetros do moderno racionalismo e põe no banco dos réus a psicologia moderna.

James Hillman: Exato. A psicologia moderna não está cumprindo sua missão. Então eu quero devolver à psicologia algo do seu senso comum e de suas raízes antigas O que quer dizer mais ou menos a mesma coisas: senso comum e raízes antigas. A psicologia tornou-se excessiva, hipervalorizada. Provocou um exagero de introspecção subjetiva. É preciso recuperar a conexão ecológica com o mundo. Voltar a perceber o que nos circunda, em vez dessa permanente auto-referência, da exagerada sensação de importância do indivíduo dada pela psicologia. Chorar no quarto de seu namorado quando deixa você ou porque sua mãe ou seu pai não a amam o bastante… Você pensa que isso é tão importante? Não, não é tão importante. Esse é o problema da psicologia: inflacionou os indivíduos e os sentimento individuais.

República: Pensei que seu livro fosse sobre o indivíduo.

James Hillman: Certamente. Mas não sobre o indivíduo psicológico, no sentido habitual. É sobre a importância de o indivíduo encontrar seu próprio destino, estar em contato com sua própria personalidade, o que não é absolutamente a mesma coisa que exagerar a subjetividade. As pessoas estão sempre fazendo alguma coisa. Não só meramente pensando sobre si próprias.

República: Acreditar que temos um destino tão singular e distinto dos outros … Isso não parece um tanto pretensioso, coisa para os grandes gênios da humanidade?

James Hillman: É a razão para estarmos vivos. Penso que o mundo coletivo, o mundo onde vivemos, não dá a ninguém uma razão para estar vivo. A idéia darwiniana de evolução das espécies, por exemplo, não fornece nenhuma razão para isso. Para a Igreja Católica, estar vivo é condição para que você possa ir para o céu (risos). Não me parece razão suficiente para estar vivo. Mas o sentido de possuir um daimon que quer que você faça alguma coisa, seja uma determinada pessoa, dá um sentido para estarmos vivos. trata-se de uma questão de fundamental importância com a qual a psicoterapia não soube lidar. Por que estamos aqui?

República: O sr. voltou aos gregos para encontrar essa explicação.

James Hillman: Voltei à história de Platão, ao mito Er que ele expõe no final da República. Diz que a alma de cada um de nós escolhe uma imagem ou desenho que depois será vivido aqui na Terra. Nossa ligação com aquele desenho original é um companheiro chamado daimon, o nosso destino. É um guia único, diferente de todos os outros. Olhando nossa biografia por meio do mito, somos levados a percebê-lo por meio das idéias de vocação, alma, daimon, destino, necessidade. São elas que nos abrem aos pouco o sentido das nossas vidas.

República: Os gregos sabiam de tudo?

James Hillman: Lógico que não. Essa história é universal. A idéia de que você vem ao mundo com um daimon ou um anjo, de que os anciãos da tribo olham para os jovens para ver o que de especial eles trazem, ou qual a direção desses novos espíritos, é conhecida em outras culturas. Mas os gregos a apresentaram de modo mais claro, mais bem articulado. É este o valor dos gregos: terem feito as coisas tão bem! Não fizeram tudo, mas fizeram tão bem!

República: Referindo-se ainda aos gregos, o sr. comenta uma frase de Jung dizendo que, na nossa cultura, "os deuses viraram doenças".

James Hillman: É uma das principais idéias de Jung e significa que, na procura pelos deuses, não é necessário ir à igreja, mas ter consciência das nossas profundas inquietações, do que nos move. Ele chama Deu àquele que indica seu caminho e faz você parar, pensar e criar uma solução apropriada. Deuses no lugar de meros sintomas, tragédias, insucessos.

República: Para explicar suas idéias sobre a psicologia, em O Código da Alma, em vez dos habituais casos clínico, o sr. lança mão da biografia de personagens famosos. Como chegou a essa decisão tão pouco ortodoxa?

James Hillman: As pessoas fora do comum tornam mais visível aquilo que nós comuns mortais não conseguimos ver. Por isso as autobiografias são um gênero tão apreciado. Eu as utilizo não com o intuito de admirar personalidades, mas como um observatório privilegiado para ver as manifestações do destino: de que modo ele chega e se revela; o que ele pretende das pessoas.

República: A revelação do daimon, do gênio, do anjo ou da vocação é mais clara durante a infância?

James Hillman: Nas histórias que eu conto, e em milhões de outras, os vislumbres de uma vocação ocorrem durante a infância. Mas isso não significa que depois o percurso seja linear. Na infância, podemos ver melhor os sintomas, as atitudes que podem ser reveladoras.

República: O sr. usa as biografia de Judy Garland e Josephine Baker como exemplos opostos de daimon. A primeira sucumbiu ao próprio destino. A segunda, depois de todos os excessos da carne, passa a viver uma vida de dedicação ao próximo.

James Hillman: Trata-se da idéia de crescer para baixo (literalmente, growing down). Saber discernir e crescer dentro da vida. Como a árvore da cabala na tradição mística hebraica e cristã, meu modelo de crescimento imagina as raízes no céu com uma descida gradual para as coisas humanas.

República: Mas e toda a privação por que passa Josephine Baker no fim da vida? É a idéia de realização como redenção…

James Hillman: Acho que você está vendo isso com um olhar católico. Não vejo de modo penitencial o fato de que ela tenha perdido os cabelos, conseqüência das luzes e da vida que viveu antes. Acontece a muitos atores de Hollywood. Perdem o cabelo por causa das luzes. Betty Grable, por exemplo. Mas foi o processo de crescer para baixo, dentro da humanidade comum, que a fez, no fim, lutar pela causa negra, sustentasse 11 crianças e abandonasse a celebridade. Coisa que a Judy Garland nunca conseguiu, e foi trágico. Ela foi derrubada pelo daimon. Sofrimento? Ambas sofreram.

República: Pensei que a lição de Josephine Baker pudesse soar como algo moralista, não?

James Hillman: Não acho moralista, considero-a trágica. Judy Garland não podia parar porque ela estava identificada como o daimon, possuída. Continuou a representar e a cantar Somewhere over the Rainbow (Algum Lugar Além do Arco-Íris), caindo no palco, desesperada bebida e bolinha. Josephine Baker teve alguma atuação, mexeu com coisas no mundo que a salvaram de ficar obcecada pelo daimon.

República: Então, o daimon não é algo que recebemos já pronto. É algo ainda a ser realizado.

James Hillman: É dado, mas não de um modo absoluto. É sempre você. É o daimon, mas é você. A vida é essa relação. A forma como você vive define esse algo que está em você. Judy Garland era possuída por aquela força. Não tinha alternativa.

República: As idéias de vocação e destino mexem diretamente com nossa noção de livre-arbítrio. Afinal, somos ou não somos responsáveis por nossas vidas?

James Hillman: Acho que a distinção entre fado (sina, destino) e fatalismo pode ajudar a compreender. Fatalismo é acreditar no fado. Os gregos não usavam a palavra acreditar, que é uma palavra cristã, vem de credo: creio em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. O fado é a percepção de que há algo a mais no mundo que afeta a minha vida. Fatalismo é, como todos os "ismos", uma coisa mais fácil: "Não posso fazer de outro modo. O destino assim quis". São sentimentos muito diferentes, ainda que sejam próximos. O fado faz você refletir sobre a sua vida. O fatalismo diz que você não tem nenhum controle sobre ela.

República: O sr. declara que quer fazer a psicologia regredir 200 anos. Voltar ao momento em que o entusiasmo romântico desmantelava a Idade da Razão.

James Hillman: Os românticos tomavam muito seriamente o sentido de "chamado", que significa: diga-me o que almeja (longing to, no original) e eu lhe direi quem é. Não é: diga-me o que faz; mas perguntar qual é o seu desejo, o désir da moderna poesia francesa, desiderio, em italiano. O que é muito diferente de perguntar "o que lhe aconteceu quando era criança"? Por exemplo, os meninos do Colorado que mataram os colegas de escola: alguém perguntou a eles o que eles desejavam, o que imaginavam? Basta de cálculos estatísticos e classificações diagnósticas.

República: É o papel do imaginário na nossa vida cotidiana, é isso?

James Hillman: Essa é a razão de ser deste encontro aqui em Ferrara. É muito importante focalizar a imaginação contemporânea. Na escola, por exemplo, precisamos abandonar a matemática por instante. Continua-se a justificar o ensino da matemática para crianças pequenas dizendo-se que treina o cérebro. Mas treina o quê? Treina as mentes para fazer certos tipos de raciocínios que falsificam o mundo sensível. Esse é o grande problema. Trata-se logicamente de razões tecnológicas, comerciais, econômicas. E o que acontece com a imaginação? O que está acontecendo com as crianças? Por que elas hoje se suicidam como jamais fizeram antes? Por que elas estão matando nas escolas? O que elas querem? Por que a poesia, a arte, a dança foram cortadas da programação escolar? Porque não são consideradas economicamente importantes.

República: Ao mesmo tempo vive-se em um mundo de fantasia, videogames, realidade virtual.

James Hillman: Mas é uma imaginação que copia a violência, copia a tecnologia, sem desenvolvimento de uma estética. É importante o sentido de beleza. O que essas crianças estão fazendo é imaginação sem treinamento, sem oportunidade de desenvolvê-la adequadamente.

República: O sr. hoje ainda pensa em termos de terapia? Considera-se um psicanalista?

James Hillman: Felizmente estou salvo (risos). Não tenho mais que receber pacientes. Sou um terapeuta das idéias. As pessoas sofrem por idéias. Conseguindo fazer algumas mudanças nas suas idéias, elas se libertam. Hoje há um movimento para que os problemas sejam abordados como filósofos e não como problemas psicológicos pessoais. A morte, o dinheiro, o valor, as prioridades, o amor, a moralidade, a solidão e a depressão são problemas filosóficos profundos, não são exclusivamente pessoais. É preciso falar deles de um ponto de vista filosófico. No Brasil, os jovens não estudam filosofia na escola, não é verdade? Como nos Estados Unidos. Nossos países privilegiaram a psicologia e a sociologia.

República: No fim do livro As Palavras e as Coisas, Michel Foucault anunciava que o homem, como matéria de estudo científico, era um objeto recente cujo fim estaria próximo. Referia-se ao nascimento da psicologia e das ciências humanas no fim do século XVIII.

James Hillman: Acho que há tantos jovens que ainda querem ser psicólogos… Milhares ainda se inscrevem nas faculdades de psicologia. O que é um desastre, pois não ajuda a sociedade. Estamos em um planeta muito difícil do ponto de vista ecológico, moral, ético. Há muitas coisas mais difíceis no mundo do que estudar psicologia. E muito mais necessárias.

República: Mas o sr. não acha que ajuda as pessoas nas dificuldades, no sofrimento…

James Hillman: Sinceramente, não. Acho que o sofrimento tem a ver com tragédia, tem a ver com ignorância, no sentido socrático. Porque, se não existe um entendimento mais profundo da tragédia, da ignorância, a terapia acaba fazendo o que a farmacologia faz: leva embora a dor de cabeça, leva embora a depressão, leva embora a importância, a obsessão. Não quero cancelar o sofrimento. Nem mesmo Freud queria. Em um certo nível, a psicologia ajuda. Seu marido foi embora de casa, e você está desesperada e não tem com quem falar… Mas por que ir a um profissional? É preciso restabelecer as relações que contemplem esses aspectos.

República: Mas e o papel ancestral desempenhado pelos sábios, pelos oráculos, pelos xamãs nas tribos?

James Hillman: Isso é bobagem. Os psicólogos que vão à universidade não são xamãs. A psicologia clínica mantém os problemas da alma no reino do humanismo secular. Como se fossem só problemas mecânicos. Quando os pais levam uma criança para um instituto, têm com as psicólogas profissionais a mesma atitude de quem leva o carro para o mecânico: quando volto para buscar?, quanto vai durar?, quanto vai custar (risos)? O que é isso numa sociedade? As crianças estão tão desesperadas. Não é significativo que 20% das crianças em idade escolar tenham problemas de asma? Como deve se sentir um ser de 8 anos de idade que não consegue respirar por causa da poluição, por causa dos problemas econômicos e sociais do capitalismo? E então? Vou para a terapia e digo que me sinto sufocado, que minha mãe não me deixa respirar. Quem vai ajudar as crianças? Olhe para as ruas do Brasil. Parece um pesadelo.

República: O sr. foi um discípulo direto de Jung. Como considero suas idéias em relação ao velho mestre?

James Hillman: Muito próximas. Jung dizia que a psique é feita de imagens. Ele sempre se interessou por comportamentos que são fora do comum, pelo problema do início em todas as cultura. No Egito, no Livro Tibetano dos Mortos, ele estava interessado nas imagens, não nos sintomas das pessoas. Teorizou os arquétipos, que eram originalmente mitos. Estou interessado exatamente nas mesmas coisas. A diferença está na minha posição em relação a sua teologia cristã. Jung tinha uma teologia da qual me sinto distante. Eu o sigo como psicólogo. A base de meu pensamento é fortemente devedora a Jung.

República: É particularmente difícil a parte do seu livro sobre o mal.

James Hillman: A "semente má". Acho que na nossa cultura falta imaginação sofisticada sobre o aspecto destrutivo. Não entendemos essas crianças no Colorado, não entendemos Milosevic ou a menina de 11 anos que mata o menino de 4, não sabemos imaginá-los. Falamos do Holocausto para falar de Hitler. Mas Hitler é o verdadeiro mistério. O que é extraordinário é a possibilidade de fazer que os alemães e grande parte dos europeus fizessem a mesma reverência. O que é isso? Nesse capítulo, eu me proponho a pensar sobre o mal. Há muitas teorias. Alguns dizem que é o diabo, outros que é uma deformação genética, todos tem teorias. Não estou interessado nelas. A questão é pensar sobre o assunto. Imaginar essa parte da vida que, se não pensarmos por medo ou por ânsia negar, vamos acabar queimando alguém.

Entrevista de Elisa Byington, publicada na edição de julho de 1999 da revista República (fonte)

Sherry Ortner (2006)

Guita Debert: Gostaria de começar pelo presente e depois ir para trás. Vou perguntar sobre como seu interesse pelo feminismo foi despertado, o que mudou na sua visão sobre questões de gênero depois do “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?”. Como avalia as críticas a este ensaio, e como você vê o debate sobre gênero hoje nos Estados Unidos. Mas antes disso eu queria começar do presente para trás, e saber mais sobre seu interesse em pesquisar Hollywood.

Sherry Ortner: Eu fiz este projeto, que foi um resultado do meu último livro sobre Nova Jersey (2003), com as pessoas que foram da minha turma na escola. Trabalhei por 30 anos com os Sherpas, e cheguei num ponto em que eu não sabia se deveria continuar com os Sherpas, ou mudar o meu olhar para os Estados Unidos, porque eu já vinha pensando em fazer isso há algum tempo. Eu senti que já tinha feito três livros com os Sherpas e era o suficiente, embora eu ainda pudesse fazer mais um outro projeto. Mas achei que estava chegando num limite com os Sherpas – estava confortável demais, eles eram meus amigos, não parecia mais ser pesquisa.
Ao mesmo tempo, me parecia que era hora de fazer algo crítico sobre minha própria sociedade, de me voltar para um projeto americano. Então resolvi fazer esta mudança – é uma longa história. Fiz o projeto sobre minha turma da escola, com uma ênfase na classe social, que é uma coisa sobre a qual os americanos não gostam muito de falar, e foi por isso que eu quis falar sobre este tema. O projeto era muito sociológico e muito pé no chão. Tratava-se de um conjunto bem definido de pessoas e eu queria ver o que tinha acontecido com elas em termos do seu background de classe social e o modo como sua situação se relacionava com as mudanças sociais mais amplas nos Estados Unidos. Porém, era muito sociológico e tinha muito pouco sobre questões de cultura. É aí que entra o tema de Hollywood, porque é o outro lado. De um estudo sobre 340 seres humanos muito concretos, eu quero agora tratar de questões de cultura, consciência, e as formas pelas quais a mídia opera no capitalismo tardio. Eu quero fazer um estudo etnográfico e não um trabalho de film studies. Achei que o melhor lugar para pesquisar era Hollywood. Está muito confuso ainda, pois estou bem no meio do trabalho e ainda não sei com clareza qual será o foco. Estou ainda fazendo as entrevistas. Por enquanto, estou estudando o crescimento da produção independente em Hollywood, talvez vocês não conheçam muito os filmes independentes que estão sendo feitos mais em Nova Iorque do que em Hollywood. Há um enorme movimento de cinema independente que está fazendo cada vez mais sucesso. Estou focando menos nos grandes estúdios de Hollywood e mais nos diretores e produtores independentes, no cinema independente enquanto cinema.

G.D.: Mas há gênero neste projeto?

S.O.: Gênero é sempre uma questão para mim, mas nunca comecei um projeto como se fosse especificamente um projeto sobre gênero. Vocês podem ver no meu livro New Jersey Dreaming, ou mesmo no último sobre os Sherpas, sobre a experiência deles com o alpinismo no Himalaia ao longo do século XX (1999), em que há um capítulo chamado “Homens” e outro chamado “Mulheres”, mas são capítulos que fazem parte de um projeto mais amplo, são tanto capítulos distintos como parte de outro projeto. No livro sobre Nova Jersey, na verdade, há novamente um capítulo sobre mulheres e um capítulo sobre homens judeus, porque tive que separar os homens judeus, porque eles eram tão diferentes dos outros, tão bem sucedidos.

G.D.: Explique mais porque seu livro ainda não foi traduzido para português.

S.O.: A minha turma da escola, quando nos formamos, tinha 80% de judeus. Era um bairro judeu e uma escola majoritariamente freqüentada por judeus. A questão principal era classe social: comecei a entrevistar os 340 ex-alunos, que haviam sido crianças do bairro, seu background de classe social, de onde vinham, mas também em termos étnicos e raça, e havia um grupo muito pequeno de alunos africano-americanos na minha classe. A turma era de 83% alunos judeus, 6% de afro-americanos e 11% de outras etnias. Acompanhei a experiência deles ao longo da escola como um grupo, mas depois do colégio, quando quis saber o que aconteceu com as pessoas, tive que separar em grupos diferentes. Mesmo que eu enfatizasse classe social, tive que refazer os grupos, ficou claro que era necessário olhar diferentemente para as mulheres e para os grupos étnicos; as crianças judias, as outras brancas e as afro-americanas eram todas bem distintas. Dentro do grupo judeu, separei os homens e um grupo amplo de todas as mulheres que não subdividi, porque argumentei que as mulheres tinham mais em comum entre elas do que diferenças em termos de cada grupo étnico.
Ao final cheguei a essas três categorias engraçadas, homens judeus, homens de outros grupos e mulheres. Mas isso também tem relação com um argumento que construi sobre o “sucesso” das pessoas – que normalmente significa dinheiro, mas também outras coisas – e se relaciona com outros movimentos sociais mais amplos que ocorreram nos Estados Unidos, os movimentos pelos direitos civis das mulheres e o movimento mais antigo contra o anti-semitismo, que aconteceu antes, na geração de nossos pais.

G.D.: O movimento contra o anti-semitismo começou depois da Guerra?

S.O.: Começou a dar mais resultado nos anos 50, quando estávamos no colegial, de forma que minha coorte, especialmente os homens, conseguiu chegar a um determinado grau de sucesso ao romper com o anti-semitismo. Foi só então que os rapazes da minha classe conseguiram entrar nas universidades Ivy League [de maior reputação], o que não era possível na geração dos meus pais, pois não aceitavam alunos judeus.

G.D.: Quais são os sinais deste anti-anti-semitismo? Foi de fato um movimento? Eu estou pensando no livro How Jews Became White Folks da Karen Brodkin (1998).

S.O.: Algumas pessoas podem discordar, mas argumento que não era bem um movimento étnico, político, mas antes um movimento cultural. Karen Brodkin, que escreveu esse livro sobre o anti-antisemitismo é minha colega na UCLA. Os judeus americanos, porque ganhavam dinheiro, começaram a demandar mais respeitabilidade, buscando ser reconhecidos através da filantropia e de outras formas pelas quais se americanizaram, como seu papel em Hollywood, na indústria do cinema e na mídia. Foi antes um movimento cultural do que o movimento político posterior do feminismo e o dos direitos civis. Mas era também o mesmo tipo de coisa.

G.D.: Você tem falado sobre a Geração X – o que significa Geração X?

S.O.: Foi o título de um romance e refere-se a esta coorte que nasceu nos anos 1960 e 70, que eram basicamente os filhos dos meus colegas, da minha geração. Bem, não somos exatamente os baby boomers, somos um pouco mais velhos, e os boomers estão entre o meu grupo e a Geração X. Geração X são os filhos de meus colegas de classe. Não sei como denominar, havia uma tentativa de afirmar que era uma geração bem diferente, como os baby boomers, deveriam ser a próxima “moda”. Foi algo meio inventado, como um instrumento do marketing, mas, ao mesmo tempo, alguns jovens daquela geração se sentiam identificados com alguns dos estereótipos, como o slacker. Não sei se vocês viram o filme. É muito americano e acho que não viaja muito bem. Um dos estereótipos da Geração X é que eram slackers, tinham perdido a ambição de seus pais, não queriam trabalhar, nem fazer esforço algum, não buscavam melhorar na vida. Como se depois da forte ambição e a determinação dos seus pais e avós, esses jovens não tivessem mais interesse em nada, não quisessem se esforçar. Este era o conceito. Quase todos os jovens da Geração X sentem-se muito insultados por esta imagem.

Heloisa Buarque de Almeida: Mas você mostrou a diferença de classes entre eles? Este conceito da mídia não mudava de acordo com a classe?

S.O.: Sim, há algo dessa idéia que opera de modo diferente entre jovens de classe média alta e da classe média baixa desta mesma geração. É parte desta questão de classes. O motivo pelo qual me interessei pela questão foi quando comecei a entrevistar os filhos dos meus colegas de escola. Eu planejava fazer um estudo ultigeracional, então fiz algumas entrevistas com os filhos de meus colegas e eles eram, em termos de data de nascimento, da Geração X. Mas, ao final, essa parte não combinou exatamente com o resto do livro, porque a história de meus colegas era tão diferente da história de seus filhos, o mundo era tão diferente, que não fazia sentido.

G.D.: Os produtores alternativos de Hollywood que você pesquisa agora são desta geração?

S.O.: Sim, exatamente, são da Geração X. Na verdade esta foi a conexão específica entre um trabalho e outro. Entrevistei seis jovens, filhos de meus colegas, que estavam trabalhando em Hollywood. Eu, de fato, os usei como ponte, não rendeu tanto com eles, mas foi com eles que consegui os contatos. E também porque eu já estava com esta idéia de que a Geração X devia ter tido um impacto nos filmes e na indústria de cinema. Mas agora que estou fazendo mais entrevistas neste outro projeto, não sei mais se há esta relação, embora ainda tenho essa questão em mente.

G.D.: Acho muito interessante este tema porque ora vemos essa geração como uma geração que amadureceu prematuramente, ora como uma geração que não quer entrar na vida adulta...

S.O.: É uma geração muito interessante, mas muito diversa internamente para colocarmos numa categoria, Geração X. Eles não gostam de ser classificados assim. Não desisti totalmente da
idéia, mas não estou forçando para encaixá-la.

H.B.A.: Por vezes é uma categoria criada pela mídia, mas as pessoas não se identificam e não formam, de fato, um grupo distinto.

S.O.: Acho que há uma diferença entre o rótulo com o qual algumas pessoas se identificam e muitas outras não, e a questão é saber se você pode observar um tipo de sensibilidade, não uniforme, mas uma nova tendência que pode ser notada, algo novo que vem da forma pela qual eles vêem o mundo. Em termos dos meus entrevistados, depois de ter um pouco mais de material, tentei focalizar na geração X, nas pessoas que nasceram naquele período. Ficou muito restrito, tinha muita gente interessante para entrevistar que não se encaixava no tipo, então desisti dessa idéia.

G.D.: Queria pensar na antropologia americana, seu artigo “Theory in Anthropology since the Sixties” (1984) foi muito importante no sentido de que você captou um dilema enfrentado por todos os antropólogos, apesar das diferenças e da proliferação de subdisciplinas que caracterizou a antropologia dos anos 80. É possível identificar algo similar hoje, nos anos 2000?

S.O.: 25 anos depois, é um momento semelhante em termos de que usamos à exaustão a produção de Bourdieu, Giddens e aquela geração. Obviamente, é o momento de surgir alguma outra coisa. Mas eu não sei se há algo evidente agora. Levei um longo tempo para escrever aquele artigo. Escrevi os dois primeiros terços do artigo de modo a resumir os estágios prévios e, depois de escrever esta parte, parei, porque não via uma tendência nova que unificasse. Levei algum tempo, na verdade, escrevi vários finais para ele e, de alguma forma, não sei como, começou a surgir, a partir de algumas leituras, a idéia final. Não sei se há algo assim atualmente. Na verdade, acho que... não é a mesma coisa, mas acabei de juntar um grupo de ensaios meus para ser publicado no outono, e inclui todas essas coisas sobre as quais estamos falando, como o da Geração X – três artigos interpretativos sobre cultura americana, três ensaios que já foram publicados em revistas e uma introdução, que foi a última a ser escrita. A introdução é sobre o que está acontecendo com o conceito de cultura, de novo. Acho que é aí que há algo acontecendo, mas de um modo totalmente novo. Em parte, é o mesmo velho conceito de cultura, porque ele é o que é, mas tem havido essas disputas sobre se devemos continuar a falar de cultura. De certa forma, digo neste ensaio que o conceito não vai ser descartado. Então devemos pensar sobre o que ele é e o que devia ser. É bobagem tentar evitá-lo, é uma idéia incrivelmente produtiva. Se os antropólogos o questionam, todo o resto do mundo está se apropriando do conceito de cultura e produzindo coisas novas, então vamos mantê-lo. A área de estudos de mídia é uma das novas encarnações das questões sobre o cultural. Nesse artigo, penso como tomar o velho conceito de cultura e colocá-lo em novas narrativas conceituais, narrativas mais políticas e mais críticas. Estas são as duas mudanças principais. Discuto essa idéia como um novo horizonte sobre o qual refletir.

G.D.: No novo livro do Adam Kuper sobre cultura, ele mostra que na antropologia americana contemporânea cultura tende a substituir raça. A noção de identidade cultural tende a ser trabalhada como uma força que aprisiona as pessoas aos horizontes de uma cultura e, assim, passa a ter o mesmo viés determinista e essencialista da noção de raça.

S.O.: Na verdade, concordo com esta crítica. Diria que todos nós conhecemos essa crítica da cultura como algo essencializador. A questão é se há novas maneiras deste conceito operar sem ter esse
efeito. Na mídia é possível, se for feito do modo certo e não for desconectada das visões das pessoas, é uma das áreas principais de estudo em que ele funciona. Uso as expressões travelling cultures, que foi o termo do James Clifford, e public culture. Essas são novas formas de pensar a cultura sem ser algo trancado dentro das pessoas e que determina quem são e o que fazem, na forma essencialista. Não sabia que Kuper tinha escrito sobre isso, vou ler. Acho que é preciso utilizar o conceito de cultura de forma diversa, é o mesmo velho conceito de cultura, mas precisa ser usado de forma mais crítica, em narrativas e análises críticas. Na verdade, comecei a falar disso numa coleção de ensaios que editei – The Fate of “Culture” (1991) –, que foi um tipo de homenagem para Geertz. Foi naquele contexto que afirmei basicamente que é possível tomar o conceito geertziano de cultura e usá-lo de forma diferente. Num certo sentido, é o que é preciso fazer.

G.D.: Por que a homenagem ao Geertz?

S.O.: Ele estava se aposentando do Institute for Advanced Studies, e eu não queria fazer o tipo usual de homenagem. É um livro relativamente curto, um grupo de seis ensaios, três escritos por antropólogos e três são de não-antropólogos que foram influenciados por Geertz, fora da antropologia. Então, escrevi a introdução. Porque alguns historiadores usavam o conceito de Geertz de cultura, mas o conectavam a um argumento histórico, ao invés de etnográfico, e assim funcionava de modo bem diverso naquele contexto, abria possibilidades e não essencializava de modo nenhum. Porque era parte de uma história mais ampla sobre mudanças, sobre agência (agency), ele gerava algo diferente. Foi quando comecei a pensar nesta idéia. Não foi a única mudança que aconteceu com o conceito de cultura, mas foi uma delas.

H.B.A.: Os estudos de mídia usam muito o conceito de cultura, muitas formas de aplicá-lo, e em disciplinas que há pouco estavam descobrindo o trabalho etnográfico.

S.O.: Acho que os estudos de mídia é uma das áreas mais ativas ultimamente.

G.D.: Mas qual a conseqüência disso tudo para a antropologia? Haverá uma mudança no fazer antropológico, com um foco maior em nossa sociedade ao invés de estudar as outras sociedades?

S.O.: Espero que não, acho que os antropólogos têm que continuar estudando por toda parte do mundo, incluindo a nossa sociedade, mas não excluir o que fazíamos antes, e nem excluir a
nossa sociedade. No entanto, acho que o contexto é diferente por causa da globalização, e não apenas pelo fato da globalização, mas pelo que ela está transformando na consciência antropológica no que diz respeito às relações entre os povos do mundo, incluindo nós e todo o resto. Não no sentido de que tudo está muito próximo, que não é a questão interessante, mas no sentido de procurar as articulações entre os vários níveis, da forma como Arjun Appadurai discute. As formas pelas quais a multiplicidade de sociedades, lugares e localidades estão conectadas de modos muito diferentes, mas, ao mesmo tempo, como parte desses fluxos globais, como ele chama. A mídia entra bem aí, porque a mídia é certamente uma das forças globalizantes e, ao mesmo tempo, tem uma história local em cada parte do mundo. Não imagino a mídia como um projeto especificamente ocidental, aliás, espero que não seja, mesmo no caso de minha pesquisa, tratando de Hollywood. Gostaria de poder captar de alguma forma essas questões de globalização.

H.B.A.: Há profissionais de outras partes do mundo nesse meio da indústria do cinema independente?

S.O.: Especialmente no meio independente e na geração mais jovem, aquela depois da geração X.

H.B.A.: Estes filmes viajam um pouco, até mesmo em São Paulo, por vezes, podemos assistir filmes independentes.

S.O.: Vocês provavelmente podem ter acesso a vários, mas muitos deles têm muita dificuldade de distribuição, mesmo nos Estados Unidos. Tenho sorte por estar situada em Nova Iorque e Los Angeles, porque são cidades onde há maiores possibilidades deles serem exibidos nos cinemas locais, e também porque faço parte de algumas organizações que me mantêm informada sobre os
filmes independentes. Assim, consigo ver coisas que talvez nunca sejam lançadas, mas alguns deles foram exibidos, por exemplo, aquele que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro – Paradise Now – vocês viram?

H.B.A.: Sim.

G.D.: Sim, muito interessante.

S.O.: É esse tipo de coisa que me interessa. Este obviamente foi feito na Palestina, mas o diretor é egípcio, eu acho... No entanto, para promover o filme e distribuí-lo, ele tem que buscar os mecanismos de distribuição de Hollywood, esta é a única forma, mesmo para os produtores independentes. Não há muitos mecanismos para conseguir isso, não há uma máquina de distribuição como a de Hollywood. Estou interessada nesse tipo de coisa, porém não exclusivamente, não a ponto de achar que não há nada mais acontecendo além da globalização.
Obviamente, a globalização está acontecendo, e estes jovens diretores são surpreendentes, são muito globais mesmo. Para dar um exemplo de quem são, há essa mulher, cujo pai é judeu tecnicamente, mas não se identifica muito como judeu, a mãe é chinesa, ela é americana, e fez um filme maravilhoso, chamado After Innocence. O filme é sobre o que acontece com os homens que foram condenados por estupro, mas depois do exame de DNA foram considerados não culpados, pela evidência do DNA, e foram soltos. Eles tiveram suas vidas destruídas e não tiveram nenhum mecanismo de inserção social, eles receberam um pouco de dinheiro, lhes disseram “desculpe” e pronto. Então, este é um desses bons filmes, e é feito por essa mulher que resulta de uma
mistura meio exótica. Há também a filha de um pai palestino e uma mãe americana, cuja família foi terrivelmente perseguida depois de 11 de setembro, que decidiu que devia fazer um filme sobre isso. Ainda não terminou o filme que é sobre sua tia que veio para a América sozinha, tentando fugir da estreiteza de sua cultura de origem, mas ao chegar aqui só encontrou essa perseguição terrível depois de 11 de setembro nos Estados Unidos.
É como se o mundo entrasse nesses filmes, o mundo se torna multi-cultural e os diretores também. Estes são apenas alguns exemplos.

G.D.: Tenho outra pergunta relacionada a esta. Por exemplo, se você tiver um aluno seu fazendo uma pesquisa de doutorado sobre mídia, você acha que ele deveria estudar em outro lugar, outra cultura?

S.O.: Bem, antes eu pensava dessa forma. Mas refletindo melhor, acho que há um conceito em mudança. Mesmo se você vai estudar longe, num lugar muito diferente do seu, o tipo de projeto
que seria feito com povos “outros” seria um outro tipo de projeto, e não “sente-se aí, imóvel, e deixe-me estudar a sua cultura”. O tipo de questão em jogo faz com que esse problema de fazer
pesquisa em casa ou viajar para longe deixa de ser relevante. Isso se dá pelo tipo de questão que se fazia então e que se faz hoje, que são distintas. Por exemplo, agora, tenho três novos alunos na
UCLA: um quer pesquisar Hollywood; outro está indo fazer seu projeto na Indonésia sobre juventude, consumo, classe média, então não é um estudo sobre um outro exótico, é sobre
modernidade; e a terceira, de nacionalidade equatoriana, quer fazer um projeto na Argentina sobre classes médias, está particularmente interessada nas jovens meninas, como elas estão inseridas em questões de classe social. Aqui ou lá é outro tipo de antropologia. Tão diferente do que era há pouco tempo.

H.B.A.: Vamos voltar ao gênero?

G.D.: Você disse uma coisa muito interessante – que não importa o que você estuda, a questão de gênero está lá, aparece.

S.O.: É verdade, e certamente será também no projeto de Hollywood, mas ainda não sei como ao final vai se configurar. Se você olhar num nível meio óbvio, por exemplo, em Hollywood há muito mais mulheres em várias posições de poder, muito mais mulheres executivas nos estúdios do que antes, muito mais produtoras, especialmente no campo independente, o que é ótimo, e há algumas diretoras. Mas os diretores, particularmente os que têm mais prestígio artístico, são ainda, na grande maioria homens, 99%. Quando se chega perto da zona que parece ser o lugar do “mana”, onde o poder reside, lá estão os homens. Mas não quero ficar nesse nível óbvio. Ainda não sei como vou discuti gênero, estou no meio do trabalho, tenho entrevistas a fazer, quero entrevistar mais mulheres produtoras e mais escritores. Mas os escritores são o nível mais baixo da hierarquia, eles não são
respeitados em Hollywood. Já era verdade quando Hortense Powdermaker estudou Hollywood. Ainda não sei como a questão de gênero vai se desenvolver neste projeto.

G.D.: Acho que você vai ter material muito interessante para pensar na relação entre gênero e geração.

S.O.: Sim, de fato, tentei fazer isso com o trabalho da Geração X, mas não tive material suficiente, alguma coisa deve aparecer em termos de mudanças geracionais, mas ainda não sei como será.

H.B.A.: Como você revê atualmente o seu artigo “Está a mulher para o homem assim com natureza para cultura?”.

G.D.: Eu colocaria outra questão junto, como você vê as questões da antropologia feminista, da antropologia do gênero, as novas abordagens de teoria queer? O que ganhamos, o que perdemos?

S.O.: Eu não sei se escreveria hoje “Está a mulher para o homem assim com natureza para cultura?”. Na verdade, ele resulta muito da influência do estruturalismo dos anos 70, eu o escrevi para a coletânea de Rosaldo e Lamphere (1979), mas também o apresentei como uma palestra num novo curso que foi meu primeiro emprego como professora, num pequeno Women’s College. Estávamos criando o primeiro curso de estudos sobre mulheres e éramos quatro professoras – Gerda Lerner, que é uma historiadora feminista, Joan Gadol que estudava história da Europa e Renascimento italiano, outra estudava literatura alemã, e eu a antropóloga. Estávamos inventando um curso de estudos
sobre mulheres naquela escola, não éramos as únicas fazendo isso, mas um curso assim ainda não existia. Montamos esse curso buscando coisas variadas, e como eu tinha escrito o texto para a
coletânea, o apresentei ali como uma palestra para as alunas. Isso foi em 1972, o feminismo estava explodindo – novas revistas, novos cursos, coleções e reuniões, tudo acontecendo. Na classe havia uma mulher fazendo uma nova revista feminista e o ensaio saiu publicado nesta revista antes do livro em 1972. Então ele tem 34 anos – definitivamente eu não o escreveria novamente, tenho certeza. Estava sob o efeito da onda do estruturalismo, embora eu não estivesse totalmente convertida ao estruturalismo, tinha muito interesse. Também tínhamos lido O Segundo Sexo de Simone De
Beauvoir para este curso que estávamos criando. Disso tudo, o ensaio tomou aquele forma particular e também resultou na natureza do argumento, as oposições entre natureza e cultura, o binarismo, tudo aquilo. Porém, a afirmação sobre a dominação masculina universal veio de uma conversa distinta. Naquele período do feminismo, muita gente escrevia sobre todo tipo de tema e mesmo sobre coisas que não conheciam bem. Havia um interesse pelo matriarcado, uma grande busca pelo matriarcado.
Eu e outras antropólogas nos sentimos obrigadas a falar, “sentimos muito, mas não existe esse matriarcado”. Revisei a bibliografia etnográfica e não pareciam existir nem mesmo sociedades igualitárias. Foi daí que veio esta forte afirmação de que em todas as culturas conhecidas os homens são, em certa medida, o primeiro sexo, se não necessariamente dominantes no sentido político, preeminentes no sentido carismático e do prestígio, ou em ambos. Esse foi o contexto do artigo. Os desafios contra as afirmações universalistas vinham de várias partes, primeiro das feministas marxistas que acreditavam na existência de sociedades igualitárias que teriam sido pervertidas pelo
capitalismo, mas que seriam outro tipo de sociedade, com outra forma de pensar a diferença de gênero. Eleanor Leacock, especialmente. Ela estava em Nova Iorque, quase todas nós estávamos, havia uma cena feminista muito intensa em Nova Iorque. Este artigo é um objeto morto atualmente, mas ele tem uma história e nasce de todos esse tipos de argumentos, conceitos, de feministas não acadêmicas imaginando sociedades matriarcais, as pessoas então acreditavam nisso, buscavam isso nos relatos etnográficos e arqueológicos, e sentimos que nós, antropólogas profissionais, precisávamos esclarecer. Depois do feminismo marxista, teve outra fonte de resistência e crítica à universalidade da dominação masculina, que veio depois, do feminismo do terceiro mundo, que também resistia a essa idéia de dominação masculina universal.

G.D.: O que você quer dizer com feminismo do terceiro mundo?

S.O.: Feministas que vêm de nações do terceiro mundo, por exemplo da Índia. Elas estavam ensinando em seus países de origem ou nos Estados Unidos, mas também a partir de conferências com feministas de muitas sociedades, como no trabalho de Mohanty, Under Western Eyes (1988). Havia toda esta discussão em torno do tema da dominação masculina como uma forma de distração de outros modos de opressão. Não uma tentativa direta de negar a afirmação de que os homens são
universalmente dominantes, mas um desinteresse pela dominação masculina em nome de outras questões, como colonialismo, imperialismo, pobreza, como se fosse um certo luxo pensar na
dominação masculina.

G.D.: Você as classifica de feministas?

S.O.: Sim, mas de um feminismo que veio numa onda posterior dos anos 70. A dominação masculina não é mais a questão impulsionadora, é um luxo do feminismo branco ocidental que não precisa se preocupar com o dinheiro da subsistência, com as crianças morrendo de fome, com os maridos que não encontram empregos, com outros problemas. Isso se tornou e acho que ainda é uma posição hegemônica atualmente. Não é que elas recusem diretamente a noção de dominação masculina, porém, mudaram de assunto.

H.B.A.: E buscam conectar com outras formas de poder.

S.O.: Uma idéia com a qual eu concordo. Há diferentes níveis da minha resposta nesta história. Em resposta à primeira parte, a afirmação mais direta de que estava errada, e que há sociedades igualitárias, ou da oposição natureza e cultura como problemática, eu respondi a essas críticas num lugar que vocês provavelmente leram, em “So is female to male as nature is to culture?” e em
“Gender hegemonies”. Estes dois artigos no livro Making Gender (1996) respondem a esse primeiro nível de críticas. A crítica posterior, que retira a dominação masculina da pauta ou que a retira do centro do foco, podemos dizer, me parece mais forte e, em última instância, mais perturbadora se a questão for completamente retirada do foco. Isso vai na direção da pergunta da Guita sobre como vejo o futuro do feminismo acadêmico ou da antropologia feminista, que considero uma pergunta interessante pois acho que essencialmente a questão da dominação masculina não está mais na agenda da antropologia feminista. Mas não foi embora totalmente, do meu ponto de vista. É preciso levantar a questão novamente de um modo inteligente. O que temos basicamente hoje em dia é um tipo de feminismo das múltiplas diferenças, que é o feminismo do terceiro mundo e das minorias.
De modo resumido, nessas posições, a dominação masculina é apenas um dos elementos, e nem é o mais importante em termos da atenção que recebe se comparada às outras questões. Elas se vêem como feministas, mas a questão não é mais centralmente sobre as mulheres, ou o gênero ou dominação masculina enquanto tal. Um artigo recente de uma colega que estuda o oriente médio fazia uma longa lista sobre com o que as mulheres hoje têm que lidar, como a pobreza. Era uma lista de coisas que oprimem as mulheres, inclusive o estado, e ela nunca mencionou o patriarcado, o que me assustou. Isso é algo que está acontecendo com a antropologia feminista: a dominação masculina não parece mais ser o objeto da atenção. O outro lado é a teoria queer, que também não está nem um pouco interessada na dominação masculina, não faz parte da sua agenda. É uma questão irrelevante na forma como a teoria queer tem sido conceituada. Podemos discutir se deveria ser relevante, mas como tenho visto, não parece ser importante nos trabalhos teóricos e nem nos etnográficos a partir da teoria queer. Não está na agenda destas duas áreas que são hoje muito “quentes” na antropologia
feminista, na produção acadêmica feminista ou de gênero. Não queria dizer que há uma despolitização, pois a política está em outro lugar, na discussão de outras formas de poder e não quanto ao poder de gênero. Não tenho dado cursos sobre gênero há algum tempo, mas se eu desse um curso sobre gênero hoje, eu começaria com a questão da dominação masculina e perguntaria o que houve com ela. Se olhamos a literatura mais antiga, inclusive meus textos e outros, a dominação masculina era o tema central e, em certo momento, ela desaparece, então eu revisaria essa literatura feminista sobre minorias e do terceiro mundo por um lado e a teoria queer por outro. Diria que é aqui que a ação intelectual e política se encontram hoje. Ao ler esse material eu própria pensar se a dominação masculina deveria ou poderia estar nessas arenas. Eu faria assim se tivesse que dar um curso de antropologia feminista.

G.D.: Gostaria de voltar aos Sherpas num ponto, como você vê toda a situação do Nepal? Quando você diz que ficou tão amiga dos Sherpas que não podia mais fazer pesquisa com eles, mas daí você foi fazer pesquisa com seus amigos do colégio. Como você vê a situação política no Nepal?

S.O.: Não estou muito atualizada sobre a situação política do Nepal, a não ser pelo que leio nos jornais. Tenho alunos que querem fazer pesquisa no Nepal, mas não sei o que vai acontecer.
Tenho um aluno de graduação muito inteligente que é parcialmente nepalês – sua mãe é americana, mas o pai é do Nepal – e ele vai para lá neste verão fazer pesquisa para seu trabalho de conclusão, ele fala nepali, tem cara de nepalês, cresceu lá até os 14 anos, tem muitos contatos pessoais. Ele é
completamente bilíngüe, vai fazer seu projeto na região e então terei uma idéia melhor sobre se é possível fazer pesquisa lá atualmente. Não voltei ao Nepal desde 1990, quando estava terminando o trabalho sobre o Monte Evereste e começando o projeto americano. Mas em termos do meu interesse, porque agora tenho amigos Sherpas que moram nos Estados Unidos, se eu fosse voltar ao tema, faria uma pesquisa sobre globalização. Há uma comunidade de tamanho razoável e crescente no Queens,
em Nova Iorque, e visito meus amigos de metrô. Quando fui ao Nepal pela primeira vez eu tive que andar dez dias para chegar numa vila dos Sherpas, eram literalmente dez dias bem duros, subindo e descendo montanhas, e agora posso pegar o metrô por um dólar e meio! Eu os visito em Queens, eles e seus pais vão à minha casa, a casa de verão que temos em Nova Jersey. Tivemos uma ótima reunião com os Sherpas nessa casa, é muito bacana, mas eles são como meus parentes agora.

G.D.: Por que você decidiu ir ao Nepal na primeira vez?

S.O.: Não me lembro, tenho várias histórias que gosto de contar. A primeira delas tem a ver com o fato de que, naquela época, Geertz era meu orientador e ele estava estudando religião, e religião estava na moda. Eu queria fazer algum tipo de projeto sobre religião. A questão era: qual delas? Foi por eliminação. Eu não queria trabalhar com sociedades tribais, eu não tinha a imagem romântica de encontrar o “primitivo exótico” e queria trabalhar em alguma sociedade que fosse em alguma medida
parecida com a minha, diferente, mas não tão diferente. Não queria cristianismo, era muito ocidental, quanto ao islamismo me parecia difícil sendo mulher ter acesso a todas as pessoas, então parecia que o budismo era interessante, e fui para o budismo mais exótico que poderia encontrar. Acho que foi uma combinação entre querer ir para um lugar muito distante no clássico modelo antropológico, mas também algo que não fosse super-exótico. Eu não tinha um grande plano claro, mas aconteceu assim. Quando estava na pós-graduação, primeiro pensei em trabalhar em algum lugar no Pacífico. Foi por isso que posteriormente escrevi o trabalho sobre a Polinésia, publicado em Sexual Meanings,
“Gênero e Sexualidade numa sociedade hierárquica – o caso da Polinésia”. (1981) Esse foi um resíduo do meu interesse no Pacífico. Tive um primeiro orientador que trabalhava no Pacífico, mas não deu muito certo. Então tive que procurar outra região, me interessei pelo Mediterrâneo por algum tempo, porém me envolvi com meu primeiro marido que queria ir para a Ásia, então convergimos na idéia do Nepal. Esta é a história número dois, e ainda há outras.

G.D.: Foi o período em que Geertz estava no Marrocos, ele não queria que você fosse estudar no Marrocos?

S.O.: Não, ele não impôs. Geertz não era muito dominante como orientador, era discreto. Não sei se era porque eu era mulher, quem sabe?

G.D.: Você gostaria de dizer mais alguma coisa?

S.O.: Gostei da entrevista com vocês duas, porque foi interessante pensar esses temas na conversa, me parece que vocês estão pensando gênero de um jeito que eu não tenho trabalhado muito. E me deu uma chance de pensar nas questões de gênero.


Entrevista de Guita Grin Debert e Heloisa Buarque de Almeida para os Cadernos Pagu (27), julho-dezembro de 2006: pp.427-447. (fonte)

Georg Lukács (1970)

Spiegel: Professor Lukács, certa vez o senhor afirmou que o parlamentarismo havia “envelhecido em termos histórico-mundiais”. Mais tarde, Lenin corrigiu sua afirmação, argumentando que esta questão não era de natureza ideológica, mas sim tática. Como o senhor avalia o parlamentarismo hoje, especialmente em relação aos países socialistas?

Lukács: Ela possui um aspecto extraordinariamente andrógino, que tem início com a transformação, empreendida por Stalin, dos restos já bastante corrompidos dos conselhos centrais dos trabalhadores (sovietes) num parlamento. Na minha opinião, isso representou um passo atrás, pois o parlamentarismo é um sistema de manipulação a partir de cima.

Spiegel: Por que, então, segundo a constituição, todos podem fundar um partido e disputar eleições?

Lukács: De facto, nas eleições americanas há uma efetiva disputa, mas, para isso, é necessária uma soma tão grande de dinheiro que os partidos de bases populares acabam sendo totalmente excluídos. Já a essência do sistema de conselhos, pelo contrário, consiste em que sua construção vem de baixo. Em 1917, qualquer trabalhador inteligente podia dentro da sua empresa, fundar um grupo e por meio desse grupo conseguir levar para o conselho dos trabalhadores representantes da fábrica. Daí ele ia avançando passo a passo. Na minha opinião, esse é que é, do ponto de vista democrático, o sistema mais progressista, o autêntico socialismo. Ao abandoná-lo – no interesse de uma administração e de uma capacidade de ação perfeitamente uniformes – nós demos um passo atrás.

Spiegel: O senhor acha que esse desenvolvimento stalinista pode ser modificado mediante reformas, pode ser cancelado, ou há que haver uma segunda Revolução de Outubro para restabelecer o sistema de conselhos?

Lukács: Em primeiro lugar, considero impossível resolver uma questão dessa magnitude por vias administrativas. Se fundássemos um conselho de trabalhadores mediante decreto, este conselho seria eleito da mesma forma burocrática das eleições atuais para deputados. É preciso, no curso de uma reforma econômica que já se tornou necessária, introduzir uma democracia de base (von unten), isto é, começar com o direito e também o poder de intromissão nas questões de interesse geral, e a partir dessas experiências avançar gradativamente.

Spiegel: Qual foi a falha do conselho na Rússia?

Lukács: Em 1921, na União Soviética, houve uma grande discussão sobre os sindicatos. Trotski adotou o ponto de vista segundo o qual os sindicatos deveriam ser estatizados, de modo que pudessem servir de apoio à produção. Lenin se pôs contra e sustentou que os sindicatos tinham por tarefa defender os interesses dos trabalhadores em face do estado burocratizado. Hoje, ninguém duvida que Stalin acabou pondo em prática a idéia de Trotski, tanto aqui quanto a propósito de várias outras questões. Para não ir além do exemplo dos sindicatos, deve-se dizer que nossa tarefa, agora, é fazer oposição a isso, para assim retornar à concepção de Lenin. Decerto, não podemos criar nenhuma situação revolucionária, mas podemos reconhecer o que foi importante em termos histórico-mundiais, isto é, que a democracia não precisa necessariamente dividir os homens em bourgeois e citoyen, como ocorreu na Revolução Francesa e nas que vieram depois, todas elas condenadas a terminar por estabelecer o domínio do bourgeois sobre o citoyen.

Spiegel: O citoyen, o burguês revolucionário, anda sumido em nossos dias?

Lukács: Apenas a sociedade socialista deixou para trás objetiva e economicamente o dualismo do bourgeois e do citoyen, na medida em que dissolveu o medo capitalista de que o movimento do citoyen pudesse deter ou perturbar o processo de produção. Precisamos enxergar melhor do que temos feito até agora que, para a consecução das tão necessárias reformas econômicas no estado socialista, um tal suporte democrático é imprescindível e insubstituível. Para isso, não vejo necessidade de nenhuma revolução. É algo que pode ocorrer, provavelmente, no curso de uma década, desde que haja um movimento de reivindicações – mas preciso dizer que, com tal perspectiva de uma década, estou sendo bem otimista.

Spiegel: Esse desenvolvimento, entretanto, pressupõe muita coisa. Hoje, as massas burocraticamente governadas não possuem absolutamente nenhuma necessidade visível de praticar formas de autogestão.

Lukács: Talvez aqui eu esteja sendo demasiado otimista. As pessoas sempre falam que falta um Kader, mas o que a minha longa experiência me diz é que o desenvolvimento social produz gente suficiente para novos recrutamentos e gente que se dispõe a isso com prazer. Quando, em 1919, fui enviado ao front para ser comissário temporário de uma divisão, eu precisei, de início, encontrar por toda parte – nas pequenas unidades e nos batalhões – comissários preparados. Em três dias o problema havia sido resolvido. A esses comissários de guerra cabia, antes de tudo, ver se os soldados eram alimentados de forma adequada e se recebiam sua correspondência regularmente; se o faziam com sucesso, obtinham a confiança das pessoas também em outras questões. E stou convencido de que, hoje em dia, não há entre nós uma única fábrica na qual cinco ou seis engenheiros não sejam a favor da reforma; mas enquanto predominar uma atmosfera igual à do período stalinista eles não arriscarão sua existência. Apenas se eliminarmos os riscos teremos gente em massa para a reforma.

Spiegel: Isso quer dizer, portanto, que a Reforma-Kader está aí; basta não criar dificuldades para ela. Você não está vendo a coisa de modo muito otimista, dada a burocracia vigente?


Lukács: Eu diria que é impossível surgir amanhã um sistema de conselho plenamente eficiente na Hungria. Mas em 10, 20 ou 30 anos uma mudança assim poderá ocorrer. Por que não? Em princípio, trata-se apenas de conquistar uma massa crescente de pessoas para as reformas econômicas necessárias. E m 1919 tivemos no campo da cultura um êxito muito maior do que a maioria dos outros comissariados populares. Adotamos uma linha totalmente democrática, em que os poucos comunistas a favor de uma reforma cultural se uniram com alguns movimentos culturais burgueses já existentes. No topo de cada organização cultural foram colocados, a partir dos próprios interessados, o que chamávamos de diretórios. O diretório musical, por exemplo, surgiu com Bartók, Kodáli e Dohnanyi, não havia um único comunista entre eles. E, no entanto, Bartók reformou a vida musical húngara como nenhum de nossos comunistas teria conseguido fazer. Bartók viu com clareza que uma transformação do ensino da música, da ópera etc. seria mais fácil de fazer conosco do que com a burguesia.

Spiegel: Quem não está contra nós está por nós, disse Kadar, o primeiro-secretário do Partido.

Lukács: Preciso confessar que tenho uma boa opinião sobre Kadar. A meu ver, Kadar não é um Burocrata. Um homem como ele, que nunca esqueceu que já foi um operário, tem sempre sensibilidade para perceber o que está se passando nas esferas de baixo. E Kadar disse que, hoje, quase todas as pessoas que não cuidam de seus interesses de um modo puramente egoísta, mas sim por meio de alguma mediação social, instintivamente são nossas aliadas.

Spiegel: Vários partidos comunistas de países do Ocidente advogam, hoje,por uma ampla união com simpatizantes e consideram a via parlamentarista não apenas necessária, mas até mesmo a única promissora.

Lukács: Lenin propôs que fizéssemos uma diferença entre as instituições superadas em termos histórico-mundiais e as superadas apenas de forma relativa. Ele está coberto de razão quando afirma que num país como a Alemanha o poder do parlamento precisa se opor à burocracia, uma vez que o parlamento não é suficientemente independente. Muita coisa, como uma legislação de emergência pública, nunca teria sido feita por um parlamento, ainda que eleito com efetiva independência e funcionando com efetiva independência. Portanto, para não rejeitar a democracia burguesa é preciso fazer uma reforma no parlamentarismo.

Spiegel: Não obstante, há pouco o senhor definiu o parlamento como um instrumento de manipulação do sistema capitalista.

Lukács: No capitalismo é sempre assim, ao menos em parte. É da essência do capitalismo que os grandes trustes exerçam uma poderosa influência sobre a opinião pública. E quando alguém quer me apresentar o New York Times ou o Frankfurter Allgemeine Zeitung como o modelo da liberdade de expressão em comparação ao Pravda, aí, como velho jornalista e escritor, eu sou obrigado a dizer que tenho cá minhas dúvidas sobre a liberdade de expressão do Frankfurter Allgemeine Zeitung. Naturalmente, as pessoas do Frankfurter não podem prender ninguém, porém, recorrendo a outros meio tão eficazes quanto os utilizados pelo órgão stalinista, elas podem impedir que uma determinada perspectiva ou opinião editorial chegue até a opinião pública. O que na Alemanha Ocidental se denomina de liberdade de expressão é tão-somente a rotina do escritor que sabe exatamente em qual jornal e com qual entonação ele pode escrever. E o senhor há de me perdoar se não abro exceção para o Der Spiegel.

Spiegel: O senhor quer defender a regulamentação dos escritores soviéticos como Soljenitsin apenas porque eles são úteis ao Partido?

Lukács: Há muitas sutilezas envolvidas nessa questão. Até onde vai meu conhecimento histórico, nunca houve nenhuma sociedade dividida em classes ou interesses opostos que gozasse de uma plena liberdade de expressão. Apenas num sistema de conselhos, por meio de uma auto-regulação democrática, pode-se abolir a manipulação em todas as suas formas. Que a Revolução de 1917 foi um impulso nessa direção é fato que hoje não se discute. Depois, devido a determinadas razões econômicas e políticas, sofremos, um retrocesso, em certa medida, inevitável. Há, portanto, razões históricas para essa estagnação, para esse bloqueio. Bloqueio que já se vai por algumas décadas. Mas não se esqueça que 50 anos não é tanta coisa assim quando o assunto é abandonar uma formação social e começar outra. Da escravidão até a consolidação do feudalismo foi necessário uma transição de 800 a mil anos.

Spiegel: Os descuidos também existem. Durante um bom tempo, os teóricos marxistas não ofereceram nenhuma análise econômica suficiente do capitalismo existente, e por isso ficaram inseguros diante das possibilidades de desenvolvimento e das formas de manipulação do capitalismo tardio.

Lukács: Concordo com o senhor que nós não acompanhamos de forma suficiente as grandes modificações estruturais do capitalismo. Antes de Marx havia apenas o capitalismo da chamada indústria pesada e a produção de consumo ficava, em grande medida, nas mãos dos artesãos. As necessidades de consumo dos trabalhadores, por isso, eram indiferentes aos empreendedores. Mas, depois que o capitalismo se apropriou também da indústria de consumo e do setor de serviços, os artesãos, por um lado, foram desaparecendo cada vez mais, e com eles o reservatório para aquisição de novos trabalhadores. Por outro lado, o trabalhador começou a se tornar interessante para o capitalismo como consumidor, seguindo-se um aumento do salário e uma redução do tempo de trabalho – isto no intuito de torná-lo um melhor consumidor. Estas são questões que não existiam para Marx. Por isso precisamos submeter todos os critérios utilizados por Marx para o capitalismo do século XIX a uma nova investigação econômica. Isso não aconteceu. Por essa razão, nós, comunistas, ficamos como que paralisados diante do novo capitalismo e a todo momento atribuímos a ele categorias envelhecidas que não podem esclarecer mais nada.

Spiegel: Atualmente, no Ocidente, têm havido tentativas de analisar justamente essas novas formas de manifestação do capitalismo de consumo e de serviços. Tentativas que são empreendidas principalmente por aqueles estudantes que hoje se auto-intitulam de nova vanguarda revolucionária.

Lukács: Sem dúvida, o movimento estudantil é uma coisa, em princípio, saudável. Se eu fosse criticar o movimento estudantil, eu o faria apenas em relação ao seu caráter de happening, isto é, à ilusão de que, por meio de uma greve ou de alguns atos escandalosos, pode-se modificar uma linha [histórica] de desenvolvimento, quando esta, na verdade, antes de ser submetida a qualquer intervenção prática, precisa ser compreendida. O problema fundamental é que, objetivamente, a ciência tem passado por um ininterrupto processo de integração, ao passo que, na contramão dessa tendência, a prática da ciência enfrenta uma extrema divisão do trabalho e uma extrema desintegração – o modelo do teamwork americano. Se você perguntar, hoje em dia, se determinado problema é físico ou químico, nem Heisenberg nem qualquer outro poderá lhe responder, pois a física e a química estão mais integradas do que nunca. Ou, então, pense nas ciências sociais: você pode me dizer onde termina a economia e começa a sociologia? O freudiano mexicano Erich Fromm, recentemente, disse que para entender realmente o freudismo, é necessária uma análise das condições sociais sob as quais surgiram os sintomas investigados por Freud, indicando, portanto, que também entre a psicanálise e a sociologia as fronteiras desapareceram. A divisão capitalista do trabalho e a manipulação capitalista não seguem mais juntas a favor da ciência, como ocorria há cem anos, mas sim em contraposição ao desenvolvimento real da ciência. Evito propositalmente tocar em questões atuais, porém, sou da opinião de que este tipo de constatação ideológica não é uma coisa desprovida de sentido e que, aqui, nós precisamos nos opor à palavra de ordem da moda, ou seja, a desideologização, para que possamos compreender corretamente o papel da ideologia no desenvolvimento social.

Spiegel: O que você entende aqui por ideologia?

Lukács: Hoje virou hábito entender a ideologia como falsa consciência, em contraste com a consciência correta do neopositivismo, visto como uma ciência objetiva. E presume-se, então, que ela foi desideologizada. Agora, na Introdução à crítica da economia política, Marx forneceu uma descrição exata da ideologia. Ele disse que o desenvolvimento econômico, sobretudo a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, a todo momento nos colocam problemas. O meio pelo qual estes problemas se tornam conscientes e são enfrentados é a ideologia. Veja o senhor o século XVIII. Sem dúvida, existe na ideologia de Rousseau muita coisa de questionável em termos científicos. Mas é igualmente indiscutível que, se por acaso, a Revolução Francesa fosse liderada pelos materialistas girondinos, bons na sua maioria, aquela revolução agrária conduzida por Robespierre e Saint-Just pelas vias ideológicas falsas do rousseauísmo nunca teria ocorrido.

Spiegel: A libertação dos camponeses foi, de fato, apenas uma questão de ideologia jacobina?

Lukács: É óbvio que não. Objetivamente, o feudalismo havia se tornado insustentável e isso é um fato econômico. O pensamento humano corresponde sempre a algum tipo de necessidade econômica que fica pairando no ar. E a tarefa da consciência humana é justamente, a partir daí, formular uma questão. Mas, mesmo se, em última instância, a práxis humana depende imediatamente das respostas dadas a estas questões, disso não se segue que as questões e respostas antropológicas sejam o fator primário, pois primário é o processo de reprodução dos homens, os quais, desde que surgiu o trabalho, adaptam-se ativamente ao meio que os cerca.

Spiegel: Houve, entretanto, um desenvolvimento voraz e contínuo da técnica, que, por sua vez, produziu uma cadeia de novos carecimentos. Será que os teóricos marxistas, em geral, não examinaram o fenômeno da técnica de forma muito acrítica e predominantemente sob o enfoque da progressiva libertação do reino da necessidade?

Lukács: Bukharin defendeu a teoria de que o não-desenvolvimento do modo de produção antigo seria a causa da escravidão e que, portanto, a técnica é a verdadeira força produtiva. Eu me posicionei contra e disse que a escravidão era a causa do modo de produção não-desenvolvido. Hoje, no capitalismo, o trabalhador é, ao mesmo tempo, o consumidor, e nunca houve período algum da humanidade com aparelhos de barbear e minissaias tão perfeitas. Mas, se eu for medir o progresso dos últimos 50 anos pelo setor de habitação e pela problemática das favelas, vou ter de constatar que esse progresso foi muito menor do que no caso dos aparelhos de barbear.

Spiegel: Possivelmente, houve até um recuo.

Lukács: Possivelmente, sim. Em todo caso, recuso-me a julgar o desenvolvimento das forças produtivas simplesmente a partir dos aparelhos de barbear. Encontramos a contradição não apenas no setor de habitação, mas também no tráfego de automóveis, na poluição do ar e das águas, e isso a ponto de as grandes cidades já estarem se tornando imprestáveis. A problemática do capitalismo moderno é o que emerge ao primeiro plano. Por outro lado, é preciso ver que, dos começos do átomo até a economia americana atual, o mundo viveu um processo irreversível. O jovem Marx tinha toda razão em ver a história como a ciência fundamental. O que está, de fato, na base da história? A história é a interpretação e a compreensão de processos irreversíveis. Se a história retornasse sempre a um ponto de partida, então, não seria história. O s processos irreversíveis da natureza orgânica, por um feliz acaso, produziram a vida orgânica na terra. E hoje sabemos, com base em Darwin e seus antecessores, que, dos primeiros vestígios de vida na terra até o orangotango e o mamute, um processo irreversível foi consumado. E neste processo irreversível surgiu, por fim, o homem e a sociedade, de modo que podemos constatar completamente a observação do jovem Marx, segundo a qual o desenvolvimento do mundo não deve ser apreendido como um processo homogêneo, e sim como um grande processo irreversível.

Spiegel: Daí pode-se inferir que o desenvolvimento é sempre e necessariamente um avanço e que não há lugar para retrocessos?

Lukács: Evolução e retrocesso existem apenas sob um determinado ponto de vista. Se uma espécie de vida pode ou não vingar por meio de uma adaptação biológica, isso configura ou não um progresso apenas sob o ponto de vista desta espécie. Mas penso que o desenvolvimento global não tem nada que ver com isso: ele segue irreversivelmente, em última instância, de forma causal. Voltando ao homem: a adaptação biológica, que é uma adaptação passiva ao meio ambiente, é suplantada, com o trabalho humano, por uma adaptação ativa, que muda o meio ambiente. Há três momentos, descobertos pelo marxismo, que nos autorizam a falar de uma evolução sem nenhuma conotação ideológica. Primeiro: o dispêndio de trabalho físico para a reprodução do homem decresce; hoje um trabalhador produz 50 ou 100 vezes mais daquilo que seria necessário para a reprodução de sua vida física.

Spiegel: E com esforço cada vez menor.

Lukács: O segundo ponto é o que Marx chamou de recuo das barreiras naturais. Isso quer dizer que, por meio do trabalho, um ser originariamente biológico se converte em um ser humano; com isso, o fator biológico não desaparece, mas é transformado. Hoje, as pessoas podem assumir comportamentos tão selvagens quanto possível, mas nenhum dos estudantes rebeldes regredirá às formas de alimentação e sexualidade dos tempos primordiais. Quem preconiza uma sexualidade pura preconiza a sexualidade pura de 1970, e não a de qualquer era remota. Em outros termos, esse recuo das barreiras naturais que conhecemos é um tipo de progresso, um processo irreversível.

Spiegel: Na opinião do senhor, o que Engels chamou de amor sexual entre os indivíduos, e que viu como grande conquista civilizatória, não sofrerá mais nenhum recuo?

Lukács: Sim. O terceiro momento, finalmente, é o grande processo de integração. A humanidade existia originariamente em pequenas unidades e, a uma distância de 50 ou 100 quilômetros, uma unidade não sabia nada da outra. Apenas o capitalismo, com o mercado mundial, criou a base daquilo que hoje podemos denominar de humanidade. Hoje ela aparece de uma maneira puramente negativa.

Spiegel: Mas também existe uma cultura mundial

Lukács: Não pretendo me contrapor a isso. Em todo caso, não há dúvida de que se trata, objetivamente, de um processo de integração. Se eu tomo em consideração apenas estes três momentos destacados por Marx, já se pode ver que o processo civilizatório é um processo irreversível e que, neste quadro, mostra grandes progressos. Não devemos conceber o progresso num sentido vulgar, pois assim a bomba atômica também seria um progresso em relação aos canhões e estes, por sua vez, seriam progressos em relação ao arco e flecha, não obstante o fato de a bomba atômica ser em si mesma assustadoramente perigosa.

Spiegel: São, entretanto, desenvolvimentos sociais que visivelmente podem aniquilar este progresso objetivo.

Lukács: Com certeza. Veja, agora vou chamar a atenção para uma oposição que as pessoas nem sempre querem compreender: a oposição entre o modo de consideração causal e o teleológico. Afirmo com o marxismo que uma teleologia – portanto, uma determinação que parte sobretudo de uma finalidade – não existe nem na natureza inorgânica nem na orgânica, que teleologia – como Marx mostra com exatidão em O capital – surge apenas com o trabalho, porque o plano daquilo que tem de ser feito antecede a realização. Um leão destroça um antílope hoje como o fazia há dez mil anos. Mas um ferreiro há tempos não trabalha mais de forma tão imperfeita como nos primórdios.

Spiegel: No caso do artesão o senhor ainda pode falar assim. Mas o trabalhador comum, em geral, não conhece o produto final de sua atividade. Pode-se falar de um aprimoramento do processo de trabalho? Este trabalhador é praticamente um instrumento sem consciência.

Lukács: Estou me referindo ao processo de trabalho e não ao trabalhador. O processo de trabalho surge no momento em que o diretor da fábrica elabora o plano para uma máquina: um ato teleológico. Certamente, os homens – como disse Marx – fazem a história, mas não sob circunstâncias por eles escolhidas. Estas circunstâncias não-escolhidas são, em parte, o produto de seu próprio trabalho. Veja o senhor, quando os americanos descobriram a bomba atômica estavam convictos de poder assegurar uma superioridade militar duradoura para a América. Que daí surgisse o pacto atômico certamente era algo que não estava contido em seu ato teleológico. Quero deixar claro esse duplo sentido do desenvolvimento social; por um lado, tudo depende de atos teleológicos. Por outro lado, o processo irreversível do desenvolvimento global forma o contexto desses atos. Quem não percebe este duplo sentido do desenvolvimento humano só pode estabelecer uma relação entre necessidade e liberdade na velha forma falsa e totalmente abstrata. Dito de uma forma um tanto banal: para falar comigo o senhor precisou vir até o meu escritório aqui em Budapeste; a essa necessidade concreta correspondeu a sua liberdade, inclusive a liberdade de o senhor não falar comigo.

Spiegel: Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer mostraram como um determinado uso da razão, meramente positivista, poderia impelir os homens a criar situações que posteriormente se tornariam objetivamente insuportáveis.

Lukács: Não nego isso. Meu ceticismo em relação a Adorno e Horkheimer surge de um caso paralelo na filosofia alemã. De forma muito arguta, muito espirituosa, Schopenhauer reuniu tudo o que há de negativo na existência e a partir disso negou a história como história [efetiva]. Há situações, como o período anterior e posterior a 1848 na Alemanha, em que é impossível dizer aos intelectuais que se está vivendo uma situação ideal e que, por isso, é um dever afirmá-la. Mas pode-se explicar – e Schopenhauer equacionou essa questão de forma brilhante – que o mundo, de uma forma geral, é ruim e que não haveria nenhum sentido em transformá-lo. É assim que as pessoas, com base numa crítica que lança um desprezo mordaz contra o sistema, tornam-se, eles mesmos, partidários do sistema.

Spiegel: Mas aí é preciso defender Horkheimer e Adorno...

Lukács: Claro, veja bem, não pretendo comparar, em termos filosóficos, Horkheimer e Adorno com Schopenhauer. Digo apenas que existe aqui uma analogia geral, a saber: satisfazer as necessidades intelectuais da intelligentsia em relação à crítica das atuais condições sociais e, ao mesmo tempo, demonstrar que não há nenhuma saída desse processo de desenvolvimento.No meu livro A destruição da razão, falei do “grande hotel abismo”: mora-se num hotel sofisticado e o fato de haver um abismo em volta nada mais é que um picante ingrediente para ser acrescentado à comida e à dança. Agora, não estou dizendo que Adorno queria isso. O problema é que muitos estudantes de hoje tomaram conhecimento das vilanias da sociedade atual por meio de suas lições e escritos, só que, depois, quando eles saíram às ruas, Adorno encolheu os ombros e disse que Marquês de Sade é a conseqüência necessária da Revolução Francesa.

Spiegel: Por outro lado, porém, ele teve o mérito de encorajar, desse modo, a crítica das relações existentes...

Lukács: Concordo.

Spiegel: ...em vez de cair na ilusão de que se vivia, então, uma situação revolucionária, como muitos estudantes fizeram.

Lukács: O senhor falou certo: “muitos estudantes”. O marxismo nunca disse que naquele momento era possível fazer uma revolução.

Spiegel: Na sua opinião, quando o Ocidente conheceu, objetivamente, uma situação revolucionária?

Lukács: Confesso que não saberia responder a essa questão. Sem dúvida, são visíveis os sintomas de que o sistema começa a entrar em crise; mas, por enquanto, estamos apenas no começo de um abalo revolucionário. O senhor sabe que para Lenin o fator subjetivo nunca pairou no vazio, mas ao contrário: quando as classes dominantes não podem mais governar como antes e as classes oprimidas não querem mais viver como antes, aí surge uma situação revolucionária.

Spiegel: No caso do movimento dos estudantes, pode-se falar destas duas condições em termos muito limitados. Mas não seria justo dizer que é um erro querer simplesmente passar por cima da democracia e das relações capitalistas?

Lukács: Sim. Engels, num escrito genial, Crítica ao Programa de Erfurt, exortou o partido social-democrata a acabar com os restos da velha Alemanha. Ele denominou de ilusão acreditar que toda aquela porcaria pudesse ser removida do socialismo pura, piedosa, alegre e livremente, porquanto a Alemanha nunca tivesse passado por uma democracia burguesa. Penso que isso deve ser enunciado de forma aberta e brutal. Na França, houve o julgamento do capitão do estado-maior judeu Dreyfus. E do julgamento injusto irrompeu uma crise do estado que por anos convulsionou todo o país e pôs fim a toda uma época. Em Berlim, ao contrário – no meio de uma revolução – Liebknecht e (Rosa) Luxemburgo foram assassinados. No entanto, não se mostrou a menor vontade de sequer saber quem eram os assassinos; quiseram que eles assegurassem sua posição conceituada junto à opinião pública. Tem-se aí uma grande diferença no desenvolvimento da democracia burguesa, a qual precisa ser reparada.

Spiegel: O senhor diria que os estudantes se enganam quando, na atual república alemã, advogam por uma revolução social ou pelo socialismo? O senhor estaria sugerindo que eles, em primeiro lugar, se voltassem para uma democracia burguesa?

Lukács: Lenin sempre afirmou que não existe nenhuma muralha chinesa entre revolução burguesa e revolução operária. Também não é por acaso que, em 1917, a partir de reivindicações burguesas revolucionárias não-satisfeitas – a paz e a divisão de terras para os camponeses –, tenha surgido uma revolução socialista. Posso dizer com Engels que sem uma solução para essa questão não pode haver nenhuma libertação do povo alemão. Se o movimento dos estudantes ficará confinado à moldura da sociedade burguesa ou se haverá de rompê-la em maior ou menor medida – é óbvio que não compete a um cidadão como eu, residindo em Budapeste e acompanhando o desenvolvimento da Alemanha apenas pelos jornais, dar uma resposta a esta questão. Penso apenas que eles partem de um ponto de vista quimérico, que consiste em querer empreender o socialismo na Alemanha sem destruir essa tradição do desenvolvimento alemão.

Spiegel: Então o senhor considera a etapa atual da democracia burguesa na república alemã um elemento progressista, um pressuposto necessário para um desenvolvimento futuro do socialismo...

Lukács: ...se ela fosse uma etapa efetivamente democrática. Sem dúvida, se eu tivesse de escolher entre um Josef Strauss e um Willy Brandt, obviamente que eu ficaria com Brandt. No entanto, pelo menos desde que a social-democracia votou pela lei de emergência, passei a desconfiar de sua competência para implementar uma democracia conseqüente na Alemanha burguesa. E mesmo o Spiegel, por quem tenho uma certa simpatia, não vai tão longe quanto foram Jaurès, Zola ou Anatole France no caso Dreyfus – mas eu não posso, do meu gabinete de trabalho em Budapeste, dar nenhum conselho aos políticos alemães.

Spiegel: Senhor Lukács, como o senhor avalia seu papel pessoal em meio à crise que assola os campos socialista e capitalista?

Lukács: Vejo de forma positiva que, hoje, tanto a solução stalinista quanto o American way of life estejam objetivamente em crise. Em 1945, opinava-se no Ocidente que o marxismo, como ideologia do século XIX, havia ruído e se transformado num mero documento histórico. E, nos países socialistas, acreditava-se que, com a reforma stalinista, havia-se encontrado a forma definitiva do marxismo. Hoje sabemos que os fatos refutaram a ambos. Eu mesmo, desde 1930, não sou mais um ativista político e tento agora, como ideólogo, trazer à tona aquilo que constitui o essencial no marxismo. Com isso, quero contribuir para o conhecimento de como efetuar, em campos diversos e sob formas diversas, uma transformação política real.

Spiegel: O senhor está trabalhando em algum livro novo?

Lukács: Escrevo uma Ontologia do ser social – a primeira desde Marx. Um trabalho assim, por sua limitação, parece estar em contradição com o desenvolvimento do movimento dos trabalhadores. Pois este se tornou influente com pessoas como Marx, que foi, ao mesmo tempo, um grande ideólogo e um grande político. A ele seguiram-se Engels e Lenin, que também reuniram as duas coisas. Isso não é, porém, uma lei histórica necessária. Stalin, por exemplo, que foi um bom organizador e um tático habilidoso, nunca entendeu nada de ideologia e foi, por isso, apenas um administrador. E dizer que os vários primeiros-secretários que aqui tiveram lugar – Rákosi na Hungria, por exemplo – tinham alguma competência para questões ideológicas é simplesmente risível.

Spiegel: Sem dúvida, a guerra contra Hitler exigia um talento muito mais tático que ideológico.

Lukács: Os dois grandes movimentos de inflexão de nosso período – se Hitler ou o American way of life seria o senhor do mundo – foram interditados pelo socialismo tel quel, pelo socialismo de cunho stalinista. Por meio do Pacto de Molotov, Hitler tornou possível a Guerra Mundial – e com isso as forças do Ocidente se viram pressionadas a se voltar contra ele. Sem o acordo da bomba atômica, os Estados Unidos nunca teriam permitido que a União Soviética fizesse o transporte de armas para o Norte do Vietnã – e sem esse transporte de armas os vietcongs teriam sido maltratados por muito tempo. Apesar disso, do ponto de vista ideológico, hoje estamos todos, de certa forma, vis-à-vis de rien. Por isso, o renascimento do marxismo deve fornecer uma base ideológica para os políticos, pois, tão pouco quanto o próprio Marx, considero ser sempre o acaso que decide quem, num determinado momento, subirá ao topo do movimento dos trabalhadores.

Spiegel: Senhor Lukács, agradecemos por esta conversa.

Entrevista à revista Der Spiegel, tradução de Rainer Patriota para a Verinotio – Revista on-line de educação e ciências humanas, n. 9, Ano V, nov. 2008 (fonte)