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Jacques Barzun (2002)


Veja – O que o leva a pensar que a cultura ocidental está em decadência?
Barzun – A palavra decadência expressa uma perda de energia. Transmite a idéia de que as chaves mestras da cultura já não têm o poder de abrir novas portas, de inspirar avanços. No lugar das possibilidades há repetição, estagnação e tédio. Há sinais de sobra de que isso está acontecendo no Ocidente. As confissões de mal-estar são contínuas, o repúdio e a deturpação das instituições são uma constante. Tomemos o Estado-Nação, por exemplo. Ele foi uma das maiores invenções de nossa era. Mas está se desfazendo em toda parte, porque a idéia de pluralismo político, sobre a qual se assentava, foi substituída pela idéia de separatismo. Mais e mais os homens querem unir-se em grupos pequenos de pensamento homogêneo, que formem unidades políticas separadas. A região dos Bálcãs, claro, é o exemplo clássico. Mas o processo pode ser observado em qualquer lugar, da Catalunha à Escócia, que há pouco instituiu um Parlamento independente do Parlamento inglês. Outro indício está na busca de tantos ocidentais por seitas e religiões que vêm do Oriente e trabalham idéias como a do nirvana ou a do "não-ser". Isso não é um sinal de entusiasmo com a nossa cultura.

Veja – E no campo das artes? 
Barzun – O esgotamento é ainda mais patente. Observe a agitação frenética, os esforços desesperados para criar novidades. Os rótulos se sucedem – da "antiarte" à "arte encontrada", à "arte descartável" e assim por diante. As belas idéias surgidas na Renascença, e com as quais lidamos por 500 anos, tiveram seu prazo de validade vencido. Tome uma obra escrita no auge da Renascença, o Pantagruel, do francês Rabelais, e um livro escrito no auge do modernismo, o Ulisses, do irlandês James Joyce. Joyce tomou muitos temas e procedimentos lingüísticos emprestados de Rabelais. Ambos expõem recantos sórdidos da sociedade, ambos exploram vigorosamente a carnalidade humana. Mas, enquanto a literatura do francês nos deixa estimulados e eufóricos, a de Joyce é depressiva. Basta ler os dois livros para perceber as diferenças de ânimo entre uma cultura em sua aurora e uma cultura em desencanto.

Veja – O senhor parece ter uma opinião ambígua sobre a arte moderna. Reconhece a força de certos artistas, mas lamenta de maneira geral o espírito com que fizeram suas obras. 
Barzun – Nos primórdios, o modernismo foi uma batalha para livrar o artista de padrões ancestrais de educação e liberá-lo para desenvolver uma visão individual do mundo. Mas tudo que os artistas viram foi um mundo injusto, materialista, desprezível. Desde os anos 20, pelo menos, a arte ocidental tem sido de destruição deliberada da sua própria tradição e de hostilidade contra a sociedade, de maneira geral. O trabalho de destruição das pontes com o passado acontece até mesmo onde o repertório utilizado é antigo. Veja o caso das produções teatrais. Hoje ninguém mais encena Shakespeare. Encenam falsificações que nem sequer se preocupam em entender as intenções originais do artista.

Veja – O senhor criou um rótulo para o momento presente. Diz que vivemos em "tempos demóticos". O que quer dizer com isso?
Barzun – Fiz isso em nome do bom uso das palavras. As pessoas costumam referir-se a práticas "democráticas" não apenas no campo político, mas também no das artes e do comportamento. Eu preferiria manter a palavra democracia para designar apenas um sistema político – que, diga-se de passagem, não atingimos de maneira plena em lugar nenhum. Para designar coisas relativas a modo e estilo de vida – roupas, comidas, formas de expressão –, tomei emprestada do grego uma palavra de mesma raiz, "demótico", que significa simplesmente "do povo". A primeira moda demótica surgiu logo depois da Revolução Francesa, quando os calções da aristocracia foram abandonados em favor da calça do trabalhador. Hoje, não é preciso dizer, a calça jeans de vaqueiro tornou-se universal – com suas variantes desbotadas, rasgadas e mal-ajambradas. Mas a vestimenta é apenas o sinal mais óbvio do estilo demótico, que está em seu auge e é marcado pela displicência e pela crença de que nada deve interferir na realização de todo e qualquer desejo.

Veja – Nas últimas décadas, vários países que viviam sob regimes ditatoriais entraram em processo de democratização. Bens circulam pelo globo e a medicina ajuda a salvar vidas em países pobres. Esses eventos são regidos por idéias e técnicas surgidas no Ocidente. Não seriam um sinal de que a cultura ocidental ainda tem algo a oferecer? 
Barzun – É como eu disse no começo da entrevista: o termo decadência expressa uma perda de energia, não um estado de ruína total. Ainda há idéias ocidentais capazes de inspirar e servir de guia para países jovens. E não há dúvida de que a ciência e a tecnologia do Ocidente continuarão a produzir avanços e benesses. É uma ressalva, aliás, que faço em meu livro: a ciência não passa pelo processo de declínio observado em outras áreas. Mas isso não invalida o diagnóstico geral. Digamos que o estado da alma ocidental não é feliz. Não encontramos ninguém dizendo a frase de Erasmo no começo da Renascença, e que os franceses repetiram depois da Revolução de 1789: "Que tempo maravilhoso para se viver!".

Veja – Supondo que o senhor esteja certo, o que vem depois da decadência? 
Barzun – Ninguém sabe – e esse é o fato positivo. Meu livro procura descrever um estado presente, e não fazer profecias. Certos germes sempre podem se desenvolver numa cultura e causar uma fermentação que a leve a caminhos imprevistos. Foi o que aconteceu no fim do século XV, quando a descoberta do Novo Mundo balançou a Europa e abriu possibilidades antes inimagináveis.

Veja – Existe alguma época em que o senhor gostaria de ter vivido? 
Barzun – No século XIX, a partir de 1830. Foi um tempo de grande inventividade em toda a Europa. A era se autonomeou Era do Progresso, e com razão. Foi um tempo de luta contra os resquícios da monarquia e do velho sistema de classes. Havia um sentimento de conquista, energia e desenvolvimento no ar. O ambiente mais adequado ao espírito humano.

Veja – Sua vida atravessa o século XX quase inteiro. Sua vivência pessoal influiu de alguma forma em sua visão de historiador? 
Barzun – Sim, é claro. Eu nasci e passei os primeiros anos de vida na França, onde meu pai e minha mãe eram amigos e colaboradores da nova geração de artistas que surgia. Os pintores cubistas freqüentavam nossa casa, assim como muitos escritores, do romancista André Gide ao poeta Apollinaire, sobre cujos joelhos eu aprendi a ler as horas num relógio. Eu compartilhei da atmosfera de alegria e excitação criativa que envolvia essas pessoas. Olhando em retrospecto, sinto-me uma testemunha e digo como historiador que aquele foi um dos grandes períodos criativos de nossa cultura. Então veio a I Guerra Mundial, que estilhaçou de maneira brutal a idéia que todos fazíamos do que fosse a civilização. Quando entrei na adolescência, depois de atravessar quatro anos de conflitos, tinha desenvolvido um quadro de depressão profunda que me levou a tentar o suicídio. Esse fato, aliado à dizimação dos quadros de professores universitários da França e da Inglaterra, foi a causa de minha mudança para os Estados Unidos, onde completei os estudos. Minha sensação de viver num mundo em declínio não é recente, portanto. Nos anos 50, cheguei a ter a impressão de que nos encaminhávamos para uma reviravolta positiva, mas foi um engano de minha parte. Esse intervalo não durou quase nada. A trajetória descendente se acentuou no fim dos anos 60.

Veja – Esse período de decadência descrito pelo senhor coincide com a expansão da influência da cultura americana pelo globo. Como cidadão de duas culturas, a francesa e a americana, o senhor deplora o que se convencionou chamar de americanização da cultura? 
Barzun – Acho tolice culpar os Estados Unidos. Diria, antes, que o país está na vanguarda de seu tempo. Se esse tempo é de decadência, os efeitos se sentem primeiro aqui. Não há nada que obrigue países de sólida tradição cultural, como a França ou a Inglaterra, a imitar modas criadas pelos americanos. Mas eles o fazem, o que mostra que certas correntes de comportamento são inerentes à nossa época. Onde está escrito, por exemplo, que é imperativo "democratizar" a educação ao estilo dos Estados Unidos? No sentido que a palavra assumiu, ela não significa tornar a educação acessível a todos, mas simplesmente baixar sua qualidade, de modo a tornar possível que todo mundo deslize pelos anos de escola sem esforço. Vejo por isso com muito ceticismo e ironia certos discursos feitos na França, por exemplo, que falam em proteger a língua e a cultura nacionais. O que as últimas décadas fizeram à língua francesa realmente me deixa um pouco irritado. Palavras inglesas são adotadas de maneira indiscriminada, às vezes mesmo na presença de equivalentes perfeitamente utilizáveis. Essa adoção ignorante, sem nenhuma forma de filtragem e adaptação, é uma força destrutiva da cultura. Só que agora me parece um pouco tarde para reclamar.

Veja – A América Latina praticamente não é citada em seu livro. Não há contribuições do subcontinente à cultura ocidental? 
Barzun – As sociedades latino-americanas são extensões da civilização européia. Politicamente, não contribuíram com nenhuma idéia original para o Ocidente. No campo das artes, é possível destacar nomes e movimentos importantes – mas não a ponto de ter mudado os rumos da cultura. O argentino Jorge Luis Borges, por exemplo, é um escritor que admiro imensamente. Mas não o cito de maneira específica no livro, porque se trata de uma estrela em uma vasta constelação. Em outras palavras, ele pertence ao universo da arte modernista tardia que discuto no livro. Citei outros nomes, de igual peso, em vez do dele.

Veja – Seu livro traz várias pequenas biografias de personagens da cultura ocidental. Algumas escolhas são óbvias, como as de Martinho Lutero e René Descartes. Outras podem ser consideradas excêntricas, como a da escritora de romances policiais Dorothy Sayers. Quais critérios o guiaram na escolha de nomes? 
Barzun – Ao mencionar Dorothy Sayers, Walter Bagehot ou James Agate, para ficar apenas em alguns ingleses, não estou apenas dando espaço a preferências pessoais. Estou tentando indicar nomes cuja influência ainda não foi devidamente reconhecida. Bagehot, por exemplo, foi um dos pensadores mais originais do século XIX. Dirigiu a revista inglesa The Economist por dezessete anos e deixou doze volumes de comentários extremamente lúcidos sobre a política e a economia de seu tempo. Agate ajudou a formar o gosto artístico de seus compatriotas no começo do século XX – além de ter sido autor de um diário que ocupa nove tomos, cobre um período de quinze anos e é um retrato sem igual da Inglaterra do seu tempo. Sayers, finalmente, é uma das grandes teóricas dessa importante forma de ficção popular, o romance policial. É também uma pensadora original no campo da religião. As pessoas deveriam conhecer esses nomes, e algo sobre o que disseram.

Veja – Em contraste, o senhor dedica muito pouco espaço a figuras consideradas fundamentais: Darwin, Marx e Freud. Por quê? 
Barzun – Creio que, ao fazer isso, estou em sintonia com o estado atual da reputação dessas pessoas. Em todo o mundo, o pensamento marxista está em refluxo. Marx sofreu uma perda enorme de influência como teórico político. Alguns de seus textos filosóficos ainda são valorizados – mas sobretudo aqueles escritos na juventude, antes de O Capital. A retração na influência de Freud também é visível. Seu legado está sob ataque e nem de longe se fala tanto nele quanto na primeira metade do século XX. O caso de Darwin talvez seja o mais polêmico. Creio, no entanto, que a importância dada a ele está em descompasso com suas conquistas reais. A idéia da evolução das espécies já circulava 100 anos antes dele. O que Darwin fez foi propor um mecanismo para a evolução, a célebre idéia da seleção natural. Ora, se esse mecanismo realmente funciona como ele descreveu, é algo que os biólogos discutem acaloradamente hoje em dia. Anos atrás, um biólogo do Instituto Pasteur, na França, me disse que ninguém mais lá dentro aceitava ser chamado de darwinista. Não quero dizer com isso que devemos retornar ao criacionismo, à idéia de que as espécies foram criadas por Deus da forma como são hoje. Quero dizer apenas que o desenvolvimento da ciência tem postona como ele descreveu, é algo que os biólogos discutem acaloradamente hoje em dia. Anos atrás, um biólogo do Instituto Pasteur, na França, me disse que ninguém mais lá dentro aceitava ser chamado de darwinista. Não quero dizer com isso que devemos retornar ao criacionismo, à idéia de que as espécies foram criadas por Deus da forma como são hoje. Quero dizer apenas que o desenvolvimento da ciência tem posto em questão vários postulados da cartilha darwinista, algo que passa despercebido por quem não está enfronhado nas discussões.

Veja – Se tivesse de escolher dois nomes representativos dos períodos de auge e declínio da civilização ocidental, quais seriam eles?
Barzun – No que se refere ao auge, eu hesitaria entre Shakespeare e Montaigne. Poderíamos dizer que ambos inventaram o indivíduo, por oposição ao tipo social. Hoje em dia, não somos apenas cidadãos ou trabalhadores, mas também indivíduos aos nossos próprios olhos, graças a esses dois escritores. Um deles é poeta e dramaturgo inglês, o outro prosador analítico francês: ambos inventaram modos de expressar a personalidade. O nascimento do indivíduo e do individualismo foi fundamental, porque encorajou a invenção nas artes, fomentou a diversidade e a diferença. Além disso, foi germe para que, na política, surgissem idéias como a de direitos humanos. No outro extremo, o do declínio, eu indicaria Pablo Picasso e Marcel Duchamp – cuja família, por sinal, era muito próxima da minha. A despeito da grandeza de ambos, eles formam um incomparável par de destruidores. Em Duchamp, sobretudo, é possível ver a imaginação trabalhando deliberadamente em favor da quebra, da paródia inclemente. Duchamp é um nome paradigmático. Está na origem da escola que impera atualmente, quando não existe diferença entre uma obra de arte e o produto que você encontra no armazém da esquina.

Veja – O que o futuro reserva aos clássicos? 
Barzun – Os clássicos parecem estar afundando rapidamente no esquecimento. Mas isso já aconteceu antes. A Renascença trouxe de volta obras da Antiguidade que estavam completamente perdidas. Não há motivo para um pessimismo terminal. É preciso persistir no ensino dos clássicos. Não é fácil, já que uma quantidade básica de informação histórica se faz necessária, para que as obras não sejam vistas fora da perspectiva adequada e completamente distorcidas. Mas os benefícios são óbvios. Ler os clássicos é um maravilhoso exercício de raciocínio e imaginação.


Entrevista de Carlos Graieb para a revista Veja (Edição 1746 de 10 de abril de 2002) (fonte)