A &Etc funciona numa cave, esta cave onde conversamos agora, rodeados de livros, e que a morada torna ainda mais enigmática, ao chamar-lhe subterrâneo 3. Será que este é, literalmente, um espaço para a literatura underground?
Enquanto rótulo, não. Não é. Podemos obviamente extrair uma quantidade de conotações simbólicas do facto de estarmos instalados num subterrâneo – ainda por cima o 3, número mágico. Mas o que aconteceu com a descoberta deste espaço foi aquilo que eu poderia chamar uma teoria dos acasos. Que quer dizer mais ou menos o seguinte: o acaso nunca acontece por acaso. Talvez por isso, viemos parar aqui, ao sítio certo. Para nós, que nunca pretendemos qualquer tipo de visibilidade ou mediatismo, é evidente que um espaço desta natureza, colocado onde ele está, corresponde perfeitamente ao nosso gosto e à nossa maneira de ser.
Ao espaço do subterrâneo pode associar-se também uma certa ideia de subversão: fazer as coisas pela calada, na sombra, de forma clandestina, um pouco contra o que se passa cá fora, à superfície.
A verdade é que não houve determinação da nossa parte, porque nesse caso íamos também cair no rótulo. Era um rótulo ao contrário, mas ainda um rótulo. Aconteceu assim porque somos assim. Não foi preciso refugiarmo-nos neste subterrâneo e fazer disso uma bandeira.
E o espírito com que estão aqui, hoje, é o mesmo que vos animava quando fundaram a editora, nos finais de 1974?
Exactissimamente o mesmo.
Como é que se trabalha nesta editora? Quais são as regras de funcionamento?
É melhor irmos pela ausência de regras. Como é que funciona? Vamos lá ver: às vezes não funciona.
Mas, ao fim de 26 anos, este espaço mantém-se e continuam a sair livros…
Sim, o espaço existe, a renda paga-se, os livros fazem-se. No entanto, se virmos a coisa em termos do que é uma actividade regular – industrial, comercial, etc, etc –, ah bom, então digo-lhe que nesse aspecto não funciona. Vai funcionando. Há livros quando pode haver, não há livros quando não pode haver. Trabalhamos quando nos apetece; quando não nos apetece, não trabalhamos. Não há programa. Se me perguntar agora que livros é que vou fazer em Maio, Junho ou Julho, não sei responder. Não faço a mínima ideia. Só sei uma coisa: hão-de sair livros. Isso sei. Agora, que livros e exactamente quando? Logo se verá.
E se não aparecerem livros que o entusiasmem?
Não há problema nenhum. Ficamos à espera. Normalmente o que obriga as editoras a publicarem de forma contínua são encargos, responsabilidades, dívidas, empréstimos, por aí fora. É o mercado que obriga. É o mercado que puxa. É o mercado o motor. Aqui não é o mercado o motor. Nem pensar. O motor é a nossa vontade e disponibilidade, ou a ausência delas.
É possível subsistir assim?
A prática prova-o. É claro que temos de levar em linha de conta a minúscula dimensão da editora. É mesmo minúscula: não tem encargos, não tem pessoal. Deve ser concerteza das mais pequenas editoras do mundo. E é a nossa própria pequenez que nos livra dessa escravidão do mercado. Se não sair, não sai. Assim como assim, tudo parece indicar que é muito maior a oferta de livros do que a procura. E é óbvio que o tipo de obras que nós publicamos não se destinam a públicos alargados. São livros para uma minoria das minorias das minorias. Por vezes entra aqui alguém que diz: «Ah, lá comprei aquele livro do não sei quantos que tu publicaste». E eu respondo sempre: «Ah, foste tu!?»
Isso não o inquieta?
Nada.
Quer dizer que escolheram ficar fora do sistema? Foi essa a vossa opção?
Foi uma opção e é uma aptidão.
Mas como é que dois ou três «saudáveis malucos» podem pretender ficar do lado de fora e resistir tanto tempo, coisa que algumas das editoras que estão dentro do sistema não conseguiram?
Está a falar de economia?
Em última análise, sim.
Como está a falar de economia, não lhe sei responder em economês. Porque nós recusamos toda e qualquer forma de subordinação aos ditames da economia. Quando faço um livro, faço-o porque gosto dele, mais nada. Haja leitores ou não haja. Depois, se se vender, óptimo, porreiro, posso fazer mais. Se não se vender, não me arrependo nada de o ter feito. Na pior das hipóteses, olhe, em vez de fazer outro logo a seguir, espero mais algum tempo. Não nos vergamos, não senhor, a essa nova ditadura que invade tudo, que esmaga tudo.
Se, por absurdo, só fosse possível vender 50 exemplares de uma obra…
Sim senhor, se eu achasse que valia a pena… (Toca o telefone. Pára o gravador. Três minutos de conversa, a despachar). Sabe quem era?
Quem?
O João César Monteiro. Ligou-me para dizer que recebeu ainda agora um livro em que o João de Deus, seu «alter ego», aparece como personagem. Um livrinho publicado por uma pequena editora francesa, numa tiragem de 303 exemplares. Portanto, como vê, à escala global nem sequer estou sozinho.
À escala de França, até diria que essa editora consegue ser ainda mais pequena que a &Etc.
Pois é.
O não estar sozinho, como disse ainda agora, traz-lhe alguma espécie de conforto?
Sim. E é preciso acentuar o seguinte: a &Etc não é, nem deseja ser, uma editora profissional. Aqui nós somos amadores, no sentido primeiro da palavra.
No sentido em que amam os livros.
Exactamente. Somos amadores. A parte profissional é entendida do ponto de vista meramente técnico. Ou seja, sabemos trabalhar o lado material dos livros, mas o espírito com que as coisas são feitas, o espírito com que estamos dentro disto, é um espírito amador. Fazemos isto por gozo. Embora o gozo tenha a outra face da moeda. Passamos por muitos tormentos e angústias, porque a debilidade económica faz com que o nosso trabalho esteja permanentemente em risco. Sei que, a curtíssimo prazo, posso ter que fechar a porta. Mas admiti isso desde a primeira hora e a verdade é que já temos quase 30 anos disto.
Uma das características do mercado é que nunca vê com bons olhos gestos de rebeldia como o vosso.
Eu também não vejo com bons olhos o mercado, pá. E amor com amor se paga!
É um ódio mútuo?
Não lhe chamarei ódio, não é preciso chegar a tanto. Ou se calhar é. Se estivermos a falar do mercado como sistema, e até como ideologia, então sim, ponha aí a palavra ódio. Há uma recusa tão compulsiva que pode tomar as características do ódio.
A hipotética falência da & Etc não lhe tira o sono?
Repare numa coisa: mesmo se vendesse todos os livros de cada edição, nunca teria lucros. À partida, os livros estão condenados a dar prejuízo. Mas atenção, é um prejuízo calculado. Quer que lhe dê um exemplo, com números? Lá vamos nós falar economês. Supunhamos que esta casa chega ao fim do ano e tem um prejuízo de 1200 contos. Dividido por 12, dá 100 contos por mês. Bom, somos aqui uns tantos, podemos sempre repartir os gastos. Não era uma pena fecharmos a porta por tão pouco? Esse dinheiro não podia ser gastos numas quantas noitadas nas Docas, hum? Então pronto, em vez de gastarmos 100 contos nesses alegres vícios, gastamos os mesmos 100 contos neste outro alegre vício, nesta nossa amante. Porque a &Etc é uma amante.
Das exigentes?
Das exigentes, é verdade. Daquelas que puxam por muita lágrima.
Já lhe deu alguns desgostos?
Muitos, muitos. Tantos. Há sempre uma ilusão e sempre uma grande tristeza, quando sabemos que fizemos uma coisa bela e a vemos entrar no mais absoluto dos silêncios. Isso custa muito. Mas já lá dizia o Camões: aquilo que não nos mata, torna-nos mais fortes.
Não teme ser visto como um D. Quixote, alguém que luta contra gigantes mesmo quando já se percebeu que não passam de moinhos?
Bom, eu não entendo o D. Quixote como um tonto.
Nem era isso que eu queria dizer.
Eu sei, mas não me importo de aplicar a mim mesmo o termo de idiota. E há aí uma componente que em parte justifica esta maneira de estar e de ser. A verdade é que eu li desde bastante cedo, li muito e à maluca, li tudo o que me vinha parar à mão. E mercê dessas leituras, de miúdo e depois de adolescente, criou-se em mim um idealismo fortíssimo. Andando a pé ou de eléctrico, exactamente como hoje, eu levava sempre comigo livrinhos e romances que me emocionavam e me faziam olhar para a cidade como se ela estivesse dentro de uma ficção, uma aprazível ficção. Por um lado tinha que enfrentar a dureza da vida – aos 13 anos já era paquete de um escritório –, mas por outro lado refugiava-me nesses outros universos imaginários.
Tal e qual como D. Quixote, que também se refugiava nos livros…
Exacto. O que acontece é que as pessoas, quando têm de entrar na chamada idade adulta, com responsabilidades, mulher, filhos, essas coisas todas, deixam esses idealismos escondidos algures, como o Mário Soares deixou o socialismo dele na gaveta. Nesse aspecto, posso afirmar que não cresci. Não me vejo como um adulto cheio de responsabilidades. Posso até dizer que o meu trabalho é de uma muito alegre irresponsabilidade. Além do mais, pude garantir com isto um estatuto económico muito idêntico àquele que tinha quando nasci e cresci. Nasci pobre, muito pobre. E hoje continuo a ser pobre.
Provavelmente nunca quis ser rico.
Nunca quis, nem pensar nisso. Nunca tive tal apetência. Não senhor. São parcas as minhas necessidades e estou couraçado contra vícios aos quais sei que jamais poderei chegar.
Uma dessas parcas necessidades é viver com livros à volta, não é?
Sim, isso sim. E não apenas os livros. Longe disso. Olhe, eu também faço a minha comida e gosto muito de ir comprar os carapaus e de arranjá-los, fritá-los, isso tudo. E viver com as pessoas de que gosto, com as pessoas que amo. E conversar. E se não me apetecer pôr aqui o pé, nem ponho. Esta casa não me obriga a nada, nem a mim nem a ninguém. É outra coisa espantosa: da porta para dentro, aqui vive-se em liberdade. E desta porta para fora, não.
Essa falta de liberdade de que forma é que o atinge?
Angustia-me. Não esqueça que tenho 63 anos e que comecei a ser lúcido, politicamente, a partir dos meus 17, 18 anos. Portanto, pude sofrer com a situação da ditadura política que tínhamos em Portugal. A sensação que eu tenho hoje, é de que se saiu dessa ditadura, política e policial, para uma outra ditadura. E como ditadura que é, ela oprime multidões e multidões e multidões, que até podem não dar por isso.
Porque existe uma ilusão de liberdade, é isso?
Existe uma ilusão de liberdade, chama-se-lhe democracia como um processo formal, mas as pessoas continuam obviamente oprimidas. Se é evidente que se garantiram uma quantidade de liberdades, ao mesmo tempo criaram-se novas formas, ainda mais complexas, de escravização das sociedades. No que é fundamental, acho que não se têm dado tantos passos como isso no sentido da libertação do homem.
Olhando para o seu caso, eu diria que há uma espécie de teimosia, uma persistente recusa de baixar os braços…
Talvez tenha alguma teimosia. Mas vejamos: acho que nunca tive a pretensão de mudar o mundo. Não quero é que o mundo, o mundo de que eu não gosto, me mude a mim. Ai isso não deixo. A haver teimosia, é só esta.
Por que é que a &Etc nunca tentou obter apoios financeiros do Estado? Foi para não ficar refém?
Olhe, foi por vergonha e por orgulho. Teria vergonha de estender a mão. E tenho orgulho em não o fazer.
Como é o relacionamento com os autores que vai publicando?
O que é que acha?
Eu consigo imaginar, mas preferia que me dissesse.
São relações de enorme companheirismo, que às vezes evoluem para amizades que valem uma vida. Amizades fortíssimas, tão fortes como certas paixões. Firmes, sólidas, à prova de bala.
E que tipo de contacto é que mantém com as outras editoras portuguesas?
É um contacto muito esporádico. Conheço alguns editores e às vezes cruzo-me com eles, embora não faça vida social. Não tenho nada contra as editoras comerciais. Eu próprio, muitos anos antes de ter entrado nesta aventura, já estive à frente de uma casa editora prestigiada e bem implantada no mercado.
A Ulisseia.
Exacto. Era uma editora que funcionava nos moldes tradicionais. Eu, ao ir para lá, é que não sei se funcionava nos moldes tradicionais, mas isso é outra história. Fui para lá com o mesmo espírito com que estou aqui. Para fazer só aquilo que me dava na gana. E foi o que fiz…
Permitiram-lhe assim tanta liberdade?
Permitiram, sim senhor. Gozei de toda a liberdade para fazer o que muito bem entendia. Olhe, a liberdade era tanta que tive a PIDE sempre à perna…
Quanto tempo durou essa passagem pela Ulisseia?
Não sei ao certo, tenho fraca memória para datas, mas admito que entre dois e três anos.
E qual foi a razão para sair?
Saí porque estava muito tempo sentado, tinha gravata e para publicar os livros nem precisava de os ler. Quer dizer, o sistema estava a rodar por si mesmo e eu já não estava lá a fazer nada.
Na & Etc, pelos vistos ao contrário do que se passava na Ulisseia, não há programação nem um calendário para as obras a publicar. Como é que faz a escolha? É caso a caso?
É caso a caso. E acaso a acaso. A porta está aberta a esses acasos. Nós lemos sempre todos os manuscritos. E quando gosto de um determinado livro, atiro-me imediatamente de cabeça, avanço logo de olhos fechados. Muitas vezes, ainda nem sequer conheço o autor. Ou melhor, passei a conhecê-lo a partir daquilo que está escrito. É uma coisa que acontece com bastante frequência.
Disse que nasceu num meio pobre. Mais propriamente no bairro da Madragoa…
Exacto. Sou lisboeta da Madragoa, onde ainda vivo.
E como é que o lisboeta da Madragoa olha para a sua cidade?
É uma relação de amor-ódio. Amo muito a minha cidade, sobretudo os bairros populares. E, vá lá, também a zona da Lisboa romântica: Chiado, Bairro Alto. O resto, para mim, já é estrangeiro.
Consegue imaginar-se a viver fora de Lisboa?
Não, não me concebo fora dela nem longe das suas gentes, das suas pessoas. Nada me tira a minha bicazinha, de manhã, na pequena leitaria da Rua da Esperança. Agora, à força de amar tanto esta minha cidade, é evidente que sofro tremendamente com ela, nomeadamente com os atentados a que tem sido submetida, quase sempre em nome de falsas noções de modernidade e do bimbismo dos decisores.
Inclui o projectado elevador para o Castelo de S. Jorge no rol desses atentados?
Claro que sim. É inconcebível. Como é que isto pôde passar pela cabeça de alguém? Porque isto teve que nascer nalguma cabeça, não é?
Sim. Nasceu numa cabeça mas depois passou por outras…
Pois, nasceu numa e depois alastrou, já se vê, um mal nunca vem só. É inconcebível. Como é possível que em plena baixa pombalina se vá erguer aquela torre de betão, com uma passerelle, que nos vai roubar a vista das muralhas do castelo? E o que acontecerá às pessoas que agora podem contemplar, das suas janelas, toda a baixa e o convento do Carmo na outra colina? Vão ficar emparedadas por aquela porcaria, é o que é.
Que outros atentados o têm chocado?
Histórias destas são às montanhas, são umas atrás das outras. Veja o bimbismo nacional da roda gigante: só porque Paris e Londres também têm, então punha-se aquela porcaria ali ao alto do Parque Eduardo VII, a dar cabo do jardim do Ribeiro Teles e tornando o monumento-pilinha do Cutileiro ainda mais pequenino, por causa da escala. E há mais: entra na cabeça de alguém que o largo do Chiado tenha ido para o maneta por causa da bocarra do metropolitano? A lista é interminável, infelizmente. E eu fico a ferver com estas coisas. Anda para aqui um desvario qualquer.
No seu discurso existe sempre, de forma latente ou explícita, um impulso de rebeldia…
Sim, sim, mas atenção, só assumo essa rebeldia se acrescentar que é uma rebeldia com causa.
Muito bem. E quando é que essa rebeldia com causa começou a manifestar-se na sua vida?
Quando li os primeiros livros do Alves Redol, do Maximo Gorki, do Zola. Com eles, comecei a ter consciência de um mundo cruel e injusto, feito de poderosos e de miseráveis. Nascia assim um movimento de rebeldia para o qual não podia dar vazão. O meu pai era marítimo e, como andava sempre em viagem, gostava de ler e comprava indistintamente as «Selecções do Reader’s Digest» e romances dos autores que estavam em voga na altura: Blasco Ibañez, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro. Eu, lá em casa, mal comecei a gostar de ler, devorei essa literatura toda.
Era mais parecido com o seu pai ou com a sua mãe?
Era uma mistura de ambos. A minha mãe era uma espécie de Ana Magnani, uma magnífica fera, de uma frontalidade a toda a prova, sem qualquer verniz ou diplomacia. O meu pai era um ser muito mais interiorizado, mais reflexivo, mais diplomata. A minha natureza mais profunda vem mais da minha mãe, até porque eu vivi sempre num universo de mulheres.
O que é que ela fazia?
Tinha um trabalho medonho, de carga e descarga de peixe e de carvão. Também trabalhou na fábrica de anchovas, no outro lado do rio. De modo que eu ficava em tudo quanto era casa de vizinhas e sobretudo com a minha avó, mãe dela, que praticamente me criou. Mas a extrema miséria, miséria mesmo, em que eu nasci e cresci, nunca a senti enquanto miúdo. Era muito protegido por ser magrinho, na altura as crianças morriam como tordos e aquelas que não morriam – a mim aconteceu-me não morrer – eram extremamente acarinhadas. Eu vivia na rua, a brincar com os outros putos do bairro, e lembro-me da dificuldade tremenda que tive em calçar os primeiros sapatos.
E essa avó protectora, que imagem guarda dela?
Essa minha avó era uma maravilha de mulher, não houve nada que ela não fizesse e eu acompanhava-a sempre. Desde empalhar cadeiras até lavar roupa no lavadouro municipal da Travessa do Pasteleiro, passando pelo fado, cantado pelas tabernas com um irmão. Às cantorias noite dentro não me levava, claro, mas cheguei a assistir a cegadas. E participei, ao colo dela e de umas tias, nas marchas populares. Ainda hoje, quando a Madragoa ganha, eu rejubilo. Estou à janela, olho para baixo, está a marcha a passar e lá fico todo contente.
Não renega, portanto, o seu passado.
Pelo contrário, tenho muito orgulho. Ao fim e ao cabo, e depois de tantos anos no meio artístico, sei de ciência certa que onde encontro mais carácter, solidariedade e bondade humana é entre a gente pobre do meu bairro. Isto apesar da invasão dos bárbaros. E chamo bárbaros àquela gentalha, normalmente com popó, que entra no bairro para frequentar os bares e as discotecas. Este bairro que tinha má fama – de gente agressiva, muito putedo, artistas e outras coisas que tais – era, meu deus, um autêntico eden comparado com o que se passa agora. Esses novos bárbaros partem tudo, instalam a violência onde ela não havia e até reacenderam os conflitos raciais.
Embora seja um lisboeta dos sete costados, houve uma época em que viveu em África, mais propriamente em Angola. Como é que foi lá parar?
É uma longa história. Olhe, passados aí uns seis ou sete meses do meu primeiro casamento, vejo-me metido no porão de um navio, ao lado de ciganagem, tipo Tarzan a caminho das Áfricas. Isto foi em finais dos anos 50, à volta de 1959. Eu ia lá ter com um amigo que comprara uma máquina Paillard, de 16 mm. Eu queria fazer filmes e também, se possível, formar um pequeno grupo de teatro itinerante. A aposta principal era nos documentários, no cinema de levantamento antropológico. Acontece que levava pouco dinheiro e mesmo esse foi roubado no barco. Ou seja, chego a Luanda sem conhecer ninguém e sem um tostão no bolso.
Não tinha combinado encontrar-se com um amigo?
Tinha. Mas esse amigo, que era suposto estar à minha espera em Luanda, falhou, não estava. Passei logo ali um primeiro susto, porque ele era de Benguela e aquilo é um país enorme, a distância de Luanda a Benguela é como daqui a Paris. Mas lá acabei por chegar.
E os projectos que levava na cabeça, sempre se concretizaram?
Não. Em pouco tempo, os sonhos desfizeram-se. Por exemplo, a máquina Paillard estava lá mas não havia película. Depois, o tal amigo acabou por morrer, foi dos primeiros portugueses a morrer no norte de Angola, ainda a guerra mal começara. Aliás, ou morreu ou suicidou-se. Parece que se suicidou, não aguentava ser militar.
O que é que decidiu fazer, nessa altura?
Fiquei para ali transplantado, longe de tudo. Entretanto o casamento foi à vida, já se sabe, e eu peguei no que havia, porque precisava de comer. Foi assim que, durante dois ou três meses, o meu trabalho consistiu em dactilografar o cadastro de tudo o que era carro entrado na colónia desde mil novecentos e troca o passo. Por ordem alfabética, AB-59-63, AC-24-72, etc, etc, etc. E lá estive eu a fazer aquela porcaria, com uma temperatura média de quarenta e tal graus centígrados e pelo menos 90% de humidade. Era o chamado «cemitério dos brancos».
As actividades culturais ficaram entre parênteses?
Não, não. Paralelamente, lá fui animar o cineclube local e comecei a escrever, à borla, no jornal de esquerda do sítio, que se chamava «O Intransigente». Às tantas, um camarada lá da repartição vai de férias, ou transferem-no, e é aí que durante alguns meses vou ocupar o lugar dele como examinador das cartas de condução. Logo eu, que não tenho carta nem nunca soube guiar!
Devia ser complicado.
Nem por isso. É que a maior parte dos candidatos que apareciam eram gajos com aqueles camiões enormes que levavam peixe seco para o interior, gajos que quando nasceram já sabiam conduzir. Esses tipos estavam automaticamente passados e íamos depois comemorar para o restaurante, comendo uns baldes de camarão, bebendo umas cervejolas, etc. Era uma festa.
Presumo que a festa não durou muito…
Claro que não durou muito. Estava eu descansadinho a fazer esta vida quando vem o engenheiro da repartição e diz que finalmente me ia tirar dali, para me colocar noutra sala qualquer. Percebi logo tudo e saí porta fora, sem dizer boa tarde. A não ser aos colegas, claro, para os quais me virei dizendo: «Até já, a gente encontra-se ali na esplanada». Ou seja, nunca mais voltei a pôr lá os pés.
Tinha para onde ir?
Não, não tinha. Durante uns quatro ou cinco dias fui para a praia, deitava-me, comia uns caranguejos e pensava: agora vou morrer aqui. Não morri. Voltei a não morrer. Ao sexto dia, o director do tal jornal onde eu já escrevia à borla, velho republicano maçon, convidou-me: «Oh Vitorzinho, gostava muito que viesses trabalhar comigo mas o jornal é pobre, só te posso pagar cinco contos». Eu nem hesitei. Pedi-lhe logo que me indicasse onde ficava a minha secretária. E assim fui parar à vida de jornalista.
Em que circunstâncias se deu o regresso a Portugal?
Bom, é preciso ver que eu chego a Angola em 1959. As eleições presidenciais tinham sido em 58, sendo que em Benguela, e também no Lobito, o Humberto Delgado ganhara nas urnas, oficialmente. Quer isto dizer que havia um grupo de activistas políticos muito forte. Às duas por três, vejo-me enfronhado até à raiz dos cabelos na política local. Por causa disso, sofro dissabores e mais dissabores que culminam naquilo que poderia apelidar de rico pontapé no cu cá do vosso amigo. Certamente para evitar males maiores, chutaram-me para dentro de um navio, recambiado para a metrópole.
Foi difícil, o reencontro com a «pátria»?
Foi, muito. Quando chego ao meu país, tenho uma grande dificuldade de adaptação. Mas vinha com uma convicção, uma só, inabalável: nunca mais, na puta da vida, vou fazer aquilo que não quero e aquilo de que não gosto; nunca mais, na puta da vida, vou ter um patrão. Se para isso tiver que morrer depois de amanhã, não me importo: conheço já a cor e o cheiro da morte. Sim, conheço já a cor e o cheiro da morte. (pausa longa) Esta convicção inabalável permaneceu – e permanece – inabalável.
Estávamos portanto em Lisboa, no princípio dos anos 60. Qual era o seu ganha-pão? Escrevia para os jornais...
Sim senhor, começo a escrever nos jornais e não só. Colaborava na Flama, do Rolo Duarte, com críticas de cinema. Escrevia contos para o Diário Popular, crónicas à borla para o República e até textos para a Crónica Feminina – a troco de ir comer umas bifanas e um caldinho do dia aos Irmãos Unidos, ali na Praça da Figueira. Era um pardal, andava por todo o lado.
É então que surge a oportunidade de trabalhar na Ulisseia?
Sim. É aí que funciona a tal teoria dos acasos. De um momento para o outro, deixo uma situação de vagabundagem e passo a dirigir uma editora como a Ulisseia. Mero acaso. Comecei então a fazer o gosto ao dedo, publicando quem eu gostava. Tenho muito orgulho de ter publicado o Mário Cesariny de Vasconcellos, o Herberto Helder, o Alexandre O’ Neill, o Pacheco e por aí fora. Mais tarde, saí pelas circunstâncias que já lhe disse, numa altura em que até ganhava bastante bem.
E então surge o suplemento & Etc?
Exacto. É aí que começa a nascer o primeiro & Etc. Porque o primeiro &Etc foi um magazine de artes, letras e espectáculos do Jornal do Fundão. O que é que se tinha passado? Aquando da atribuição do Prémio Camilo Castelo Branco ao Luandino Vieira, a PIDE prendeu os membros do júri, além de ter destruído a sede da Associação Portuguesa de Escritores. Ora bem, um dos membros do júri era o Alexandre Pinheiro Torres, que paralelamente era o responsável pelo suplemento cultural do Jornal do Fundão. Depois do escândalo, é óbvio que o Pinheiro Torres fez publicar, no dito jornal, o que muito bem entendeu sobre o assunto. Foi o suficiente para a censura mandar fechar aquilo tudo durante seis meses. E é então que o António Paulouro e o José Cardoso Pires pensam em retomar um suplemento de cultura, assim que a censura permitisse a reabertura do jornal. O Cardoso Pires falou comigo e começou a nascer a ideia de um suplemento com outro espírito, um magazine mais abrangente onde podia caber tudo: um filme (no primeiro número foi o Pierrot, le Fou, do Godard), um fadista (o Alfredo Marceneiro, por exemplo) ou um bar que tivesse acabado de abrir (na altura, foi o Snob). Era um outro conceito de cultura. E naquele suplemento, chamado &Etc, já estava presente muito do espírito do que veio a ser, mais tarde, esta casa.
Pode dizer-se que o suplemento foi uma aventura relativamente efémera?
Depende. Eu não sei as datas precisas do início e fim da publicação, sei apenas que durou 25 números (o que não é tão pouco como isso) e que morreu de morte macaca. De 15 em 15 dias, eu ia para o Fundão fazer o suplemento. Metia-me na auto-motora da Covilhã, inverno ou verão, e lá fazia o caminho. Lembro-me que por vezes chegava muito tarde, duas ou três horas da manhã, já com as instalações fechadas, e o Paulouro deixava-me uma porta da oficina aberta para eu entrar. Depois, no gabinete dele, dentro de um cestinho, estava sempre um bife com ovo a cavalo ou coisa parecida, para eu matar a fome. Na manhã seguinte, começava a compor o jornal na tipografia.
E a tal morte macaca, como é que se deu?
Ora bem, um dia o suplemento foi à censura de Castelo Branco e quando o contínuo voltou trazia as oito páginas do suplemento cortadas. Além disso, tinha havido umas fricções causadas pela acusação de que atacávamos os escritores de esquerda. Pudera, dos de direita nem sequer falávamos! Agora, com os de esquerda éramos exigentes, lá isso éramos. A associação das duas coisas ‑ por um lado a censura, por outro as tais fricções – precipitou a morte do projecto. Disse ao Paulouro que é preciso saber pôr pontos finais, mas acrescentei: «eu seja cão se não for para Lisboa fazer um escabeche do caraças na censura, para que se salve alguma coisa e então que este seja o último &Etc». Foi.
Logo a seguir, passa a coordenar o suplemento literário do Diário de Lisboa.
Sim. Pouco depois, o Cardoso Pires convida-me para o DL e como ele foi ocupar um lugar de leitor de português numa universidade inglesa, deixou-me aquele filho nos braços. É na passada desse trabalho que nasce a ideia, minha e de mais 15 pessoas, de fazer então uma revista cultural autónoma, também chamada &Etc, e que foi a mãe, digamos assim, da editora. Era aquilo a que nós chamávamos «folheca cultural q.b.». A revista durou o que durou, com uma periodicidade muito irregular: saía quando saía. Ou seja, quase nunca saía.
Voltando um pouco atrás. Nunca escondeu a sua admiração por Almada Negreiros, a quem dedicou um belíssimo texto na revista «Ler». É verdade que chegou a trabalhar com ele?
Com ele e com o dr. Fernando Amado.
Em que circunstâncias?
No teatrinho da Casa da Comédia, que era uma antiga carvoaria. Começámos com uma adaptação do Regresso ao Paraíso, de Teixeira de Pascoaes, encenado pelo dr. Fernando Amado, sendo eu o cenógrafo, figurinista, carpinteiro, mulher-a-dias, isso tudo. O dr. Fernando Amado era um grande amigo do Almada Negreiros. É então que nasce a ideia de se levar pela primeira vez à cena o Deseja-se Mulher, do Almada. Foi uma aventura extraordinária. Vou dar-lhe um exemplo. Eu era o cenógrafo e figurinista. E aquela peça tinha tudo: sereias, anjos, pombas, essas coisas. Com pouco orçamento, quase nenhum, tínhamos que improvisar. Se não há dinheiro para tule, compra-se rede de pescador, ali no Cais do Sodré. Já se sabe, a dificuldade aguça o engenho. Ora bem, um dos meus problema era como fazer os anjos. O Almada não queria daqueles anjinhos com asas, das procissões. Queria estar sentado em frente ao palco, ver uma coisa a passar da esquerda para a direita e perceber logo que aquilo só podia ser um anjo. Eu andava às voltas com o problema quando um dia vejo, ali para os lados do Conde Barão, um homenzinho a vender cabides. Olhei para os cabides e vi logo que eram anjos. Porquê? Com cartolina faz-se uma cabeça, pega-se em papel cortadinho à tesoura, mais uns bocadinhos de prata e lantejoulas e já temos vestido. Depois, desenham-se asas enormes feitas de cartolina, aplica-se no cabide e já está. O actor só tinha que se agachar dentro do vestido de papel e atravessar o palco a correr. Tudo aquilo abanava e brilhava, era uma visão feérica. Isto é só para lhe dar uma ideia do clima em que decorreu todo o erguer daquele espectáculo. Com um Almada e um Fernando Amado hiper-excitados, muitas vezes zangados, trocando diálogos interessantíssimos entre eles. O Almada a berrar: «oh, Fernando, tu desculpa mas não percebes nada disto». E o Fernando Amado a responder: «oh, Zé, tu é que não percebes nada daquilo que escreveste». Foi um momento triunfal. O espírito da Casa da Comédia era, também ele, um espírito maravilhosamente amador. Com uma exigência ética e estética total. Uma pureza absoluta.
E, parece-me, com uma atenção enorme ao lado humano…
Evidentemente que sim. Com toda a gama de alegrias, de emoções, de medos, de angústias. Era uma actividade totalmente humana, é evidente que sim. Sentíamos muito o lado sagrado do teatro, da representação, do verbo, da palavra, do corpo do actor.
Almada era considerado um artista de vanguarda. Que importância é que poderiam ter as vanguardas, hoje?
O problema é que as manifestações artísticas que passam por vanguardistas também estão sujeitas a uma lógica do espectáculo que lhes retira a independência e o voluntarismo, sem os quais não entendo que possa haver verdadeira vanguarda. Existem certos movimentos espontâneos que querem romper com cânones, tradições, etc, mas em breve são absorvidos pelo próprio sistema e entram na lógica do sistema. Então passam por vanguardas mas não o são. Chamemos-lhes vanguardas virtuais.
Acha que ainda há espaço para uma ruptura?
Eu queria é que houvesse uma ruptura com a subordinação da própria arte à ditadura económica. Que houvesse uma ruptura sobretudo aqui. Depois logo se veria o que é que iria dar, que forma iria assumir.
Quer dizer que, apesar das ressacas todas, das desilusões, das esperanças perdidas, ainda faz sentido acreditar em algo a que possamos chamar revolução?
Tudo o que possa contribuir para a ideia de revolução é útil. Mas por revolução não estou tanto a pensar num sistema social, mas muito mais numa revolução do espírito e, já agora, do espírito de cada qual. Porque revoluções sem revolucionários, já vimos no que deram.
Também há revolucionários sem revolução. É o seu caso?
Só me posso considerar revolucionário por comparação com aqueles que não o são de todo. O mais natural é não revolucionar coisa nenhuma. No entanto, percebi desde as minhas primeiras indignações que a luta contra a injustiça é uma progressão revolucionária. Não sei é se através do meu trabalho eu consigo ver estendida aos demais esta pulsão, este desejo. Não me imagino enquadrado em partidos políticos, mas apelo, isso sim, para a transformação da mentalidade do homem, no sentido em que o leve a fazer da sua vida aquilo que entende que deve fazer. E a recuperar toda a sua dignidade de homem, a sua palavra de homem. De homem livre.
Aquela convicção inabalável que assumiu no regresso a Portugal, vindo de Angola, vai continuar a ser cumprida?
Não faço retrospectivas nem penso demasiado no futuro, mas acho que tenho sido coerente com esses propósitos iniciais. As sinuosidades da minha vida não têm impedido essa coerência de base. Posso mesmo afirmar que não me tenho traído. Não traí o puto que fui, o puto que dentro do eléctrico lia Dostoievski e Zola. Não, nunca traí esse miúdo.
Entrevista de José Mário Silva publicada no suplemento DNA, do Diário de Notícias, a 24 de Fevereiro de 2001 (fonte)
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