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Jacques Barzun (2002)


Veja – O que o leva a pensar que a cultura ocidental está em decadência?
Barzun – A palavra decadência expressa uma perda de energia. Transmite a idéia de que as chaves mestras da cultura já não têm o poder de abrir novas portas, de inspirar avanços. No lugar das possibilidades há repetição, estagnação e tédio. Há sinais de sobra de que isso está acontecendo no Ocidente. As confissões de mal-estar são contínuas, o repúdio e a deturpação das instituições são uma constante. Tomemos o Estado-Nação, por exemplo. Ele foi uma das maiores invenções de nossa era. Mas está se desfazendo em toda parte, porque a idéia de pluralismo político, sobre a qual se assentava, foi substituída pela idéia de separatismo. Mais e mais os homens querem unir-se em grupos pequenos de pensamento homogêneo, que formem unidades políticas separadas. A região dos Bálcãs, claro, é o exemplo clássico. Mas o processo pode ser observado em qualquer lugar, da Catalunha à Escócia, que há pouco instituiu um Parlamento independente do Parlamento inglês. Outro indício está na busca de tantos ocidentais por seitas e religiões que vêm do Oriente e trabalham idéias como a do nirvana ou a do "não-ser". Isso não é um sinal de entusiasmo com a nossa cultura.

Veja – E no campo das artes? 
Barzun – O esgotamento é ainda mais patente. Observe a agitação frenética, os esforços desesperados para criar novidades. Os rótulos se sucedem – da "antiarte" à "arte encontrada", à "arte descartável" e assim por diante. As belas idéias surgidas na Renascença, e com as quais lidamos por 500 anos, tiveram seu prazo de validade vencido. Tome uma obra escrita no auge da Renascença, o Pantagruel, do francês Rabelais, e um livro escrito no auge do modernismo, o Ulisses, do irlandês James Joyce. Joyce tomou muitos temas e procedimentos lingüísticos emprestados de Rabelais. Ambos expõem recantos sórdidos da sociedade, ambos exploram vigorosamente a carnalidade humana. Mas, enquanto a literatura do francês nos deixa estimulados e eufóricos, a de Joyce é depressiva. Basta ler os dois livros para perceber as diferenças de ânimo entre uma cultura em sua aurora e uma cultura em desencanto.

Veja – O senhor parece ter uma opinião ambígua sobre a arte moderna. Reconhece a força de certos artistas, mas lamenta de maneira geral o espírito com que fizeram suas obras. 
Barzun – Nos primórdios, o modernismo foi uma batalha para livrar o artista de padrões ancestrais de educação e liberá-lo para desenvolver uma visão individual do mundo. Mas tudo que os artistas viram foi um mundo injusto, materialista, desprezível. Desde os anos 20, pelo menos, a arte ocidental tem sido de destruição deliberada da sua própria tradição e de hostilidade contra a sociedade, de maneira geral. O trabalho de destruição das pontes com o passado acontece até mesmo onde o repertório utilizado é antigo. Veja o caso das produções teatrais. Hoje ninguém mais encena Shakespeare. Encenam falsificações que nem sequer se preocupam em entender as intenções originais do artista.

Veja – O senhor criou um rótulo para o momento presente. Diz que vivemos em "tempos demóticos". O que quer dizer com isso?
Barzun – Fiz isso em nome do bom uso das palavras. As pessoas costumam referir-se a práticas "democráticas" não apenas no campo político, mas também no das artes e do comportamento. Eu preferiria manter a palavra democracia para designar apenas um sistema político – que, diga-se de passagem, não atingimos de maneira plena em lugar nenhum. Para designar coisas relativas a modo e estilo de vida – roupas, comidas, formas de expressão –, tomei emprestada do grego uma palavra de mesma raiz, "demótico", que significa simplesmente "do povo". A primeira moda demótica surgiu logo depois da Revolução Francesa, quando os calções da aristocracia foram abandonados em favor da calça do trabalhador. Hoje, não é preciso dizer, a calça jeans de vaqueiro tornou-se universal – com suas variantes desbotadas, rasgadas e mal-ajambradas. Mas a vestimenta é apenas o sinal mais óbvio do estilo demótico, que está em seu auge e é marcado pela displicência e pela crença de que nada deve interferir na realização de todo e qualquer desejo.

Veja – Nas últimas décadas, vários países que viviam sob regimes ditatoriais entraram em processo de democratização. Bens circulam pelo globo e a medicina ajuda a salvar vidas em países pobres. Esses eventos são regidos por idéias e técnicas surgidas no Ocidente. Não seriam um sinal de que a cultura ocidental ainda tem algo a oferecer? 
Barzun – É como eu disse no começo da entrevista: o termo decadência expressa uma perda de energia, não um estado de ruína total. Ainda há idéias ocidentais capazes de inspirar e servir de guia para países jovens. E não há dúvida de que a ciência e a tecnologia do Ocidente continuarão a produzir avanços e benesses. É uma ressalva, aliás, que faço em meu livro: a ciência não passa pelo processo de declínio observado em outras áreas. Mas isso não invalida o diagnóstico geral. Digamos que o estado da alma ocidental não é feliz. Não encontramos ninguém dizendo a frase de Erasmo no começo da Renascença, e que os franceses repetiram depois da Revolução de 1789: "Que tempo maravilhoso para se viver!".

Veja – Supondo que o senhor esteja certo, o que vem depois da decadência? 
Barzun – Ninguém sabe – e esse é o fato positivo. Meu livro procura descrever um estado presente, e não fazer profecias. Certos germes sempre podem se desenvolver numa cultura e causar uma fermentação que a leve a caminhos imprevistos. Foi o que aconteceu no fim do século XV, quando a descoberta do Novo Mundo balançou a Europa e abriu possibilidades antes inimagináveis.

Veja – Existe alguma época em que o senhor gostaria de ter vivido? 
Barzun – No século XIX, a partir de 1830. Foi um tempo de grande inventividade em toda a Europa. A era se autonomeou Era do Progresso, e com razão. Foi um tempo de luta contra os resquícios da monarquia e do velho sistema de classes. Havia um sentimento de conquista, energia e desenvolvimento no ar. O ambiente mais adequado ao espírito humano.

Veja – Sua vida atravessa o século XX quase inteiro. Sua vivência pessoal influiu de alguma forma em sua visão de historiador? 
Barzun – Sim, é claro. Eu nasci e passei os primeiros anos de vida na França, onde meu pai e minha mãe eram amigos e colaboradores da nova geração de artistas que surgia. Os pintores cubistas freqüentavam nossa casa, assim como muitos escritores, do romancista André Gide ao poeta Apollinaire, sobre cujos joelhos eu aprendi a ler as horas num relógio. Eu compartilhei da atmosfera de alegria e excitação criativa que envolvia essas pessoas. Olhando em retrospecto, sinto-me uma testemunha e digo como historiador que aquele foi um dos grandes períodos criativos de nossa cultura. Então veio a I Guerra Mundial, que estilhaçou de maneira brutal a idéia que todos fazíamos do que fosse a civilização. Quando entrei na adolescência, depois de atravessar quatro anos de conflitos, tinha desenvolvido um quadro de depressão profunda que me levou a tentar o suicídio. Esse fato, aliado à dizimação dos quadros de professores universitários da França e da Inglaterra, foi a causa de minha mudança para os Estados Unidos, onde completei os estudos. Minha sensação de viver num mundo em declínio não é recente, portanto. Nos anos 50, cheguei a ter a impressão de que nos encaminhávamos para uma reviravolta positiva, mas foi um engano de minha parte. Esse intervalo não durou quase nada. A trajetória descendente se acentuou no fim dos anos 60.

Veja – Esse período de decadência descrito pelo senhor coincide com a expansão da influência da cultura americana pelo globo. Como cidadão de duas culturas, a francesa e a americana, o senhor deplora o que se convencionou chamar de americanização da cultura? 
Barzun – Acho tolice culpar os Estados Unidos. Diria, antes, que o país está na vanguarda de seu tempo. Se esse tempo é de decadência, os efeitos se sentem primeiro aqui. Não há nada que obrigue países de sólida tradição cultural, como a França ou a Inglaterra, a imitar modas criadas pelos americanos. Mas eles o fazem, o que mostra que certas correntes de comportamento são inerentes à nossa época. Onde está escrito, por exemplo, que é imperativo "democratizar" a educação ao estilo dos Estados Unidos? No sentido que a palavra assumiu, ela não significa tornar a educação acessível a todos, mas simplesmente baixar sua qualidade, de modo a tornar possível que todo mundo deslize pelos anos de escola sem esforço. Vejo por isso com muito ceticismo e ironia certos discursos feitos na França, por exemplo, que falam em proteger a língua e a cultura nacionais. O que as últimas décadas fizeram à língua francesa realmente me deixa um pouco irritado. Palavras inglesas são adotadas de maneira indiscriminada, às vezes mesmo na presença de equivalentes perfeitamente utilizáveis. Essa adoção ignorante, sem nenhuma forma de filtragem e adaptação, é uma força destrutiva da cultura. Só que agora me parece um pouco tarde para reclamar.

Veja – A América Latina praticamente não é citada em seu livro. Não há contribuições do subcontinente à cultura ocidental? 
Barzun – As sociedades latino-americanas são extensões da civilização européia. Politicamente, não contribuíram com nenhuma idéia original para o Ocidente. No campo das artes, é possível destacar nomes e movimentos importantes – mas não a ponto de ter mudado os rumos da cultura. O argentino Jorge Luis Borges, por exemplo, é um escritor que admiro imensamente. Mas não o cito de maneira específica no livro, porque se trata de uma estrela em uma vasta constelação. Em outras palavras, ele pertence ao universo da arte modernista tardia que discuto no livro. Citei outros nomes, de igual peso, em vez do dele.

Veja – Seu livro traz várias pequenas biografias de personagens da cultura ocidental. Algumas escolhas são óbvias, como as de Martinho Lutero e René Descartes. Outras podem ser consideradas excêntricas, como a da escritora de romances policiais Dorothy Sayers. Quais critérios o guiaram na escolha de nomes? 
Barzun – Ao mencionar Dorothy Sayers, Walter Bagehot ou James Agate, para ficar apenas em alguns ingleses, não estou apenas dando espaço a preferências pessoais. Estou tentando indicar nomes cuja influência ainda não foi devidamente reconhecida. Bagehot, por exemplo, foi um dos pensadores mais originais do século XIX. Dirigiu a revista inglesa The Economist por dezessete anos e deixou doze volumes de comentários extremamente lúcidos sobre a política e a economia de seu tempo. Agate ajudou a formar o gosto artístico de seus compatriotas no começo do século XX – além de ter sido autor de um diário que ocupa nove tomos, cobre um período de quinze anos e é um retrato sem igual da Inglaterra do seu tempo. Sayers, finalmente, é uma das grandes teóricas dessa importante forma de ficção popular, o romance policial. É também uma pensadora original no campo da religião. As pessoas deveriam conhecer esses nomes, e algo sobre o que disseram.

Veja – Em contraste, o senhor dedica muito pouco espaço a figuras consideradas fundamentais: Darwin, Marx e Freud. Por quê? 
Barzun – Creio que, ao fazer isso, estou em sintonia com o estado atual da reputação dessas pessoas. Em todo o mundo, o pensamento marxista está em refluxo. Marx sofreu uma perda enorme de influência como teórico político. Alguns de seus textos filosóficos ainda são valorizados – mas sobretudo aqueles escritos na juventude, antes de O Capital. A retração na influência de Freud também é visível. Seu legado está sob ataque e nem de longe se fala tanto nele quanto na primeira metade do século XX. O caso de Darwin talvez seja o mais polêmico. Creio, no entanto, que a importância dada a ele está em descompasso com suas conquistas reais. A idéia da evolução das espécies já circulava 100 anos antes dele. O que Darwin fez foi propor um mecanismo para a evolução, a célebre idéia da seleção natural. Ora, se esse mecanismo realmente funciona como ele descreveu, é algo que os biólogos discutem acaloradamente hoje em dia. Anos atrás, um biólogo do Instituto Pasteur, na França, me disse que ninguém mais lá dentro aceitava ser chamado de darwinista. Não quero dizer com isso que devemos retornar ao criacionismo, à idéia de que as espécies foram criadas por Deus da forma como são hoje. Quero dizer apenas que o desenvolvimento da ciência tem postona como ele descreveu, é algo que os biólogos discutem acaloradamente hoje em dia. Anos atrás, um biólogo do Instituto Pasteur, na França, me disse que ninguém mais lá dentro aceitava ser chamado de darwinista. Não quero dizer com isso que devemos retornar ao criacionismo, à idéia de que as espécies foram criadas por Deus da forma como são hoje. Quero dizer apenas que o desenvolvimento da ciência tem posto em questão vários postulados da cartilha darwinista, algo que passa despercebido por quem não está enfronhado nas discussões.

Veja – Se tivesse de escolher dois nomes representativos dos períodos de auge e declínio da civilização ocidental, quais seriam eles?
Barzun – No que se refere ao auge, eu hesitaria entre Shakespeare e Montaigne. Poderíamos dizer que ambos inventaram o indivíduo, por oposição ao tipo social. Hoje em dia, não somos apenas cidadãos ou trabalhadores, mas também indivíduos aos nossos próprios olhos, graças a esses dois escritores. Um deles é poeta e dramaturgo inglês, o outro prosador analítico francês: ambos inventaram modos de expressar a personalidade. O nascimento do indivíduo e do individualismo foi fundamental, porque encorajou a invenção nas artes, fomentou a diversidade e a diferença. Além disso, foi germe para que, na política, surgissem idéias como a de direitos humanos. No outro extremo, o do declínio, eu indicaria Pablo Picasso e Marcel Duchamp – cuja família, por sinal, era muito próxima da minha. A despeito da grandeza de ambos, eles formam um incomparável par de destruidores. Em Duchamp, sobretudo, é possível ver a imaginação trabalhando deliberadamente em favor da quebra, da paródia inclemente. Duchamp é um nome paradigmático. Está na origem da escola que impera atualmente, quando não existe diferença entre uma obra de arte e o produto que você encontra no armazém da esquina.

Veja – O que o futuro reserva aos clássicos? 
Barzun – Os clássicos parecem estar afundando rapidamente no esquecimento. Mas isso já aconteceu antes. A Renascença trouxe de volta obras da Antiguidade que estavam completamente perdidas. Não há motivo para um pessimismo terminal. É preciso persistir no ensino dos clássicos. Não é fácil, já que uma quantidade básica de informação histórica se faz necessária, para que as obras não sejam vistas fora da perspectiva adequada e completamente distorcidas. Mas os benefícios são óbvios. Ler os clássicos é um maravilhoso exercício de raciocínio e imaginação.


Entrevista de Carlos Graieb para a revista Veja (Edição 1746 de 10 de abril de 2002) (fonte)


Vítor Silva Tavares (2001)

A &Etc funciona numa cave, esta cave onde conversamos agora, rodeados de livros, e que a morada torna ainda mais enigmática, ao chamar-lhe subterrâneo 3. Será que este é, literalmente, um espaço para a literatura underground?

Enquanto rótulo, não. Não é. Podemos obviamente extrair uma quantidade de conotações simbólicas do facto de estarmos instalados num subterrâneo – ainda por cima o 3, número mágico. Mas o que aconteceu com a descoberta deste espaço foi aquilo que eu poderia chamar uma teoria dos acasos. Que quer dizer mais ou menos o seguinte: o acaso nunca acontece por acaso. Talvez por isso, viemos parar aqui, ao sítio certo. Para nós, que nunca pretendemos qualquer tipo de visibilidade ou mediatismo, é evidente que um espaço desta natureza, colocado onde ele está, corresponde perfeitamente ao nosso gosto e à nossa maneira de ser.

Ao espaço do subterrâneo pode associar-se também uma certa ideia de subversão: fazer as coisas pela calada, na sombra, de forma clandestina, um pouco contra o que se passa cá fora, à superfície.

A verdade é que não houve determinação da nossa parte, porque nesse caso íamos também cair no rótulo. Era um rótulo ao contrário, mas ainda um rótulo. Aconteceu assim porque somos assim. Não foi preciso refugiarmo-nos neste subterrâneo e fazer disso uma bandeira.

E o espírito com que estão aqui, hoje, é o mesmo que vos animava quando fundaram a editora, nos finais de 1974?

Exactissimamente o mesmo.

Como é que se trabalha nesta editora? Quais são as regras de funcionamento?

É melhor irmos pela ausência de regras. Como é que funciona? Vamos lá ver: às vezes não funciona.

Mas, ao fim de 26 anos, este espaço mantém-se e continuam a sair livros…

Sim, o espaço existe, a renda paga-se, os livros fazem-se. No entanto, se virmos a coisa em termos do que é uma actividade regular – industrial, comercial, etc, etc –, ah bom, então digo-lhe que nesse aspecto não funciona. Vai funcionando. Há livros quando pode haver, não há livros quando não pode haver. Trabalhamos quando nos apetece; quando não nos apetece, não trabalhamos. Não há programa. Se me perguntar agora que livros é que vou fazer em Maio, Junho ou Julho, não sei responder. Não faço a mínima ideia. Só sei uma coisa: hão-de sair livros. Isso sei. Agora, que livros e exactamente quando? Logo se verá.

E se não aparecerem livros que o entusiasmem?

Não há problema nenhum. Ficamos à espera. Normalmente o que obriga as editoras a publicarem de forma contínua são encargos, responsabilidades, dívidas, empréstimos, por aí fora. É o mercado que obriga. É o mercado que puxa. É o mercado o motor. Aqui não é o mercado o motor. Nem pensar. O motor é a nossa vontade e disponibilidade, ou a ausência delas.

É possível subsistir assim?

A prática prova-o. É claro que temos de levar em linha de conta a minúscula dimensão da editora. É mesmo minúscula: não tem encargos, não tem pessoal. Deve ser concerteza das mais pequenas editoras do mundo. E é a nossa própria pequenez que nos livra dessa escravidão do mercado. Se não sair, não sai. Assim como assim, tudo parece indicar que é muito maior a oferta de livros do que a procura. E é óbvio que o tipo de obras que nós publicamos não se destinam a públicos alargados. São livros para uma minoria das minorias das minorias. Por vezes entra aqui alguém que diz: «Ah, lá comprei aquele livro do não sei quantos que tu publicaste». E eu respondo sempre: «Ah, foste tu!?»

Isso não o inquieta?

Nada.

Quer dizer que escolheram ficar fora do sistema? Foi essa a vossa opção?

Foi uma opção e é uma aptidão.

Mas como é que dois ou três «saudáveis malucos» podem pretender ficar do lado de fora e resistir tanto tempo, coisa que algumas das editoras que estão dentro do sistema não conseguiram?

Está a falar de economia?

Em última análise, sim.

Como está a falar de economia, não lhe sei responder em economês. Porque nós recusamos toda e qualquer forma de subordinação aos ditames da economia. Quando faço um livro, faço-o porque gosto dele, mais nada. Haja leitores ou não haja. Depois, se se vender, óptimo, porreiro, posso fazer mais. Se não se vender, não me arrependo nada de o ter feito. Na pior das hipóteses, olhe, em vez de fazer outro logo a seguir, espero mais algum tempo. Não nos vergamos, não senhor, a essa nova ditadura que invade tudo, que esmaga tudo.

Se, por absurdo, só fosse possível vender 50 exemplares de uma obra…

Sim senhor, se eu achasse que valia a pena… (Toca o telefone. Pára o gravador. Três minutos de conversa, a despachar). Sabe quem era?

Quem?

O João César Monteiro. Ligou-me para dizer que recebeu ainda agora um livro em que o João de Deus, seu «alter ego», aparece como personagem. Um livrinho publicado por uma pequena editora francesa, numa tiragem de 303 exemplares. Portanto, como vê, à escala global nem sequer estou sozinho.

À escala de França, até diria que essa editora consegue ser ainda mais pequena que a &Etc.

Pois é.

O não estar sozinho, como disse ainda agora, traz-lhe alguma espécie de conforto?

Sim. E é preciso acentuar o seguinte: a &Etc não é, nem deseja ser, uma editora profissional. Aqui nós somos amadores, no sentido primeiro da palavra.

No sentido em que amam os livros.

Exactamente. Somos amadores. A parte profissional é entendida do ponto de vista meramente técnico. Ou seja, sabemos trabalhar o lado material dos livros, mas o espírito com que as coisas são feitas, o espírito com que estamos dentro disto, é um espírito amador. Fazemos isto por gozo. Embora o gozo tenha a outra face da moeda. Passamos por muitos tormentos e angústias, porque a debilidade económica faz com que o nosso trabalho esteja permanentemente em risco. Sei que, a curtíssimo prazo, posso ter que fechar a porta. Mas admiti isso desde a primeira hora e a verdade é que já temos quase 30 anos disto.

Uma das características do mercado é que nunca vê com bons olhos gestos de rebeldia como o vosso.

Eu também não vejo com bons olhos o mercado, pá. E amor com amor se paga!

É um ódio mútuo?

Não lhe chamarei ódio, não é preciso chegar a tanto. Ou se calhar é. Se estivermos a falar do mercado como sistema, e até como ideologia, então sim, ponha aí a palavra ódio. Há uma recusa tão compulsiva que pode tomar as características do ódio.

A hipotética falência da & Etc não lhe tira o sono?

Repare numa coisa: mesmo se vendesse todos os livros de cada edição, nunca teria lucros. À partida, os livros estão condenados a dar prejuízo. Mas atenção, é um prejuízo calculado. Quer que lhe dê um exemplo, com números? Lá vamos nós falar economês. Supunhamos que esta casa chega ao fim do ano e tem um prejuízo de 1200 contos. Dividido por 12, dá 100 contos por mês. Bom, somos aqui uns tantos, podemos sempre repartir os gastos. Não era uma pena fecharmos a porta por tão pouco? Esse dinheiro não podia ser gastos numas quantas noitadas nas Docas, hum? Então pronto, em vez de gastarmos 100 contos nesses alegres vícios, gastamos os mesmos 100 contos neste outro alegre vício, nesta nossa amante. Porque a &Etc é uma amante.

Das exigentes?

Das exigentes, é verdade. Daquelas que puxam por muita lágrima.

Já lhe deu alguns desgostos?

Muitos, muitos. Tantos. Há sempre uma ilusão e sempre uma grande tristeza, quando sabemos que fizemos uma coisa bela e a vemos entrar no mais absoluto dos silêncios. Isso custa muito. Mas já lá dizia o Camões: aquilo que não nos mata, torna-nos mais fortes.

Não teme ser visto como um D. Quixote, alguém que luta contra gigantes mesmo quando já se percebeu que não passam de moinhos?

Bom, eu não entendo o D. Quixote como um tonto.

Nem era isso que eu queria dizer.

Eu sei, mas não me importo de aplicar a mim mesmo o termo de idiota. E há aí uma componente que em parte justifica esta maneira de estar e de ser. A verdade é que eu li desde bastante cedo, li muito e à maluca, li tudo o que me vinha parar à mão. E mercê dessas leituras, de miúdo e depois de adolescente, criou-se em mim um idealismo fortíssimo. Andando a pé ou de eléctrico, exactamente como hoje, eu levava sempre comigo livrinhos e romances que me emocionavam e me faziam olhar para a cidade como se ela estivesse dentro de uma ficção, uma aprazível ficção. Por um lado tinha que enfrentar a dureza da vida – aos 13 anos já era paquete de um escritório –, mas por outro lado refugiava-me nesses outros universos imaginários.

Tal e qual como D. Quixote, que também se refugiava nos livros…

Exacto. O que acontece é que as pessoas, quando têm de entrar na chamada idade adulta, com responsabilidades, mulher, filhos, essas coisas todas, deixam esses idealismos escondidos algures, como o Mário Soares deixou o socialismo dele na gaveta. Nesse aspecto, posso afirmar que não cresci. Não me vejo como um adulto cheio de responsabilidades. Posso até dizer que o meu trabalho é de uma muito alegre irresponsabilidade. Além do mais, pude garantir com isto um estatuto económico muito idêntico àquele que tinha quando nasci e cresci. Nasci pobre, muito pobre. E hoje continuo a ser pobre.

Provavelmente nunca quis ser rico.

Nunca quis, nem pensar nisso. Nunca tive tal apetência. Não senhor. São parcas as minhas necessidades e estou couraçado contra vícios aos quais sei que jamais poderei chegar.

Uma dessas parcas necessidades é viver com livros à volta, não é?

Sim, isso sim. E não apenas os livros. Longe disso. Olhe, eu também faço a minha comida e gosto muito de ir comprar os carapaus e de arranjá-los, fritá-los, isso tudo. E viver com as pessoas de que gosto, com as pessoas que amo. E conversar. E se não me apetecer pôr aqui o pé, nem ponho. Esta casa não me obriga a nada, nem a mim nem a ninguém. É outra coisa espantosa: da porta para dentro, aqui vive-se em liberdade. E desta porta para fora, não.

Essa falta de liberdade de que forma é que o atinge?

Angustia-me. Não esqueça que tenho 63 anos e que comecei a ser lúcido, politicamente, a partir dos meus 17, 18 anos. Portanto, pude sofrer com a situação da ditadura política que tínhamos em Portugal. A sensação que eu tenho hoje, é de que se saiu dessa ditadura, política e policial, para uma outra ditadura. E como ditadura que é, ela oprime multidões e multidões e multidões, que até podem não dar por isso.

Porque existe uma ilusão de liberdade, é isso?

Existe uma ilusão de liberdade, chama-se-lhe democracia como um processo formal, mas as pessoas continuam obviamente oprimidas. Se é evidente que se garantiram uma quantidade de liberdades, ao mesmo tempo criaram-se novas formas, ainda mais complexas, de escravização das sociedades. No que é fundamental, acho que não se têm dado tantos passos como isso no sentido da libertação do homem.

Olhando para o seu caso, eu diria que há uma espécie de teimosia, uma persistente recusa de baixar os braços…

Talvez tenha alguma teimosia. Mas vejamos: acho que nunca tive a pretensão de mudar o mundo. Não quero é que o mundo, o mundo de que eu não gosto, me mude a mim. Ai isso não deixo. A haver teimosia, é só esta.

Por que é que a &Etc nunca tentou obter apoios financeiros do Estado? Foi para não ficar refém?

Olhe, foi por vergonha e por orgulho. Teria vergonha de estender a mão. E tenho orgulho em não o fazer.

Como é o relacionamento com os autores que vai publicando?

O que é que acha?

Eu consigo imaginar, mas preferia que me dissesse.

São relações de enorme companheirismo, que às vezes evoluem para amizades que valem uma vida. Amizades fortíssimas, tão fortes como certas paixões. Firmes, sólidas, à prova de bala.

E que tipo de contacto é que mantém com as outras editoras portuguesas?

É um contacto muito esporádico. Conheço alguns editores e às vezes cruzo-me com eles, embora não faça vida social. Não tenho nada contra as editoras comerciais. Eu próprio, muitos anos antes de ter entrado nesta aventura, já estive à frente de uma casa editora prestigiada e bem implantada no mercado.

A Ulisseia.

Exacto. Era uma editora que funcionava nos moldes tradicionais. Eu, ao ir para lá, é que não sei se funcionava nos moldes tradicionais, mas isso é outra história. Fui para lá com o mesmo espírito com que estou aqui. Para fazer só aquilo que me dava na gana. E foi o que fiz…

Permitiram-lhe assim tanta liberdade?

Permitiram, sim senhor. Gozei de toda a liberdade para fazer o que muito bem entendia. Olhe, a liberdade era tanta que tive a PIDE sempre à perna…

Quanto tempo durou essa passagem pela Ulisseia?

Não sei ao certo, tenho fraca memória para datas, mas admito que entre dois e três anos.

E qual foi a razão para sair?

Saí porque estava muito tempo sentado, tinha gravata e para publicar os livros nem precisava de os ler. Quer dizer, o sistema estava a rodar por si mesmo e eu já não estava lá a fazer nada.

Na & Etc, pelos vistos ao contrário do que se passava na Ulisseia, não há programação nem um calendário para as obras a publicar. Como é que faz a escolha? É caso a caso?

É caso a caso. E acaso a acaso. A porta está aberta a esses acasos. Nós lemos sempre todos os manuscritos. E quando gosto de um determinado livro, atiro-me imediatamente de cabeça, avanço logo de olhos fechados. Muitas vezes, ainda nem sequer conheço o autor. Ou melhor, passei a conhecê-lo a partir daquilo que está escrito. É uma coisa que acontece com bastante frequência.

Disse que nasceu num meio pobre. Mais propriamente no bairro da Madragoa…

Exacto. Sou lisboeta da Madragoa, onde ainda vivo.

E como é que o lisboeta da Madragoa olha para a sua cidade?

É uma relação de amor-ódio. Amo muito a minha cidade, sobretudo os bairros populares. E, vá lá, também a zona da Lisboa romântica: Chiado, Bairro Alto. O resto, para mim, já é estrangeiro.

Consegue imaginar-se a viver fora de Lisboa?

Não, não me concebo fora dela nem longe das suas gentes, das suas pessoas. Nada me tira a minha bicazinha, de manhã, na pequena leitaria da Rua da Esperança. Agora, à força de amar tanto esta minha cidade, é evidente que sofro tremendamente com ela, nomeadamente com os atentados a que tem sido submetida, quase sempre em nome de falsas noções de modernidade e do bimbismo dos decisores.

Inclui o projectado elevador para o Castelo de S. Jorge no rol desses atentados?

Claro que sim. É inconcebível. Como é que isto pôde passar pela cabeça de alguém? Porque isto teve que nascer nalguma cabeça, não é?

Sim. Nasceu numa cabeça mas depois passou por outras…

Pois, nasceu numa e depois alastrou, já se vê, um mal nunca vem só. É inconcebível. Como é possível que em plena baixa pombalina se vá erguer aquela torre de betão, com uma passerelle, que nos vai roubar a vista das muralhas do castelo? E o que acontecerá às pessoas que agora podem contemplar, das suas janelas, toda a baixa e o convento do Carmo na outra colina? Vão ficar emparedadas por aquela porcaria, é o que é.

Que outros atentados o têm chocado?

Histórias destas são às montanhas, são umas atrás das outras. Veja o bimbismo nacional da roda gigante: só porque Paris e Londres também têm, então punha-se aquela porcaria ali ao alto do Parque Eduardo VII, a dar cabo do jardim do Ribeiro Teles e tornando o monumento-pilinha do Cutileiro ainda mais pequenino, por causa da escala. E há mais: entra na cabeça de alguém que o largo do Chiado tenha ido para o maneta por causa da bocarra do metropolitano? A lista é interminável, infelizmente. E eu fico a ferver com estas coisas. Anda para aqui um desvario qualquer.

No seu discurso existe sempre, de forma latente ou explícita, um impulso de rebeldia…

Sim, sim, mas atenção, só assumo essa rebeldia se acrescentar que é uma rebeldia com causa.

Muito bem. E quando é que essa rebeldia com causa começou a manifestar-se na sua vida?

Quando li os primeiros livros do Alves Redol, do Maximo Gorki, do Zola. Com eles, comecei a ter consciência de um mundo cruel e injusto, feito de poderosos e de miseráveis. Nascia assim um movimento de rebeldia para o qual não podia dar vazão. O meu pai era marítimo e, como andava sempre em viagem, gostava de ler e comprava indistintamente as «Selecções do Reader’s Digest» e romances dos autores que estavam em voga na altura: Blasco Ibañez, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro. Eu, lá em casa, mal comecei a gostar de ler, devorei essa literatura toda.

Era mais parecido com o seu pai ou com a sua mãe?

Era uma mistura de ambos. A minha mãe era uma espécie de Ana Magnani, uma magnífica fera, de uma frontalidade a toda a prova, sem qualquer verniz ou diplomacia. O meu pai era um ser muito mais interiorizado, mais reflexivo, mais diplomata. A minha natureza mais profunda vem mais da minha mãe, até porque eu vivi sempre num universo de mulheres.

O que é que ela fazia?

Tinha um trabalho medonho, de carga e descarga de peixe e de carvão. Também trabalhou na fábrica de anchovas, no outro lado do rio. De modo que eu ficava em tudo quanto era casa de vizinhas e sobretudo com a minha avó, mãe dela, que praticamente me criou. Mas a extrema miséria, miséria mesmo, em que eu nasci e cresci, nunca a senti enquanto miúdo. Era muito protegido por ser magrinho, na altura as crianças morriam como tordos e aquelas que não morriam – a mim aconteceu-me não morrer – eram extremamente acarinhadas. Eu vivia na rua, a brincar com os outros putos do bairro, e lembro-me da dificuldade tremenda que tive em calçar os primeiros sapatos.

E essa avó protectora, que imagem guarda dela?

Essa minha avó era uma maravilha de mulher, não houve nada que ela não fizesse e eu acompanhava-a sempre. Desde empalhar cadeiras até lavar roupa no lavadouro municipal da Travessa do Pasteleiro, passando pelo fado, cantado pelas tabernas com um irmão. Às cantorias noite dentro não me levava, claro, mas cheguei a assistir a cegadas. E participei, ao colo dela e de umas tias, nas marchas populares. Ainda hoje, quando a Madragoa ganha, eu rejubilo. Estou à janela, olho para baixo, está a marcha a passar e lá fico todo contente.

Não renega, portanto, o seu passado.

Pelo contrário, tenho muito orgulho. Ao fim e ao cabo, e depois de tantos anos no meio artístico, sei de ciência certa que onde encontro mais carácter, solidariedade e bondade humana é entre a gente pobre do meu bairro. Isto apesar da invasão dos bárbaros. E chamo bárbaros àquela gentalha, normalmente com popó, que entra no bairro para frequentar os bares e as discotecas. Este bairro que tinha má fama – de gente agressiva, muito putedo, artistas e outras coisas que tais – era, meu deus, um autêntico eden comparado com o que se passa agora. Esses novos bárbaros partem tudo, instalam a violência onde ela não havia e até reacenderam os conflitos raciais.

Embora seja um lisboeta dos sete costados, houve uma época em que viveu em África, mais propriamente em Angola. Como é que foi lá parar?

É uma longa história. Olhe, passados aí uns seis ou sete meses do meu primeiro casamento, vejo-me metido no porão de um navio, ao lado de ciganagem, tipo Tarzan a caminho das Áfricas. Isto foi em finais dos anos 50, à volta de 1959. Eu ia lá ter com um amigo que comprara uma máquina Paillard, de 16 mm. Eu queria fazer filmes e também, se possível, formar um pequeno grupo de teatro itinerante. A aposta principal era nos documentários, no cinema de levantamento antropológico. Acontece que levava pouco dinheiro e mesmo esse foi roubado no barco. Ou seja, chego a Luanda sem conhecer ninguém e sem um tostão no bolso.

Não tinha combinado encontrar-se com um amigo?

Tinha. Mas esse amigo, que era suposto estar à minha espera em Luanda, falhou, não estava. Passei logo ali um primeiro susto, porque ele era de Benguela e aquilo é um país enorme, a distância de Luanda a Benguela é como daqui a Paris. Mas lá acabei por chegar.

E os projectos que levava na cabeça, sempre se concretizaram?

Não. Em pouco tempo, os sonhos desfizeram-se. Por exemplo, a máquina Paillard estava lá mas não havia película. Depois, o tal amigo acabou por morrer, foi dos primeiros portugueses a morrer no norte de Angola, ainda a guerra mal começara. Aliás, ou morreu ou suicidou-se. Parece que se suicidou, não aguentava ser militar.

O que é que decidiu fazer, nessa altura?

Fiquei para ali transplantado, longe de tudo. Entretanto o casamento foi à vida, já se sabe, e eu peguei no que havia, porque precisava de comer. Foi assim que, durante dois ou três meses, o meu trabalho consistiu em dactilografar o cadastro de tudo o que era carro entrado na colónia desde mil novecentos e troca o passo. Por ordem alfabética, AB-59-63, AC-24-72, etc, etc, etc. E lá estive eu a fazer aquela porcaria, com uma temperatura média de quarenta e tal graus centígrados e pelo menos 90% de humidade. Era o chamado «cemitério dos brancos».

As actividades culturais ficaram entre parênteses?

Não, não. Paralelamente, lá fui animar o cineclube local e comecei a escrever, à borla, no jornal de esquerda do sítio, que se chamava «O Intransigente». Às tantas, um camarada lá da repartição vai de férias, ou transferem-no, e é aí que durante alguns meses vou ocupar o lugar dele como examinador das cartas de condução. Logo eu, que não tenho carta nem nunca soube guiar!

Devia ser complicado.

Nem por isso. É que a maior parte dos candidatos que apareciam eram gajos com aqueles camiões enormes que levavam peixe seco para o interior, gajos que quando nasceram já sabiam conduzir. Esses tipos estavam automaticamente passados e íamos depois comemorar para o restaurante, comendo uns baldes de camarão, bebendo umas cervejolas, etc. Era uma festa.

Presumo que a festa não durou muito…

Claro que não durou muito. Estava eu descansadinho a fazer esta vida quando vem o engenheiro da repartição e diz que finalmente me ia tirar dali, para me colocar noutra sala qualquer. Percebi logo tudo e saí porta fora, sem dizer boa tarde. A não ser aos colegas, claro, para os quais me virei dizendo: «Até já, a gente encontra-se ali na esplanada». Ou seja, nunca mais voltei a pôr lá os pés.

Tinha para onde ir?

Não, não tinha. Durante uns quatro ou cinco dias fui para a praia, deitava-me, comia uns caranguejos e pensava: agora vou morrer aqui. Não morri. Voltei a não morrer. Ao sexto dia, o director do tal jornal onde eu já escrevia à borla, velho republicano maçon, convidou-me: «Oh Vitorzinho, gostava muito que viesses trabalhar comigo mas o jornal é pobre, só te posso pagar cinco contos». Eu nem hesitei. Pedi-lhe logo que me indicasse onde ficava a minha secretária. E assim fui parar à vida de jornalista.

Em que circunstâncias se deu o regresso a Portugal?

Bom, é preciso ver que eu chego a Angola em 1959. As eleições presidenciais tinham sido em 58, sendo que em Benguela, e também no Lobito, o Humberto Delgado ganhara nas urnas, oficialmente. Quer isto dizer que havia um grupo de activistas políticos muito forte. Às duas por três, vejo-me enfronhado até à raiz dos cabelos na política local. Por causa disso, sofro dissabores e mais dissabores que culminam naquilo que poderia apelidar de rico pontapé no cu cá do vosso amigo. Certamente para evitar males maiores, chutaram-me para dentro de um navio, recambiado para a metrópole.

Foi difícil, o reencontro com a «pátria»?

Foi, muito. Quando chego ao meu país, tenho uma grande dificuldade de adaptação. Mas vinha com uma convicção, uma só, inabalável: nunca mais, na puta da vida, vou fazer aquilo que não quero e aquilo de que não gosto; nunca mais, na puta da vida, vou ter um patrão. Se para isso tiver que morrer depois de amanhã, não me importo: conheço já a cor e o cheiro da morte. Sim, conheço já a cor e o cheiro da morte. (pausa longa) Esta convicção inabalável permaneceu – e permanece – inabalável.

Estávamos portanto em Lisboa, no princípio dos anos 60. Qual era o seu ganha-pão? Escrevia para os jornais...

Sim senhor, começo a escrever nos jornais e não só. Colaborava na Flama, do Rolo Duarte, com críticas de cinema. Escrevia contos para o Diário Popular, crónicas à borla para o República e até textos para a Crónica Feminina – a troco de ir comer umas bifanas e um caldinho do dia aos Irmãos Unidos, ali na Praça da Figueira. Era um pardal, andava por todo o lado.

É então que surge a oportunidade de trabalhar na Ulisseia?

Sim. É aí que funciona a tal teoria dos acasos. De um momento para o outro, deixo uma situação de vagabundagem e passo a dirigir uma editora como a Ulisseia. Mero acaso. Comecei então a fazer o gosto ao dedo, publicando quem eu gostava. Tenho muito orgulho de ter publicado o Mário Cesariny de Vasconcellos, o Herberto Helder, o Alexandre O’ Neill, o Pacheco e por aí fora. Mais tarde, saí pelas circunstâncias que já lhe disse, numa altura em que até ganhava bastante bem.

E então surge o suplemento & Etc?

Exacto. É aí que começa a nascer o primeiro & Etc. Porque o primeiro &Etc foi um magazine de artes, letras e espectáculos do Jornal do Fundão. O que é que se tinha passado? Aquando da atribuição do Prémio Camilo Castelo Branco ao Luandino Vieira, a PIDE prendeu os membros do júri, além de ter destruído a sede da Associação Portuguesa de Escritores. Ora bem, um dos membros do júri era o Alexandre Pinheiro Torres, que paralelamente era o responsável pelo suplemento cultural do Jornal do Fundão. Depois do escândalo, é óbvio que o Pinheiro Torres fez publicar, no dito jornal, o que muito bem entendeu sobre o assunto. Foi o suficiente para a censura mandar fechar aquilo tudo durante seis meses. E é então que o António Paulouro e o José Cardoso Pires pensam em retomar um suplemento de cultura, assim que a censura permitisse a reabertura do jornal. O Cardoso Pires falou comigo e começou a nascer a ideia de um suplemento com outro espírito, um magazine mais abrangente onde podia caber tudo: um filme (no primeiro número foi o Pierrot, le Fou, do Godard), um fadista (o Alfredo Marceneiro, por exemplo) ou um bar que tivesse acabado de abrir (na altura, foi o Snob). Era um outro conceito de cultura. E naquele suplemento, chamado &Etc, já estava presente muito do espírito do que veio a ser, mais tarde, esta casa.

Pode dizer-se que o suplemento foi uma aventura relativamente efémera?

Depende. Eu não sei as datas precisas do início e fim da publicação, sei apenas que durou 25 números (o que não é tão pouco como isso) e que morreu de morte macaca. De 15 em 15 dias, eu ia para o Fundão fazer o suplemento. Metia-me na auto-motora da Covilhã, inverno ou verão, e lá fazia o caminho. Lembro-me que por vezes chegava muito tarde, duas ou três horas da manhã, já com as instalações fechadas, e o Paulouro deixava-me uma porta da oficina aberta para eu entrar. Depois, no gabinete dele, dentro de um cestinho, estava sempre um bife com ovo a cavalo ou coisa parecida, para eu matar a fome. Na manhã seguinte, começava a compor o jornal na tipografia.

E a tal morte macaca, como é que se deu?

Ora bem, um dia o suplemento foi à censura de Castelo Branco e quando o contínuo voltou trazia as oito páginas do suplemento cortadas. Além disso, tinha havido umas fricções causadas pela acusação de que atacávamos os escritores de esquerda. Pudera, dos de direita nem sequer falávamos! Agora, com os de esquerda éramos exigentes, lá isso éramos. A associação das duas coisas ‑ por um lado a censura, por outro as tais fricções – precipitou a morte do projecto. Disse ao Paulouro que é preciso saber pôr pontos finais, mas acrescentei: «eu seja cão se não for para Lisboa fazer um escabeche do caraças na censura, para que se salve alguma coisa e então que este seja o último &Etc». Foi.

Logo a seguir, passa a coordenar o suplemento literário do Diário de Lisboa.

Sim. Pouco depois, o Cardoso Pires convida-me para o DL e como ele foi ocupar um lugar de leitor de português numa universidade inglesa, deixou-me aquele filho nos braços. É na passada desse trabalho que nasce a ideia, minha e de mais 15 pessoas, de fazer então uma revista cultural autónoma, também chamada &Etc, e que foi a mãe, digamos assim, da editora. Era aquilo a que nós chamávamos «folheca cultural q.b.». A revista durou o que durou, com uma periodicidade muito irregular: saía quando saía. Ou seja, quase nunca saía.

Voltando um pouco atrás. Nunca escondeu a sua admiração por Almada Negreiros, a quem dedicou um belíssimo texto na revista «Ler». É verdade que chegou a trabalhar com ele?

Com ele e com o dr. Fernando Amado.

Em que circunstâncias?

No teatrinho da Casa da Comédia, que era uma antiga carvoaria. Começámos com uma adaptação do Regresso ao Paraíso, de Teixeira de Pascoaes, encenado pelo dr. Fernando Amado, sendo eu o cenógrafo, figurinista, carpinteiro, mulher-a-dias, isso tudo. O dr. Fernando Amado era um grande amigo do Almada Negreiros. É então que nasce a ideia de se levar pela primeira vez à cena o Deseja-se Mulher, do Almada. Foi uma aventura extraordinária. Vou dar-lhe um exemplo. Eu era o cenógrafo e figurinista. E aquela peça tinha tudo: sereias, anjos, pombas, essas coisas. Com pouco orçamento, quase nenhum, tínhamos que improvisar. Se não há dinheiro para tule, compra-se rede de pescador, ali no Cais do Sodré. Já se sabe, a dificuldade aguça o engenho. Ora bem, um dos meus problema era como fazer os anjos. O Almada não queria daqueles anjinhos com asas, das procissões. Queria estar sentado em frente ao palco, ver uma coisa a passar da esquerda para a direita e perceber logo que aquilo só podia ser um anjo. Eu andava às voltas com o problema quando um dia vejo, ali para os lados do Conde Barão, um homenzinho a vender cabides. Olhei para os cabides e vi logo que eram anjos. Porquê? Com cartolina faz-se uma cabeça, pega-se em papel cortadinho à tesoura, mais uns bocadinhos de prata e lantejoulas e já temos vestido. Depois, desenham-se asas enormes feitas de cartolina, aplica-se no cabide e já está. O actor só tinha que se agachar dentro do vestido de papel e atravessar o palco a correr. Tudo aquilo abanava e brilhava, era uma visão feérica. Isto é só para lhe dar uma ideia do clima em que decorreu todo o erguer daquele espectáculo. Com um Almada e um Fernando Amado hiper-excitados, muitas vezes zangados, trocando diálogos interessantíssimos entre eles. O Almada a berrar: «oh, Fernando, tu desculpa mas não percebes nada disto». E o Fernando Amado a responder: «oh, Zé, tu é que não percebes nada daquilo que escreveste». Foi um momento triunfal. O espírito da Casa da Comédia era, também ele, um espírito maravilhosamente amador. Com uma exigência ética e estética total. Uma pureza absoluta.

E, parece-me, com uma atenção enorme ao lado humano…

Evidentemente que sim. Com toda a gama de alegrias, de emoções, de medos, de angústias. Era uma actividade totalmente humana, é evidente que sim. Sentíamos muito o lado sagrado do teatro, da representação, do verbo, da palavra, do corpo do actor.

Almada era considerado um artista de vanguarda. Que importância é que poderiam ter as vanguardas, hoje?

O problema é que as manifestações artísticas que passam por vanguardistas também estão sujeitas a uma lógica do espectáculo que lhes retira a independência e o voluntarismo, sem os quais não entendo que possa haver verdadeira vanguarda. Existem certos movimentos espontâneos que querem romper com cânones, tradições, etc, mas em breve são absorvidos pelo próprio sistema e entram na lógica do sistema. Então passam por vanguardas mas não o são. Chamemos-lhes vanguardas virtuais.

Acha que ainda há espaço para uma ruptura?

Eu queria é que houvesse uma ruptura com a subordinação da própria arte à ditadura económica. Que houvesse uma ruptura sobretudo aqui. Depois logo se veria o que é que iria dar, que forma iria assumir.

Quer dizer que, apesar das ressacas todas, das desilusões, das esperanças perdidas, ainda faz sentido acreditar em algo a que possamos chamar revolução?

Tudo o que possa contribuir para a ideia de revolução é útil. Mas por revolução não estou tanto a pensar num sistema social, mas muito mais numa revolução do espírito e, já agora, do espírito de cada qual. Porque revoluções sem revolucionários, já vimos no que deram.

Também há revolucionários sem revolução. É o seu caso?

Só me posso considerar revolucionário por comparação com aqueles que não o são de todo. O mais natural é não revolucionar coisa nenhuma. No entanto, percebi desde as minhas primeiras indignações que a luta contra a injustiça é uma progressão revolucionária. Não sei é se através do meu trabalho eu consigo ver estendida aos demais esta pulsão, este desejo. Não me imagino enquadrado em partidos políticos, mas apelo, isso sim, para a transformação da mentalidade do homem, no sentido em que o leve a fazer da sua vida aquilo que entende que deve fazer. E a recuperar toda a sua dignidade de homem, a sua palavra de homem. De homem livre.

Aquela convicção inabalável que assumiu no regresso a Portugal, vindo de Angola, vai continuar a ser cumprida?

Não faço retrospectivas nem penso demasiado no futuro, mas acho que tenho sido coerente com esses propósitos iniciais. As sinuosidades da minha vida não têm impedido essa coerência de base. Posso mesmo afirmar que não me tenho traído. Não traí o puto que fui, o puto que dentro do eléctrico lia Dostoievski e Zola. Não, nunca traí esse miúdo.


Entrevista de José Mário Silva publicada no suplemento DNA, do Diário de Notícias, a 24 de Fevereiro de 2001 (fonte)

Manuel António Pina (2009)


Tem uma fixação no Winnie The Pooh...

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser... Ao [ Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: "Quem é afinal Borges?"; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, "Borges não existe" [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: "Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei." É verdade - agora digo eu.

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionoume imenso. Foi A Vida Sexual, do Egas Moniz.

Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta...

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade - que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado - que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O ursinho não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra "criar", pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O'Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra natal".E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro..., onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo... Vou dizer-lhe um poema: "Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha." Começa assim. "Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas." Continua por aí abaixo.

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo... E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: "Como é jornalista, viaja muito?" "Não gosto nada de viajar!" E ela: "Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno..." Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto.

Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

Há um poema seu que diz assim: "A alegria da viagem é o regresso a casa."

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas.

Sabe o que é isto aqui?

São coisas importantes para tratar.

Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias... Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

Está.

"Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?" Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. "Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva..."

Vai insistentemente aos poemas... A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: "O que virei eu a ser?" O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária - a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de explicar isto...

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães... Tem filhos?

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. "Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel." O "que queres ser quando fores grande?", fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, "ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos"; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora leia aquilo como um romance.

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. "Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô...", "Não escrevi nada", "Escreveste, escreveste, encontrei-os ali". Queria convencer-me de que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. "Não escrevi nada, é mentira, foste tu." Esses versos terminavam assim: "Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor"! [gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: "Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres." Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.

E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que "a má poesia normalmente é sincera". Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

Como naquele seu verso: "A palavra sangue não sangra"?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto... A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. "De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?" Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: "Quem somos" ou "o que somos". É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: "Que o escritor é que quis ser eu." E é verdade.

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal... Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: "Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro." E na minha Bíblia tinha uma nota de rodapé: "Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina." Eu dizia à minha namorada: "Hoje tens mais Doutrina que Moral" [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.

O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.

Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da Bíblia. "Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor..." Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria."

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas.

A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender..., isto é insegurança.

Por que é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata - não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O'Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela está a fazer?

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão. As minhas amigas psicanalistas - são duas ou três - diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não - são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes..., a psicanalisar! Os psicanalistas contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito "forex", como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático - é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: "Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração." Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração como o Manuel Ferraz.

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: "Sou um sacana." Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, "olha o padre Januário!".

Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é que não a comprei? Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l'air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas para o Ar.

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

Por fim, os gatos. Por que é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque "quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela" - como escreve Pessoa.

(Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)



Entrevista de Anabela Mota Ribeiro publicada a 26 Abril de 2009, na revista Pública. Foto de Alfredo Cunha (fonte)

David Niven (1973)